18. A prisão de Anwar Awlaki
IÊMEN, 2004-7 — Quando Anwar Awlaki voltou ao Iêmen, em 2004, a história estava traçando para ele um caminho que o conduziria à infâmia internacional e a um confronto com o JSOC, a CIA e o programa de assassinatos dos Estados Unidos. Parece improvável que ele soubesse disso na época. Como poderia saber? Seu pai, Nasser, disse que a decisão de voltar a Sana’a deveu-se a motivos práticos e não foi indício de um radicalismo crescente. “Ele não conseguiu uma bolsa1 para estudar na Grã-Bretanha”, afirmou Nasser, e por isso “decidiu voltar ao Iêmen”. Mas o que aconteceu com Awlaki ao voltar para o Iêmen tornaria mais rígida sua opinião sobre as políticas americanas e o levaria a renunciar a qualquer lealdade que pudesse ter tido para com seu país de nascimento. Awlaki chegou a Sana’a e estava analisando seus próximos passos. Tinha planos de estudar na Universidade da Fé2 e foi convidado a pregar em algumas mesquitas. Numa palestra na Universidade de Sana’a, ele falou sobre o papel do Islã no mundo e condenou a guerra americana no Iraque. Ele, a mulher e os filhos se instalaram na casa de Nasser, perto da universidade. Nessa época, seu filho mais velho, Abdulrahman, tinha nove anos. Como o pai, em seus primeiros anos de vida tinha sido criado como americano. Era um menino magro, de óculos, muito parecido com o pai quando tinha a sua idade. Anwar “pensou em criar um centro de ensino do Islã e também da língua — para ensinar o árabe a não muçulmanos e coisas assim”, lembrou Nasser. “Ele pensava em fundar sua própria escola, algo como uma escola fundamental. Queria pregar com regularidade até encontrar um trabalho adequado para si.” Contudo, os Estados Unidos não tinham se esquecido de Awlaki, e agentes da Inteligência iemenita estavam em seu encalço desde o dia em que chegou ao país. Awlaki tinha se acostumado a viver vigiado e fazia o possível para ganhar a vida. Mas a religião — sua fé — era sua verdadeira paixão. Passava muito tempo diante do computador, gravando sermões e mantendo uma assídua correspondência com seus seguidores no exterior. “Ele dava palestras pela internet”, disse Nasser. “E tentou também abrir um negócio, sabe, uma imobiliária, algum empreendimento. Estava tentando trabalhar como qualquer pessoa, comprando e vendendo propriedades.” Nasser riu, balançando a cabeça, e acrescentou: “Sabe como é, isso não deu certo”. Os filhos de Awlaki estavam adorando o tempo que passavam com os avós, tias e tios, e a família começou a construir um apartamento separado para Anwar e família no terreno de sua casa em Sana’a.
Os membros da família Awlaki falam dessa época como um período de meditação para Anwar. Parece claro que em 2006 ele tinha admitido o fato de que sua vida como americano acabara. O FBI não ia deixá-lo em paz. As guerras do Iraque e do Afeganistão o enfureceram. Passava dias e noites sem fim refletindo acerca de como os muçulmanos deviam reagir às guerras, do Iraque a Gaza, ao Afeganistão e mais além. Seus sermões se tornavam mais rígidos. Com frequência ele debatia a natureza da jihad com seus correspondentes. Parecia realmente estar lutando para descobrir suas próprias verdades em relação ao mundo do pós-Onze de Setembro. Mas Anwar não fazia referência à Al-Qaeda, pelo menos num sentido positivo. “Era tudo normal, e pensamos que ele tinha deixado tudo aquilo [os Estados Unidos] para trás”, lembrou Nasser. “E estávamos construindo nossa casa, fizemos um apartamento para ele e tudo o mais. Então, na verdade, para mim estava tudo normal. E ele só estava trabalhando em seus sermões e coisas assim. Nada além disso.” Nada além disso até que Anwar foi posto na cadeia. “Esse foi o divisor de águas”, disse Nasser.
Anwar Awlaki era um preso político. Em meados de 2006, quando foi detido por forças iemenitas apoiadas pelos Estados Unidos, houve um pretexto. Algo como o fato de ele haver intervindo numa disputa tribal.3 Entretanto, como na maior parte das prisões por motivos políticos, isso foi apenas uma desculpa mal disfarçada para encarcerá-lo. Anwar foi preso de noite e confinado numa solitária na temida prisão de Sana’a4 dirigida pela Organização de Segurança Política (Political Security Organization, PSO), que trabalhava em estreita colaboração com a Inteligência americana. Depois que ele foi preso, agentes da Inteligência iemenita confiscaram5 seu computador e as gravações de palestras feitas na Universidade da Fé. Nunca houve acusações concretas contra ele. Anwar jurava que era o governo americano que o mantinha preso, de modo que Nasser procurou a embaixada dos Estados Unidos para pedir ajuda. Afinal, Anwar era cidadão americano. Certamente eles conheciam Anwar, pensou Nasser. Era aquele que estava sempre na TV depois do Onze de Setembro, o “imã para toda obra”. Um funcionário da embaixada disse que pouco podia prometer além de que “tomaria conta”6 de Anwar. “Durante nove meses,7 fiquei confinado numa solitária subterrânea. Eu diria que a cela media cerca de 2,5 metros por 1,20 metro”, lembrou Awlaki mais tarde. “Não tinha lápis ou papel, nem fazia exercício algum. Fiquei todo esse tempo sem ver a luz do sol.” Ele disse que “não tinha contato com ninguém além dos guardas da prisão”. Não há dúvida de que os Estados Unidos estavam ligados à prisão de Anwar. “Acho que fui preso a pedido do governo americano”,8 disse ele. “Fiquei sob custódia sem explicação alguma.” Assim que foi preso, lembrou ele, os agentes da Inteligência iemenita “começaram a fazer perguntas9 sobre minhas atividades islâmicas no país, e daí em diante foi se tornando claro que
eu fora preso a pedido do governo americano. Foi o que eles me disseram”. Também disseram a Awlaki que os Estados Unidos queriam que seus próprios agentes o interrogassem. No relatório de um inspetor especial das Nações Unidas sobre execuções extrajudiciais sumárias ou arbitrárias é informado que Awlaki tinha sido preso “a pedido do governo dos Estados Unidos”.10 O New York Times noticiou que John Negroponte, que na época da prisão de Anwar era diretor nacional da Inteligência americana, “disse a autoridades iemenitas que os Estados Unidos não se opunham a sua prisão”.11 Mas a atuação americana foi além de não fazer oposição. Uma fonte iemenita com estreitas ligações com Awlaki e com o governo do país contou-me sobre uma reunião entre Negroponte,12 o embaixador americano no Iêmen e o príncipe Bandar bin Sultan, ex-embaixador saudita nos Estados Unidos. Bandar era extremamente próximo do governo Bush e do presidente em particular — tão próximo que seu apelido era “Bandar Bush”.13 Essa mesma fonte disse que tinha conversado com o embaixador iemenita e que este revelara que Negroponte disse algo como: “Foi ótimo vocês terem prendido Anwar. É bom. Porque o que nos preocupa é a [sua] pregação, os sermões, temos medo de que ele venha a influenciar jovens no Ocidente”. O embaixador iemenita, ainda segundo minha fonte, disse a Negroponte:
Olhe, não há acusação alguma contra Anwar, não podemos deixá-lo preso indefinidamente. Gente de tribos do Iêmen, amigos [de Anwar], grupos de direitos humanos americanos e britânicos estão escrevendo cartas a Condoleezza Rice e a nós sobre sua prisão. Por isso não podemos deixá-lo preso indefinidamente.
A resposta de Negroponte, disse minha fonte, foi: “É, mas vocês precisam fazer isso”. Em novembro de 2006, Nasser Awlaki encontrou o presidente do Iêmen, Ali Abdullah Saleh, numa conferência sobre desenvolvimento em Londres. “Pedi a ele que soltasse meu filho”, lembrou Nasser. “E ele disse: ‘Há problemas com os americanos, vou tentar resolvê-los e solto seu filho’.” Saleh bin Fareed, tio de Anwar, com quem ele ficara durante um curto período na Grã-Bretanha, é um dos mais poderosos xeques tribais do Iêmen. É o chefe da tribo aulaq, a qual pertencia Anwar, que conta com cerca de 750 mil pessoas.14 No Iêmen, são as tribos e não o governo as detentoras de poder e influência, e os aulaqs não tolerariam que Anwar ficasse preso sem acusações. Bin Fareed disse-me que procurou o presidente Saleh e perguntou-lhe por que Anwar estava preso. “Os americanos pediram que ele continuasse na cadeia”,15 respondeu Saleh. Segundo Bin Fareed, os americanos disseram a Saleh:
Queremos que ele fique preso uns três ou quatro anos. [Anwar] fala bem — a razão que eles nos deram é que ele fala muito bem, muita gente lhe dá ouvidos nos Estados Unidos,
principalmente jovens. E no mundo inteiro também. E queremos que ele fique [preso] alguns anos, até que o esqueçam.
Quando o presidente Saleh visitou Washington,16 pouco depois de Anwar ter sido preso, reuniu-se com o diretor do FBI, Robert Mueller, com o diretor da CIA, George Tenet, e com outras autoridades da Inteligência americana. Saleh disse a Nasser que tinha discutido o caso de Anwar com eles. Na verdade, ele disse que tinha perguntado diretamente ao presidente Bush sobre Anwar. “Se vocês têm alguma coisa contra Anwar al-Awlaki, digam o que é”, Saleh teria dito a Bush. “Se não disserem, vamos soltá-lo.” Ao que o presidente Bush teria dito: “Dê-me dois meses para que eu responda”. Passaram-se dois meses e Nasser recebeu uma ligação do chefe da Organização de Segurança Política, o general Galib al-Qamish. “Dr. Nasser”, ele disse, “por favor peça a seu filho que colabore com os interrogadores que estão vindo de Washington para vê-lo.” Nasser foi até e prisão para falar com ele.
Eu disse a meu filho: “Por favor, você sabe que queremos resolver isso de uma vez por todas. Por que não colabora e aceita receber essa gente?”. E [Anwar] disse: “Estou disposto a me encontrar com eles. Encontrei-me com eles nos Estados Unidos e vou fazer o mesmo no Iêmen”.
Os agentes do FBI que vieram entrevistar Anwar ficaram dois dias.17 Awlaki “foi levado a uma sala18 e quando se deparou com os americanos não se pôs na posição de acusado; pelo contrário, entrou na sala [e] se comportou como um chefe”, lembrou Shaykh Harith al-Nadari, que estava preso com ele.
Escolheu a melhor cadeira, comeu as frutas oferecidas pelos iemenitas aos americanos e serviu-se de uma xícara de chá. Perguntei-lhe sobre a natureza da investigação. Ele disse que tudo aquilo era para encontrar uma mínima infração que permitisse que ele fosse levado a um tribunal americano. Foi um interrogatório, disse ele. No entanto, eles não encontraram o que procuravam.
A Inteligência iemenita insistiu19 para ter seus próprios representantes na sala. Awlaki disse que, ao ser interrogado pelos agentes americanos durante dois dias, “houve certa pressão,20 que me recusei a aceitar, o que levou a um conflito entre mim e eles, porque achei aquele comportamento inadequado da parte deles […]. Mas isso se solucionou e eles pediram desculpas”. Anwar, segundo Nasser, colaborou com os interrogadores. Mesmo assim, passaramse dias e semanas e ele continuou atrás das grades.
Quando a família Awlaki exigiu que o regime lhe desse explicações, o presidente iemenita pôs as cartas na mesa. O vice-presidente Abd Rabbuh Mansur Hadi disse a Nasser que o presidente tinha de lhe propor uma escolha difícil: ele queria que Anwar continuasse preso ou que fosse libertado “para ser morto por um drone americano?”. “E então o presidente do Iêmen me disse: ‘Deixe seu filho na prisão e não o faça sair, porque se sair vai ser morto’”, disse Nasser, esclarecendo que na época ele acreditava que “o único motivo pelo qual meu filho era visado pelos Estados Unidos era por causa de sua popularidade entre os muçulmanos anglófonos do mundo”. E concluiu: “Acho que Ali Abdullah Saleh sabia de alguma coisa”.
Enquanto a família lutava por sua liberdade do lado de fora, dentro da prisão Anwar se dedicava aos livros. Todos que pudesse conseguir. Durante os dois primeiros meses, o Alcorão foi o único livro que lhe permitiram. Mais tarde, Awlaki diria que via sua “prisão como uma bênção”,21 pois ela lhe proporcionou a “oportunidade de reler o Alcorão, estudá-lo e lê-lo de um modo que seria impossível fora da cadeia. O período em que estive preso foi de férias deste mundo”. Disse também que “foi porque eles me tiraram tudo22 e me deram o Alcorão, que ele ganhou esse significado diferente”, acrescentando que:
É por causa das distrações à nossa volta que não tiramos o máximo de proveito do Alcorão. Mas quando uma pessoa está naquele lugar solitário, todas as distrações desaparecem e nosso coração se fixa na palavra de Alá, e as palavras assumem um significado completamente diverso.
Finalmente, Awlaki pôs as mãos no livro À sombra do Alcorão, de Sayyid Qutb. Havia algumas coincidências significativas entre as experiências de vida de Awlaki e as de Qutb, acadêmico e pensador egípcio cujos escritos e ensinamentos mais tarde seriam considerados a base intelectual dos movimentos militantes islâmicos. No Egito, ele era um dissidente que defendia a implantação de um governo islâmico. Da mesma forma que Awlaki, tinha passado algum tempo no Colorado,23 e em 1949 matriculou-se na Faculdade Estadual de Educação do Colorado. Depois de sua permanência nos Estados Unidos, Qutb investiu contra o que percebia como excessos da cultura americana — mulheres com pouca roupa, o jazz, lutas, o futebol e o álcool. Rotulou a sociedade americana de “primitiva”, dizendo que seu povo era “insensível à fé24 na religião, à fé na arte e também à fé em valores espirituais”. Quando voltou ao Egito, Qutb estabeleceu estreitos vínculos com a Irmandade Muçulmana. Em 1954, foi detido e mandado para a cadeia,25 onde permaneceria durante a maior parte de sua vida futura. Foi torturado na prisão, onde também escreveria seus textos mais influentes,26 entre eles o livro que Awlaki leria em sua cela meio século depois. Em 1966, Qutb foi enforcado27 depois de declarado culpado de
conspiração para derrubar o governo egípcio. Awlaki disse que ficou “tão envolvido28 pelo autor que sentia como se Sayyid estivesse em minha cela, falando diretamente comigo. Minha leitura na prisão tinha uma peculiaridade: eu podia sentir a personalidade do autor por meio de suas palavras. Assim, embora eu estivesse confinado numa solitária, nunca estava sozinho”. Awlaki disse que tentou limitar a leitura a trinta páginas por dia, “mas por causa do estilo fluente de Sayyid eu lia diariamente entre cem e 150 páginas. Na verdade, lia até cansar os olhos.
Meu olho esquerdo se cansava antes do direito, então eu o tapava com a mão e continuava lendo com o olho direito até que ele não aguentava mais e simplesmente se fechava. Minha visão começou a ficar prejudicada, principalmente a do olho esquerdo. Fosse por causa de ler demais, ou pela pouca luz, Alá é quem sabe. Soube que problemas de visão e dos rins eram as queixas mais comuns entre os prisioneiros.
Ele leu também obras de Charles Dickens (Tempos difíceis), Shakespeare (Rei Lear) e Herman Melville (Moby Dick). “Um diretor da prisão especialmente mau29 decidiu proibir-me de ter livros islâmicos”, escreveu Awlaki mais tarde.
Shakespeare foi a pior coisa que li durante todo o tempo em que estive preso. Nunca gostei dele. Provavelmente a única razão pela qual ele se tornou tão famoso foi o fato de ser inglês e ter sido apoiado e promovido pelos falantes de uma língua global.
Awlaki, no entanto, elogiava a obra de Dickens. “O que me fascinou nesses romances foram os surpreendentes personagens criados por Dickens e as semelhanças que guardam com certas pessoas da atualidade. São muito interessantes”, ele escreveu.
Por exemplo, o gordo e prepotente Josiah Bounderby, de Coketown, é parecido com George W. Bush; o pai de Lucy, Gradgrind, é como alguns pais muçulmanos programados para achar que só a medicina e a engenharia são profissões dignas para seus filhos; a surpreendente crueldade de Stephen Blackpool é como a de certas pessoas que aparentemente parecem seres humanos decentes e bondosos; e Uriah Heep parece alguns dos muçulmanos fervorosos de hoje em dia.
Mais tarde, Awlaki refletiria sobre a alimentação na cadeia. Sobre o kudam, “o pão que servia como alimento básico30 dos presos e soldados do Iêmen”, escreveu:
Deveria ser multigrãos. Costumava ser assim antes. Agora ele é feito mais provavelmente de trigo integral. É fermentado, e por isso seu gosto lembra o do pão de sourdough feito de massa lêveda, de San Francisco (quem mora nos Estados Unidos sabe do que estou falando). Consiste numa crosta sólida (quero dizer sólida de verdade) e poderia ser usado com uma arma numa briga. Antes de ser preso,31 tinha conversado com ex-presidiários sobre como era estar na cadeia, que isso serviu como um preparo mental para o que estava por vir. Lembro as palavras de um dos shuyukh [líderes religiosos] que esteve nessa mesma prisão. Ele dizia que a comida era horrível, por isso eu esperava o pior.
Em sua primeira manhã na prisão, Awlaki lembrou:
comecei a ouvir portas se abrindo e soldados gritando para os presos que pegassem sua comida. Quando chegou minha vez eu já estava bem acordado. Abriram a porta e vi dois soldados, um deles com um balde e o outro arrastando um saco de kudam. O que carregava o balde pegou meu prato e verteu nele uma xícara de feijão fumegante enquanto o outro me entregou seis pedaços de kudam.
Depois de poucas semanas, ele concluiu: “Essa comida dá nojo”.
Por fim, as autoridades carcerárias permitiram que Awlaki recebesse da família, duas vezes por semana, comida feita em casa. “No entanto, a administração da prisão usava isso para pressionar os prisioneiros. Com o pretexto de procurar objetos escondidos nos alimentos, às vezes me entregavam minha refeição sem condições de consumo. Uma vez, eles misturaram arroz, bolo de chocolate e salada, e despejaram na massa resultante uma caixa de suco de mirtilo. Até o guarda que me entregou a comida ficou triste com o estado dela”, lembrou Awlaki. A cadeia, disse ele, reafirmou seu compromisso com a religião. “O Islã não é algo que se use para preencher o compartimento espiritual da vida enquanto se relega tudo o mais a caprichos e desejos. O Islã deve governar cada aspecto de nossa vida.” Depois que Anwar Awlaki passou dezessete meses preso, a tremenda pressão de grupos tribais que o regime de Saleh tinha de contentar para se manter no poder e da influente família de Anwar finalmente forçou sua libertação. O xeque Saleh bin Fareed foi ter com o presidente iemenita para lhe dar garantias de que Anwar não causaria problemas se fosse posto em liberdade. “Tudo bem, se o senhor tem alguma coisa contra Anwar, por favor leve-o aos tribunais”, disse Bin Fareed ao presidente. “E se algo for provado, pode matá-lo. Não nos importamos. Se tiver alguma coisa, alguma prova contra ele, não vamos nos importar se o senhor mandá-lo ao tribunal e matá-lo. Se não tiver, devolva-nos nosso filho.” O presidente,
disse ele, respondeu: “Para ser franco, não tenho nada contra Anwar, seja lá o que for”. Naquele dia, ordenou-se que Awlaki fosse solto. “Os americanos não gostaram nem um pouco daquilo”, disse Bin Fareed. Um telegrama diplomático vindo dos Estados Unidos sobre a libertação de Awlaki promoveu-o a “xeque” e se referiu a ele como “o suposto conselheiro espiritual32 de dois dos sequestradores do Onze de Setembro”. O telegrama dizia ainda que “contatos” no governo iemenita disseram a funcionários americanos que “eles não tinham provas suficientes para incriminar [Awlaki] e já não podiam mantê-lo preso ilegalmente”. Poucos anos depois, o governo americano tomaria a prisão de Awlaki como prova de que ele estava havia muito tempo envolvido em complôs do terror contra os Estados Unidos. Sem nenhuma prova para apoiar suas afirmações, a declaração do Departamento do Tesouro dos Estados Unidos afirmou que Awlaki “tinha sido preso no Iêmen em 2006 acusado de extorsão mediante sequestro33 e por envolvimento num complô da Al-Qaeda para sequestrar um alto funcionário americano, mas foi libertado em dezembro de 2007 e depois permaneceu escondido no Iêmen”.
19. “Os Estados Unidos conhecem a guerra. Eles são mestres da guerra”
SOMÁLIA, 2004-6 — Enquanto o JSOC passava a dominar os campos de extermínio que se alastravam pelo Iraque, pelo Afeganistão e por outros países, a Somália continuava em seu mergulho no caos. Os chefes de milícias, assassinos que estavam pondo em prática as operações de morte/captura dirigidas da CIA, eram temidos e detestados. Em 2004, a campanha terceirizada da Agência na Somália estava preparando o terreno para uma série espetacular de eventos que levaria a um aumento quase impensável do prestígio da Al-Qaeda no Chifre da África. Mas o trabalho conjunto da CIA com os chefes de milícias não foi o único responsável pela importante sublevação na Somália. O preço que os civis estavam pagando pela guerra no Iraque e no Afeganistão e os abusos em Abu Ghraib e Guantánamo davam credibilidade à ideia de que os Estados Unidos estavam travando uma guerra contra o Islã. Embora o país apoiasse seus próprios chefes de milícias em Mogadíscio, os atos de Washington depois do Onze de Setembro levaram à formação de uma coalizão de antigos chefes de milícias e movimentos religiosos que ameaçaria o desempenho dos prepostos dos Estados Unidos dentro e fora da Somália. Yusuf Mohammed Siad me contou que foi abordado pela CIA1 em Dubai em 2004. O notório chefe de milícia somaliano, conhecido pelo nome de guerra de Indha Adde, ou Olhos Brancos, estava — como Mohamed Qanyare — entre os facínoras que dividiram e destruíram a Somália durante a guerra civil travada ao longo da década de 1990. Depois de assumir pela força o controle da região de Shabelle Hoose,2 Indha Adde autoproclamou-se governador numa ocupação paramilitar tão brutal que lhe valeu o apelido de Carniceiro. Comandou operações de tráfico3 de armas e drogas a partir do porto de Merca e transformou a cidade numa terra sem lei. Da mesma forma que Qanyare, ele controlava uma milícia de bom tamanho e uma boa quantidade de veículos armados. Mas ao contrário de Qanyare, Indha Adde mantinha uma relação amistosa com o pequeno grupo de radicais islâmicos que se espalhavam no panorama caótico da Somália na década de 1990. Ele admitia abertamente que dava refúgio e proteção a alguns dos mesmos homens que Washington estava perseguindo. Isso fez dele um atraente quadro potencial para a CIA. Em Dubai, ele disse, encontrou-se com o chefe de operações para a África Oriental da CIA. “Eles me ofereceram dinheiro,4 ofereceram verbas para a região que eu controlava, ofereceram-me prestígio e poder na Somália por meio de cooperação com os
Estados Unidos”, lembrou-se ele quando nos encontramos em uma de suas casas em Mogadíscio em junho de 2011. “A CIA estava sempre me dizendo que os homens que eu protegia eram criminosos que atiraram bombas em embaixadas americanas, que eram uma ameaça também para o mundo. Disseram que queriam que eu entregasse esses caras a eles.” Mas Indha Adde tinha visto a aliança de chefes de milícias apoiada pela CIA em ação e não quis saber de nada daquilo. Em sua opinião, estavam matando somalianos a serviço de uma potência estrangeira. “Eles eram contratados para caçar qualquer pessoa procurada pelos americanos. Seus prisioneiros eram todos maltratados — eram desnudados e tinham a boca tapada com fita adesiva”, lembra ele. “Os chefes de milícias matavam os prisioneiros que os americanos deixavam em liberdade para evitar que falassem sobre sua captura.” Além disso, Indha Adde estava num processo de transformação do bandido beberrão que era naquilo que ele via como um muçulmano autêntico. Quando os americanos invadiram o Iraque em 2003, Indha Adde — como muitos muçulmanos no mundo inteiro — julgou que os Estados Unidos eram “arrogantes” e estavam numa cruzada contra o Islã. “As palavras do presidente americano contra o Islã, a invasão do Iraque e a guerra do Afeganistão me levaram a não cooperar pessoalmente com a CIA”, lembrou-se ele. “Recusei todas as propostas.” Indha Adde tomou a decisão de empenhar suas forças para derrotar os chefes de milícias da CIA. “O governo Bush superestimou a força da Al-Qaeda e de Osama [Bin Laden]. Mas quando invadiu o Iraque, todos pensamos que o Islã estava sendo atacado. Aquela foi a maior vitória da Al-Qaeda, e foi por isso que a apoiamos.” Quando membros de destaque da Al-Qaeda buscaram seu apoio ou pediram para instalar santuários nas áreas controladas por ele, Indha Adde concordou. Para ele, os homens estavam do lado certo da história, combatendo os cruzados e seus prepostos, os chefes de milícias, e defendendo o Islã. “Pessoalmente, pensei até mesmo em Osama como um homem bom que só queria a implantação da lei islâmica”, lembrou ele. “Se houvesse equitatividade, Bush deveria ter sido executado como Saddam Hussein. Mas ninguém é poderoso a ponto de levar os Estados Unidos a julgamento.” Enquanto Qanyare trabalhava com os americanos, Indha Adde se tornava um dos principais aliados paramilitares da Al-Qaeda e comandante de uma das facções islâmicas mais poderosas entre as que surgiram na Somália depois do Onze de Setembro. As atividades que tinham começado com um discreto encontro com Qanyare num quarto de hotel de Nairóbi, em 2002, com o objetivo de matar ou capturar cinco terroristas em especial,5 haviam se transformado em esquadrões da morte que perambulavam pela Somália matando com impunidade, sendo vistos por todos como diretamente apoiados e incentivados pelos Estados Unidos. Numa reunião com autoridades americanas no começo de 2006, segundo um telegrama diplomático, o presidente da Somália, internacionalmente reconhecido, “pensava em voz alta nas razões pelas quais os Estados Unidos queriam começar uma guerra aberta em Mogadíscio”.6 Foi essa época horrível que deu origem à União das Cortes Islâmicas (UCI), que se sublevaria
contra os prepostos apoiados pelos Estados Unidos. A UCI não foi um complô organizado pela Al-Qaeda, mas uma resposta autóctone à ilegalidade e à violência dos chefes de milícias, principalmente os apoiados pela CIA. Enquanto a Somália se desintegrava, começaram a aparecer pequenos tribunais islâmicos regionais7 que criaram sistemas locais de justiça baseados na Sharia, pretendendo implantar algum tipo de estabilidade. Durante muitos anos, esses tribunais foram entidades bastante autônomas baseadas em clãs. Em 2004, os doze tribunais8 se uniram para formar o Conselho Supremo das Cortes Islâmicas da Somália, conhecido como “as Cortes”. O xeque Sharif Sheikh Ahmed (conhecido como xeque Sharif), ex-professor primário e clérigo da região de Shabelle Dhexe, foi eleito presidente das Cortes. Indha Adde acabaria sendo seu ministro da Defesa. “Quando a União das Cortes Islâmicas se formou, havia uma guerra civil na Somália. Havia assassinatos, roubos e estupros. As vítimas eram os desvalidos. Todos sofriam, mas os clãs mais fracos eram os mais atingidos”, lembrou Indha Adde. “Os chefes de milícias mandavam, e nós procurávamos uma forma de unir e salvar nosso povo. É o Islã que nos une, por isso formamos a União das Cortes Islâmicas.” Em 2005, armas e dinheiro do estrangeiro eram derramados sobre a Somália. Indha Adde e outras figuras proeminentes das Cortes começaram a receber carregamentos de armas pesadas e munição9 que chegavam da Eritreia a campos de pouso particulares. Nesse meio-tempo, a Etiópia aliou-se aos Estados Unidos em apoio aos chefes de milícias da CIA10 com dinheiro, armas e munição. O primeiro-ministro da Somália, Ali Mohamed Gedi, veterinário formado na Itália, assistia à CIA financiando e armando Qanyare e outros chefes de milícias, alguns deles ministros de seu governo.
Eu seguia de perto aqueles chefes de milícias e principalmente Qanyare, que enganava as organizações americanas de Inteligência dizendo: “Posso derrotar esse terrorista, esse islâmico. Sim, vou pegá-los amanhã, só mais um dia”. E eles pagavam.
A CIA, ele acusou, solapou seu governo e “incentivou a multiplicação de tribunais islâmicos e seu fortalecimento. [Os Estados Unidos] incentivaram os tribunais islâmicos porque sustentavam os chefes de milícias e o ‘grupo de antiterrorismo’ naquela época. Assim, a confusão toda começou naquele ponto”.11 Em fevereiro de 2006, quando a União das Cortes Islâmicas ganhava força, Qanyare e a rede de chefes de milícias da CIA foram a público para anunciar oficialmente12 a Aliança para a Restauração da Paz e do Contraterrorismo e para convocar os somalianos a se unir a eles na luta contra os “jihadistas”. Em março, na Casa Branca, o NSC endossou oficialmente13 a campanha americana de financiamento e apoio aos chefes de milícias. O porta-voz do Departamento de Estado Sean McCormack disse que a estratégia americana consistia em
trabalhar com pessoas responsáveis14 […] no combate ao terror. É nossa real preocupação — o terror criando raízes no Chifre da África. Não queremos ver a criação de outro porto seguro para terroristas. Nosso interesse se resume em ver a Somália chegar a dias melhores.
Washington “preferia ver a situação só pelo prisma de sua ‘guerra ao terror’”, observou Salim Lone, ex-funcionário das Nações Unidas. “A administração Bush apoiou os chefes de milícias — violando o embargo de armas que ela ajudou as Nações Unidas a impor à Somália anos antes —, canalizando para eles, indiretamente, armas e malas cheias de dólares.”15 Qanyare e seus aliados de repente apareceram muito mais bem armados do que antes. “Para lutar com [a AlQaeda], você precisa de forças muito bem treinadas. E de soldados, armas e logística. E também de reforços”, disse-me Qanyare. Sem nenhuma sensibilidade para o irônico fato de que sua aliança com os americanos estava na origem da UCI, Qanyare disse a seus manipuladores que “esta guerra é fácil,16 não vai levar tempo nenhum”. Não levaria nem seis meses, ele previu. Ele estava certo quanto ao prazo, mas não sobre o desfecho. Depois que os chefes de milícias declararam guerra aberta às Cortes Islâmicas, Mogadíscio foi abalada por seus piores combates em mais de uma década. Em maio, o Washington Post noticiava batalhas “que tinham sido das mais violentas17 desde o fim da intervenção americana em 1994, que deixaram 150 mortos e centenas de feridos”. O Grupo de Monitoramento das Nações Unidas, em seu relatório ao Conselho de Segurança, citou o apoio aos chefes de milícias oferecido “clandestinamente por um terceiro país”.18 O relatório não revelava qual era o país, mas todo mundo sabia. Os diplomatas americanos na região em pouco tempo se viram assediados por seus congêneres de outras nações, inclusive da União Europeia. Segundo um telegrama da embaixada americana em Nairóbi, alguns governos europeus, “tendo concluído que os Estados Unidos estão apoiando chefes de milícias como meio de dar curso à GWOT, nos disseram que estão preocupados com a possibilidade de que essas ações retardem o CT e os objetivos de democratização na Somália”. Os Estados Unidos, dizia o telegrama, estavam preparando o lançamento de um relatório que declararia sem meias palavras: “Há sinais preocupantes de que a população em geral — irritada com o visível apoio dos Estados Unidos aos chefes de milícias — está cada vez mais se unindo à causa dos jihadistas”.19 Algumas autoridades americanas estavam claramente descontentes com o programa da CIA para os chefes de milícias. Eles disseram em privado ao New York Times que “a campanha prejudicou as iniciativas contraterroristas20 dentro da Somália e fortaleceu os mesmos grupos islâmicos que pretendia marginalizar”. Com a instância de empresários de Mogadíscio e outras cidades e, com seu forte apoio, a União das Cortes Islâmicas, antes desunida, começou uma mobilização organizada para derrotar os chefes de milícias da CIA. Indha Adde seria o líder de sua campanha militar. A UCI convocou os somalianos a “unir-se à jihad21 contra os inimigos da Somália”.
Mas não se tratava simplesmente de uma causa religiosa. Os chefes de milícias tinham sido um desastre para os negócios em Mogadíscio. O “assassinato [de] líderes religiosos e imãs22 nos bairros locais e de professores primários na verdade inflamou uma cólera providencial”, disse Abdirahman “Aynte” Ali, somaliano especializado no estudo do terrorismo. No entanto, do ponto de vista financeiro, os chefes de milícias “vinham mantendo Mogadíscio como refém havia dezesseis anos. Eles não abriam o aeroporto, nem o porto. Todos tinham pequenos campos de pouso ao lado de suas casas — literalmente suas casas. E assim mantinham as pessoas como reféns”. No fim de 2005, os empresários tinham dado dinheiro à UCI para comprar armamento pesado e pegar os chefes de milícias da CIA. Somalianos de todas as classes começaram a se inscrever para lutar junto à UCI. “As pessoas saíam do trabalho no Mercado Bakaara, pegavam suas armas e se uniam à luta contra os chefes de milícias”, recordou Aynte. “E na manhã seguinte voltavam a suas lojas, ou ao que quer que fosse. Era impressionante.”
A União das Cortes Islâmicas não era um grupo homogêneo. Muitos de seus líderes e soldados não tinham ligação com a Al-Qaeda, pouco sabiam sobre Bin Laden e tinham uma pauta voltada para seus problemas internos. A ascensão meteórica de sua popularidade tinha tudo a ver com o ódio aos chefes de milícias combinado ao desejo ardente de estabilidade e algum tipo de lei e ordem. “Enviamos nossos combatentes a Mogadíscio com a intenção de parar com a guerra civil e pôr fim à brutalidade dos chefes de milícias”,23 disse o xeque Ahmed “Madobe” Mohammed Islam, cuja milícia, a Ras Kamboni, com base em Jubba, no sul da Somália, aderiu à UCI em 2006. Segundo me contou, seus “homens na UCI eram pessoas de opiniões diversas — liberais, moderadas e extremistas”. Além da expulsão dos chefes de milícias e da estabilização do país pela imposição da Sharia, “não havia um programa político em comum”. Havia elementos da UCI, é certo, que tinham um projeto para a Somália semelhante ao do Talibã. Mas os tribunais com bases regionais eram muito mais usados para governar seus próprios clãs e subclãs do que como um sistema nacional de justiça. Embora a Somália seja uma nação quase que exclusivamente muçulmana, tem também uma forte tradição secular que entraria em conflito direto com um programa ao estilo do Talibã imposto nacionalmente. De acordo com o que observou o Internacional Crisis Group em seu relatório de 2005 intitulado “Islâmicos na Somália”:
A promessa de ordem e segurança24 representada pelos tribunais atraía somalianos de todo o espectro religioso. A heterogeneidade de seus membros e a diversidade dos que os apoiavam faziam com que toda tentativa de rotular o sistema da Sharia de “extremista”, “moderado” ou de qualquer orientação específica fosse vã. Na verdade, as Cortes eram uma complicada
coalizão de conveniência, que se mantinha unida por uma convergência de interesses.
A entidade afirmava que apenas duas das Cortes tinham sido “regularmente associadas à militância e eram contrabalançadas por outras Cortes. E conclui:
A maior parte das Cortes parece existir para propósitos principalmente pragmáticos. Mais do que impor um programa islâmico ou um novo governo somaliano, é provável que muitas delas sejam absorvidas de bom grado por um futuro sistema judiciário.
Isso não significa que os extremistas não vissem os tribunais como veículo para a implantação de seu programa radical. “Não partilhamos objetivos,25 metas ou métodos com grupos que patrocinam ou apoiam o terrorismo”, declarou o xeque Sharif, líder da UCI, num apelo dirigido à comunidade internacional. “Não temos estrangeiros em nossas Cortes, e só estamos aqui por uma necessidade da comunidade à qual servimos.” A declaração de Sharif pode ter sido tecnicamente verdadeira, mas só porque a Harakat al-Shabab al-Mujahidin não era oficialmente uma das Cortes. Mais conhecida pelo nome abreviado, Al-Shabab, ou Juventude, o grupo de jovens militantes islâmicos uniu suas forças às da UCI durante a guerra contra os chefes de milícias. Há várias versões sobre a época da formação oficial da Al-Shabab que vão do fim da década de 1990 a 2006. Com base em entrevistas com membros do grupo, Aynte concluiu que sua fundação ocorreu em algum momento de 2003.26 A Al-Shabab foi organizada de início por Aden Hashi Farah Ayro, que segundo os Estados Unidos tinha sido treinado em campos da Al-Qaeda no Afeganistão e estava por trás do assassinato de estrangeiros que trabalhavam em missões de ajuda à Somália. Outro líder influente era Ahmed Abdi Godane, conhecido jihadista do norte da Somália, região relativamente pacífica. Os homens começaram pelo treinamento de um grupo de jovens somalianos para uma guerra santa. “Eles eram extremamente discretos, e muita gente que participou do treinamento não era plenamente aceita na sociedade. Eles não eram intelectuais islâmicos, nem anciãos de clãs”, disse Aynte.
Buscavam legitimidade, e por isso aderiram à União das Cortes Islâmicas, já que não tinham nada a perder. Se a UCI se transformasse no governo central da Somália, seria um grande negócio. Se ela se dissolvesse, eles sabiam que podiam capturar a essência dela. Eram previdentes.
Afinal, a Al-Shabab acabaria ganhando um poderoso aliado com Hassan Dahir Aweys, excoronel do Exército somaliano que se tornara comandante militar da Al-Itihaad al-Islamiya, depois da derrubada do regime de Barre.
Com a Al-Shabab, a Al-Qaeda viu uma oportunidade: a de penetrar efetivamente no panorama político da Somália, objetivo pelo qual ela lutava, em vão, havia muito tempo. Entre os aliados mais próximos da Al-Shabab em seus primeiros tempos estava Indha Adde, na época membro de destaque da facção de Aweys da UCI. “Eu protegia toda aquela gente”, lembrou ele a respeito dos estrangeiros que tinham começado a aparecer dentro da Al-Shabab. “Achava que eram boas pessoas.” Entre os que ele protegia estava Abu Talha al-Sudani, supostamente especialista em explosivos e figura importante no financiamento27 das operações da Al-Qaeda na África Oriental. Indha Adde também deu refúgio a Fazul Abdullah Mohammed, natural das ilhas Comores, supostamente o cérebro dos ataques a bomba às embaixadas em 1998. “Na época, Fazul me pareceu uma pessoa equilibrada”, lembrou Indha Adde. “Na verdade, ele nos disse que não tinha nada a ver com as bombas.” Quando começou a guerra contra os chefes de milícias apoiados pela CIA, Indha Adde percebeu que Fazul “tinha grande experiência militar. Ele e outros [combatentes estrangeiros] tinham sido treinados pessoalmente por Osama”. Para Indha Adde, a CIA e o governo dos Estados Unidos eram os agressores, e os combatentes estrangeiros que pipocavam na Somália faziam parte de uma luta em progresso para retomar a Somália das mãos dos chefes de milícias. Apoiadas pela Al-Qaeda, as forças da Al-Shabab começaram a usar as táticas empregadas pelo próprio Qanyare e outros milicianos, assassinando pessoas relacionadas à aliança entre a CIA e os chefes de milícias. Fazul pode ter convencido Indha Adde de que não tinha nada a ver com terrorismo. Mas nos gabinetes da comunidade americana de contraterrorismo, ele se tornara o HVT número um de Washington na África Oriental. Fazul não era apenas terrorista, era um crente. E, segundo todos os relatos, brilhante. Nascido em 1972 ou 1974,28 dependendo de cada um de seus numerosos passaportes e documentos de identidade, ele foi criado29 numa família estável e economicamente bem-posta no extremamente instável grupo de ilhas que formam o arquipélago de Comores. O cenário político de sua infância foi preenchido com golpes ou tentativas de golpes — pelo menos dezenove ao todo — depois que as Comores se declararam independentes da França, em 1975. Quando menino, Fazul gostava de se fazer de James Bond ao brincar de espionagem com os amigos. Gostava de imitar os passos de dança de Michael Jackson e, segundo seus professores, foi uma criança muito inteligente. Aos nove anos, sabia de cor grande parte do Alcorão e recitava seus versículos na rádio nacional. Quando cresceu, começou a estudar com pregadores ligados ao wahabismo saudita. Ao chegar a Karachi, no Paquistão, em 1990, já estava totalmente radicalizado. Embora tenha começado a fazer o curso de medicina, em pouco tempo se transferiu para estudos islâmicos e foi recrutado para treinar com os mujahedin, que acabavam de expulsar os soviéticos do Afeganistão. Foi em Peshawar, no Paquistão, que ele ouviu pela primeira vez a pregação de Osama bin Laden. Pouco depois chegou ao Afeganistão para treinamento em guerrilhas, em
despistar a vigilância, no uso de armas leves e pesadas e na fabricação de bombas. Em 1991, ele escreveu a seu irmão Omar que tinha “sido confirmado”30 na Al-Qaeda. Sua primeira missão,31 em 1993, foi uma viagem à Somália para ajudar no treinamento de pequenos grupos de militantes islâmicos que tinham aderido à insurreição contra as forças americanas e das Nações Unidas. Trabalhou sob o comando de Abu Ubaidah al-Banshiri, encarregado por Bin Laden de dirigir as operações da Al-Qaeda na Somália. Para Fazul, era o começo de uma longa carreira de terrorista na África Oriental. Foi lá que ele se ligou a Aweys e a membros da Al-Itihaad, que mais tarde o conduziriam ao aprisco da União das Cortes Islâmicas. Fazul dizia32 que tinha participado da derrubada dos helicópteros Black Hawk em 1993, mas a Al-Qaeda não conseguiu entrincheirar-se na Somália enquanto os chefes de milícias dividiam o país entre si. A maior parte deles não tinha serventia para Bin Laden ou para qualquer estrangeiro. De acordo com um estudo do Centro de Combate ao Terrorismo da Academia Militar de West Point:
A longo prazo, o primado do tribalismo na Somália acabou frustrando o esforço de recrutamento da Al-Qaeda e deu origem a uma firme coalizão contra ocupantes estrangeiros. A organização confundiu seu apelo em favor da jihad no Afeganistão com um motivador universal ao qual os muçulmanos da Somália iam aderir na mesma proporção. Na Somália de 1993, esse apelo caiu em ouvidos moucos, já que a sobrevivência diante de competidores locais falou mais alto do que a jihad.
Por isso, Fazul voltou sua atenção para o Quênia. Os atentados a bomba contra embaixadas ali e na Tanzânia levaram cinco anos de cuidadoso planejamento e preparo. Trabalhando com o ativista Saleh Ali Nabhan, da Al-Qaeda, Fazul coordenou diretamente o atentado de Nairóbi, alugando a casa33 que serviria como laboratório para a fabricação dos explosivos para a operação. Nesse período, ele tornou-se uma estrela em ascensão dentro da Al-Qaeda. Transformou-se num de seus mais valiosos emissários, fundando células em toda a África Oriental e, por um período, transferiu sua família34 para Cartum, no Sudão, onde Bin Laden estava erigindo a Al-Qaeda e se preparando para declarar guerra aos Estados Unidos. Em 1997, quando Bin Laden anunciou oficialmente que a Al-Qaeda atacaria alvos americanos, Fazul já tinha saído do Sudão e ficou furioso por ficar sabendo da novidade pela CNN.35 O anúncio desencadeou perseguições,36 inclusive uma incursão na casa de um dos aliados mais próximos de Fazul, que estava preparando o atentado de Nairóbi. No fim, apesar de diversos choques com as autoridades quenianas, os ataques a embaixadas foram um triunfo indiscutível que catapultou Bin Laden e a Al-Qaeda à ignomínia internacional. Ele também pôs Fazul no caminho rumo à liderança das operações da Al-Qaeda na África Oriental. Depois do ataque de Nairóbi, os Estados Unidos começaram uma agressiva campanha de
congelamento dos bens de Bin Laden e da Al-Qaeda. Em resposta, Bin Laden procurou novas fontes de renda e encarregou Fazul de uma ambiciosa operação que visava penetrar no mercado de “diamantes de sangue”. De 1999 a 2001, Fazul trabalhou intensamente na Libéria,37 sob a proteção do ditador Charles Taylor. No total, a Al-Qaeda pôs as mãos em algo em torno de 20 milhões de dólares em dinheiro, obtidos a partir do comércio de diamantes, em grande parte extraídos dos campos de extermínio de Serra Leoa. Nessa altura, Fazul era um homem procurado, caçado com denodo pelas autoridades americanas, e a Al-Qaeda gastava muito dinheiro para mantê-lo em segurança. Ele tinha se tornado um quadro importante. Em 2002, Fazul foi enviado a Lamu, no Quênia — por ironia, a um passo de onde seria criada a base do JSOC na baía de Manda. De lá ele organizou os ataques ao Hotel Paradise de Mombasa e ao avião israelense. Alguns dos quadros operacionais que participaram da missão tinham começado o treinamento em Mogadíscio, e Fazul viajava com regularidade à Somália38 para verificar seus progressos. Durante esse período, trabalhou bastante com Nabhan. Depois dos ataques de Mombasa, Fazul se deslocava discretamente entre o Quênia e a Somália. Ao que parece, a CIA estava sempre em seus calcanhares. Em 2003, a agência contratou Mohamed Dheere,39 que fazia parte da aliança de chefes de milícias da CIA, para caçá-lo. Qanyare disse-me que a foto de Fazul tinha sido mostrada a ele já em janeiro de 2003 por agentes da Inteligência americana. Ele diz que mostrou aos agentes do contraterrorismo americano casas usadas por Fazul e Nabhan e lhes deu coordenadas de GPS, mas os agentes americanos relutavam em desencadear operações de assassinato dirigido em Mogadíscio, dizendo que preferiam que os chefes de milícias capturassem esses homens. “Temiam que pessoas inocentes morressem em decorrência de suas ações”, disse-me Qanyare. “Mas prendê-los não era fácil porque contavam com a proteção de gente da Al-Qaeda natural do país.” Os chefes de milícias não conseguiram pegar Fazul nem Nabhan. Em agosto de 2003, enquanto a CIA estava empenhada na caça a Fazul e a outros suspeitos de terrorismo na África Oriental, um endereço de e-mail que a Agência acreditava estar ligado à Al-Qaeda foi rastreado e levou a um cibercafé em Mombasa. Trabalhando com um agente secreto da CIA, forças de segurança quenianas invadiram o café e prenderam dois homens que estavam diante de um computador com a conta do e-mail suspeito aberta. Quando eram levados a um veículo policial, o maior dos dois suspeitos deu um empurrão no menor, sacou uma granada e a explodiu. Fontes de Operações Especiais disseram mais tarde ao jornalista Sean Naylor que o homem maior era um “guarda-costas suicida” e que o menor, que ele estava protegendo, era na verdade Fazul. “As forças de segurança acorreram ao local, mas Fazul era esperto demais para elas”,40 conta Naylor. “Ele correu para uma mesquita e saiu de lá vestido de mulher, usando um hijab [véu] ou qualquer outra forma de ocultar o rosto usada pelas muçulmanas.” A Inteligência americana vasculhou o apartamento que estava sendo usado por Fazul e seu guarda-costas em Mombasa e descobriu um dispositivo para falsificação de passaportes e vistos. Em 2004, a Inteligência americana disse ter interceptado comunicações41 de Nabhan que
indicavam a intenção de atacar mais uma vez a embaixada americana em Nairóbi, usando um caminhão-bomba e um avião alugado. Nessa época, os agentes do contraterrorismo americano tinham posto Fazul e outros membros do braço somaliano da Al-Qaeda “entre os fugitivos mais procurados do planeta”,42 dizendo que Fazul era “um mestre do disfarce, um perito falsificador e um hábil fabricante de bombas” que era “absurdamente esquivo” e “o mais perigoso e […] mais procurado” dos nomes da Al-Qaeda na Somália. Em Mogadíscio, Fazul ligou-se a Aweys e a Aden Hashi Farah Ayro, militante somaliano treinado pela Al-Qaeda no Afeganistão, e a outros antigos camaradas da Al-Itihaad, que começavam a fundar a Al-Shabab. Ele e Nabhan serviam como principais emissários da AlQaeda junto ao grupo. A essa altura, a Inteligência americana ainda nem sabia seu nome e referia-se a ele simplesmente como “o grupo especial”.43 A base de treinamento da Al-Shabab, o Centro Salahuddin, ficava num terreno antes ocupado por um cemitério italiano44 que tinha sido terrivelmente profanado. Era fortificado e dava aos recrutas a oportunidade de ver vídeos de jihadistas do Afeganistão, do Iraque e da Tchetchênia, assim como vídeos que mostravam Bin Laden. “Depois que a Al-Shabab criou o Centro Salahuddin, começaram a oferecer treinamento e técnicas, trazendo a experiência necessária”, disse Aynte. Quando a União das Cortes Islâmicas começou a se afirmar como uma força capaz de expulsar os chefes de milícias, Fazul garantiu que a Al-Qaeda faria parte dela. “Fazul e Nabhan, todos os estrangeiros estavam conosco”, lembrou Madobe. “Na época eles estavam empenhados em fazer conexões e coordenações que acreditávamos ser parte da jihad, e sabíamos que eram membros da AlQaeda.” Madobe disse que não se preocupou com Fazul e com outros membros da organização quando começaram a rondar a UCI. A Al-Shabab, ele afirmou, tinha muito pouco apoio dos maiores clãs da Somália e era um ator menor se comparado às Cortes, muito mais poderosas. “Estavam em desvantagem em relação aos membros das Cortes, que tinham programas positivos”, disse ele. “Mas posso afirmar que a atuação dos Estados Unidos ajudou a impulsionálos.”
A Al-Shabab começou a conquistar uma reputação em 2005, quando executou uma enxurrada de “assassinatos e profanações de cemitérios de Mogadíscio e outras regiões que foram manchetes”,45 segundo Aynte. Em seu ensaio “A anatomia da Al-Shabab”, ele afirma que nos anos seguintes à constituição da organização, “mais de cem pessoas, principalmente ex-generais, professores, empresários, jornalistas e ativistas foram assassinados sem alarde”. Ele notou que um ex-comandante de campo da Al-Shabad
dissera que os objetivos dos assassinatos eram duplos: em primeiro lugar, eram uma tentativa deliberada e preventiva de eliminar dissidências e possíveis barreiras. Em segundo, pretendiam infundir medo e terror no coração das elites de Mogadíscio, que na época eram
muito influentes porque dominavam completamente os negócios, a imprensa e o meio acadêmico.
Enquanto a CIA permanecia obcecada pelo número relativamente pequeno de combatentes estrangeiros que integravam a UCI na Somália, muitos integrantes das Cortes não os viam como problema. A maior parte dos líderes da UCI acreditava que se eles viessem a causar problemas para as Cortes, seriam controlados pelos clãs, que tinham importância suprema na estrutura de poder da Somália. Mas foi a atuação de Washington que tornou a Al-Shabab e seus aliados da AlQaeda mais poderosos do que o governo americano ou a CIA poderiam imaginar. Com o apoio público esmagador, as Cortes levaram apenas quatro meses para expulsar os chefes de milícias da CIA e pôr para correr Qanyare e seus homens. “Fomos derrotados por insuficiência logística das coisas de que uma milícia precisa para sobreviver: munição, armas superiores e coordenação. Era disso que se precisava”, lembrou Qanyare. Ele reclamava que os Estados Unidos lhe davam apenas “uns trocados”. Apesar disso, a fé de Qanyare em seus parceiros da CIA permanecia inabalável. “Os Estados Unidos conhecem a guerra. Eles são mestres da guerra. Sabem melhor do que eu. Então, quando fazem uma guerra, sabem muito bem como financiá-la. São professores, grandes professores.” Enquanto as Cortes surravam as forças de Qanyare, afirmou ele, a CIA recusou-se a aumentar seu apoio a ele e a outros chefes de milícias. “Não os culpo, porque eles trabalham sob instruções de seus chefes”, disse ele, acrescentando que se os Estados Unidos tivessem dado mais dinheiro e armas no momento decisivo em que a UCI estava sitiando Mogadíscio, “poderíamos ter ganho. Poderíamos tê-los derrotado”. Enquanto se preparava para fugir de Mogadíscio, ele disse que avisou Washington. “Eu disse a eles que seria caro demais para vocês derrotar [a Al-Qaeda e a Al-Shabab] no futuro, no Chifre da África. A Al-Qaeda está crescendo com rapidez, recrutando gente, e tem uma cabeça de ponte, um santuário seguro — um território vasto.” O JSOC tinha uma presença discreta na Somália até esse ponto, pois a CIA controlava a maior parte das operações contraterroristas no lugar. Mas à medida que os chefes de milícias protegidos pela Agência foram sendo afastados do poder, o JSOC começou a considerar a possibilidade de exercer um papel mais ativo. O general McChrystal, comandante do JSOC, já tinha começado a coordenar teleconferências46 sobre o Chifre da África e começava a pressionar a favor da ampliação do papel do JSOC nas operações de contraterrorismo na região.
Em junho de 2006, as forças da UCI assumiram oficialmente o controle de Mogadíscio.47 Alguns especialistas em Somália do governo americano saudaram a expulsão dos chefes de milícias “como uma notícia maravilhosa”,48 nas palavras de Herman Cohen, ex-secretário de
Estado assistente para assuntos africanos. “Os chefes de milícias causaram tremendos infortúnios. […] Com eles, as pessoas estavam sempre inseguras”, declarou Cohen no dia seguinte à tomada da capital pela UCI. “É muito importante impedir que esses chefes voltem a Mogadíscio.” Sobre o apoio de chefes de milícias: como Qanyare, Cohen disse: “Acho que o governo dos Estados Unidos entrou em pânico. Basta ver um grupo muçulmano para dizer: ‘Aí vem o Talibã’”. Quanto ao risco de a Somália se transformar num valhacouto da Al-Qaeda, disse: “Acho que é pequeno, porque o pessoal do movimento islâmico viu o que aconteceu ao Talibã e não quer que aconteça o mesmo com eles”. O presidente da UCI, xeque Sharif, imediatamente escreveu uma carta às Nações Unidas, ao Departamento de Estado, à Liga Árabe, à União Europeia, à União Africana e a outros organismos internacionais negando a relação da UCI com terroristas e afirmando que as Cortes queriam “estabelecer relações amigáveis49 com a comunidade internacional, baseadas em respeito e interesses recíprocos”. “O atual conflito foi alimentado pelas informações incorretas dadas por esses chefes de milícias ao governo dos Estados Unidos”, escreveu ele. “Sua especialidade é aterrorizar pessoas, e foram capazes de usá-la para aterrorizar o governo americano dando informações erradas sobre a presença de terroristas na Somália.” Numa carta posterior dirigida à embaixada americana em Nairóbi, Sharif prometeu apoio no combate ao terrorismo e disse que a UCI queria “convidar uma equipe de investigação50 das Nações Unidas para garantir que os terroristas internacionais não estavam usando a região como rota ou como esconderijo”. Os Estados Unidos não se impressionaram com a carta. “Embora estejamos dispostos a encontrar elementos positivos na UCI”, dizia um telegrama diplomático enviado de Nairóbi, “reconhecer a presença de estrangeiros da Al-Qaeda servirá como teste decisivo51 para nosso compromisso com qualquer de seus líderes.” De modo geral, a opinião dos Estados Unidos sobre a tomada do poder pelas Cortes Islâmicas não era unânime. Dezenas de telegramas diplomáticos do período mostram uma avaliação confusa e contraditória pelas autoridades americanas. Sharif era regularmente considerado “moderado”52 nesses telegramas enviados da embaixada americana em Nairóbi. Ainda assim, segundo Jon Lee Anderson, da New Yorker, “o governo Bush tinha chegado até a cogitar o assassinato de Sharif”.53 A Al-Shabab, por sua vez, o via como um vendido, cujas tentativas de bajular o Ocidente eram uma apostasia. Diplomatas americanos trabalharam com o governo reconhecido da Somália para resolver como se aproximar da UCI, mas as Forças Armadas e a CIA viam a tomada de Mogadíscio pelas Cortes como uma grave crise. “De repente, isso está se tornando uma questão importante, na qual se concentram pessoas de muitas esferas do governo: analistas militares, analistas de Inteligência etc. De repente, a Somália foi catapultada para o radar de todo mundo”,54 disse Daveed Gartenstein-Ross, que sempre prestava consultoria às Forças Armadas dos Estados Unidos, inclusive ao Centcom, que assessorou as forças militares dos Estados Unidos enviadas
ao Chifre da África. “A questão imediata tem dois aspectos: o primeiro é sobre a relação das Cortes com a Al-Qaeda, e o segundo é o surgimento de um possível santuário terrorista na Somália.” O presidente Bush estava em Laredo, Texas, quando chegou a notícia de que a UCI tinha expulsado os chefes de milícias de Mogadíscio. “Obviamente, quando há instabilidade em qualquer parte do mundo, isso nos diz respeito. Há instabilidade na Somália”,55 disse ele. “Estamos observando cuidadosamente o desenrolar dos acontecimentos. E quando eu voltar a Washington vamos formar uma ideia mais estratégica de como reagir corretamente aos últimos incidentes no país.” Enquanto a Casa Branca formava ideias estratégicas, a UCI implantava um programa radical em Mogadíscio — mas que praticamente todos os somalianos viam como benéfico. As Cortes começaram a desmontar a absurda barafunda de barreiras56 que separavam o domínio de um chefe de milícia de outro, o que levou a uma queda significativa no preço dos alimentos. Reabriram os portos e o aeroporto,57 possibilitando um aumento vertiginoso da ajuda humanitária que conseguia chegar a Mogadíscio. Roubos e outros crimes diminuíram substancialmente, e muitos habitantes disseram aos jornalistas que se sentiam mais seguros58 do que em qualquer outro momento dos dezesseis últimos anos. A UCI “trouxe uma pequena dose de estabilidade sem precedentes em Mogadíscio”, lembrou Aynte. “Você podia sair de carro à meia-noite, sem problema, sem seguranças.” Autoridades americanas reconheceram59 a melhora na entrega de ajuda e creditaram à UCI a redução da pirataria no país. Até mesmo membros do governo somaliano no exílio, apoiado pelos Estados Unidos, reconheceram que a UCI tinha conseguido algo importante. “As Cortes Islâmicas trouxeram uma imagem de ordem60 e estabilidade em Mogadíscio”, admitiu Buubaa, ex-primeiro-ministro que se opusera à UCI. “Muita gente em Mogadíscio reconheceu isso.” Não foi o caso da comunidade de Operações Especiais dos Estados Unidos. Depois do Onze de Setembro, o JSOC tinha sido encarregado de caçar os terroristas mais procurados do mundo, na concepção da Casa Branca. O programa social das Cortes Islâmicas não mudaria esse fato. A aventura da CIA com os chefes de milícias tinha sido um fracasso categórico e na verdade teve como resultado um aumento na proteção dada a nomes da AlQaeda que estavam no radar do JSOC. A invasão do Iraque era, de muitas formas, um enorme desvio em relação à missão central do JSOC. “Não há dúvida quanto a isso. O Iraque ferrou com tudo”, disse Gartenstein-Ross. A Somália é um “país que, em comparação com o Iraque, teria sido mais fácil de estabilizar. Mas os recursos nunca eram voltados para lá. O maior problema é que não se fez nada para evitar uma insurreição — e com efeito, desde o começo se anunciava uma insurreição”. Mais precisamente, as próprias medidas tomadas por Washington serviram de faísca para a insurreição. Depois do fracasso da CIA na Somália, as Forças Armadas americanas começaram a preparar uma campanha para esmagar as Cortes. Mas com a lembrança da derrubada dos helicópteros Black Hawk ainda dominante quando se falava de tropas americanas em solo da Somália, a Casa Branca começou a considerar a utilização de um
vizinho humilhado, a Etiópia, como força fantoche que poderia dar cobertura às equipes de ataque americanas, principalmente do JSOC, para entrar dissimuladamente na Somália e começar a perseguir seus Alvos de Grande Valor. Um telegrama das Nações Unidas de junho de 2006, em que se mencionava uma reunião de autoridades do Departamento de Estado e oficiais das forças americanas da Força-tarefa do Chifre da África, indica que os Estados Unidos sabiam da diversidade da UCI, mas “não permitiriam” que ela governasse a Somália. Os Estados Unidos, segundo se notou, pretendiam “unir-se à Etiópia61 se o[s] ‘jihadista[s]’ assumirem o poder”. O telegrama concluía dizendo que “qualquer ação etíope na Somália deve ter o aval de Washington”. Algumas vozes dentro do governo americano se ergueram a favor do diálogo ou da reconciliação, mas foram abafadas por falcões decididos a derrubar a UCI. Equipes de Operações Especiais estavam havia muito na Etiópia, treinando suas famosas unidades de comandos Agazi.62 O país tinha também efetivos aéreos americanos e pequenas instalações militares a que os Etados Unidos tinham acesso. Mas embora a Etiópia viesse a desempenhar um papel importante nos acontecimentos que estavam por vir, outro vizinho da Somália proporcionaria a plataforma de lançamento para as forças do JSOC. As Forças Armadas americanas começaram a construir Camp Simba na baía de Manda, no Quênia, pouco depois do desastre que foi a derrubada dos Black Hawks. Embora seu propósito original fosse treinar e assistir forças marítimas do Quênia ao longo da costa da Somália, depois que a UCI subiu ao poder e os Estados Unidos começaram a esboçar planos de contingência, a base de Manda assumiu um novo papel. Equipes do JSOC, principalmente as que pertenciam à Equipe 6 dos SEALs/DEVGRU, começaram a se instalar ali.63 Sua presença era dissimulada pelas unidades de serviços civis das Forças Armadas americanas, que se misturavam à população local — na reconstrução de escolas e em projetos de tratamento de águas — e treinavam as forças quenianas convencionais. Era da baía de Manda que as equipes de assalto das tropas de elite dos Estados Unidos partiriam para possíveis operações na Somália. Os homens encarregados dessa missão seriam conhecidos como Força-tarefa 88.64 Praticamente desde o instante em que a UCI assumiu o poder, os etíopes começaram a babar com a possibilidade de intervenção. Desde que os dois países travaram uma guerra cruenta na década de 1970, as Forças Armadas etíopes violavam habitualmente a fronteira, irritando os somalianos da região. Militantes somalianos que viam a região etíope de Ogaden como própria faziam incursões e ataques em território do país vizinho. Depois que a UCI assumiu o poder, Adis Abeba teve a oportunidade de reforçar sua retórica65 sobre a ameaça que jihadistas somalianos representavam para a região. Ao fugir de Mogadíscio, Qanyare foi à rádio nacional66 para avisar que a vitória da UCI resultaria na invasão da Etiópia, dizendo que os somalianos estavam cometendo um grave erro ao apoiar as Cortes. “Nunca, jamais apoiei que a Etiópia entrasse na Somália”, lembrou Qanyare. “Juro por minha vida, nunca aceitei isso. Porque eu sei quem eles são, o que querem, o que estão procurando.” Um mês depois que a UCI subiu ao poder,
diplomatas americanos começaram a registrar relatos de “missões clandestinas de reconhecimento”67 da Etiópia “na Somália como preparação para futuras operações”. Os Estados Unidos “já tinham interpretado mal os acontecimentos ao ajudar odiosos chefes de milícias. E interpretaram mal outra vez”, disse-me Aynte.
Deveriam ter aproveitado a oportunidade de se ligar à UCI. Porque das treze organizações que integravam as Cortes, doze eram tribunais islâmicos, tribunais de clãs que não tinham nenhuma jihad global [em seus planos] nem nada parecido. A maioria de seus membros nunca tinha saído da Somália. Eram gente do país. A Al-Shabab era a única ameaça — só isso. E era possível controlá-la. Mais uma vez, porém, a situação foi mal interpretada, e a Etiópia passou a ser pressionada pelos Estados Unidos a invadir a Somália.
Quanto à Al-Qaeda, ele disse: “Foi a dica que eles estavam esperando”. Malcolm Nance, veterano com 25 anos de Programa de Combate ao Terrorismo da comunidade americana de Inteligência, passou a maior parte de sua carreira trabalhando em operações secretas no Oriente Médio e na África. Estudou a ascensão da Al-Qaeda e da AlShabab, e conhecia bem a liderança das duas organizações. Nance disse-me que acreditava que os Estados Unidos tinham administrado muito mal a questão do contraterrorismo na Somália. Antes dos boatos sobre uma intervenção etíope, disse ele, a “Al-Shabab era uma organização secundária, periférica”.68 Nance achava que os Estados Unidos deveriam ter tentado trabalhar com a UCI e buscar isolar os quadros operacionais estrangeiros da Al-Qaeda.
Como um cara da Inteligência, sabe o que eu teria feito? [com um dirigente da Al-Qaeda]: Eu o deixaria de lado. Poria muitos efetivos o mais perto dele possível. Investiria recursos nele e em todos os seus subordinados. Para descobrir tudo o que pudesse. Descobrir qual era a profundidade real da Al-Qaeda ali. Depois ele sofreria um acidente lamentável na estrada […]. Você sabe, um caminhão que bate de frente com ele.
Nance acreditava que, dada a estrutura somaliana de poder baseada nos clãs — e sua insistente marginalização de agentes estrangeiros e a rejeição generalizada de ocupação estrangeira —, os Estados Unidos poderiam ter feito uma guerra de propaganda contra o número relativamente pequeno de quadros operacionais da Al-Qaeda junto às Cortes e assim “acabar com a mentalidade deles, acabar com sua razão de ser”. “Não teria sido muito mais divertido rotular a Al-Qaeda como um culto não islâmico? A ponto de as pessoas se negarem a vender pão para eles, a ponto de lutarem contra eles quando estivessem num campo de batalha.” A Inteligência americana, ele disse, deveria ter promovido operações de desinformação para caracterizá-los como “satânicos, ou pessoas anti-Islã.” E acrescentou:
“Devíamos ter ido atrás deles dessa forma, e isso teria ajudado cada dimensão a acabar com a organização”. As chances de sucesso da estratégia proposta por Nance são discutíveis, dado o sistema de clãs da Somália e a firme oposição à influência externa. Mas isso nunca foi posto à prova. Ele chamou a estratégia real dos Estados Unidos que se seguiu de “absolutamente inacreditável”. Da mesma forma que o JSOC e a CIA, a Al-Qaeda monitorava de perto o que acontecia na Somália. Quando correram os boatos de uma intervenção externa, Osama bin Laden divulgou uma declaração em que dizia que não tinha a ilusão de que a Etiópia estivesse tomando as próprias decisões. “Estamos advertindo todas as nações69 do mundo a não aceitar o pedido dos Estados Unidos de enviar forças internacionais à Somália. Juramos por Alá que vamos combater seus soldados em solo somaliano, e nos reservamos o direito de puni-los em seu próprio território, ou em qualquer outro lugar, no momento azado e da maneira adequada”, declarou ele.
Tenham o cuidado de não esperar e se atrasar, como fizeram alguns muçulmanos quando tardaram em acudir o governo islâmico do Afeganistão. Esta é uma oportunidade de ouro e uma obrigação pessoal de todos os que forem capazes, e vocês não devem perder a oportunidade de criar o núcleo do Califado.
A União das Cortes Islâmicas — e o primeiro período de relativa paz que Mogasdíscio experimentou — durou apenas seis meses. Enquanto diplomatas americanos na região alertavam seus superiores, em privado,70 sobre as prováveis consequências terríveis de uma invasão etíope e procuravam identificar meios de reconciliação entre a UCI e o governo de transição internacionalmente reconhecido, a equipe de segurança nacional do governo Bush se preparava para uma guerra que deporia a UCI. No fim de 2006, forças etíopes postavam-se em diversos pontos da fronteira com a Somália. Embora diplomatas americanos manifestassem preocupação com a escalada, pareciam não perceber que o aparato militar americano estava profundamente envolvido naquilo. A UCI percebeu o que estava por vir. Tanto o xeque Sharif, que meses antes prometera colaborar com os Estados Unidos e com as Nações Unidas, quanto Aweys convocaram os somalianos a travar uma jihad contra qualquer força invasora etíope. Em uniforme de combate, Sharif às vezes empunhava um fuzil AK-47 quando fazia pronunciamentos públicos. “Quero dizer ao povo somaliano que ele tem de proteger seu país e sua religião”, dizia. “O velho inimigo da Somália está de volta, portanto dei minhas ordens aos soldados das Cortes Islâmicas: estamos convocando-os para a jihad, como Alá”.71 Em novembro, quando a Etiópia começou a pressionar as autoridades americanas para apoiar uma invasão e depor a UCI, os americanos conseguiram uma “resolução executiva”72 escrita em árabe e supostamente emitida por Aweys,
que recentemente assumira o cargo de presidente da UCI. Essa resolução incitava ao assassinato de dezesseis representantes do governo somaliano no exílio, inclusive o presidente, Mohammed Yusuf, e o primeiro-ministro, Mohamed Gedi. Especificamente, convocava “mártires” da AlShabab a “executar as operações usando os mais mortíferos métodos suicidas empregados por combatentes mujahedin no Iraque, no Afeganistão, na Palestina e em outros países do mundo”. Em dezembro, os Estados Unidos já tinham criado uma estratégia a ser dividida com as Forças Armadas etíopes e com o governo da Somália no exílio para expulsar as Cortes de Mogadíscio. O plano consistia em pôr no poder o governo da Somália, débil mas oficial, que seria sustentado por forças somalianas, treinadas pelos etíopes, e pelas Forças Armadas da Etiópia. Quanto aos líderes da UCI e aos combatentes estrangeiros, a Força-tarefa 88, com base em Manda, executaria um plano para caçá-los e matá-los. Em 4 de dezembro de 2006, o comandante geral do Centcom, John Abizaid,73 pousou em Adis Abeba para uma reunião com o primeiro-ministro, Meles Zenawi. Oficialmente, era uma visita de rotina a um aliado dos Estados Unidos. Por detrás dos panos, estava claro que a guerra era iminente. “Vimos o que estava acontecendo como a chance de nossa vida”,74 disse um oficial do Pentágono à revista Time, “uma raríssima oportunidade para que os Estados Unidos agissem diretamente contra a Al-Qaeda e pegassem esses terroristas.” Dias depois da reunião com Abizaid na Etiópia, o Departamento de Estado americano radicalizou sua retórica e passou a caracterizar publicamente a UCI como uma das frentes da AlQaeda. “O Conselho das Cortes Islâmicas está sendo controlado por membros de células da AlQaeda na África Oriental”, declarou Jendayi Frazer, secretário de Estado assistente para assuntos africanos e o principal funcionário do governo americano na África. “A camada superior das Cortes é extremista até a medula. Eles são terroristas75 e controlam tudo.” De forma análoga ao que fizeram durante a preparação da invasão do Iraque, em 2003, os principais veículos da imprensa começaram a exagerar as conexões da Al-Qaeda, publicando impressões de funcionários americanos anônimos como se fossem fatos incontestes. Começaram a sair manchetes sensacionalistas que anunciavam a “crescente ameaça da Al-Qaeda na África”.76 Repórteres das redes televisivas anunciavam incansavelmente resenhas da história do conflito na Somália, omitindo, como convinha, o papel dos Estados Unidos na geração da crise. Na CBS, o veterano correspondente David Martin declarou: “A Somália tem sido um lugar seguro77 para a Al-Qaeda desde que as Forças Armadas dos Estados Unidos saíram do país, logo após a infame derrubada dos Black Hawks”. A correspondente da CNN no Pentágono, Barbara Starr, falava como se fosse um porta-voz do governo Bush: “A preocupação de hoje na África Oriental78 é fechar a Somália como santuário de terroristas, pois caso contrário a ameaça de um novo ataque continua sendo real”. Embora o governo Bush e alguns destacados veículos da imprensa exagerassem a ameaça terrorista, nem todos rezavam pela mesma cartilha. Mesmo quando as Forças Armadas dos Estados Unidos se preparavam para a ação, o diretor de Inteligência nacional, John Negroponte,
manifestou ceticismo quanto à acusação de que as Cortes estavam sendo dominadas pela AlQaeda. “Não acho que os fatos sejam indubitáveis”,79 disse. A Somália “surgiu na tela do radar bem recentemente”, observou, acrescentando que a questão principal era se a UCI “seria o próximo Talibã”. E concluiu: “Não creio que eu tenha visto uma boa resposta”. John Prendergast, que atuou como especialista em assuntos africanos no NSC e no Departamento de Estado durante o governo Clinton, chamou de “tola”80 a política de Bush para a Somália, dizendo que apoiar uma invasão etíope do país tornaria “praticamente impossível implementar nosso programa de contraterrorismo”. O então senador Joe Biden, que na época se preparava para assumir a presidência da Comissão de Relações Internacionais, falou claro e convincentemente, mostrando um conhecimento histórico perspicaz da sequência de eventos que levou a UCI ao poder. Biden acusou:
Fazendo uma aposta errada81 nos chefes de milícias para jogar nossa cartada, o governo levou ao fortalecimento das Cortes, enfraqueceu nossa posição e não deixou boas opções. Este é um dos desdobramentos menos conhecidos, porém mais perigosos do mundo, e o governo não tem uma estratégia confiável para lidar com ele.
Com ou sem uma estratégia confiável, o governo estava decidido a derrubar as Cortes. Em 24 de dezembro de 2006, aviões de guerra etíopes começaram o bombardeio, enquanto a fronteira com a Somália82 era cruzada por tanques. Era a clássica guerra por procuração comandada por Washington e travada por 40 mil ou 50 mil soldados83 do vizinho mais desprezado da Somália. O ministro de Defesa da UCI, Indha Adde, deu uma entrevista coletiva e convidou publicamente combatentes islâmicos estrangeiros a unir-se à luta. “Que eles venham lutar na Somália e fazer a jihad, e, se Deus quiser, atacar Adis Abeba”,84 disse. Enquanto os aviões de combate bombardeavam a Somália e as forças etíopes avançavam em direção a Mogadíscio, Frazer e outros membros do governo americano negavam que Washington estivesse por trás da invasão. Essas afirmações eram comprovadamente falsas. Gartenstein-Ross afirmou:
Os Estados Unidos patrocinaram a invasão etíope, pagaram tudo, até o combustível gasto, para assumir isso. E havia também forças americanas na frente de batalha, forças de Operações Especiais dos Estados Unidos A CIA estava na frente de batalha. A Força Aérea também fazia parte da história. Tudo isso dava superioridade militar aos etíopes.
“Os etíopes não teriam sido capazes de ir em frente sem o apoio do governo americano”, lembrou Gedi, que na época era o primeiro-ministro no exílio e trabalhou com a Inteligência
americana e com o governo etíope no planejamento da invasão. “As forças aéreas americanas nos apoiavam.” Qanyare viu a aliança que tivera com a CIA ser substituída pelos etíopes, os mais recentes prepostos de Washington. Para ele, foi um desastre incalculável. A “comunidade internacional trouxe [os etíopes], com o pretexto de que estavam lutando contra a Al-Qaeda”, disse Qanyare.
Eles matavam a população por causa do ressentimento que vinha da guerra de 1977. Liquidavam as pessoas, matavam mulheres e crianças. Eliminação. Com o pretexto de combater a Al-Qaeda. Acho que se os Estados Unidos conhecessem o caráter deles, nunca teriam apelado para eles.
No dia de Ano-Novo, o primeiro-ministro no exílio, Gedi, estava instalado em Mogadíscio. “A era dos chefes de milícias na Somália está terminada”,85 declarou ele. Numa mostra do que estava por vir, eclodiram por toda parte manifestações86 contra as forças que o tinham levado ao poder, e a população começou pronta e raivosamente a denunciar a “ocupação” etíope. Os acontecimentos de 2007 empurrariam a Somália para uma trajetória de mais horror e caos, levando a um aumento surpreendente no poder e no tamanho das forças que Washington pretendia combater. “A Etiópia e a Somália eram arqui-inimigas, inimigas históricas, e as pessoas achavam que aquilo estava agravando ainda mais a situação”, disse Aynte. “Estava nascendo uma insurreição.” “Se houve uma lição em termos de operações militares nos dez últimos anos, ela nos diz que os Estados Unidos são uma força insurgente muito eficaz”, disse Gartenstein-Ross. “Nas áreas em que tentam derrubar um governo, são bastante bons nisso. O que não se vê é sucesso em estabelecer uma estrutura de governo viável.” As ações dos Estados Unidos e da Etiópia, disse Buubaa, ex-ministro das Relações Exteriores, vão acabar “conduzindo a Somália ao redil da AlQaeda”. Nance, o veterano de Inteligência, acha que a invasão etíope apoiada pelos Estados Unidos foi uma bênção para a Al-Shabab:
Antes daquilo, a organização existia dentro de uma estrutura muito pequena, como as dos chefes de milícias, mas depois que a Etiópia chegou — é bastante óbvio que ela agia como um representante [dos Estados Unidos] — a Al-Qaeda disse: “Ótimo! Uma nova frente de batalha completa para a jihad. É lá que vamos pegá-los. Vamos pegar os cristãos etíopes, vamos pegar conselheiros americanos. Agora basta criar um novo campo de batalha e revigoraremos a organização da Al-Qaeda na África Oriental”. Foi exatamente o que aconteceu.
20. Fuga da prisão
IÊMEN, 2006 — Enquanto os chefes de milícias da CIA combatiam a União das Cortes Islâmicas na Somália e o governo Bush se concentrava quase exclusivamente na insurreição em ascensão no Iraque, houve uma fuga em massa da prisão de Sana’a que se tornaria um fato da maior importância para a reconstrução da Al-Qaeda na região. Entre os fugitivos estavam figuras de destaque que integrariam o núcleo da liderança de uma nova organização, a Al-Qaeda na Península Arábica (AQPA), inclusive Nasir al-Wuhayshi, que tinha sido secretário pessoal de Bin Laden. Em 3 de fevereiro de 2006, Wuhayshi e outros 22 presos escaparam da prisão de segurança máxima1 por um túnel construído entre uma cela e uma mesquita próxima, embora mais tarde2 Wuhayshi tenha se vangloriado de ter saído literalmente pela porta da frente depois das orações matinais. Wuhayshi se reuniria aos braços saudita e iemenita da Al-Qaeda sob a bandeira regional da AQPA. Qasim al-Rimi, que fugiu na mesma ocasião, tornar-se-ia comandante militar da AQPA. “É um problema sério”,3 disse Rumsfeld alguns dias depois da fuga. “Eram pessoas intimamente envolvidas com as atividades da Al-Qaeda e diretamente ligadas ao atentado contra o USS Cole e a morte de marinheiros que estavam a bordo.” Entretanto, enquanto Rumsfeld e outras autoridades americanas se dedicavam quase somente a pressionar o presidente iemenita Ali Abdullah Saleh a recapturar Jamal al-Badawi, que os Estados Unidos queriam que fosse extraditado, e outros suspeitos do atentado contra o Cole, seriam Wuhayshi e Rimi os que se tornariam os mais perigosos e problemáticos dos fugitivos. Diversos ex-dirigentes da Inteligência americana, autoridades policiais e militares que trabalharam em operações e na política do Iêmen disseram-me que essas fugas não eram acidentais e que tampouco o fato de a AQAP ter escolhido o Iêmen estava inteiramente fora do controle de Saleh. Embora normalmente descartassem a ideia de um conluio direto entre Saleh e a Al-Qaeda no planejamento dos atentados, essas pessoas comentavam que durante muitos anos Saleh dera permissão tácita para atos de terrorismo em território iemenita, ou explorara esses ataques, depois de ocorridos, como meio de lembrar Washington da ameaça representada pela Al-Qaeda no Iêmen. “Saleh sabia fazer o jogo4 de modo que todos — da Al-Qaeda aos sauditas e aos Estados Unidos — ficassem sabendo que ele era necessário”, disse a ex-autoridade máxima do contraterrorismo americano, com grande experiência no Iêmen. “E jogava muito bem.”
O jogo tinha como objetivo obter dinheiro, armas e treinamento especializado para que as principais forças de elite combatessem as rebeliões internas que ele via como a verdadeira ameaça a sua sobrevivência. “Durante anos, vimos alguns desses regimes fazendo esse tipo de jogo”, disse em 2010 o dr. Emile Nakhleh, antigo agente sênior de Inteligência da CIA.
Eles fazem esse jogo para sobreviver,5 para ficar do lado certo, para conseguir todo tipo de ajuda militar — e na verdade a ajuda militar equivale a duas ou três vezes a ajuda econômica que o Iêmen recebe. […] Portanto, se isso é verdade, eles não estão necessariamente servindo à política contraterrorista estratégica, de longo prazo [dos Estados Unidos].
Alguns experimentados analistas políticos iemenitas acreditam, no entanto, que havia na verdade uma cooperação direta do regime de Saleh com a Al-Qaeda. Dizia-se que alguns membros da Guarda Republicana, da PSO e das Forças Centrais de Segurança (Central Security Forces, CSF) — todas elas recebiam apoio de Washington — estavam trabalhando com células da Al-Qaeda ou já tinham ajudado a organização com suprimentos, esconderijos e informações sobre instalações diplomáticas estrangeiras. A fuga da prisão em 2006 pareceu a alguns especialistas em segurança bem informados “um trabalho interno”,6 afirmou o jornalista Sam Kimball num relatório para a revista Foreign Policy.
A prisão é uma imponente fortaleza no coração de Sana’a, com soldados à paisana patrulhando todo o seu entorno. As pequenas celas dos internos — onde só entram utensílios de plástico — são revistadas várias vezes por dia. Os presos só saem para o banho de sol durante meia hora diária.
O coronel da reserva Muhsin Khosroof disse:
Não sabemos como foi que eles conseguiram as ferramentas para cavar um túnel de trezentos metros, nem sabemos onde foi parar a terra que saiu dali. Sem apoio direto de funcionários da prisão, essa operação teria sido impossível.7
A fuga contribuiu diretamente para o crescimento da Al-Qaeda no Iêmen. Se for verdade o que disseram o coronel Khosroof e outros oficiais, isso significa que os Estados Unidos apoiavam o mesmo governo que ajudava a ressurreição da Al-Qaeda no Iêmen. Depois da fuga, o governo Bush continuou aumentando a assistência militar ao país. Segundo a mais alta autoridade do contraterrorismo americano na época, Saleh achava que o custo político de acabar com a Al-Qaeda de maneira definitiva — entregando seus líderes — seria alto demais. “No momento em que entregar as principais figuras, [Saleh] despenca no abismo junto
com a Al-Qaeda. Eles vão deixar de apoiá-lo. Ou seja, o relacionamento vai ficar gravemente abalado.” E acrescentou que Saleh “não deu aos Estados Unidos nada de substancial em troca do dinheiro que recebeu”. Em julho de 2006, cinco meses depois da fuga, os Estados Unidos promoveram uma grande ampliação de Camp Lemonnier8 no Djibuti, que passou de 35 hectares para quase duzentos. Seus efetivos chegaram a 1500, e o local transformou-se num grande eixo da CIA e um ponto de escala para Forças de Operações Especiais que estivessem executando ações secretas ou clandestinas na região. “Algumas equipes usam a base9 quando não estão trabalhando ‘às ocultas’ em países como Quênia, Etiópia e Iêmen”, publicou a revista Stars and Stripes, citando o oficial executivo do campo, coronel Joseph Moore. Enquanto Saleh fazia seu jogo com os americanos sobre a fuga de prisioneiros, os Estados Unidos consolidavam gradualmente sua presença na região, embora os funcionários do governo Bush continuassem tratando o reagrupamento da Al-Qaeda no Iêmen como questão secundária. Em outubro de 2007, Saleh recebeu a mais alta assessora10 do presidente Bush em questões de segurança nacional e contraterrorismo, Frances Townsend, em Aden. Durante o encontro, ela pediu a Saleh que atualizasse suas informações sobre Jamal al-Badawi, o suposto cérebro do ataque ao Cole. Saleh confirmou que ele tinha sido solto e estava “trabalhando em sua fazenda” a pouca distância do local onde ele e Frances Towsend estavam reunidos. Saleh disse ainda que vinha de um encontro com Badawi duas semanas antes. “Ele me prometeu abandonar o terrorismo e eu lhe disse que seus atos prejudicavam o Iêmen e sua imagem; ele começou a entender”, disse Saleh. Quando Frances Townsend “manifestou desânimo” com a libertação de Badawi, Saleh disse a ela que não se preocupasse porque “ele está debaixo de meu microscópio”. Foi Saleh quem, segundo um telegrama diplomático enviado depois do encontro, mencionou Wuhayshi e disse a Towsend, sem rodeios, que ele tinha assumido o posto de líder da Al-Qaeda no Iêmen. Townsend, segundo o telegrama, desviou a conversa para o sistema fracassado de prisão domiciliar do país. Ainda na mesma reunião, Saleh falou sobre sua luta contra os secessionistas do sul, mais uma vez retratando sua sobrevivência como central para a política de Washington. “É importante que o Iêmen não chegue a um estado de instabilidade”, disse a Townsend. “Precisamos do apoio de vocês.” Ao que ela respondeu: “Não precisa se preocupar. É claro que apoiamos o Iêmen”. O momento mais inusitado da reunião talvez tenha sido aquele em que Saleh fez entrar Faris Mana’a, grande traficante de armas iemenita, e o fez sentar-se ao lado de Townsend. Segundo as Nações Unidas, “apesar do embargo de armas11 imposto pelas Nações Unidas à Somália desde 1992, os interesses de Mana’a no tráfico de armas para o país remonta pelo menos a 2003”, e Mana’a “forneceu, transferiu ou vendeu à Somália, direta ou indiretamente, armas ou material similar em violação ao embargo de armamentos”. Quando Mana’a entrou na sala, deram-lhe um assento à mesa de Townsend. “Olá, FBI”, disse Saleh a um dos representantes americanos, “se ele não se comportar direito, podem levá-lo… de volta para Washington no avião de
Townsend, ou para Guantánamo”. Saleh disse a Townsend que suas forças tinham interceptado recentemente um carregamento de armas de Mana’a, que teria sido entregue às Forças Armadas iemenitas. “Ele doou armas para as Forças Armadas da nação — e agora pode ser considerado um patriota”, brincou Townsend. Saleh riu. “Não, ele é um agente duplo — doou armas para os rebeldes de Al-Houthi também.” Um telegrama diplomático americano autorizado por Townsend logo após a reunião proclamou: “Vocês não vão acreditar”. Pondo um ponto de exclamação no episódio todo, dois anos depois, Mana’a passou a coordenar as iniciativas de “paz” do presidente Saleh junto aos rebeldes houthi. O contato de Townsend com Saleh — e os de outros funcionários do governo americano — mostra bem o talento de Saleh para jogar em diversas posições em sua guerra para se manter no poder. “O modo como ele usa a dupla ameaça de terrorismo e instabilidade quando se refere ao conflito interno também não é novo”, afirma o telegrama diplomático aprovado por Townsend depois da visita. “Saleh usa repetidamente essa tática quando tenta ganhar apoio do USG [governo dos Estados Unidos].” É claro que Saleh usava essa atitude porque dava resultado. No que diz respeito à Al-Qaeda, quanto menos estável parecia o governo de Saleh, mais dinheiro e treinamento ele conseguia extrair dos Estados Unidos. “Todos esses representantes americanos se viam em apuros12 ao tratar com Saleh”, disse um ex-militar americano que trabalhou no país. “Quando se trata do Iêmen, ele é muito mais esperto que qualquer um deles.” Depois do ataque do drone americano em 2002 e da prisão de dezenas de supostos militantes, a Al-Qaeda no Iêmen foi gravemente atingida e tornou-se uma organização de existência mais teórica. Mas depois da fuga de presos de 2006, os fugitivos reconstruíram a organização adormecida. Saleh pouco fez para impedi-los. Os Estados Unidos estavam tão obcecados pela recaptura de Jamal al-Badawi e de outro suspeito da explosão do Cole, um cidadão americano chamado Jabir al-Banna, que deram pouca atenção aos demais. “Os Estados Unidos fizeram muita pressão13 sobre o Iêmen para que capturassem os dois”, segundo Gregory Johnsen, especialista em estudos sobre o Oriente Médio de Princeton. “Mas, como muitas vezes acontece, as pessoas que causavam os maiores problemas não eram aquelas com quem os Estados Unidos mais se preocupavam. Aquelas sobre as quais pouco se sabia se mostraram as mais perigosas.” Como disse Saleh a Townsend durante a reunião de 2007, a Al-Qaeda estava, com certeza, se reagrupando depois da fuga de presos. E, como ele disse, a organização estava sendo liderada por Wuhayshi, ex-secretário de Bin Laden. Wuhayshi era um jihadista calejado14 que foi primeiro ao Afeganistão no fim da década de 1990, onde se ligou a Bin Laden. Em 2001, quando os Estados Unidos invadiram o Afeganistão, Wuhayshi lutou na famosa batalha de Tora Bora e depois fugiu para o Irã, onde foi capturado e ficou preso durante dois anos antes de ser entregue ao Iêmen, em 2003. Nunca foi acusado de nenhum crime. Depois de fugir da prisão iemenita, ele redefiniu a Al-Qaeda do Iêmen como organização regional e não nacional, e chamou-a Organização da Jihad Al-Qaeda no Sul da Península Arábica, que se tornaria a AQPA. Sob sua
liderança, a Al-Qaeda no Iêmen “tornou-se mais estridente,15 mais bem organizada e mais ambiciosa do que nunca”, afirmou Johnsen na época. Wuhayshi “reestruturou completamente a organização”. O fato de a Al-Qaeda estar de volta à ativa foi bom para Saleh, porque exigiu que americanos e sauditas tomassem uma atitude — e principalmente que financiassem e armassem seu regime. Mas o JSOC estava perdendo a paciência com Saleh e logo começaria a ampliar suas próprias operações no interior do Iêmen, com ou sem a anuência do presidente.
21. Perseguição transfronteiras
PAQUISTÃO, 2006-8 — A gestão de Donald Rumsfeld como secretário de Defesa chegou a um fim inglório nos últimos meses de 2006. Meia dúzia de generais reformados, alguns dos quais tinham sido comandantes de importância na guerra do Iraque, cerraram fileiras com vários parlamentares republicanos e democratas a fim de promover uma campanha exigindo sua demissão. Muitos procuraram culpá-lo pela deterioração da situação no Iraque, outros pelos abusos na prisão de Abu Ghraib. Os republicanos sofreram perdas graves nas eleições para o Legislativo, que deram maioria aos democratas no Senado e na Câmara dos Representantes, o que muitos analistas políticos atribuíram à crescente oposição à guerra do Iraque. Entre os auxiliares do presidente na Casa Branca que haviam lutado para que Bush o mantivesse no cargo estava Dick Cheney. Embora o presidente tivesse defendido Rumsfeld de início, por fim aceitou sua demissão. Rumsfeld era, sem dúvida, um dos nomes de destaque no esquema de assassinatos secretos e tortura instituído depois do Onze de Setembro, mas sua saída não alteraria radicalmente o rumo das ações e dos programas que ele ajudara a criar. Em dezembro de 2006, Robert Gates sucedeu a Rumsfeld. Gates tinha um estreito relacionamento de trabalho com a CIA, órgão em que havia passado grande parte de sua carreira. Trabalhou na Agência em fins da década de 1960 e, posteriormente, no começo da década de 1990, foi seu diretor — tendo sido o primeiro funcionário de carreira a subir na hierarquia1 até o cargo de diretor. Gates servira em várias ocasiões ao NSC e tinha também ligações estreitas2 com as Forças de Operações Especiais dos Estados Unidos. Fora alvo de investigação por uma suposta participação no escândalo Irã-contras, e embora a comissão independente que investigou o caso tivesse concluído que ele “esteve próximo a muitas figuras que exerceram papéis relevantes no caso Irã-contras e estivesse em condições de ter conhecimento de suas atividades”, decidiu-se que sua intervenção “não justificava indiciamento”. Gates fora também um ator importante na guerra do Afeganistão contra os soviéticos, alimentada pelos Estados Unidos3 na década de 1980. Um de seus primeiros atos no Pentágono foi recolocar o Paquistão, com firmeza, no radar da campanha de assassinatos dirigidos. Em depoimento perante a Comissão de Serviços Armados do Senado, três meses depois da posse de Gates no DoD, o general Douglas Lute, diretor de operações do Estado-Maior Conjunto, afirmou que os comandantes militares americanos tinham “poder de morte e
captura” ou de “ação direta no Afeganistão”,4 o que lhes dava “liberdade para agir contra aqueles que demonstrassem atos hostis”. Lute, entretanto, acrescentou que esses poderes também permitiam operações no interior do Paquistão. Se “o inimigo” tenta “fugir transpondo a fronteira, temos todos os poderes de que precisamos para persegui-lo”. Interrogado sobre o poder para empreender operações mais invasivas, como atacar diretamente Osama bin Laden no Paquistão, Lute disse que só falaria sobre isso numa sessão fechada. O acordo de “perseguição ativa” tinha deixado a ISI enfurecida desde que foi acertado por Musharraf e o JSOC, em 2002. Não havia no Paquistão quem não soubesse que a CIA estava operando intensamente no país — todo ataque com drone era um claro lembrete disso —, mas não se podia admitir que as Forças Armadas americanas estivessem atuando com outra finalidade que não fosse treinar as forças paquistanesas. Enquanto os militares paquistaneses e a ISI exigiam menos ações americanas em seu território, fazia anos que o JSOC vinha “pressionando bastante”5 para que a Casa Branca lhe desse maior liberdade para atacar, mesmo em casos em que a operação fosse mais complexa do que a simples perseguição, do outro lado da fronteira, de suspeitos de serem agentes da Al-Qaeda. “Deem-nos mais liberdade, temos de atacar os locais onde ficam seus santuários” — foi assim que uma autoridade americana resumiu na época o discurso do JSOC. Embora o Paquistão negociasse com dureza — às vezes superava estrategicamente os Estados Unidos —, o fato era que precisava do dinheiro, das armas e do apoio de Washington. Assim, no final das contas, se o Paquistão não queria lidar com certos elementos terroristas, o JSOC e a CIA o faziam. E a Casa Branca dava sua aprovação. No caso do JSOC, isso significava incursões dirigidas no interior do país. “Creio que essa era uma daquelas coisas para as quais os paquistaneses às vezes fechavam os olhos,6 quase como no programa dos drones”, disse-me Anthony Shaffer, quadro operacional da DIA que atuava bastante no Paquistão. “Não acredito, nem por um minuto, que o presidente [Asif Ali] Zardari e o [diretor da ISI] general [Ashfaq Parvez] Kayani, e mesmo Musharraf antes, não soubessem que fazíamos essas coisas.” Em 2007, o orçamento para as operações especiais americanas tinha subido 60% em relação a 2003,7 passando para mais de 8 bilhões de dólares anuais. Em janeiro, o presidente Bush anunciou a “escalada no Iraque”. O número de militares convencionais americanos aumentou para 20 mil, e Bush autorizou também um aumento substancial de operações de assassinatos direcionados, executados por forças do JSOC. A operação foi o canto do cisne do general McChrystal no JSOC. No fim de 2007, o presidente começou a declarar que a escalada no Iraque fora um sucesso. Isso deu condições ao JSOC de voltar a se concentrar no Paquistão. Em fins de 2007, o governo Bush começou a elaborar planos para uma intensificação substancial no emprego das Forças de Operações Especiais dos Estados Unidos no interior do Paquistão. Não obstante, o plano empacou em decorrência da luta entre a CIA e o Pentágono pelo controle das operações no Paquistão, num desacordo a que o New York Times se referiu como “intensas discórdias8 dentro do governo Bush e dentro da CIA” quanto à “conveniência de
comandos americanos realizarem ataques terrestres no interior de áreas tribais”. Em junho de 2008, um incidente pôs à mostra os riscos associados a uma possível expansão das atividades das operações especiais americanas no Paquistão. Uma batalha entre forças americanas e do Talibã na província afegã de Kunar transbordou para o Paquistão. As forças dos Estados Unidos pediram apoio aéreo, e helicópteros americanos lançaram mísseis contra os talibãs. Os ataques mataram também onze soldados paquistaneses posicionados em seu lado da fronteira. O Paquistão denunciou a ação como um ataque “não provocado e covarde”9 dos Estados Unidos. “Assumiremos uma posição definida em favor da soberania, da integridade e de respeito próprio”, declarou o primeiro-ministro paquistanês, Yousaf Raza Gillani, ao Parlamento. “Não permitiremos que nosso solo [seja atacado].” Na verdade, porém, o Paquistão não tinha como sustentar tais declarações. Dois dias depois do incidente, em 13 de junho de 2008, o vice-almirante William McRaven assumiu o comando do JSOC, que até então era exercido pelo general McChrystal, herdando a tarefa de dar continuidade à caçada de Osama bin Laden e outros HVTs. Ficou evidente que o malfadado ataque que matou os soldados paquistaneses não o perturbara. McRaven, ex-líder de uma equipe de SEALs da Marinha e vice-comandante de McChrystal no JSOC, passou a clamar por mais liberdade para efetuar ataques no Paquistão. Em julho de 2008, o presidente Bush aprovou uma ordem secreta10 — que dera ensejo a muitos debates entre a CIA, o DoD e o Pentágono —, autorizando as Forças de Operações Especiais dos Estados Unidos a realizar operações dirigidas de morte ou captura. Ao contrário do acordo anterior com o presidente Musharraf, as Forças de Operações Especiais dos Estados Unidos não atuariam em conjunto com forças paquistanesas nem pediriam autorização prévia ao governo do Paquistão para efetuar ataques em solo paquistanês. “Para amenizar os temores da embaixadora dos Estados Unidos, Anne Patterson, em relação ao número crescente de óbitos de civis em decorrência de incursões do JSOC em outros países, os comandos deram-lhe um terminal do sistema Predator, para que ela pudesse acompanhar uma incursão em tempo real”, segundo os repórteres Dana Priest e William Arkin. Ameaçado de impeachment, o presidente Musharraf, que durante muito tempo fora um maleável aliado dos Estados Unidos, deixou o cargo em agosto de 2008. Quase de imediato, as forças do JSOC passaram a testar seu sucessor. Como uma fonte das Operações Especiais, que trabalhava com McRaven, me disse na época, “Bill rapidamente expandiu as operações”11 no Paquistão. Em 3 de setembro de 2008, dois helicópteros levaram uma equipe de SEALs da Marinha que estava a serviço do JSOC para o outro lado da fronteira entre o Afeganistão e o Paquistão. Apoiados por um avião de artilharia aerotransportada AC-130 Spectre, com capacidade de infligir sérios danos, os americanos desceram numa aldeia perto de Angoor Adda,12 pequena cidade de montanha no Waziristão do Sul, no Paquistão, perto da fronteira com o Afeganistão. Os helicópteros pousaram silenciosamente, e 24 SEALs equipados com óculos de visão noturna tomaram posição em torno da casa de um lenhador e vaqueiro de cinquenta anos. De acordo
com alguns relatos, a equipe de Operações Especiais tinha informações de que um líder da AlQaeda estava na casa. Para o Washingon Post, esse foi “o primeiro ataque terrestre dos Estados Unidos contra um alvo do Talibã dentro do país”. Seja como for, uma vez posicionados, os SEALs executaram sua missão. O que ocorreu depois de disparados os primeiros tiros ainda é motivo de polêmica. De acordo com as autoridades americanas, “cerca de duas dezenas de supostos combatentes da AlQaeda”13 foram mortos numa “ofensiva planejada contra militantes que vinham atacando uma base avançada americana do outro lado da fronteira com o Afeganistão”. Já segundo aldeões,14 os SEALs abriram fogo, matando o dono da casa, Payo Jan Wazir, seis crianças, entre elas uma menina de três anos e um menino de dois, e duas mulheres. Quando os vizinhos de Payo Jan ouviram os tiros e correram para ver o que acontecia, disseram os aldeões, os SEALs dispararam contra eles, matando mais dez pessoas. O governo paquistanês declarou que todos eram civis. Os Estados Unidos insistiram que eram militantes da Al-Qaeda. O Ministério das Relações Exteriores do Paquistão convocou a embaixadora Patterson. Numa nota, denunciou a operação, tachando-a de “grave violação do território do Paquistão”,15 alegando que a incursão causara uma “imensa perda de vidas civis”. O Ministério das Relações Exteriores declarou “lamentável” o fato de forças americanas terem “cruzado a fronteira e recorrido ao uso de força contra civis”, asseverando que “tais ações são contraproducentes e decerto não contribuem para nossos esforços conjuntos contra o terrorismo. Pelo contrário, solapam a própria base da cooperação e podem alimentar o fogo do ódio e da violência que estamos tentando extinguir”. Depois de anos em que era instruído a concentrar a maior parte de seus recursos no Iraque, o JSOC estava, finalmente, conseguindo realizar operações mais coordenadas no Paquistão. No fim das contas, a visão que Rumsfeld tinha do mundo como um campo de batalha concretizou-se mais plenamente depois que ele deixou o DoD do que quando estava no poder. Sua saída inaugurou uma era em que as mais potentes forças sombrias dos Estados Unidos transferiram-se do Iraque para as guerras crepusculares americanas no sul da Ásia, na África e em outras áreas.
22. “Todas as medidas tomadas pelos Estados Unidos beneficiaram a Al-Shabab”
SOMÁLIA, 2007-9 — Grande parte da atenção da mídia na Somália, no começo de 2007, se voltava para a invasão e ocupação pela Etiópia, mas o JSOC estava concentrado na caça. No começo de janeiro, montara rapidamente sua “ninfeia” improvisada na discreta base militar dos Estados Unidos na baía de Manda, no Quênia, e estava à espera do momento de atacar. Os planejadores americanos queriam que a invasão etíope forçasse os líderes da União das Cortes Islâmicas a deixar a capital e se refugiar em redutos, sobretudo ao longo da fronteira com o Quênia, onde a Força-tarefa 88 poderia investir contra eles. O JSOC tinha aviões AC-130 posicionados secretamente numa base aérea perto de Dire Dawa,1 Etiópia, capazes de atacar líderes da UCI e combatentes estrangeiros que batessem em retirada, o que possibilitaria a equipes do JSOC deixar a base na baía de Manda e penetrar na Somália para terminar o trabalho, se fosse necessário. A política americana na Somália se reduzira a um único princípio: achar, atacar e acabar. “É um abate duro, fulminante”,2 afirmou Malcolm Nance. “Se não for um abate duro, não dá certo, sabe?” Em 7 de janeiro, um drone Predator dos Estados Unidos,3 desarmado e lançado de Camp Lemonnier, sobrevoou o sul da Somália, rastreou um comboio e transmitiu informações ao vivo para o comando da Força-tarefa. Logo depois, um AC-130 decolou para a Somália e metralhou o comboio4 no momento em que ele entrava numa floresta na fronteira entre o Quênia e a Somália. Segundo relatos,5 o alvo era Aden Hashi Farah Ayro, o comandante militar da AlShabab, ou Fazul ou Nabhan, líderes da Al-Qaeda na África Oriental. Autoridades americanas declararam que o ataque matara de oito a doze combatentes, e espalhou-se o boato de que entre os mortos estaria um “líder da Al-Qaeda”.6 Fontes de informações dos Estados Unidos e da Etiópia acreditavam que essa pessoa poderia ser Ayro ou Abu Talha al-Sudani, o financista da Al-Qaeda. Uma equipe do JSOC, vinda da baía de Manda, pousou no local do ataque, na Somália, a fim de colher amostras de DNA dos mortos. Entre os corpos e os destroços acharam o passaporte de Ayro, sujo de sangue,7 e acreditaram ter abatido um líder importante. No entanto, soube-se depois que Ayro realmente estivera no comboio e deve ter ficado ferido, mas acabou escapando. Em 9 de janeiro, o JSOC lançou outro ataque, dessa vez “contra membros da célula da Al
Qaeda na África Oriental, possivelmente refugiados numa área remota da Somália, perto da fronteira queniana”,8 segundo um telegrama diplomático americano enviado pela embaixada em Nairóbi. Seguiram-se, durante vários dias, outros ataques aéreos que mataram dezenas de civis, segundo testemunhas e grupos de direitos humanos. Nunca se confirmou se esses ataques foram realizados pelos Estados Unidos, pela Etiópia ou pelos dois países em conjunto. Sem dúvida, helicópteros e outras aeronaves etíopes atacavam a Somália unilateralmente. O Pentágono assumiu o ataque de 7 de janeiro,9 mas não fez comentários sobre os demais, embora autoridades americanas anônimas tenham admitido que foram de responsabilidade dos Estados Unidos. Os primeiros relatos da imprensa americana descreveram os ataques como operações bem-sucedidas que estavam eliminando, um a um, os líderes da “Al-Qaeda” na Somália. Segundo vários relatos, baseados em informações fornecidas por autoridades americanas anônimas, Ayro e Fazul tinham sido mortos em operações especiais dos Estados Unidos. Uma notícia particularmente cômica da anunciada morte de Fazul no New York Post tinha o seguinte título: “Al-Qaeda esmagada: ataque dos Estados Unidos na Somália mata demônio da embaixada”.10 Na realidade, com exceção de uma, todas as figuras importantes procuradas pelos Estados Unidos saíram incólumes dessas operações. Em algum momento, quando os AC130 e helicópteros americanos e aeronaves etíopes atacavam redutos da Al-Shabab, Sudani foi morto por acaso,11 embora os militares americanos só tenham sabido disso meses depois. Foi o começo de uma campanha concentrada de operações dirigidas de assassinato e captura pelo JSOC na Somália, mas de início ela deu poucos resultados relevantes. Na verdade, os homens que estavam sendo caçados se tornariam, por ironia, beneficiários dos próprios ataques destinados a matá-los. “Estávamos investindo e fazendo ataques com aviões AC-130”, disse-me Nance. “É um aparelho excelente quando usado contra tropas numerosas e conhecidas, para isso o AC-130 é ótimo.” No entanto, em vez de tropas, disse ele, “estávamos eliminando grupos de civis”. Realmente, os ataques dos AC-130 resultaram num número absurdo de mortes de civis somalianos. Num incidente particularmente tenebroso, foi atacado um grande grupo de pastores nômades e suas famílias. A Oxfam, organização de direitos humanos da Somália, afirmou que setenta somalianos inocentes foram mortos. “Não havia combatentes entre eles”,12 declarou um representante do grupo. “A causa do ataque talvez se relacionasse a uma fogueira que os pastores tinham acendido de noite, mas isso é algo que eles fazem normalmente para afastar mosquitos e outros animais dos rebanhos.” A Oxfam juntou-se à Anistia Internacional para contestar a legalidade dos ataques aéreos. “Segundo o direito internacional, há o dever de distinguir entre alvos militares e civis”, advertiu a Oxfam. “Estamos muito preocupados com a possibilidade de que esse princípio não esteja sendo seguido e que pessoas inocentes na Somália estejam pagando o preço.”13 Os ataques americanos concentravam-se principalmente ao longo da fronteira entre o Quênia e a Somália, reduto de Ahmed Madobe e de sua milícia Ras Kamboni. Madobe era cunhado e
protegido de Hassan Turki, comandante jihadista que fundou a milícia e liderou forças militares de cada um dos sucessivos movimentos islâmicos na Somália: a União Islâmica (Al-Itihaad alIslamiya), a UCI e, por fim, a Al-Shabab. Quando os ataques começaram, Madobe e seus homens estavam voltando para sua base perto da fronteira com o Quênia, pondo-se inadvertidamente ao alcance direto da Força-tarefa 88, do JSOC. Membros da divisão de Inteligência do JSOC, a Atividade, vinham rastreando os movimentos de Madobe e de outros líderes da UCI. Tal como Indha Adde, Madobe conhecia e respeitava os combatentes internacionais que tinham acorrido à Somália para ajudar na batalha contra os chefes de milícias respaldados pela CIA. Seu mentor, Turki, era agora um terrorista perseguido pelos Estados Unidos.14 Tudo isso, além de sua posição como líder, inseriu Madobe na lista dos alvos do JSOC. Madobe sabia que os Estados Unidos e a Etiópia estavam atacando líderes da UCI que fugiam, e depois de incidentes em que escapou por um triz, levando-o a suspeitar de que tivesse se tornado um alvo, ele e um pequeno grupo saíram pelo interior da Somália, procurando manterse longe do número cada vez maior de aviões que viam no céu. “À noite, tínhamos medo de acender uma fogueira para cozinhar, e de dia não queríamos fazer fumaça”, disse-me ele quando o conheci, num posto avançado perto da fronteira queniana. “Como não tínhamos alimentos pré-cozidos, a situação ficou muito difícil.” Pensando bem, disse, provavelmente sua perdição tinha sido a tecnologia. “Tínhamos telefones Thuraya, com transmissão por satélite, e é evidente que isso ajudou os americanos a nos localizar com mais facilidade.”15 Na noite de 23 de janeiro de 2007, Madobe e seu grupo acamparam debaixo de uma grande árvore. “Por volta das quatro da manhã, levantamo-nos para as orações matinais, e foi então que os aviões começaram a nos atacar”, contou. “Todo o espaço aéreo estava coalhado de aviões. Havia AC-130, helicópteros e caças a jato. O céu estava cheio de atacantes. Atiravam em nós com armas pesadas.” Morreram as oito pessoas que estavam com ele no acampamento, entre as quais, segundo Madobe, havia mulheres. Ele próprio foi ferido. Ele supôs que uma força terrestre viria em seu encalço. “Peguei uma arma e uma porção de pentes de munição. Achei que a morte estava chegando para mim e queria matar o primeiro inimigo que visse”, disse. “Mas nada disso aconteceu.” Madobe ficou ali, ferido, perdendo sangue e energia. Depois, por volta das dez da manhã, soldados americanos e etíopes chegaram num helicóptero, que pousou perto de onde ele estava. Madobe lembra que um soldado americano aproximou-se dele, que jazia estirado no chão, sem camisa. “Você é Ahmed Madobe?”, perguntou. “E vocês quem são?”, Madobe devolveu. O soldado americano respondeu: “Somos as pessoas que vieram aqui para capturar você”. O americano exibiu uma foto de Madobe, que enquanto estava sendo algemado perguntou se aquilo seria mesmo necessário. “Você pode ver que já estou meio morto”, disse. Puseram-no num helicóptero e levaram-no para uma base improvisada em Kismayo, que estava sendo utilizada pelas forças americanas e etíopes. Os americanos, disse ele, começaram a interrogá-lo imediatamente, e só depois que agentes etíopes intervieram foi que lhe deram água e lhe prestaram atendimento médico. Em Kismayo, enquanto se recuperava dos ferimentos, os
americanos o interrogavam a intervalos regulares. “Tinham os nomes de diversos rebeldes e combatentes numa lista e me perguntavam se eu os conhecia ou se tinha informações sobre eles”, disse. Um mês depois, ele foi entregue à Etiópia, onde ficou preso durante mais de dois anos. Ao contrário de Madobe, o ex-presidente da UCI, xeque Sharif, desejava fazer um acordo. Embora altas autoridades americanas tivessem dado a entender que a UCI equivalia ao Talibã ou estava sendo dirigida pela Al-Qaeda, na verdade os Estados Unidos viam o xeque Sharif como um “moderado”. Em 31 de dezembro, enquanto a UCI se desintegrava, Sharif foi a Kismayo, de onde falou pelo telefone com o embaixador dos Estados Unidos em Nairóbi. Segundo um cabograma diplomático americano, enviado de Nairóbi ao Departamento de Estado, “o embaixador disse a Sharif16 que, no entender dos Estados Unidos, ele poderia desempenhar um papel importante ajudando a promover a paz e a estabilidade na Somália”. O embaixador, que consultara Washington antes para propor um acordo a Sharif, “declarou que os Estados Unidos estavam dispostos a recomendar que o Quênia ajudasse a levá-lo [Sharif] a Nairóbi se ele se dispusesse a colaborar no apoio à paz e à estabilidade na Somália […] e a rejeitar o terrorismo”. Era o começo de uma campanha americana, nos bastidores, para mudar a imagem de Sharif. Para o vice-secretário de Estado, Jendayi Frazer, seria “preferível cooptar17 um xeque fraco, Sharif Sheikh Ahmed, para evitar que os linhas-duras cerrem fileiras em torno dele”. Por fim, com a ajuda dos serviços de Inteligência americanos, Sharif deixou a Somália e se refugiou no Quênia.18 Ali Mohamed Gedi, ex-primeiro-ministro da Somália, me disse: “Acredito que [Sharif] estivesse trabalhando com a CIA.19 Eles o protegiam”. Gedi me contou que quando Sharif fugiu para o Quênia, no começo de 2007, o governo americano pediu-lhe que emitisse documentos de viagem para Sharif poder viajar ao Iêmen. Gedi disse que também escreveu cartas de recomendação aos governantes quenianos e iemenitas, pedindo-lhes que permitissem a Sharif fixar residência no país. “Eu fiz isso a pedido do governo dos Estados Unidos”, declarou. No Iêmen,20 Sharif começou a organizar seu retorno ao poder em Mogadíscio, dessa vez com o apoio dos Estados Unidos. Ao contrário de Sharif, muitos dos que fugiam da Somália estavam em desacordo com a CIA e com os serviços de informações americanos. As forças de segurança do Quênia — às vezes agindo a pedido de Washington — começaram a prender dezenas e dezenas de pessoas. A organização Human Rights Watch informou que o Quênia deteve
pelo menos 150 homens,21 mulheres e crianças de mais de dezoito países — inclusive dos Estados Unidos, do Reino Unido e do Canadá — em operações realizadas perto da fronteira da Somália. Suspeitando de que os detidos tivessem ligações com o terrorismo, os quenianos os mantiveram sob custódia durante semanas, sem acusação, em Nairóbi. Durante três semanas, de 20 de janeiro a 10 de fevereiro, o governo queniano transportou de avião para a
Somália dezenas dessas pessoas — sem aviso às famílias, a advogados ou aos próprios detidos —, que foram entregues a militares etíopes.
Em sua investigação, a Human Rights Watch concluiu que quando os prisioneiros foram entregues à Etiópia, “eles na verdade desapareceram”, sendo-lhes “negado acesso a suas embaixadas, suas famílias e a organizações humanitárias internacionais como o Comitê Internacional da Cruz Vermelha”. O texto acrescentava: “Entre fevereiro e maio de 2007, diariamente, as autoridades de segurança etíopes transportaram detidos — entre os quais várias mulheres grávidas — para uma casa onde autoridades americanas os interrogaram a respeito de ligações com terroristas”. Ao todo, as forças de segurança e de informações do Quênia detiveram grande número de pessoas para os Estados Unidos e outros países, incluindo 85 pessoas entregues à Somália só em 2007. Pelo menos uma delas foi levada para Guantánamo.22 A Somália estava se tornando um microcosmo de guerra maior contra o terror, tanto para a AlQaeda quanto para os Estados Unidos.
Na época em que o JSOC e as forças etíopes intensificavam sua caça aos líderes da União das Cortes Islâmicas, em janeiro de 2007, Fazul Abdullah Mohammed deixou a família23 perto da fronteira do Quênia e desapareceu. Por fim, chegou de volta a Mogadíscio, para reencontrar-se com os combatentes da Al-Shabab que ele ajudara a treinar e financiar. Ele já se tornara o mais experiente quadro operacional da Al-Qaeda no Chifre da África, tendo a seu crédito vários ataques espetaculares, entre eles os atentados contra a embaixada, em 1998. Estava prestes a assumir papel de destaque numa peça que a Al-Qaeda vinha montando desde o começo da década de 1990. O grupo enfim arrastara os Estados Unidos de volta a uma guerra assimétrica no coração da África Oriental. Com os líderes somalianos da UCI foragidos, a Al-Qaeda via a Somália como uma linha de frente ideal para a jihad e começou a aumentar seu apoio à Al-Shabab. No começo de janeiro de 2007, um dos principais homens de Osama bin Laden, Ayman al- Zawahiri, abordou a situação na Somália numa gravação distribuída pela internet. “Falo-lhes hoje enquanto as forças invasoras etíopes conspurcam o solo da amada Somália muçulmana”, começou. “Convoco a nação muçulmana da Somália a permanecer no novo campo de batalha, que é um dos campos lançados pelos Estados Unidos e seus aliados e pelas Nações Unidas contra o Islã e os muçulmanos.” Implorou aos mujahedin: “Façam emboscadas, plantem minas, organizem ataques e combates suicidas, até acabar com eles como os leões devoram suas presas”.24 Com a desintegração da UCI, a Al-Qaeda viu seu caminho para a Somália se abrir. “Com a ajuda de todos esses combatentes estrangeiros,25 a Al-Shabab assumiu o combate, sob a liderança da Al-Qaeda”, recordou Indha Adde, que tinha sido ministro da Defesa da UCI.
A Al-Shabab começou a ordenar execuções, e muçulmanos inocentes foram mortos. Chegaram a ter como alvos membros [da UCI]. Eu fui comandante de todas as operações militares [da UCI] e me voltei contra a Al-Shabab depois de ver todos esses crimes contra o Islã.
Por fim, Indha Adde entrou para a clandestinidade,26 juntamente com Hassan Dahir Aweys, e passou a receber apoio do inimigo-mor da Etiópia, a Eritreia.27 Os dois homens se aproximaram do movimento islâmico militante à espera de ver como ficariam as coisas. Por fim, ambos tomaram rumos bastante diferentes. No começo de fevereiro de 2007, a invasão etíope transformara-se numa ocupação que vinha ensejando uma intranquilidade cada vez maior. Numa nação que já sofrera um dos piores destinos na história recente, os civis somalianos vinham pagando outro preço altíssimo. A ocupação foi marcada por brutalidades indiscriminadas contra civis. Soldados etíopes e do governo somaliano, com apoio americano, dominavam os bairros de Mogadíscio à força, vasculhando casas em busca de partidários da UCI, saqueando propriedades de civis e espancando ou fuzilando qualquer pessoa suspeita de colaboração com forças contrárias ao governo. Punham atiradores nos terraços de edifícios e, segundo testemunhos, revidavam qualquer ataque com força desproporcional,28 bombardeando áreas densamente povoadas e vários hospitais, de acordo com a Human Rights Watch. Tornaram-se frequentes relatos de execuções extrajudiciais por parte de soldados etíopes, sobretudo nos últimos meses de 2007. Segundo a Anistia Internacional, abundavam relatos de que soldados etíopes “chacinavam” homens, mulheres e crianças “como cabritos”29 — degolando-os a faca. Tanto as forças do governo de transição da Somália, liderado por exilados e apoiado pelos Estados Unidos, quanto as forças etíopes foram acusadas de horrenda violência sexual. Embora as forças ligadas à AlShabab também fossem acusadas de crimes de guerra, uma grande proporção dos crimes30 informados à Anistia Internacional, que incluíam saques, estupros e execuções extrajudiciais, foi cometida pelo governo somaliano e por forças etíopes. Informou-se que cerca de 6 mil civis31 teriam sido mortos em combates em Mogadíscio e no sul e no centro da Somália em 2007, e mais de 600 mil foram desalojados, na capital e ao redor da cidade. Estima-se que 335 mil refugiados somalianos32 deixaram o país em 2007. A estabilidade das Cortes Islâmicas tinha sido substituída por um retorno aos bloqueios de estradas, atividades de milícias e, pior, por tropas do arqui-inimigo da Somália, a Etiópia, que patrulhavam as ruas e com frequência matavam somalianos. “O grande problema33 é que não foram tomadas medidas para evitar uma rebelião […] e com efeito, logo no começo, assistiu-se ao surgimento de uma sublevação, em decorrência da falta de estabilidade no país”, lembrou-se Daveed Gartenstein-Ross, que prestara assessoria ao Centcom com relação à sua política para a Somália. “O que acabamos fazendo foi depender basicamente
dos etíopes para estabilizar a Somália. E isso, em si, foi uma decisão terrível.” Como a UCI se desmantelara e a brutal ocupação etíope prosseguiria ainda por mais quase três anos, a Al-Shabab assumiu a vanguarda na luta contra a ocupação estrangeira. Aynte disse:
Para eles, foi a brecha que estavam esperando.34 Foi a fúria que vinham procurando, a fim de mobilizar a raiva das pessoas e apresentar-se como o novo movimento nacionalista que expulsaria os etíopes da Somália. Por isso, durante os três anos em que a Etiópia ocupou a Somália, a Al-Shabab nunca emitiu uma única palavra sobre a jihad global. Sempre afirmou que sua meta principal era escorraçar os etíopes dali.
Para a Al-Qaeda, isso era apenas o começo de todo um mundo novo, possibilitado em boa parte pelas ações de Washington. “O que gerou as Cortes Islâmicas?”, perguntava Madobe.
Os chefes de milícias, apoiados pelos Estados Unidos. E se a Etiópia não invadisse a Somália, e se os Estados Unidos não realizassem ataques aéreos, vistos como uma continuação da brutalidade dos chefes de milícias e da Etiópia, a Al-Shabab não teria sobrevivido. Todas as medidas tomadas pelos Estados Unidos beneficiaram a organização.
Em abril, estava em curso uma insurreição de vulto contra a ocupação etíope. Numa batalha de quatro dias,35 calcula-se que tenham morrido quatrocentos soldados etíopes e rebeldes somalianos. Mais tarde, multidões de somalianos arrastaram soldados etíopes pelas ruas,36 e a Al-Shabab começou a visar a liderança do governo, posta no poder com o apoio dos tanques etíopes. Em 3 de junho de 2007, um Toyota Land Cruiser37 carregado de explosivos ultrapassou as barreiras de segurança diante da residência do primeiro-ministro Gedi, em Mogadíscio, e explodiu bem diante da casa. O ataque suicida matou seis guardas e feriu dezenas de outros. Depois do incidente, testemunhas acharam membros decepados a 1,5 quilômetro do local. “O alvo era eu, e eles usaram um carro-bomba com mais de duzentos quilos de explosivos. Explodiram minha casa”, disse-me Gedi. “Isso foi o começo dos atentados suicidas em Mogadíscio, visando aos líderes e ao governo.” Foi a quinta tentativa de assassinato contra Gedi. Naquele mesmo ano, ele renunciou. Embora o primeiro-ministro etíope, Meles Zenawi, tenha declarado que a invasão fora um “tremendo sucesso”,38 a afirmação simplesmente não correspondia à verdade. Se a Somália já era uma área de recreação para militantes islâmicos, a invasão, apoiada pelos Estados Unidos, abriu as portas de Mogadíscio para a Al-Qaeda. Washington estava dando a Osama bin Laden e à Al-Qaeda a oportunidade de garantir uma presença na Somália que tinham tentado obter várias vezes, mas em vão. “Creio que eles [começaram a ter] um poder real quando ocorreu a
invasão etíope”, disse. Fazul e Nabhan “tinham se tornado a ponte entre a Al-Shabab e a AlQaeda, valendo-se dos meios da Al-Qaeda, trazendo para a Somália mais combatentes estrangeiros, assim como recursos financeiros — e, mais importante ainda, know-how militar: como fabricar explosivos, como treinar pessoas etc. Foi então que ganharam a grande influência de que precisavam. Enquanto Aweys e seus aliados — entre eles Indha Adde — juravam continuar a luta contra os etíopes e o governo somaliano, o xeque Sharif intensificava sua cooperação com o Governo Federal Transitório (GFT) e o governo dos Estados Unidos. A Al-Shabab observava e esperava, vendo na luta pelo poder uma oportunidade. Em 26 de fevereiro de 2008, a secretária de Estado Condoleezza Rice designou oficialmente a Al-Shabab como uma organização terrorista39 e o JSOC intensificou a caçada. Em 2 de março, os Estados Unidos atacaram com mísseis40 uma casa da Al- Shabab onde estaria residindo Saleh Ali Saleh Nabhan, o principal líder da Al-Qaeda na África Oriental. Segundo alguns relatos, ele teria sido morto, mas quando a poeira assentou, viu-se que entre os mortos estavam vários civis, algumas vacas e um burro, mas nada de Nabhan. Em 1o de maio, após três meses de ataques que pareciam estar matando mais inocentes do que pessoas visadas, o JSOC atingiu seu alvo. Às três horas da manhã, cinco mísseis de cruzeiro Tomahawk41 caíram sobre a cidade de Dhusa Mareb, na região central da Somália, fazendo voar pelos ares uma casa que, segundo o Centcom, era usada por “um conhecido quadro operacional da Al-Qaeda, também chefe de milícia”. A missão, de acordo com autoridades militares, fora resultado de semanas de vigilância e rastreamento.42 Testemunhas na área declararam ter visto os corpos de dezesseis pessoas.43 Um deles era o de Aden Hashi Ayro, comandante militar da Al-Shabab. Embora os serviços de informações americanos tivessem errado várias vezes quanto à morte de líderes da Al-Shabab, dessa feita havia pouca margem para dúvida. Depois do ataque, a organização divulgou uma nota em que confirmava a morte de Ayro e o enaltecia como herói. A declaração incluía a primeira fotografia de Ayro dada a público e uma biografia sua.44 Pouco antes da morte de Ayro, segundo um telegrama diplomático americano, o líder da Al-Shabab se reunira com Indha Adde, membro do clã Ayr, talvez para intermediar um acordo. As autoridades americanas esperavam que sua morte isolasse a AlShabab de seus ex-aliados da UCI e causasse “a curto prazo uma interrupção de operações terroristas”.45 O ataque pode ter dissuadido Indha Adde de aprofundar sua aliança com a AlShabab, mas o assassinato também estimulou a organização e fez de Ayro um mártir.
A ocupação etíope começou a perder força após um acordo firmado no Djibuti,46 em agosto de 2008, entre a facção do xeque Sharif e representantes do GFT. Na realidade, a insurreição da Al-Shabab debilitara enormemente os etíopes, mas a farsa diplomática serviu para salvar as aparências. O “Acordo do Djibuti” abriu caminho para que Sharif assumisse a presidência em
Mogadíscio. Para os observadores experientes da política somaliana, o ressurgimento de Sharif foi inacreditável. Os Estados Unidos e a Etiópia derrubaram seu governo, porém depois o apoiaram como presidente do país. Quando me encontrei com Sharif no gabinete presidencial em Mogadíscio, ele se recusou a falar47 sobre esse período em sua carreira, dizendo apenas que aquela não era a ocasião indicada. Ironicamente, o xeque Sharif, que certa vez se declarou um guerreiro contra a ocupação estrangeira, viria a depender inteiramente da força da União Africana, apoiada pelos Estados Unidos, que substituiu os etíopes, para manter seu poder nominal. Quando alguns membros da UCI e do governo somaliano se aliaram, depois do Acordo do Djibuti, Aweys e a Al-Shabab rejeitaram a aliança, como era de esperar, por acreditar que a UCI “se submetera aos infiéis”, como disse Aynte. Fazul e Nabhan foram
fundamentais para persuadir a Al-Shabab a não aderir ao Acordo do Djibuti. Se a Al-Shabab tivesse aderido ao Acordo, que possibilitou o governo liderado pelo xeque Sharif, Fazul e outros nomes da Al-Qaeda não teriam sido [capazes de permanecer] na Somália. Por isso, creio que foi de interesse pessoal de nomes da Al-Qaeda, para garantir que isso não acontecesse.
Ahmed Abdi Godane, líder da Al-Shabab na Somália, declarou que Sharif era um apóstata e um “fantoche servil”48 dos “infiéis”. Por ocasião da formação do novo governo, a Al-Shabab preparou-se para ampliar sua insurreição, dispondo-se a derrubar o novo governo de coalizão e expulsar as forças da Missão da União Africana na Somália (African Union Mission in Somalia, Amisom), apoiada pelos Estados Unidos, que substituíra os etíopes. Como grande parte dos líderes da UCI tinha morrido, estava exilado ou disputava cargos ministeriais no recém-instalado governo apoiado pelos Estados Unidos, a Al-Shabab tirava proveito da desordem. O grupo acolheu os combatentes desencantados, que se consideravam traídos pela liderança das Cortes. Além de seu compromisso de levar avante a jihad, o que separava a Al-Shabab do governo somaliano era a diversidade de clãs.49 Sua liderança era formada por membros dos quatro clãs principais da Somália, mas também punha membros de clãs minoritários em posições de relevo. Além disso, fazendo jus a seu nome, a Al-Shabab começou a recrutar jovens somalianos que pudesse doutrinar com facilidade. Isso lhes dava uma sensação de poder50 num ambiente mais uma vez dominado por brutais chefes de milícias e pela política de clãs. Em 2008, a Al-Shabab tornou-se um movimento de base ampla e uma importante força social. Ao mesmo tempo que mantinha sua ofensiva militar, começou a se instalar no sul do país, projetando uma imagem de soft power e cultivando o apoio popular. Os membros da organização faziam “visitas” diplomáticas,51 como diziam, a cidades e a seus habitantes,
levando alimentos, dinheiro e “tribunais islâmicos itinerantes” para resolver disputas locais. Lembrando a atitude da UCI, os militantes islâmicos dedicavam-se a realizar julgamentos rápidos em cada cidade, solucionando disputas locais e sentenciando criminosos. Muitos desses controles de cidades somalianas eram incruentos, envolvendo longas negociações52 com os anciões que lideravam os clãs para convencê-los das nobres intenções da Al-Shabab. Ela deu continuidade a essa diplomacia com programas sociais populares. Uma medida de grande importância consistiu em reduzir ainda mais os bloqueios de estradas53 e os postos de controle, o que a UCI já começara a fazer quando estava no poder. Historicamente, esses postos de controle eram usados pelos chefes de milícias como instrumentos de extorsão, e não como meios de segurança. “A ideia de que [a Al-Shabab] e outros grupos rebeldes islâmicos são um exército desorganizado de fanáticos ignorantes, cujo primeiro instinto consiste em usar de força e de terror para impor sua visão radical, é uma caricatura”,54 diz um relatório do Grupo Crise Internacional (International Crisis Group, ICG).
As táticas dessas organizações têm se mostrado mais adequadas e eficazes do que as de seus adversários. Em larga medida, elas tiveram êxito em passar uma imagem de verdadeiros patriotas somalianos, em oposição ao GFT, aliado dos etíopes. Em consequência disso, vêm ganhando popularidade no centro e no sul da Somália, tal como antes da invasão etíope, em dezembro de 2006.
Entretanto, ao mesmo tempo que se empenhava em sua versão de uma campanha de popularização, a Al-Shabab também pôs em prática políticas que lembravam as do Talibã,55 proibindo os apreciados filmes indianos, cobrindo à força o cabelo de homens que usavam cortes “impróprios” e impondo sentenças rigorosas por infrações a sua interpretação da Sharia. No começo de 2009, a Al-Shabab já controlava a maior parte do sul da Somália. “Em muitas áreas, ela é a única organização56 em condições de proporcionar serviços sociais básicos, como postos médicos rudimentares, centros de distribuição de alimentos e um sistema de justiça elementar fundamentado na lei islâmica”, concluiu um informe da Comissão de Relações Exteriores do Senado americano.
Os diplomatas ocidentais temem que a Al-Shabab continue a conquistar adeptos ao proporcionar serviços, da mesma forma que o Hamas teve sucesso na Faixa de Gaza. Os especialistas advertem: há pouca coisa que os Estados Unidos possam fazer para debilitá-la.
Um aumento dos bombardeios pelos Estados Unidos ou uma maior intervenção militar estrangeira, avisa o informe, poderia fortalecer a Al-Shabab. Enquanto a organização consolidava seu apoio local, no cenário global a Al-Qaeda podia
agora usar a jihad na Somália para recrutar ativistas. Nesse quadro, uma nação cristã, a Etiópia, apoiada pelos Estados Unidos — a raiz de todo mal — tinha invadido a Somália e matado muçulmanos. Jihadistas tinham se insurgido e repelido a invasão, tornando a Somália um campo de batalha contra a cruzada que, havia tempos, Osama bin Laden afirmava que os Estados Unidos estavam travando. Quando os etíopes se retiraram, segundo Aynte, a Al-Shabab “viu-se mais popular57 e poderosa do que nunca”, transformando “sua luta interna irredentista num pronunciamento jihadista global”. Combatentes estrangeiros começaram a chegar à Somália em número cada vez maior. Osama bin Laden divulgou a gravação de um discurso intitulado “Continuem a lutar, campeões da Somália”,58 em que ampliava as exortações à derrubada do governo “apóstata” de Sharif. A Al-Shabab começou a dominar facilmente territórios de todo o sul da Somália, e logo se viu no controle de uma área muito maior do que aquela controlada pelo governo somaliano, embora este último fosse apoiado por milhares de soldados da União Africana, financiados e treinados pelos Estados Unidos e outros países ocidentais. A Al-Shabab acabou se tornando a principal força jihadista na Somália — e em breve tinha sob seu domínio um território maior que o de qualquer outro grupo ligado à Al-Qaeda na história. A política americana dera errado de alto a baixo, transformando, em poucos anos, uma turba somaliana desorganizada nos novos heróis da luta global da Al-Qaeda.
23. “Se seu filho não vier para cá, será morto pelos americanos”
IÊMEN, 2007-9 — Durante o tempo em que Anwar Awlaki cumpriu pena em regime de prisão solitária num cárcere do Iêmen, a Al-Qaeda ressurgia naquele país. Embora a liderança civil do governo Bush praticamente não prestasse atenção nisso, o JSOC acompanhava de perto a reorganização da Al-Qaeda no Iêmen. Em 27 de março de 2007, uma unidade militar iemenita da província de Hadramaut descobriu um drone espião dos Estados Unidos1 que a maré levara à praia, no mar da Arábia. O Scan Eagle, um veículo desarmado de reconhecimento aéreo, fora lançado pelo navio USS Ashland, mandado para lá no começo de 2007 para dar apoio às operações de contraterrorismo da Força-tarefa Combinada 150 no Chifre da África. Grupos de direitos humanos também alegavam que o Ashland estava sendo usado pelas forças americanas como prisão flutuante,2 recebendo suspeitos de ligação com a Al-Qaeda detidos na região. Um dia depois que os militares iemenitas resgataram o drone, o presidente Saleh ligou para o encarregado de negócios dos Estados Unidos no Iêmen, que garantiu que o Scan Eagle tinha caído no mar e não penetrara no espaço aéreo iemenita. Saleh disse ao americano que não engolia a história, mas prometeu que o Iêmen não “transformaria aquilo num incidente internacional”, como se lê num telegrama diplomático americano, enviado depois do telefonema, e que “instruiria as autoridades do governo [iemenita] a não comentar” o acontecimento. Em vez disso, o governo Saleh divulgou uma versão que ajudava a promover a campanha de propaganda de Saleh contra o Irã. Em 29 de março, órgãos de comunicação oficiais do Iêmen noticiaram que forças militares iemenitas tinham derrubado um “avião de espionagem” iraniano, depois de consultas a “forças multinacionais” na região. De acordo com o telegrama americano, Saleh “poderia ter aproveitado a oportunidade para ganhar pontos políticos, mostrando-se duro contra os Estados Unidos em público, mas preferiu culpar o Irã”. O drone acidentado foi um presságio do que estava por vir. Enquanto a Al-Qaeda se reagrupava no Iêmen, começou a realizar uma série de ações em pequena escala, principalmente na província de Marib, local do ataque do drone americano que matou Harithi em 2002. Entre essas ações estavam ataques suicidas contra instalações produtoras de petróleo e gás.3 Em março de 2007, assassinaram o chefe das investigações criminais4 em Marib, Ali Mahmud al Qasaylah, por sua suposta atuação no ataque do drone.
Numa mensagem gravada em áudio,5 o assistente de Wuhayshi, Qasim al-Rimi, anunciou que Wuhayshi era o novo chefe da Al-Qaeda no Iêmen. Na mesma mensagem, Rimi declarou que o grupo continuaria a vingar-se dos responsáveis pelo ataque do drone americano. Duas semanas depois da divulgação da fita de Rimi, homens-bomba atacaram um comboio de turistas espanhóis6 em Marib, matando oito deles, juntamente com dois motoristas iemenitas. Após dezoito meses na prisão, Awlaki voltou para um mundo em que as guerras americanas a que se opusera ativamente tinham se espalhado. Ao que parecia, a guerra estava chegando ao Iêmen. À medida que o JSOC e a CIA intensificavam suas operações, a história de Awlaki passou a lembrar uma imagem especular. Ao ser libertado, em fins de 2007, ele não se escondeu, como o governo dos Estados Unidos afirmou. Foi para a casa onde morava com a família,7 em Sana’a, tentando achar um meio de apoiá-la e continuar sua pregação. Numa entrevista, dias após sua libertação, perguntaram a Awlaki se ele voltaria para os Estados Unidos ou para a Grã-Bretanha a fim de pregar. “Bem, eu gostaria de viajar.8 Entretanto, só depois que os Estados Unidos retirarem todas as suas acusações desconhecidas contra mim”, respondeu ele. A verdade9 é que minha volta aos estados Unidos não está proibida. Saí por livre e espontânea vontade e me recuso a voltar de moto próprio”, disse Awlaki mais tarde.
Na verdade, ocorre o contrário. O cônsul americano me incentivou a voltar aos Estados Unidos durante a visita que me fez quando estive preso. Alhamdulillah [graças a Deus], Alá me abençoou dando-me para viver uma terra abençoada pelo testemunho de Rasulullah [o profeta]. Por que trocar isso pela vida nos Estados Unidos? Eu me recuso até a visitar esse país, pois seu governo não merece confiança, já que mente tanto quanto seus meios de comunicação.
Quanto ao que faria em seguida, Awlaki disse: “Tenho algumas oportunidades abertas10 no momento, e ainda não escolhi entre elas. Por ora, estou estudando a situação”. No começo de 2008, a internet tornou-se a mesquita digital de Awlaki, por meio da qual ele podia alcançar muçulmanos em todo o mundo. Em fevereiro, ele criou seu próprio site na rede (www.anwar-alawlaki.com), intitulado “Iman Anwar’s Blog”. Criou também uma página no Facebook, atraindo milhares de visitantes. Em sua primeira postagem no blog, Awlaki escreveu:
Antigamente,11 era preciso alguns dias para viajar, por exemplo, de Meca a Medina, que estão separadas por apenas 450 quilômetros. Agora, podemos nos comunicar com o mundo inteiro em poucos segundos. Texto, áudio e vídeo, tudo em poucos segundos. Por isso, eu gostaria de dizer a todos os irmãos que conheço pessoalmente e com quem passei horas inesquecíveis: Salam aleicum e woxa Alá, nunca os esquecerei [...]. E àqueles que conheci através desses
meios de comunicação modernos, mas com quem não pude estar pessoalmente, impedido pelas circunstâncias, digo que ainda me sinto vinculado a eles e que os amo em nome de Alá, porque preferiram seguir o Islã. Salam aleicum, e se não nos encontrarmos neste mundo, pedimos a Alá que estejamos entre aqueles que se encontrarão reclinados nos tronos do Paraíso.
O site de Awlaki tinha uma vibrante seção de comentários, e ele construiu uma ampla comunidade on-line a que dava muita atenção. As qualidades humanas — e uma atenção à discussão mundana — que Awlaki mostrava nesses debates complicavam a forma caricatural como era retratado na imprensa ocidental e ajudavam a explicar a simpatia que despertava, em especial entre certos muçulmanos no Ocidente. Numa postagem intitulada “Você gosta de queijo?”,12 Awlaki levantou a seguinte questão: “Queijo é ótimo. Por isso, se você é fã de queijo, talvez esteja se perguntando: é lícito ou não consumir queijos feitos por não muçulmanos?”. Em outra postagem do blog, tratou de práticas financeiras compatíveis com o Alcorão e advertiu os muçulmanos residentes nos Estados Unidos contra a aquisição de uma casa mediante hipoteca imobiliária. “Se você é uma pessoa13 a quem Alá tornou rico, deve evitar ser proprietário de bens de raiz nos Estados Unidos, investindo seus dólares em ouro e prata”, escreveu.
Além de ser a atitude mais prudente do ponto de vista financeiro, é também o que o Islã recomenda. Os muçulmanos não devem apoiar a economia de um país que os está combatendo. Por fim, os que estão pensando em comprar uma residência nos Estados Unidos mediante hipoteca, que é uma forma clara de Riba [usura], devem temer a ira de Alá.
Entretanto, as postagens de Awlaki também eram marcadas por hostilidade aos Estados Unidos e mostravam uma clara radicalização de sua postura política. Não havia mais nenhuma moderação em relação aos Estados Unidos ou à democracia. “Os muçulmanos não procuram se infiltrar14 no sistema e trabalhar de dentro para fora. Não é esse o nosso estilo. É o estilo dos judeus e dos munafíquin [hipócritas], mas não dos muçulmanos”, postou ele em agosto de 2008.
Como muçulmanos, não devemos submeter o Islã aos caprichos das pessoas, ou seja, se elas o escolhem nós o implementamos, se não, aceitamos sua decisão. Nossa posição é que havemos de impor o reino de Alá na Terra pela ponta da espada, queiram as massas ou não. Não submeteremos a Sharia a testes de popularidade. Rasulullah [o profeta] diz: Fui enviado com a espada até que somente Alá seja cultuado. Esse caminho, o caminho de Rasulullah, é aquele que devemos seguir.
E acrescentou:
Atualmente o mundo muçulmano está sob ocupação, e as declarações de nossos sábios são claras no sentido de que é a fardh ayn [um dever iniludível] de todo muçulmano apto lutar para libertar a terra muçulmana. Quando uma coisa é fardh ayn, ela é fardh ayn. Não se pode teorizar ou imaginar hipóteses diferentes. A lei é clara e suas implicações também.
Awlaki elogiou o Talibã no Afeganistão e a União das Cortes Islâmicas na Somália como dois “exemplos bem-sucedidos, ainda que longe de perfeitos” de um sistema de governança islâmica. A jihad, ele escreveu, “é o que [o teórico militar Carl] Clausewitz chamaria de ‘guerra total’, mas com as normas de fogo islâmicas. É uma batalha no campo de batalha e também pelos corações e mentes das pessoas”. Awlaki começou instando seus seguidores nos Estados Unidos a romperem com o governo e a sociedade do país e se afastarem de qualquer participação no processo político:
Hoje, os Estados Unidos são a terra de um interessante conjunto de pecados15 colhidos a dedo em todas as nações que existiram antes de nós: a obstinação do povo de Nuh; a arrogância do povo de Aad; a rejeição dos sinais de Alá pelo povo de Thamud; a sodomia do povo de Lut; o desvio financeiro do povo de Shuyab, pois os Estados Unidos são os maiores emprestadores e promotores da economia baseada nos juros; a opressão de Abu Jahl e outros; a cupidez, a fraude, o amor à vida temporal e a falsidade dos filhos de Israel; e também a arrogância do faraó, que tinha a ideia torta de que só por ser o líder da nação mais poderosa do mundo e estava à testa do maior exército de seu tempo, podia, de uma forma ou de outra, derrotar os servos de Alá. Irmãos e Irmãs, isso leva à convicção de que o castigo de Alá paira sobre os Estados Unidos. Quando? Como? Alá sabe melhor. Por conseguinte, se vocês fazem parte do grupo de infelizes que foram morar no lugar errado e na época errada, é aconselhável que saiam daí. Isso, obviamente, se me derem ouvidos. Muitos não dão, e ainda estão vivendo a utopia do sonho americano. Não estou falando de Mo e Mike, que ainda estão dançando as músicas da MTV, com sua Coca e seu Big Mac, e que só são muçulmanos no nome; estou falando dos muçulmanos praticantes, que, lamentavelmente, ainda pensam que os Estados Unidos de George W é a Abissínia do Négus.
A IC americana via os sermões de Awlaki na internet como uma ameaça. Algumas autoridades começaram a fazer uma campanha surda contra ele na imprensa. “Há bons motivos para crer16 que Anwar Awlaki tenha se envolvido em atividades terroristas seríssimas desde que deixou os Estados Unidos, inclusive tramando ataques contra os Estados Unidos e nossos aliados”, declarou uma autoridade americana de contraterrorismo ao Washington Post em
fevereiro de 2008, sem apresentar provas. Em seu blog e por meio de e-mails, Awlaki levantou questões como a conveniência da participação de muçulmanos ocidentais na jihad, e começou a debater os méritos de viajarem às linhas de frente para lutar. Uma nova geração de jovens muçulmanos privados de direitos procuravam com avidez as gravações de Awlaki em vídeo e áudio. Uma das mais desejadas era “Constantes no caminho da jihad”, uma palestra em áudio que, segundo se acreditava, fora gravada em 2005.17 A palestra baseava-se nas lições de Yusuf al-Ayyiri, o primeiro líder operacional18 da Al-Qaeda na Península Arábica e articulado estrategista de guerrilhas, morto por forças de segurança sauditas em 2003. Na palestra, Awlaki expunha as ideias de Ayyiri sobre a jihad, inserindo num contexto corrente as histórias de batalhas épicas travadas por guerreiros islâmicos em defesa de sua fé. “Sempre que vocês virem a palavra terrorismo,19 substituam-na pela palavra jihad.” Todos os “governos no mundo estão unidos para lutar contra o Islã”, acrescentou Awlaki. “As pessoas procuram achar um meio de cair fora da jihad porque não gostam dela. A realidade da guerra é horrível, e por isso as pessoas tentam evitá-la, mas a luta foi imposta a vocês, é uma instrução de Alá.” Os verdadeiros muçulmanos, disse Awlaki, citando os textos de Ayyiri, definem a vitória não como um simples triunfo militar, mas como um ato de sacrifício. “O mujahid sacrificando a ‘si mesmo’ e a sua riqueza é vitória. A vitória é sua ideia, sua religião. Se você morre por sua religião, sua morte espalhará a da’wa [proselitismo em nome do Islã] […]. Alá escolhe Shuhada [mártires] entre os crentes. Isso é uma vitória.” Os analistas de contraterrorismo da CIA e o FBI começaram a esquadrinhar os sermões de Awlaki em busca de pistas que ele pudesse ter deixado sobre suas possíveis ligações com a AlQaeda. Não descobriram nada de específico, mas viram uma ameaça em sua influência e na inspiração que muitos buscavam nele. Várias investigações revelavam referências aos sermões de Awlaki, e em especial à palestra “Constantes”. “Em certo sentido, Awlaki transpõe um fosso,20 pois fala em árabe, mas também fala em inglês e é cidadão americano, por isso sabe como se dirigir aos jovens”, disse-me o dr. Emile Nakhleh, que já dirigiu a Divisão Política do Islã da CIA. “E assim o perigo não é que ele seja outro Bin Laden. O que algumas pessoas no governo temem em relação a Awlaki é o fato de ele representar esse novo fenômeno de recrutamento, reunindo pessoas comuns que caem no radar.” À medida que crescia a popularidade de Awlaki — muitas de suas postagens recebiam centenas de comentários de pessoas que lhe pediam conselhos —, os Estados Unidos passaram a fazer enorme pressão sobre os serviços de informações iemenitas para que voltassem a prendêlo. “Os americanos estavam muito furiosos21 com o governo [iemenita]”, disse Saleh bin Fareed, líder da tribo aulaq, que se reunia periodicamente com autoridades americanas e iemenitas para solucionar disputas entre o governo e as tribos iemenitas. “Estavam realmente irritados. E acho que faziam muita pressão sobre o presidente [iemenita] para que ele fosse posto de novo” em custódia. Awlaki era seguido onde quer que fosse. “Era molestado22 e ficava sob vigilância durante todo o tempo que passava em Sana’a. E não podia fazer nada”, lembrou o pai de
Awlaki, Nasser, que morava com o filho na época. “Eles o vigiavam de perto”, acrescentou Bin Fareed. “E ele não gostava disso. Onde quer que fosse, havia agentes de informações a sua direita e a sua esquerda. Se ele ia à mesquita, iam com ele. Se fosse de carro, estavam atrás dele. Se ele comia, eles também comiam. Acho que ele não se sentia livre.” O xeque Harith al-Nadari, amigo de Awlaki, comentou: “Vivíamos sob vigilância e assédio”,23 e Awlaki determinou que “Sana’a não era mais um lugar adequado para nós”. Por fim, decidiu sair de Sana’a e ir para Ataq,24 capital da província de Shabwah, área tribal de sua família situada no sul do Iêmen, perto do mar da Arábia. Achou que seria deixado em paz pelos serviços de informações iemenitas e pelo governo americano. Estava enganado. Washington exercia uma pressão constante sobre o regime iemenita. Quando Anwar saiu de Sana’a, a Inteligência americana exigiu que os serviços de informações iemenitas o levassem de volta para lá. Yahya Saleh, chefe da Unidade de Contraterrorismo do Iêmen, organismo de elite treinado e financiado pelos Estados Unidos, disse a Nasser: “Se seu filho não vier para cá, será morto pelos americanos”. Nasser e Bin Fareed viajaram a Shabwah a fim de tentar convencer Anwar a voltar para Sana’a. “Fui a Shabwah. Estive com Anwar. Tentei convencê-lo”, disse-me Fareed.
Ele me respondeu: “Tio, não vou fazer isso. Nasci livre. Eu lhe asseguro que não tenho nada a ver com terrorismo. Não tenho nada a ver com a Al-Qaeda […]. Vou de casa para a mesquita e da mesquita para casa, e as pessoas que a frequentam são todas da aldeia. Eu escrevo na internet, as pessoas me fazem perguntas, e eu respondo. Eu prego o Islã, essa é a minha ocupação”.
Anwar disse a seu poderoso tio que se encontrasse alguma prova de que ele estava envolvido em terrorismo, “pode vir, me prender e me pôr na cadeia”.25 Awlaki tinha levado a mulher e os filhos para Ataq, mas depois eles voltaram para Sana’a a fim de morar com os pais dele. Em Ataq, como me contaram fontes da família, agentes do Serviço de Informações iemenita submetiam Anwar à vigilância constante. Por isso ele resolveu mudar-se para mais longe, indo para a pequena aldeia da família,26 Al-Saeed, na zona rural. “É um vilarejo. Quer dizer, uns poucos milhares de pessoas moram ali no vale. Todos são da mesma tribo”, disse-me Bin Fareed. “Se vem alguém de outra aldeia, sabe-se que é um estranho. Ou seja, todo mundo se conhece. Acho que os americanos não gostaram disso.” Na aldeia de sua família, Awlaki continuou a postar mensagens em seu blog, mostrando-se cada vez mais radical. Começou a dizer a amigos e parentes27 que acreditava que os Estados Unidos estavam em seu rastro.
A caçada dos Estados Unidos a Awlaki coincidiu com a escalada dos ataques da Al-Qaeda ao Iêmen. Em 17 de setembro de 2008, o grupo fez um violento ataque camicase28 à embaixada dos Estados Unidos em Sana’a. O conjunto de prédios, que lembrava uma fortaleza, foi alvo de uma investida coordenada com carros-bomba, granadas lançadas por foguetes e armas automáticas, matando treze guardas e civis, um deles americano. Todos os seis atacantes morreram também. A Al-Qaeda declarou que o ataque fora bem-sucedido. “Esse ataque é um lembrete29 de que estamos em guerra com extremistas que se dispõem a matar pessoas inocentes para alcançar seus objetivos ideológicos”, disse o presidente Bush ao general David Petraeus na Casa Branca. “Um dos objetivos desses extremistas ao matarem pessoas é tentar fazer com que os Estados Unidos percam a calma e se retirem de algumas regiões do mundo.” Pouco tempo depois, Petraeus assumiria a chefia do Centcom, cargo em que supervisionaria as guerras dos Estados Unidos — declaradas e não declaradas — no Oriente Médio. Uma de suas tarefas seria coordenar uma expansão dos ataques militares secretos dos Estados Unidos no Iêmen. Em maio, pouco depois de ter sido informado de que iria para o comando do Centcom, ele se encontrou no Qatar30 com o diretor da CIA, Michael Hayden, com o comandante do JSOC, almirante McRaven, e com outras pessoas para discutir planos de aumento dos ataques a suspeitos de pertencerem à Al-Qaeda, onde quer que atuassem. Quando o ataque à embaixada foi noticiado nos Estados Unidos, o futuro chefe de Petraeus, o senador Barack Obama, estava em plena campanha. “Isso só nos faz lembrar31 que temos de redobrar nossos esforços para erradicar e destruir as organizações terroristas internacionais”, comentou Obama em Grande Junction, Colorado. O Iêmen começava a deixar de ser um local de baixa prioridade. Michael Scheuer, veterano da CIA com 22 anos de experiência e ex-chefe da unidade da Agência que cuidava de Bin Laden, observou que “a organização da Al-Qaeda no Iêmen parece ter se estabilizado32 depois do período de confusão e repressão pelo governo que se seguiu à morte de seu líder Abu Ali Harithi, em novembro de 2002”. Scheuer acrescentou:
Para a Al-Qaeda, o Iêmen constitui uma base central, fundamental, que liga seus teatros de operações no Afeganistão, no Iraque, na África Oriental e no Extremo Oriente; proporciona também uma base para treinamento de combatentes iemenitas e para descanso e reaparelhamento de combatentes de múltiplos grupos islâmicos depois de seus períodos de atuação no Afeganistão, no Iraque e na Somália.
Ao todo, houve dezenas de ataques documentados da Al-Qaeda contra solo iemenita, de 2000 até o fim do governo Bush. Com o tempo, cresceram a ajuda militar dos Estados Unidos e o financiamento pela CIA. “Quando [a Al-Qaeda] começa a criar problemas no Iêmen, o dinheiro americano começa a fluir”,33 disse Scheuer. “Para Saleh, a Al-Qaeda é a dádiva perpétua. Para
ele, ela é a principal arrecadadora de recursos sauditas e americanos.” Em outubro de 2008, a base americana no Djibuti foi posta, oficialmente, sob o controle do Comando dos Estados Unidos na África (United States Africa Command, Africom), o sexto comando geográfico unificado do Pentágono. O Iêmen permaneceu na AOR do Centcom e se tornou foco de atenção especial do SOC(FWD)-Yemen (Comando Especial de OperaçõesAvançado Iêmen). Enquanto Saleh administrava suas complexas relações com os Estados Unidos através de canais oficiais, de vez em quando, como disseram veteranos das Forças de Operações Especiais dos Estados Unidos, equipes do JSOC realizavam “ações diretas, unilaterais” no Iêmen contra suspeitos de ligações com a Al-Qaeda. Tais ações jamais eram mencionadas em público, e algumas podem ter sido feitas sem conhecimento ou autorização direta de Saleh. “Naquele período, estávamos treinando e organizando as forças nacionais de segurança no Iêmen”, disse-me o ex-assessor de um alto dirigente do JSOC. “Ao mesmo tempo, localizávamos e, depois, matávamos pessoas34 que sabíamos que eram extremistas da Al-Qaeda — ou sobre as quais recaíam suspeitas — na península ou em torno dela, e no próprio Iêmen.” Ainda que o Iêmen aparecesse com frequência cada vez maior nos radares do JSOC e da CIA, de modo geral o país permanecia fora das manchetes. Nos três debates entre Barack Obama e John McCain durante a campanha eleitoral de 2008, o Iêmen não foi mencionado uma só vez. Um dos argumentos usados por Obama em sua campanha foi que Bush desperdiçara, no Iraque, recursos que deviam ter sido usados para combater a Al-Qaeda. “Ela não estava35 no Iraque até George Bush e John McCain se decidirem pela invasão”, declarou em fevereiro de 2008. “Desviaram os olhos dos responsáveis pelo Onze de Setembro — da Al-Qaeda.” O novo presidente se comprometeu a reformular as prioridades americanas no Afeganistão, onde o excomandante do JSOC, o general McChrystal, ficaria encarregado da guerra, porém Obama logo se deu conta de que sua promessa de fazer a luta se voltar contra a Al-Qaeda não se limitaria ao Afeganistão. Uma pequena nação árabe, o Iêmen, viria a se tornar peça importante no xadrez do contraterrorismo de Obama.
Quando os oito anos da era Bush chegavam ao fim, e a campanha eleitoral americana entrava em suas últimas semanas, Anwar Awlaki invectivou contra as esperanças que os muçulmanos, nos Estados Unidos e em todo o mundo, estavam expressando em relação à candidatura de Barack Obama. “Aqueles que defendem a participação nas eleições americanas argumentam que estão escolhendo o menor de dois males.36 Esse princípio está correto, mas o que eles não percebem é que, ao escolher o menor de dois males, cometem um mal ainda maior”, escreveu Awlaki em outubro de 2008.
Os tipos de candidatos que a política americana tem exibido são totalmente repulsivos. Pergunto-me: como pode algum muçulmano que tenha uma pitada de iman [fé] no coração
caminhar até a urna e nela depositar um voto que endossa criaturas como McCain ou Obama?! [...]. Não importa o quanto seu voto seja irrelevante, no Dia do Juízo você será chamado a explicá-lo. Você, sem pressão ou coerção, optou, conscientemente, por votar a favor do líder de uma nação que está promovendo a guerra contra o Islã.
Posteriormente, numa outra postagem, Awlaki escreveu que “na maioria das questões que dizem respeito aos muçulmanos, há pouca diferença37 entre McCain e Obama. “Por exemplo, eles têm as mesmas ideias sobre a guerra contra o terror e a questão da Palestina. Toda pessoa que conheça a história da política americana, ainda que por alto, sabe que, no tocante às questões principais, os dois partidos rezam pela mesma cartilha.” À medida que Awlaki elevava o tom de sua retórica, a IC americana aumentava o nível da ameaça que via nele. Um mês antes da eleição de Obama, abriu-se uma minúscula janela na forma como Awlaki era considerado quando Charles Allen, subsecretário de Segurança Interna para Informações e Análise, referiu-se a ele como “partidário da Al-Qaeda38 e ex-líder espiritual de três dos sequestradores do Onze de Setembro”. Foi a primeira vez que uma autoridade do governo americano ligou publicamente Awlaki ao terrorismo. Allen acusou Awlaki de “dirigir aos mulçumanos americanos pela internet, a partir de sua nova residência no Iêmen, palestras radicais incentivando ataques terroristas”. Quando as observações de Allen foram publicadas, Awlaki redarguiu em seu blog. Quanto a sua suposta função de “conselheiro espiritual” de alguns dos sequestradores, escreveu: “Essa é uma afirmação sem fundamento,39 que refutei repetidas vezes durante os interrogatórios do FBI e junto aos meios de comunicação. O governo dos Estados Unidos e a imprensa insistem ainda em espalhar essa inverdade”. Quanto a incentivar ataques terroristas, respondeu: “Eu o desafio a apontar uma única palestra em que eu tenha estimulado ‘ataques terroristas’”. Contudo, aos olhos do governo americano, os apelos de Awlaki em prol da jihad equivaliam a incentivá-los. Quando Obama, como presidente eleito, começou a plasmar sua política externa e suas equipes de contraterrorismo, o Iêmen apareceu como uma alta prioridade. Embora a maioria dos americanos e do resto da população mundial nunca tivesse ouvido falar de Anwar Awlaki, o novo governo estava monitorando seus movimentos no Iêmen. As autoridades americanas não apresentaram nenhuma prova concreta de que ele estivesse envolvido ativamente em alguma trama terrorista, mas asseveravam que era uma figura inspiradora, cujos sermões não cessavam de aparecer na investigação de vários complôs. Em 2006, descobriu-se que muçulmanos canadenses, acusados de planejar a invasão do Parlamento para decapitar o primeiro-ministro, tinham ouvido as prédicas de Awlaki. Ademais, alguns dos homens condenados pelo plano de ataque a Fort Dix,40 em Nova Jersey, em 2007, tinham elogiado Awlaki, segundo uma gravação feita por um informante do governo. Outras referências a ele surgiam em inquéritos realizados no Reino Unido, assim como em Chicago e Atlanta. Awlaki louvava abertamente a Al-Shabab
da Somália, onde os Estados Unidos se preocupavam cada vez mais com a possibilidade de muçulmanos ocidentais aderirem à jihad. Jovens americanos de Minneapolis, de ascendência somaliana, que tinham ido para a Somália41 a fim de juntar-se à Al-Shabab teriam sido inspirados pela palestra “Constantes no caminho da jihad”, de Awlaki. Numa postagem de 21 de dezembro de 2008 intitulada “Saudações à Al-Shabab da Somália”, Awlaki escreveu que a captura, pelo grupo, de territórios em Mogadíscio e outras partes da Somália
enche nosso coração42 de imensa alegria. Gostaríamos de parabenizar vocês por suas vitórias e realizações […]. A Al-Shabab não só teve êxito em ampliar as áreas que estão sob seu domínio como conseguiu pôr em vigor a Sharia e nos dar um exemplo vivo de como nós, muçulmanos, devemos proceder a fim de mudar nossa situação. O voto não nos valeu, mas a bala, sim.
Awlaki comparou as insurreições armadas da Al-Shabab contra os apaniguados dos americanos aos ensinamentos de “universidades islâmicas dirigidas por Letrados de Zonas Verdes submetidos a governos liderados por proxenetas”, cujos ensinamentos defendiam “fraqueza e humilhação”. Awlaki afirmou que a “universidade da Somália” haveria de “formar um alunado” de
combatentes temperados no campo e dispostos a seguir avante sem temor ou hesitação. Ela proporcionará a seus discentes a experiência prática de que a Ummah necessita muitíssimo para seu próximo estágio. Mas o sucesso deles depende do apoio de vocês. Cumpre à Ummah auxiliá-los com homens e dinheiro.
A Al-Shabab respondeu à mensagem de Awlaki, que postou a resposta em seu blog. Dirigindo-se a ele como “amado xeque Anwar”,43 sua declaração dizia:
Olhamos para o senhor como um dos pouquíssimos letrados que assumem uma postura firme em relação à verdade e defendem a honra dos mujahedin e dos muçulmanos com sua contínua revelação das tramas insensatas dos inimigos de Alá. Alá sabe quantos outros irmãos e irmãs foram tocados por seu trabalho, e por isso lhe pedimos que prossiga com o esforço importante que vem fazendo onde quer que esteja e que nunca tema a acusação dos acusadores.
E concluía: “Oh, xeque, nós o admiramos não só como soldado, mas também como um seguidor
de Ibn Taymiya [letrado islâmico famoso por resistir aos mongóis no século XIII]”. Durante o cerco israelense de Gaza, conhecido como operação Chumbo Fundido, iniciado no fim de 2008, o tom de Awlaki tornou-se bem mais radical e belicoso. “O Estado ilegal de Israel44 precisa ser erradicado. Da mesma forma como Rasulullah os expulsou da Península Arábica, os judeus da Palestina precisam ser empurrados para o mar”, ele escreveu. “Não existem civis israelenses, a menos que sejam muçulmanos. Quando o inimigo investe contra nossas mulheres e crianças, devemos investir contra as deles.” Awlaki era influente junto a círculos jihadistas e entre muçulmanos ocidentais jovens e conservadores, inclusive aqueles que pretendiam participar das lutas armadas contra os Estados Unidos, Israel e seus aliados. Seus sermões tinham se tornado virais em fóruns jihadistas na internet, acompanhados com toda a atenção pelos serviços de informações americanos. Mas não foi apresentada nenhuma prova concreta de que Awlaki tenha feito alguma coisa que não estivesse protegida pela Primeira Emenda à Constituição americana, que trata da liberdade de expressão, ou que não exigisse uma longa batalha judiciária para mostrar que era inconstitucional. Havia, porém, muita fumaça em torno dele que levava os serviços de informações americanos a desejar que ele fosse silenciado, como esteve nos dezoito meses que passou numa prisão iemenita. Agora que ele estava fora do cárcere e se tornando mais popular a cada postagem em seu blog, intensificou-se a vigilância digital sobre ele. Sem que Awlaki soubesse, seus e-mails estavam sendo interceptados e lidos, enquanto seu blog era vasculhado em busca de pistas de contatos. Em 17 de dezembro de 2008, o FBI interceptou um e-mail que ele recebera de Nidal Hasan, o major do Exército cujos pais tinham sido membros da mesquita de Awlaki na Virgínia, em 2001. O último contato de Awlaki com Hasan se dera antes que ele trocasse os Estados Unidos pelo Iêmen, e fora tão somente para falar com ele a pedido de seus pais. Em retrospecto, o e-mail era fatídico. “Há muitos soldados45 nas Forças Armadas americanas que se converteram ao Islã durante o tempo de serviço. Há também muitos muçulmanos que aderem às Forças Armadas por uma quantidade de outros motivos”, escreveu Hasan a Awlaki.
Alguns parecem ter conflitos internos e até mataram ou tentaram matar outros soldados [americanos] em nome do Islã, como, por exemplo, Hasan Akbar [soldado americano condenado por matar dois colegas de farda no Kuwait] etc. Outros consideram que não há conflito algum. Fatwas anteriores parecem vagas e não muito definidas.
A seguir, ele perguntou a Awlaki:
O senhor poderia tecer alguns comentários gerais sobre os muçulmanos nas Forças Armadas [americanas]? O senhor consideraria que uma pessoa como Hasan Akbar ou outros soldados
que tenham cometido tais atos com o objetivo de ajudar os muçulmanos/o Islã a lutar pela jihad (vamos apenas imaginar isso por ora), se eles morressem, o senhor os consideraria shahids [mártires]? Compreendo que essas perguntas são difíceis, mas o senhor parece ser um dos poucos que moraram nos [Estados Unidos e que] tem um bom conhecimento do Alcorão e da suna, e que não tem medo de falar claro.
Awlaki não respondeu a esse e-mail, mas Hasan continuou a lhe escrever durante meses. Embora os investigadores americanos nada tenham feito contra Hasan depois desse e-mail, um ano depois, quando ele abateu treze de seus colegas de farda em Fort Hood, no Texas, seus e-mails ajudaram a compor a versão de que Awlaki era um terrorista. “Awlaki sintetiza a filosofia da Al-Qaeda46 em palestras palatáveis e bem escritas”, declarou Evan Kohlmann, que se proclamou estudioso da Al-Qaeda e foi uma conhecida “testemunha especialista” em julgamentos de acusados de terrorismo, ao New York Times. “Eles podem não ensinar às pessoas como fabricar uma bomba ou usar uma arma, mas ele lhes diz quem devem matar e por quê, e ressalta a urgência da missão.” Kohlmann era chamado com frequência para esclarecer temas referentes à Al-Qaeda junto a autoridades do governo americano, embora não falasse árabe,47 nem tivesse viajado exaustivamente por países onde a organização tinha forte presença. Kohlmann fez uma exposição ao Departamento de Justiça dos Estados Unidos e disse que já os avisara quanto ao que disse ser a capacidade cada vez maior de Awlaki para incitar jovens ocidentais a aderir a jihads estrangeiras ou realizar ataques terroristas em seus próprios países. Kohlmann observou que deveria haver “pouca surpresa48 pelo nome de Anwar Awlaki e seu sermão sobre “Constantes no caminho da jihad” aparecerem em todas as investigações sobre terrorismo de origem nacional, fosse nos Estados Unidos, no Reino Unido, no Canadá ou em outros países”. Segundo ele, a prédica “Constantes” de Awlaki era “uma palestra que com o tempo tornou-se a ‘bíblia virtual’ para extremistas muçulmanos solitários”. Embora Awlaki sem dúvida estivesse chamando a atenção de um número cada vez maior de autoridades e analistas de contraterrorismo nos Estados Unidos, havia na comunidade de informações quem julgasse que sua importância estava sendo exagerada. Os sermões de Awlaki estavam mesmo pipocando em vários inquéritos sobre incidentes ligados ao terrorismo, mas ele era praticamente desconhecido no mundo das verdadeiras células da Al-Qaeda. Salvo entre os muçulmanos ocidentais de língua inglesa, ele não exercia influência na maior parte do mundo muçulmano. “Acho que tendemos a concentrar tanta atenção nele porque ele prega em inglês.49 E por causa disso estamos mais expostos ao que ele diz, e porque estamos mais expostos ao que ele diz, supomos que ele tenha mais influência do que realmente tem”, declarou Joshua Foust, que na época era analista da DIA no Iêmen. Foust disse que estava preocupado com a possível influência dos sermões de Awlaki sobre jovens muçulmanos ocidentais, mas achava que certas pessoas na IC estavam exagerando o papel que suas prédicas desempenhavam em tramas
terroristas. “Não vejo nenhum indício de que [Awlaki] represente alguma espécie de ameaça ideológica contra os Estados Unidos. Eu diria que 99,99% das pessoas que escutam a ideologia de Awlaki, ou acreditam nela, nunca a põem em prática”, disse-me Foust.
Por isso, se você vai argumentar que foi a ideologia que levou alguém a fazer alguma coisa, precisa ter — ao menos na minha opinião — honestidade intelectual e rigor analítico. Vai ter de me explicar o motivo pelo qual aquela ideologia compeliu aquela pessoa a agir, mas por que não compeliu todos os que não agiram a não agir. E quanto a mim, não creio que seja possível mesmo explicar isso. Nunca vi um argumento que realmente o faça. Assim, para começar, creio que grande parte da atenção em Awlaki não faz sentido algum, porque lhe atribuímos uma importância e uma influência que na verdade ele não tem.
Da perspectiva de Awlaki, ele vinha pregando aquela mensagem anos antes do Onze de Setembro, e fazendo isso nos Estados Unidos. “Organizações [muçulmanas americanas] apoiavam a jihad no Afeganistão, na Bósnia, na Tchetchênia e na Palestina. Eu estava lá, nos Estados Unidos, naquele tempo”, lembrou Awlaki.
Clamávamos dos púlpitos50 […] pela jihad, por Alá, pela criação do Califado. Obediência e Repúdio. Podíamos falar livremente. A liberdade que havia nos Estados Unidos nos permitia dizer essas coisas, e tínhamos muito mais liberdade lá do que em muitos países do mundo islâmico.
Awlaki acreditava que sua mensagem não tinha passado por mudanças fundamentais, mas que o alvo da jihad que ele defendia, sim. Palestras que ele tinha feito na década de 1990, defendendo a jihad na Tchetchênia, no Afeganistão ou na Bósnia, eram condizentes com as metas das políticas americanas. Uma década depois, as mesmas mensagens — aplicadas contra os Estados Unidos — ganharam um novo significado e mostraram Awlaki como traidor do país em que nascera. Em fins de 2008, Awlaki postou “Um novo ano: realidade e aspirações”, mensagem na qual fazia uma análise de várias guerras no mundo islâmico e citava países em que os mujahedin muçulmanos estavam logrando vitórias sobre as potências ocidentais. No Iraque, escreveu:
Os Estados Unidos chegaram à conclusão51 de que não podem resolver o problema sozinhos e precisam buscar a ajuda dos munafíquin [hipócritas]. Com todas as forças externas e internas combinando seus esforços para lutar contra os portadores da verdade no Iraque, nossos irmãos não precisam vencer para ser vitoriosos. Tudo que precisam fazer é dar tempo ao tempo. Se conseguirem fazer isso, estão [vencendo]. O invasor não poderá permanecer lá
para sempre.
No Afeganistão, afirmou Awlaki, “os mujahedin estão ganhando, a OTAN está perdendo […]. Obama está todo animado a pôr fim ao terrorismo concentrando-se no Afeganistão. Rezo para que os irmãos deem a ele e a suas forças umas boas lições este ano”. Awlaki também comemorou a melhora da situação da Al-Shabab na Somália como “a melhor notícia do ano” e escreveu que ela “está vencendo em todas as frentes. Queira Alá que assistamos ao anúncio da criação de um emirado islâmico. A Etiópia está cansada de travar uma guerra por procuração em nome dos Estados Unidos”. Awlaki predisse que os Estados Unidos voltariam a investir contra a Somália, observando, como se adivinhasse o futuro: “O mar ao redor da Somália já está ocupado sob o pretexto de proteção contra os piratas. Este ano poderá assistir a bombardeios aéreos, havendo a possibilidade de uma nova invasão por forças terrestres”. Sobre o plano global, Awlaki afirmou: “Está em andamento a separação entre os fiéis e os hipócritas que precede todas as vitórias muçulmanas”.
A jihad prosseguirá.52 E tudo isso são tijolos para a construção da Ummah em seu próximo estágio. Se Alá deseja um fim, ele prepara o meio para tal. Alá deseja a vitória para essa Ummah e está preparando os meios para isso. Não nos sentemos longe do palco dos acontecimentos. Façamos parte dessa vitória.
De certa forma, a fixação de Awlaki pelos protagonistas islâmicos de uma escalada da guerra global de civilizações tinha paralelo num novo conjunto de listas compiladas secretamente pelas equipes de contraterrorismo do governo Obama. Havia nessas listas dezenas de líderes da AlQaeda, bem como militantes situados em níveis muito inferiores da cadeia alimentar: “facilitadores”, “suspeitos de militância”, “propagandistas”. O governo se preparava para uma série de guerras menores no Oriente Médio, no Chifre da África e na Península Arábica, bem como para uma mudança de estratégia no Afeganistão, na tentativa de cortar a cabeça da liderança do Talibã. No centro da nova estratégia de Obama havia um programa de assassinatos que concretizava a visão que Rumsfeld tinha do mundo como campo de batalha. Awlaki previu que o novo presidente americano seria um falcão contra os movimentos de resistência islâmicos. Estava certo. Obama logo daria carta branca ao JSOC e à CIA para empreender uma caçada humana global. A captura era a segunda opção. A missão precípua era matar aqueles que o presidente considerava uma ameaça aos Estados Unidos, malgrado afirmações públicas em contrário por porta-vozes das Forças Armadas e do governo. A tarefa do JSOC não seria apenas matar os líderes máximos da Al-Qaeda, mas dizimar sua infraestrutura de apoio, matando também todos os seus integrantes. Foi por meio desse programa que Awlaki se viu na alça de mira do novo presidente. Em breve, ele se tornaria um cidadão americano
condenado à morte sem ter passado por julgamento.
24. “Obama decidiu manter o rumo fixado por Bush”
ESTADOS UNIDOS, 2002-8 — Barack Obama é professor de direito constitucional, formado numa universidade da Ivy League, e sua carreira política foi cuidadosamente planejada. Em outubro de 2002, quando era senador estadual em Illinois, assumiu uma posição quanto à guerra no Iraque que prenunciava a política externa que mais tarde ele articularia como candidato à presidência. “Não me oponho a todas as guerras”, declarou.
Eu me oponho a uma guerra tola.1 A uma guerra irrefletida. Eu me oponho à tentativa cínica, por parte de […] guerreiros de salão, guerreiros de fim de semana desse governo, de nos meter pela goela abaixo suas próprias agendas ideológicas, sem levar em conta os custos em vidas perdidas e as dificuldades suportadas.
Obama aludiria frequentemente a esse discurso, mas pouquíssimos americanos o ouviram na época. Obama surgiu no cenário nacional em 2004, quando fez um ardoroso discurso programático, muito elogiado, na Convenção Nacional Democrata, obteve um lugar no Senado federal e, três anos depois, anunciou sua candidatura à presidência. “Sejamos a geração2 que nunca esquecerá o que aconteceu naquele dia de setembro e que confrontará os terroristas com tudo o que temos”, disse no discurso em que anunciou que concorreria à presidência. “Podemos trabalhar juntos para rastrear terroristas com Forças Armadas mais fortes, podemos apertar a rede ao redor de suas finanças e podemos melhorar nossa capacidade de coleta de informações.” Ao definir sua estratégia de campanha em relação à política externa, Obama e seus assessores precisaram assumir uma postura difícil: criticar as políticas de segurança nacional da era Bush e, ao mesmo tempo, mostrar-se muito duros com o terrorismo. Ele adotou uma linha dupla para atacar o candidato republicano, John McCain: ligá-lo à guerra no Iraque, à ausência de prestação de contas e aos segredos da era Bush e, ao mesmo tempo, comprometer-se a travar uma guerra mais inteligente, mais focada, contra a Al-Qaeda. Na manhã de 4 de outubro de 2007, o New York Times publicou uma longa reportagem de primeira página sobre um parecer do Departamento de Justiça, emitido em 2005, que concedia “um endosso franco das mais duras técnicas de interrogatório3 já utilizadas pela Agência Central de Inteligência”. Na gestão do recém-nomeado procurador-geral Alberto Gonzales, a CIA “pela
primeira vez recebeu autorização explícita para submeter suspeitos de terrorismo a uma combinação de métodos físicos dolorosos e táticas psicológicas, que incluíam tapas na cabeça, simulação de afogamento e temperaturas gélidas”. Naquela manhã, Obama apareceu em rede nacional de televisão. “Isso é um exemplo4 do que perdemos nos últimos seis anos e que temos de reconquistar”, disse ele a Mika Brzezinski, âncora da rede MSNBC.
Você sabe, todos nós acreditamos que temos de rastrear e capturar ou matar terroristas que ameaçam os Estados Unidos, mas temos de entender que a tortura não vai nos proporcionar informações, e vai criar mais inimigos. Por isso, como estratégia para criar um país mais seguro e protegido, acho isso errado, além de imoral.
Obama acrescentou: “Acho que esse governo, basicamente, julgava aceitável qualquer tática, desde que pudesse dar-lhe uma interpretação que fosse conveniente e mantê-la longe dos olhos do público”. À medida que a campanha presidencial avançava, as promessas de reverter as políticas da era Bush vieram a ocupar lugar de destaque no temário de Obama. A tortura, a prisão de Guantánamo, as guerras sem justificativas nem prestação de contas e a evisceração das liberdades civis nos Estados Unidos chegariam ao fim, prometeu Obama. “Temos sido governados pelo medo5 nesses últimos seis anos, e esse presidente utilizou o medo do terrorismo para lançar uma guerra que jamais devia ter sido autorizada”, disse no fim de outubro de 2007. Segundo ele, o clima político fomentado pelo governo Bush corroera insidiosamente os Estados Unidos, interna e externamente. “Nem sequer falamos sobre as liberdades civis e sobre o impacto daquelas políticas de medo, do que foi feito em termos de minar as liberdades civis básicas neste país, do que isso fez em termos de solapar nossa reputação em todo o mundo”, disse Obama. No entanto, mesmo enquanto recebia elogios e apoio de liberais e de organizações contrárias à guerra nos Estados Unidos, Obama articulava uma visão de política externa que, no capítulo do contraterrorismo, deixava claro que ele tencionava autorizar operações secretas e clandestinas. “Foi um erro terrível6 deixar de agir quando tivemos a oportunidade de acabar com uma reunião da liderança da Al-Qaeda em 2005”, declarou Obama. “Se temos informações sobre alvos terroristas importantes que nos permitam agir, e se o presidente Musharraf não se dispuser a agir, nós o faremos.” McCain criticou Obama por dizer que executaria ataques dentro do Paquistão, qualificando sua atitude de irresponsável. “Não se diz pelo rádio7 que se vai bombardear um país sem sua permissão”, disse McCain. Obama replicou que o governo Bush tinha feito “exatamente isso”, e acrescentou: “Essa é a posição que deveríamos ter assumido desde logo […] o fato é que essa seria a estratégia correta”.8 Em 2008, ao aceitar a indicação democrata para concorrer à presidência num campo de
futebol apinhado em Denver, Colorado, Obama anunciou a política que pretendia executar: ampliar a guerra no Afeganistão e aumentar globalmente as operações americanas de captura e morte. “John McCain gosta de dizer9 que vai perseguir Bin Laden até as portas do inferno, mas não vai persegui-lo nem até a caverna onde ele mora”, disse Obama, reiterando que, se fosse eleito, os Estados Unidos agiriam unilateralmente no Paquistão ou onde quer que fosse para matar terroristas. “Devemos acabar com Osama bin Laden e seus representantes se os tivermos em mira.” Em seus discursos de campanha, Obama falava sempre em pôr fim à guerra no Iraque, mas também articulava uma linha dura com relação a ataques unilaterais dos Estados Unidos que exigiriam uma participação significativa do JSOC e da CIA. Depois da posse, quando começou a formar a equipe de política externa, ele aliciou uma série de democratas linha-dura, entre eles o vice-presidente, Joe Biden, e a secretária de Estado, Hillary Clinton, que tinham apoiado a invasão do Iraque em 2003. Susan Rice seria a embaixadora na ONU, e Richard Holbrooke chefiaria o componente civil do plano de Obama de ampliar a guerra no Afeganistão. Todos eles tinham apoiado, no passado, intervenções militares e políticas econômicas neoliberais, além de demonstrar uma visão do mundo sintonizada com o arco da política externa que vinha desde a gestão do primeiro presidente Bush até o presente. Obama manteve também o secretário de Defesa de Bush, Robert Gates, indicou John Brennan, veterano da CIA, para ser seu principal consultor em contraterrorismo e segurança interna, e nomeou o general James Jones seu consultor de segurança nacional. Republicanos conservadores cobriram de elogios as escolhas de Obama. O principal consultor de Bush, Karl Rove, classificou-as como “tranquilizadoras”,10 e Max Boot, líder neoconservador que trabalhara na campanha de McCain, exultou: “Estou surpreso11 com essas nomeações. Muitas delas poderiam ter sido feitas por McCain na presidência”. Para Boot, a voz de Hillary Clinton seria “poderosa” em “defesa do ‘neoliberalismo’, que, em muitos aspectos, não difere tanto assim do ‘neoconservadorismo’”. Michael Goldfarb, colega de Boot, escreveu no Weekly Standard, órgão oficial do movimento neoconservador, que com certeza “nada vi que represente uma mudança drástica no modo de atuar de Washington. O que se espera é que Obama decida manter o rumo12 fixado por Bush em seu segundo mandato”. Semanas depois de assumir o cargo, no começo de 2009, Obama emitiu uma mensagem clara de que pretendia manter intactas muitas das políticas mais agressivas de contraterrorismo de Bush. Entre elas estavam os assassinatos dirigidos, escutas telefônicas não autorizadas, o uso de prisões secretas, uma atitude dura em relação ao direito de habeas corpus para prisioneiros, detenções indefinidas, transferência internacional de presos pela CIA, emprego de drones em bombardeios, utilização de mercenários em guerras americanas e uso da “Prerrogativa do Segredo de Estado”. Houve casos em que Obama ampliou os programas da era Bush que antes havia censurado como característicos de um Poder Executivo irresponsável. Durante a campanha, ele declarou que faria os torturadores da era Bush responderem por
seus malfeitos, mas voltou atrás em relação a essa retórica, dizendo depois da eleição que “precisamos olhar para a frente,13 em contraposição a olhar para trás”. Disse que seu trabalho como presidente “consiste em garantir, por exemplo, que na CIA haja pessoas de extraordinário talento que trabalhem duro para manter os americanos em segurança. Não quero que elas sintam, de repente, que têm de passar todo o tempo olhando por cima do ombro”. No começo do mandato de Obama, Dick Cheney acusou-o de estar tomando medidas “para desmontar várias políticas14 que criamos e que mantiveram a nação em segurança durante quase oito anos contra ataques terroristas como o do Onze de Setembro”. Cheney estava enganado. Na realidade, Obama garantiu que muitas dessas políticas se tornassem instituições bipartidárias, bem estabelecidas, na política de segurança nacional dos Estados Unidos durante muitos e muitos anos. Se essas políticas mantiveram os americanos em segurança — ou se lhes deram menos segurança — é outra questão.
25. Ataques com o selo de Obama
PAQUISTÃO E WASHINGTON, DC, 2009 — Ao se instalar no Salão Oval, em seu novo papel de comandante supremo, o presidente Obama ajustou a retórica da vasta Guerra Total contra o Terror, de Bush, rebatizando-a como “guerra contra a Al-Qaeda e seus aliados”. Em seu terceiro dia no cargo, assinou uma série de resoluções executivas que, segundo a versão oficial, “desmantelavam” os programas de tortura e detenção da era Bush. “A mensagem que divulgamos1 para o mundo é a de que os Estados Unidos pretendem dar seguimento à luta em curso contra a violência e o terrorismo, e que vamos fazer isso com vigilância; vamos fazer isso com eficácia; e vamos fazer isso de maneira compatível com os nossos valores e os nossos ideais”, declarou Obama, ao lado de dezesseis oficiais reformados. “Tencionamos vencer essa luta. Vamos vencê-la em nossos termos.” Entretanto, ao mesmo tempo que dispensava os rótulos da era Bush e a retórica dos oito últimos anos da política externa americana, ele agia rapidamente para expandir as guerras secretas que haviam marcado os mandatos de seu predecessor. Um dia depois de Obama ter assinado suas resoluções executivas, o diretor da CIA, Michael Hayden, fez-lhe uma exposição2 a respeito de uma operação que a Agência estava para realizar no interior do Paquistão: um ataque de drone perto da fronteira do Afeganistão. Os alvos, disse Hayden ao presidente, eram integrantes do alto escalão da Al-Qaeda e do Talibã. Naquele mesmo dia, 23 de janeiro, dois mísseis Hellfire foram lançados contra objetivos situados no Waziristão do Norte e do Sul. O primeiro ataque3 atingiu um vilarejo perto de Mir Ali, no Waziristão do Norte, por volta das dezessete horas, hora local. O segundo4 atingiu uma construção na aldeia de Karez Kot, no Waziristão do Sul, mais ou menos às 20h30. Hayden, que daí a semanas deixaria a Agência, admitiu ante o presidente que os HVTs não tinham sido atingidos, mas que “pelo menos cinco militantes5 da Al-Qaeda” tinham morrido. “Ótimo”, comentou Obama, que deixou claro que apoiava a escalada de ataques de drones no Paquistão. Quando agentes de Inteligência examinaram a filmagem dos ataques de drones de 23 de janeiro, ficou claro que tinha havido morte de civis. John Brennan procurou o presidente6 e lhe contou o acontecido. Cinco “militantes” podiam ter morrido nos ataques, mas não eram as únicas vítimas fatais. De acordo com o Bureau de Jornalismo Investigativo, o primeiro ataque, no Waziristão do Norte, matou entre sete e quinze pessoas,7 quase todas civis. Muitas delas
eram de uma mesma família. Segundo relatos, um menino tinha sobrevivido, embora com uma fratura de crânio, uma perfuração de estômago e a perda de um olho.8 O segundo ataque, no Waziristão do Sul, atingira a “casa errada”9 e matara de cinco a oito civis, segundo relatos posteriores. Muitos desses mortos, entre os quais ao menos duas crianças, pertenciam à família do ancião de uma tribo, que também morrera. Esse ancião, segundo informações, seria membro de uma “comissão de paz pró-governo”.10 Obama convocou Hayden para uma reunião e pediu uma exposição em detalhes dos protocolos do programa de drones. Apesar das dezenas de sumários sobre temas de segurança nacional que ele havia recebido desde sua indicação para candidato democrata à presidência, foi nessa ocasião que o novo presidente ouviu falar pela primeira vez daquilo que a CIA chamava de “ataques por indícios”.11 Nos últimos meses do governo Bush, a Agência começara a atacar pessoas com base em comportamentos, e não em informações específicas. Segundo a CIA, “homens em idade militar” que faziam parte de um grande agrupamento de pessoas em determinada região, ou que tinham contatos com outros suspeitos de militância ou com terroristas, podiam ser considerados alvos para ataques de drones. Para a realização de um ataque não era necessário uma identificação positiva. Bastavam alguns dos “indícios” que a Agência definira para identificar suspeitos de terrorismo. Depois de ouvir a argumentação de Hayden, Obama decidiu não rejeitar a política de ataques por indícios, embora lhe acrescentasse uma restrição:12 o diretor da CIA teria a palavra final em todos os ataques. Vez por outra, essa autoridade era delegada ao subdiretor ou ao chefe do Centro de Contraterrorismo da Agência. Obama avisou que poderia retirar a autorização para ataques por indícios em data posterior. Mas não fez isso.13 Nos meses seguintes, o novo diretor da CIA, Leon Panetta, com ajuda de “autoridades secretas” do Centro de Contraterrorismo da CIA, ministrou ao presidente um “curso intensivo”14 sobre ataques dirigidos. Panetta fez uma revisão do programa de drones e de outros protocolos de ação, que incluíam a lista de autorizações necessárias para a execução de um ataque. Obama e Panetta teriam reuniões diretas depois que HTVs foram atingidos no Paquistão. Durante aquele primeiro ano no cargo, Obama realizou reuniões periódicas, de uma hora de duração, com grandes autoridades, nas quais se discutiam todas as questões de segurança nacional e contraterrorismo. De acordo com os participantes, essas primeiras reuniões tinham um caráter “pedagógico”.15 Debatiam-se temas ligados à coleta de informações e ameaças à segurança, mas Obama ainda estava tomando conhecimento de novas capacidades e potenciais. Na maior parte do primeiro ano, os debates sobre captura ou morte de pessoas fora do Afeganistão e do Paquistão foram sobretudo hipotéticos. O vice-diretor do Estado-Maior Conjunto, general “Hoss” Cartwright, e o principal consultor de contraterrorismo de Obama, John Brennan, bem como o almirante McRaven, comandante do JSOC, ganharam voz cada vez mais ativa nas deliberações. Uma das primeiras tarefas relacionadas à agenda de segurança nacional de Obama foi uma revisão rigorosa das resoluções executivas de Bush referentes a
assuntos militares. Na área de contraterrorismo, Obama conservou muitas políticas de seu antecessor e acabou mantendo a maior parte das resoluções executivas sem emendas.16 Em alguns casos, procurou ampliar as autorizações. Obama começou a atacar o Paquistão praticamente todas as semanas.
Obama herdou de Bush um programa ampliado de uso de drones. Os ataques no Paquistão tinham se tornado mais frequentes nos últimos meses de 2008. Pouco antes de Obama ganhar a eleição, Bush havia “acertado um acordo tácito17 para permitir que [os ataques com drones] continuassem sem envolvimento paquistanês”. A política americana consistia em avisar o Paquistão sobre os ataques quando já estavam em curso ou minutos depois de terem sido realizados. O presidente Obama aprovou a mudança, que trouxe consigo uma elevação da atividade dos drones, e “endossou plenamente18 o programa de ações secretas”. Ele também manteve em suas funções “praticamente todo o pessoal-chave”19 da CIA que dirigira a campanha secreta no governo Bush. Obama foi apresentado a esse programa, logo depois da eleição, por Mike McConnell, diretor dos Serviços Nacionais de Informações, que estava de saída. Parte dele era uma rede de Humint dentro do Paquistão. Os espiões proporcionavam as informações colhidas no campo, que constituíam uma contrapartida indispensável à vigilância e ao ataque feito pelos drones. O programa de espionagem, que vinha sendo implantado havia cinco anos e, segundo constava, era caro, foi “o verdadeiro [segredo]20 que Obama guardaria consigo a partir daquele momento”. Algum tempo depois da posse, Obama passou a pressionar Panetta com relação à caçada de Osama bin Laden. Em maio de 2009, disse ao diretor da CIA que ele tinha de transformar essa caçada em “sua meta número um”21 e determinou a Panetta que apresentasse um “plano de operação detalhado”22 para localizar Bin Laden. Panetta tinha trinta dias para formular esse plano, durante os quais passava ao presidente atualizações semanais sobre seus progressos, mesmo quando havia pouco a informar. Enquanto a caçada a Bin Laden se intensificava, os ataques com drones prosseguiam. E também a morte de civis. Em 23 de junho, a CIA matou diversos supostos militantes num ataque de míssil Hellfire no Waziristão do Sul, e horas depois fez outro ataque contra pessoas que participavam de um serviço fúnebre pelos mortos. Dezenas de civis foram mortos23 — as estimativas variaram de dezoito a 45. “Depois que terminaram24 as orações, as pessoas pediam umas às outras que deixassem a área, pois havia drones no ar”, disse um homem que perdeu a perna no ataque. “Primeiro, dois drones dispararam dois mísseis, o que provocou grande confusão, pois havia fumaça e poeira por todo lado. Pessoas feridas gritavam e pediam ajuda […]. Daí a um minuto, dispararam o terceiro míssil, e eu caí no chão.” Segundo se divulgou, os serviços de informações americanos acreditavam que Baitullah Mehsud, líder do Talibã no Paquistão, estaria “entre os presentes”.25 Não estava, pelo menos quando os mísseis foram
disparados. Dizia-se que o esquivo Mehsud já tinha sobrevivido a mais de uma dúzia de atentados contra a sua vida, nos governos de Bush e Obama, em ações que deixaram um saldo de centenas de mortes. Foi então que, no começo de agosto, os serviços de informações americanos localizaram Mehsud na casa de seu sogro,26 na aldeia de Zanghara, no Waziristão do Sul. Em 5 de agosto, drones da CIA dispararam contra ele, que se achava no terraço da casa, com parentes e outros convidados. Ele foi estraçalhado por dois mísseis Hellfire, que mataram mais onze pessoas. Em outubro de 2009, ao que se sabe, Obama ampliou as “áreas-alvo”27 no Paquistão, aumentando o espaço em que a CIA podia atacar, autorizou a Agência a adquirir mais drones e “aumentou a verba das forças paramilitares secretas da Agência”. Ele já autorizara, em dez meses, o mesmo número de ataques com drones28 que Bush autorizara em seus oito anos de governo.
A CIA recebia grande parte do crédito e das críticas pelo programa americano de ataques com drones no Paquistão, mas ela não atuava sozinha. O JSOC tinha suas operações de Inteligência no país e às vezes realizava seus próprios ataques. No centro dos programas de assassinato dirigido do JSOC e da CIA havia membros de uma divisão de elite da empresa Blackwater, que colaborava no planejamento de assassinatos de pessoas suspeitas de pertencer aos quadros do Talibã e da Al-Qaeda, em operações de “agarrar e prender” Alvos de Grande Valor e outras ações reservadas no Paquistão. Integrantes da Select, a divisão de elite da Blackwater, trabalhavam para a CIA em “bases ocultas29 no Paquistão e no Afeganistão, onde fornecedores da empresa montam mísseis Hellfire e bombas de quinhentas libras [227 quilos] guiadas a laser, que instalam em aviões Predator pilotados por controle remoto”. Técnicos da Blackwater também trabalhavam para o JSOC num programa paralelo dirigido da Base Aérea de Bagram, no vizinho Afeganistão. Fontes dos serviços de informações e da empresa disseram-me que alguns elementos da Blackwater recebiam permissões permanentes de acesso acima do nível aprovado para eles. Ao pessoal da Blackwater era concedido ingresso no Programa de Acesso Especial, usando Medidas Alternativas Compartimentalizadas de Controle (Alternative Compartmentalized Control Measures, ACCMs). “Com uma ACCM,30 o gerente de segurança pode lhe dar acesso para que você conheça programas altamente compartimentados, muito acima de “secretos”, e opere com eles — mesmo que não tenha nada a ver com isso”, disse-me uma fonte dos serviços de informações americanos. Isso permitia a membros da Blackwater que “não têm a permissão de acesso exigida, ou não têm direito a nenhuma permissão de acesso, participarem de operações sigilosas em confiança”, acrescentou a fonte. “Pense na situação como um nível superexclusivo acima de sigilo máximo. É exatamente isso o que é: um círculo de amor.” Em consequência disso, a Blackwater tinha acesso a informações de “todas as fontes”, parte delas coletadas junto a unidades do JSOC em campo. “É
assim que, no decorrer dos anos, muitas coisas foram feitas com terceirizados”, disse a fonte. “Temos terceirizados que, normalmente, veem coisas que grandes autoridades não veem, a não ser que peçam.” Segundo minha fonte, essa operação Blackwater-JSOC no Paquistão era chamada de Qatar ao Cubo, em referência à base operacional avançada dos Estados Unidos no Qatar que serviu como centro de planejamento e execução da invasão do Iraque. “Isso passa por ser o admirável mundo novo”, disse-me ele.
Essa é a Jamestown do novo milênio, e se espera que seja um ninho. Você pode saltar para o Uzbequistão, pode saltar de volta pela fronteira, pode saltar de lado, pode saltar para noroeste. Sua localização é estratégica, de modo que eles podem levar seu pessoal para onde quiserem sem ter de discutir com a cadeia de comando militar no Afeganistão, que é complicada. Eles não têm de lidar com essas coisas porque operam numa missão sigilosa.
Além de planejar ataques com drones e operações contra suspeitos de pertencerem às forças da Al-Qaeda e do Talibã para o JSOC e para a CIA, as equipes da Blackwater também ajudaram a planejar missões para o JSOC, dentro do Uzbequistão, contra o Movimento Islâmico do Uzbequistão. A Blackwater não executou diretamente as operações, que em terra couberam ao JSOC, disse-me a fonte de informações militares. “Isso despertou minha curiosidade e realmente me preocupa, porque não sei se você notou, mas nunca me disseram que estávamos em guerra com o Uzbequistão”, disse ele. “E então, será que perdi alguma coisa? Rumsfeld está de volta ao poder?” Quando morrem civis,
as pessoas dizem: “Ah, lá vai a CIA fazendo merda de novo, sem que ninguém a controle”. Bem, pelo menos em 50% do tempo, foi o JSOC [que atacou] alguém que eles identificaram por meio de Humint, ou eles próprios colheram as informações, ou elas lhes foram passadas, e aí eles acabam com essa pessoa, e é assim que a coisa funciona.
O Congresso controla as operações da CIA, mas não as operações paralelas do JSOC. “Assassinatos dirigidos não são a coisa mais popular atualmente, e a CIA sabe disso”, disse-me a fonte em 2009. “Os terceirizados e, sobretudo, o pessoal do JSOC, que atua protegido por uma missão sigilosa não são [controlados pelo Congresso], de modo que não estão nem aí. Se eles estiverem atrás de uma pessoa e houver 34 [outras] no prédio, 35 pessoas vão morrer. É essa a mentalidade.” E acrescentou: “Eles não têm de prestar contas a ninguém e sabem disso. É um segredo de polichinelo, mas o que você vai fazer, fechar o JSOC?”. Quando o presidente Obama e seu novo gabinete começaram a rever as ações e os programas secretos formulados na era Bush, viram-se diante de uma série de escolhas difíceis.
Quais deviam ser interrompidos? Quais deviam prosseguir? O labirinto do programa de ações secretas da CIA, do JSOC e da Blackwater no Paquistão era um legado das lutas internas e do clima de segredo que dominavam a comunidade de contraterrorismo americana desde o Onze de Setembro. Como senador, Obama criticou a Blackwater e apresentou projetos31 que procuravam fazer com que essa empresa e outras entidades privadas de segurança prestassem contas de suas ações. Agora, na qualidade de comandante supremo das Forças Armadas, ouviu sumários da CIA e das Forças Armadas que destacavam a necessidade de operações secretas. Expor concepções de política durante a campanha eleitoral era fácil, mas confrontar as forças de elite, as mais secretas da máquina de segurança nacional dos Estados Unidos, era outra coisa. E, de maneira geral, Obama preferiu aceitar — e não reprimir — essas forças. Quanto mais o presidente se envolveu com o dia a dia do programa de assassinatos dirigidos, mais esse programa cresceu. No fim de seu primeiro ano de governo, Obama e sua nova equipe de contraterrorismo começariam a construir a infraestrutura de um programa americano formal de assassinatos.
26. Os caras das operações especiais querem “resolver essa merda como fizeram na América Central nos anos 1980”
WASHINGTON, DC, E IÊMEN, 2009 — No dia em que Obama assinou uma resolução executiva determinando o fechamento da prisão de Guantánamo, a causa dos que se opunham a isso ganhou um impulso substancial depois que se soube que um ex-prisioneiro, libertado dentro de um programa de reabilitação apoiado pelos Estados Unidos, tinha reaparecido no Iêmen e declarado ser um líder da Al-Qaeda. Registrado em Guantánamo com o número 372,1 Said Ali al-Shihri, capturado na fronteira do Afeganistão, tinha sido um dos primeiros detidos levados para Guantánamo, em 21 de janeiro de 2002. Segundo a versão do Pentágono para os acontecimentos, Shihri tinha recebido treinamento em táticas de guerra urbana no Afeganistão e era um “facilitador itinerante da Al-Qaeda”,2 financiando combatentes. De acordo com documentos relativos à sua estada em Guantánamo, Shihri declarou que tinha viajado ao Afeganistão, depois do Onze de Setembro, para participar de operações de socorro humanitário. Por fim, em novembro de 2007, o DoD decidiu repatriar Shihri para a Arábia Saudita. Depois de terminar o programa de reabilitação, apoiado pelo governo Bush, ele desapareceu.3 Se era membro da Al-Qaeda antes de ser levado para Guantánamo, não se sabe ao certo. Mas não há dúvida sobre o que aconteceu depois de sua libertação. Em janeiro de 2009, Shihri apareceu num vídeo com outro saudita que estivera preso em Guantánamo, Aby Hareth Muhammad al-Awfi, e dois notórios membros iemenitas da AlQaeda: Nasir al-Wuhayshi e Qasim al-Rimi. Nesse vídeo, postado no YouTube no fim de janeiro, os quatro homens, vestidos com uma mistura de traje tribal e farda militar, anunciavam a formação de uma nova organização regional, a AQPA. “Por Alá,4 a prisão só fez aumentar nossa dedicação aos princípios pelos quais fomos à luta, pelos quais fizemos a jihad e pelos quais fomos presos”, declarou Shihri, que usava um keffiyeh na cabeça e exibia uma cartucheira a tiracolo. Embora o nome da AQPA fosse conhecido em certos círculos de informações, principalmente na Arábia Saudita, antes da postagem do vídeo, para grande parte do mundo a notícia representou a estreia de uma Al-Qaeda rebatizada. Não por acaso, o quarteto do vídeo era formado por dois sauditas e dois iemenitas: isso era uma declaração sobre a ilegitimidade e o conluio dos governos saudita e iemenita. A nova AQPA “transformava a Al-Qaeda no Iêmen,5 antes uma subsidiária da franquia, num organismo regional principal, que absorverá a entidade saudita, antes maior”,
segundo Barak Barfi, pesquisador da Fundação Nova América e especialista em assuntos do Oriente Médio. Para ele, Wuhayshi “e seus quadros efetivamente reconstruíram uma organização morta e tornaram-na mais forte”. Naquele mês, a Arábia Saudita divulgou uma lista das 85 pessoas mais procuradas.6 Vinte delas, de acordo com os serviços de informações sauditas, haviam aderido à AQPA no Iêmen. A Al-Qaeda voltava ao Iêmen para se vingar. Um informe do Centro Nacional de Contraterrorismo, divulgado no começo de 2009, assim terminava: “A situação de segurança no Iêmen deteriorou-se substancialmente7 no ano que passou, uma vez que a Al-Qaeda no Iêmen aumentou seus ataques contra as instituições públicas ocidentais e iemenitas”. Durante grande parte do primeiro ano da presidência de Obama, o Iêmen raramente era mencionado em público fora de um pequeno círculo de autoridades de segurança nacional e jornalistas. O governo estava focado na escalada da guerra no Afeganistão e numa redução das tropas dos Estados Unidos no Iraque. Durante o primeiro ano do governo Obama, as operações secretas de contraterrorismo foram dominadas por uma ampliação da campanha de ataques com drones no Paquistão, complementados com ações secretas ocasionais do JSOC. O presidente declarou várias vezes que a guerra dos Estados Unidos contra a Al-Qaeda tinha foco nas áreas tribais dos dois lados da fronteira entre o Afeganistão e o Paquistão. “Não creio que ainda haja alguma dúvida8 de que se desenvolveu um consórcio do terror, cujos tentáculos se estendem por toda parte”, declarou a nova secretária de Estado, Hillary Clinton, numa das primeiras vezes que compareceu ao Senado. “Sim, eles alcançam a Somália, o Iêmen, o Maghreb etc., mas têm foco e raízes na área fronteiriça entre o Paquistão e o Afeganistão.” No entanto, as autoridades de segurança nacional americanas já sabiam que quanto mais violentas eram suas ações no Paquistão, maior se tornava a probabilidade de que a Al-Qaeda conquistasse santuários em outros lugares. Em 25 de fevereiro de 2009, em depoimento ante a Comissão Permanente de Inteligência da Câmara dos Representantes, o almirante Dennis Blair, recém-nomeado diretor nacional de Inteligência, afirmou que a sede da Al-Qaeda ficava nas áreas tribais do Paquistão, mas acrescentou: “Estamos preocupados com a mobilidade deles. Parecem pasta de dente num tubo”.9 Blair disse ainda: “Uma preocupação especial é a expansão das redes da Al-Qaeda” no “norte da África e o surgimento e a intensificação da presença da Al-Qaeda no Iêmen”. O Iêmen, disse ele, “está ressurgindo como um campo de batalha jihadista”, acrescentando sem meias palavras: “Estamos preocupados com a possibilidade de extremistas americanos, criados aqui e inspirados pela ideologia militante da Al-Qaeda, planejarem ataques dentro dos Estados Unidos”. O diretor da CIA, recém-nomeado por Obama, fez eco às apreensões de Blair. “Estamos lidando com um inimigo muito persistente”,10 disse Panetta a um grupo de jornalistas que ele convidou a Langley para uma mesa-redonda.
Quando são atacados, acham meios de se reagrupar, de se instalar em outras áreas. E é por isso que estou preocupado com a Somália, é por isso que estou preocupado com o Iêmen […] por causa desse tipo de possibilidade. Por isso, não creio que possamos parar no esforço de tentar desorganizá-los. Creio que o esforço terá de ser contínuo, porque eles não vão parar.
Blair advertiu que o Iêmen e a Somália poderiam “tornar-se santuários seguros” para a AlQaeda. Durante a campanha presidencial, John McCain e outros republicanos tinham tentado convencer os eleitores de que Obama estava mal preparado para enfrentar a ameaça do terrorismo internacional. Entretanto, a partir dos primeiros dias de seu governo, o novo presidente mostrou-se, na verdade, extremamente concentrado em ampliar a guerra secreta dos Estados Unidos contra a Al-Qaeda e em expandi-la muito acima dos níveis da era Bush, em especial no Iêmen. Dois dias depois da eleição, quando McConnell, diretor nacional de Inteligência que antecedeu a Blair, fez ao presidente eleito uma exposição sobre segurança global, disse-lhe que, depois da presença da Al-Qaeda nas áreas tribais do Paquistão, “uma “ameaça imediata11 era a organização no Iêmen”. Duas semanas depois, quando Obama se encontrou com o almirante Mike Mullen, presidente do Estado-Maior Conjunto, ouviu dele que apesar das informações substanciais dos Estados Unidos sobre a ressurreição da Al-Qaeda no Iêmen, não existiam “planos adequados”12 para fazer frente a ela. Menos de um ano após a posse de Obama, uma alta autoridade da Casa Branca acusou o governo Bush de ter permitido à Al-Qaeda “se regenerar” no Iêmen e na Somália, “criando novos santuários13 que têm crescido ao longo dos anos”. No começo de 2009, o governo Obama viu-se num impasse difícil com o presidente Saleh. Obama havia feito campanha prometendo fechar Guantánamo e assinara uma resolução executiva determinando seu fechamento. Quando de sua posse, cerca de metade14 dos mais de duzentos prisioneiros em Guantánamo era formada por iemenitas. Em vista do histórico do Iêmen referente a fugas de prisões e falsos programas de reabilitação, o governo não confiava em Saleh para dar o tratamento adequado a prisioneiros que fossem repatriados. Embora os sauditas tivessem “reabilitado” Shihri só para vê-lo transformado em líder da AQPA, a Casa Branca preferia transferir os prisioneiros iemenitas para a custódia saudita. John Brennan, o principal consultor sobre contraterrorismo do presidente Obama, tornou-se seu porta-voz no trato com o Iêmen. Fluente em árabe, Brennan passara 25 anos na CIA, onde começou como analista e espião para tornar-se diretor das operações da Agência na Arábia Saudita. Em 1996, era chefe da estação da CIA em Riade quando se deu o atentado contra as Torres Khobar,15 no qual dezenove militares americanos foram mortos. Durante a maior parte do governo Bush, ele esteve no epicentro das operações de informações dos Estados Unidos e
veio a ser chefe do Centro Nacional de Contraterrorismo, rastreando informações sobre terroristas em todo o mundo. Brennan ligou-se à equipe de transição de Obama depois da eleição, ajudando a coordenar a estratégia de coleta de informações do novo governo. De início, Obama o escolhera para diretor da CIA, mas Brennan retirou seu nome quando ficou claro que declarações suas, no passado, em apoio a técnicas de “interrogatório estimulado” e a transferências de prisioneiros sem autorização judicial tornariam difícil que sua nomeação fosse confirmada. Em vez disso, Brennan teria o cargo de consultor assistente de segurança nacional para segurança interna e contraterrorismo, que não exigia confirmação pelo Senado. O cargo ganhou maiores poderes quando Obama fundiu as pastas da segurança interna e da segurança nacional e autorizou Brennan a ter acesso “direto e imediato”16 ao presidente. Em sua função como porta-voz de Obama em relação ao Iêmen, Brennan viu-se desempenhando um papel duplo: negociar acesso ao território do Iêmen para Operações Especiais e operações da CIA, assim como para treinamento de unidades iemenitas; e tratar da questão dos prisioneiros em Guantánamo. Como era de se prever, Saleh às vezes juntava as duas coisas, usando os prisioneiros como moeda de troca. Em fevereiro de 2009, depois de fazer acordos com líderes tribais, Saleh liberou 176 homens17 detidos ao longo de vários anos por suspeita de ligações com a Al-Qaeda. Em 15 de março, na histórica cidade fortificada de Shibam, no sul do país, quatro turistas sul-coreanos18 morreram num atentado a bomba enquanto posavam para fotografias perto da área designada pelas Nações Unidas como patrimônio cultural. No dia seguinte, Brennan e o diretor de contraterrorismo do NSC, John Duncan, reuniram-se com Saleh, em Sana’a, para persuadir o presidente iemenita a permitir que os Estados Unidos enviassem prisioneiros iemenitas para a Arábia Saudita. Segundo um telegrama diplomático posterior, as propostas de Brennan foram “repetidamente repelidas”.19 Saleh exigiu que os prisioneiros fossem devolvidos ao Iêmen e postos num centro de reabilitação que, por sugestão de Saleh, deveria ser custeado por americanos e sauditas. “Ofereceremos a área em Aden, e vocês e os sauditas arcam com o custeio”, disse-lhes Saleh, acrescentando que, em seu entender, 11 milhões de dólares, a título de ajuda, bastariam para a construção do centro. Brennan disse que Saleh estava “assoberbado” com a questão da Al-Qaeda e ocupado demais para dirigir esse centro. Segundo o telegrama, Saleh “mostrou-se ora desinteressado, ora enfastiado, ora impaciente durante a reunião de quarenta minutos”. Nessa reunião, Brennan entregou a Saleh uma carta do presidente Obama. A Saba, agência oficial de notícias do Iêmen, informou que a carta “tratava de cooperação entre os dois países no campo da segurança e do combate ao terror” e “louvava os esforços iemenitas20 no combate ao terror e afirmava o apoio dos Estados Unidos ao Iêmen”. Conforme um telegrama diplomático americano, a carta só se referia à situação de Guantánamo.21 Antes de deixar Sana’a, Brennan declarou a um sobrinho de Saleh, alta autoridade na área de contraterrorismo no Iêmen, que “transmitia ao presidente Obama sua decepção com o fato de [o Iêmen] mostrar-se inflexível no
trato” da questão de Guantánamo. Semanas após a reunião, Saleh afirmou à Newsweek: “Não somos soldados obedientes22 dos Estados Unidos. Não dizemos sim a tudo o que eles nos pedem”. Foi quando Brennan atuava como analista da CIA na Arábia Saudita que o coronel Patrick Lang o conheceu. “Não creio que Brennan esteja à altura de lidar com Saleh em termos de pura sagacidade e manhas”, disse-me Lang na época, acrescentando que os iemenitas “sabem como lidar conosco”.23
Enquanto Brennan e outras autoridades civis discutiam com Saleh sobre os prisioneiros de Guantánamo, o assunto estava longe de ser uma prioridade na política de contraterrorismo de Washington. O governo Obama estava absorvido pela estratégia da guerra no Afeganistão e passaria vários meses debatendo qual seria o número adicional de soldados que deveria enviar ao país e sobre como lidar com os santuários da Al-Qaeda no Paquistão. O comandante do Centcom, general Petraeus, fez todo o possível24 para que Obama desse ao general Stanley McChrystal o comando supremo da guerra no Afeganistão, pois McChrystal partilhava seu pendor para ações fulminantes e operações clandestinas. Petraeus, entrementes, fazia planos para a intensificação da ação direta dos Estados Unidos no Iêmen e em outros territórios de sua área de controle. Ainda em abril, diante da Comissão das Forças Armadas do Senado, Petraeus delineou a postura do Centcom, falando em termos gerais muito consentâneos com a visão do mundo como campo de batalha, como na era Bush.
O êxito contra as redes extremistas25 na AOR do Centcom — no Iraque, na África, no Paquistão, no Iêmen, no Líbano e em outras partes — requer todas as forças e meios à nossa disposição, empregados numa conduta estratégica fundamentada nos princípios da contrarrebelião [...]. Nossos esforços de contraterrorismo, que buscam desmantelar as redes extremistas e suas lideranças, com frequência mediante o uso de forças militares, são cruciais.
No mesmo mês de abril, Petraeus aprovou um plano,26 elaborado em conjunto pela embaixada dos Estados Unidos em Sana’a, a CIA e outros órgãos de Inteligência, que visava expandir a ação militar americana no Iêmen. Parte do plano envolvia dar treinamento em operações especiais a forças iemenitas, mas também ataques unilaterais contra a AQPA. Petraeus queixou-se do que via como a “incapacidade do governo iemenita27 para dar segurança e exercer controle em todo o seu território”, que, segundo ele, “oferece a grupos terroristas e insurgentes na região, e em especial à Al-Qaeda, um santuário onde planejar, organizar e apoiar operações terroristas”. Petraeus disse ainda, sem rodeios: “É importante que esse problema seja resolvido, e o Centcom está trabalhando nesse sentido”. Apesar da retórica sobre cooperação
entre os Estados Unidos e o Iêmen, Petraeus deixou claro que os Estados Unidos fariam ataques no Iêmen sempre que desejassem. “Quando era comandante do Centcom, estava numa posição que lhe permitia começar a aplicar essa ‘doutrina sagrada’ em outros lugares, no teatro que comandava”, recordou o coronel Lang. “E quando você está sentado em seu quartel-general, é muito fácil cogitar ideias como essa.” Lang fez uma pausa e acrescentou: “Você sabe como é: que isso seja feito, e isso é feito”. Na época, no verão de 2009, o general McChrystal tinha deixado o JSOC e servia como diretor de operações no Estado-Maior Conjunto. Embora fosse assumir em breve o posto de comandante da guerra no Afeganistão, sugeriu a Obama que mudasse a forma como o JSOC tinha sido usado no governo Bush, e empregasse a unidade como parte de forças-tarefas chefiadas por comandantes combatentes, e não como força independente. Junto com Petraeus, McChrystal procurou convencer Obama a autorizar a expansão das operações secretas contra a Al-Qaeda em uma dúzia de países no Oriente Médio, no Chifre da África e na Ásia Central. O presidente deu sinal verde ao plano. No caso do Iêmen, isso significava que as “ações diretas” ficariam sob comando de Petraeus28 e seriam executadas pelos ninjas do JSOC. Em 28 de maio, o vice-diretor da CIA, Stephen Kappes, embarcou num helicóptero da Força Aérea Iemenita29 e viajou 190 quilômetros para o sul, até a cidade de Taiz, onde foi levado a uma das residências privadas do presidente. Saleh recebeu-o vestindo camisa social branca e calça preta. Tinha um leve corte sobre o olho esquerdo, devido a um acidente que sofrera na piscina, cerca de uma semana antes, em seu palácio de Sana’a. O foco da conversa de 45 minutos foram operações contra a AQPA e o intercâmbio de informações entre o Iêmen e os Estados Unidos, mas primeiro Saleh confirmou que decidira dar apoio à transferência de alguns dos prisioneiros iemenitas de Guantánamo para a Arábia Saudita — coisa que ele garantira a Brennan que não faria. Kappes agradeceu a Saleh em nome do presidente Obama, e, a seguir, Saleh reiterou seu pedido de um centro de reabilitação no valor de 11 milhões de dólares, acrescentando que o governo Bush o prometera. Passaram então a falar da questão central para Kappes: a AQPA. Kappes disse que os Estados Unidos estavam preocupados com a possibilidade de uma tentativa de assassinato contra Saleh. O líder iemenita respondeu que também temia essa possibilidade, acrescentando que já desmontara um plano para abater um dos aviões presidenciais em sua recente visita a Áden. Quando Kappes disse ao presidente que o governo Obama estava determinado a destruir a Al-Qaeda em todo o mundo, Saleh respondeu: “Espero que essa campanha prossiga e tenha êxito. Estamos fazendo o mesmo aqui. Nossa posição é inabalável”. Para Kappes, o resultado mais importante de seu encontro foi “a decisão [de Saleh] de mudar de posição e falar da AQPA como a ameaça mais séria que o Iêmen enfrentava”. Kappes e seus assessores observaram que o foco principal de Saleh na AQPA, e não nos houthis ou nos secessionistas do sul, “tinha sido decidido quase que com certeza tendo em mente seus interlocutores [do governo dos Estados Unidos]” e “visava a obter o nível necessário de
assistência política, econômica e militar para protelar o colapso do Iêmen, bem como as consequências negativas que isso traria para a estabilidade e a segurança da região”. Durante a reunião com Saleh, Kappes também destacou que, no norte, os houthis estavam sendo apoiados pelo Irã e pelo Hezbollah. Sem que Kappes soubesse, Saleh estava preparando o caminho para outra ofensiva no norte. Os dois homens concordaram que a cooperação na área das informações estava avançando bem e só poderia tornar-se mais forte.
Em 1o de junho de 2009, Abdulhakim Mujahid Muhammad, cidadão americano, passou de carro diante do centro de recrutamento militar30 em Little Rock, no Arkansas, e disparou. Matou o soldado raso William Long e feriu o cabo Quinton Ezeagwula, que estavam na rua. Nascido Carlos Bledsoe, Muhammad, convertido ao Islã, viajara em 2007 ao Iêmen, onde se casou e permaneceu por um ano e meio. Foi preso por autoridades locais depois de ser parado num posto de controle portando um passaporte somaliano falso, manuais de armas e publicações de Anwar Awlaki.31 Muhammad passou quatro meses numa prisão, onde, de acordo com seu advogado, foi torturado por agentes de segurança iemenitas e transformado num radical por outros presos. “Se você um dia sair deste lugar desgraçado,32 vamos caçá-lo até o dia de sua morte”, teria dito a ele um agente do FBI durante a visita que lhe fez na prisão iemenita, segundo seu advogado. Por fim, o governo dos Estados Unidos persuadiu o do Iêmen a deportá-lo para seu país. Em solo americano, a Força-tarefa Conjunta de Terrorismo, do FBI, investigou-o33 mas não o pôs sob custódia. Muhammad declarou aos policiais que o interrogaram34 que tinha sido motivado pelas guerras dos Estados Unidos no Iraque e no Afeganistão. Após o tiroteio no Arkansas, enquanto seu advogado preparava a defesa, Muhammad enviou uma carta manuscrita ao juiz do processo, em que proclamava sua intenção de se declarar culpado. Explicou que os tiros tinham sido “um ataque jihadista35 contra forças infiéis”, afirmou sua fidelidade a Wuhayshi e à AQPA e disse: “Eu não estava louco, nem passava por pós-trauma, nem fui forçado àquela ação, na qual acredito e que é justificada pelas leis islâmicas e pela jihad da religião do Islã: combater aqueles que travam guerra contra o Islã e os muçulmanos”. Talvez nunca venhamos a saber se Muhammad realmente tinha vínculos com a AQPA. Seu pai aventou a hipótese de lavagem cerebral e de que o filho “pudesse estar tentando mostrar-se ligado36 à AlQaeda por acreditar que isso o levaria à execução e a se tornar um mártir”. Se aquele tiroteio foi um ataque da AQPA ou não é uma questão que em breve se tornaria irrelevante, ainda que, como outros incidentes sangrentos, tenha contribuído para a percepção de que o grupo estava determinado a atacar nos Estados Unidos. Pouco tempo depois dos tiros contra o centro de recrutamento, o ex-vice-presidente Dick Cheney fez uma contundente denúncia pública contra as políticas de contraterrorismo do presidente Obama. Discursando no Instituto Americano de Empreendedorismo, entidade
neoconservadora, Cheney atacou a interrupção formal das técnicas de “interrogatório estimulado” e comemorou a decisão do Congresso que cortou a verba destinada por Obama à transferência dos presos de Guantánamo para solo americano, manobra que bloqueou o fechamento da prisão. Cheney classificou as políticas de contraterrorismo de Obama, em especial a proscrição da tortura, como “irresponsabilidade travestida de moralismo”,37 anunciando que essas políticas “diminuiriam a segurança dos americanos”. Enquanto Cheney atacava em público, o governo Obama, nos bastidores, se preparava para lançar uma campanha de contraterrorismo muito maior e mais sofisticada do que a travada por Cheney e seu ex-chefe, sobretudo no que dizia respeito ao Iêmen, com base na polêmica doutrina Bush, segundo a qual o mundo é um campo de batalha. Obama tinha “duplicado a política de Bush”,38 disse Joshua Foust, que trabalhou como analista de assuntos iemenitas para a DIA na primeira metade do governo Obama. Logo depois de deixar a DIA, no começo de 2011, Foust me disse que a postura de Obama em relação ao Iêmen era “fortemente militarizada, fortemente focada em neutralizar diretamente a ameaça, em vez de drenar o pântano”. Desde o começo, os homens encarregados de “neutralizar a ameaça” eram, na verdade, dois dos principais atores da equipe de guerra do governo Bush. Enquanto o general McChrystal coordenava a escalada no Afeganistão e no Paquistão, o general Petraeus supervisionaria as “guerras pequenas” em outras áreas do Centcom, principalmente no Iêmen, em coordenação com o sucessor de McChrystal no JSOC, o almirante McRaven. Na estrutura da Força-tarefa, o JSOC constituía a força principal para ações secretas no Iêmen. Para muitos quadros operacionais do JSOC, o Iêmen parecia mais adequado a suas qualificações do que o Afeganistão, onde a AlQaeda tinha sido em grande medida obliterada ou posta em fuga. “Esses caras são bisturis.39 Eles não gostam de ser usados como marretas e postos para perseguir pastores de cabras do Talibã. No Iêmen, poderiam voltar a ser bisturis, extirpando a Al-Qaeda.” Foust acrescentou que os caras das Operações Especiais “querem resolver essa merda como fizeram na América Central nos anos 1980. Não querem nem saber de perfumaria, contrainsurreição e ‘construção nacional’”. Depois da visita de Kappes a Saleh, em maio, como parte do projeto para o Iêmen que envolvia a CIA, as Forças Armadas, o JSOC e o Departamento de Estado, Hillary Clinton autorizou o embaixador dos Estados Unidos no Iêmen, Stephen Seche, a negociar com Saleh a autorização para que os americanos utilizassem à vontade drones e helicópteros40 sobre águas territoriais iemenitas. Seche foi instruído com todas as letras a não pôr nada no papel e só discutir a proposta pessoalmente. O motivo oficial que daria a Saleh para pedir esses direitos de sobrevoo era que o Centcom precisava dar acesso a seus drones para “impedir o contrabando de armas para Gaza”. Um dos argumentos que usaria junto era um dado dos serviços de informações americanos, segundo os quais um “volume significativo de embarques de armas para o Hamas, do Iêmen ao Sudão, atravessa o mar Vermelho em apenas 24 horas”. Outro argumento dizia que os Estados Unidos tinham descoberto “uma rede de contrabando originária
do Iêmen que estava entregando armas a várias organizações no país, provavelmente incluindo grupos terroristas associados à Al-Qaeda”. A cooperação do Iêmen em relação aos drones e helicópteros “aumentaria em muito a capacidade do Centcom para coletar as informações necessárias para identificar e rastrear” os embarques. Ainda que o objetivo dos Estados Unidos ao solicitar essa autorização pudesse realmente ser, até certo ponto, o combate ao contrabando de armas, a época em que foi feito o pedido leva a crer que havia outro motivo, mantido em segredo. O general Petraeus foi ao Iêmen, em 26 de julho de 2009, para continuar preparando o terreno41 para o plano conjunto da CIA e das Forças Armadas de ampliar a campanha contra a AQPA. O general levou um presente para Saleh — a confirmação oficial de que Obama estava aumentando a ajuda militar ao Iêmen. Tanto para Saleh quanto para os Estados Unidos, era importante que o Iêmen demonstrasse estar combatendo a AQPA por sua própria conta e ocultasse a importância do envolvimento americano, que não cessava de aumentar. Uma semana depois do encontro com Petraeus, Saleh mandou o sobrinho,42 Ammar Muhammad Abdullah Saleh, alto comandante do Bureau de Segurança Nacional, para Marib, um viveiro de atividade da Al-Qaeda. Sua missão seria acabar com uma suposta célula da organização por meio de uma operação destinada a mostrar a Washington que Saleh estava agindo com seriedade. Foi um desastre. Apesar das negociações de Ammar com líderes tribais locais sobre as condições do ataque, as unidades iemenitas de contraterrorismo se saíram muito mal. Em vez de disparar contra o esconderijo da Al-Qaeda, atacaram uma área tribal, provocando uma batalha de artilharia em que os combatentes tribais na verdade se uniram à AQPA no revide às forças do governo. Um caminhão de suprimentos militares se perdeu e foi capturado por membros da Al-Qaeda. Por fim, as forças de Saleh perderam cinco tanques e vários soldados, enquanto sete outros foram aprisionados. A AQPA não perdeu tempo para tirar proveito do fiasco, chamando-o de “Batalha de Marib” e postando um vídeo43 que mostrava os soldados capturados. Embora a operação tivesse sido uma catástrofe, foi útil para os Estados Unidos e para Saleh, por mostrar publicamente que o governo iemenita vinha combatendo a AQPA, ajudando assim a acobertar as ações americanas no Iêmen. Em 10 de agosto, numa reunião com militares americanos, perguntaram ao almirante Mullen “em quais regiões, nós, das Forças Armadas, podemos esperar que tenhamos de nos concentrar não no ano que vem, ou daqui a dois anos, mas daqui a cinco ou dez anos”. Ele respondeu: “O que eu vi a Al-Qaeda fazer nos últimos cinco ou seis anos foi confederar-se”, acrescentando: “Preocupa-me que estejam sendo criados santuários44 no Iêmen e na Somália, por exemplo. Não é diferente do que tinham no Afeganistão quando isso começou, em 2001”. Mullen mencionou também o norte da África, as Filipinas e a Indonésia. “É uma rede que está crescendo”, disse. O governo Obama elevou o número de treinadores das Forças de Operações Especiais dos Estados Unidos no Iêmen. “Eles [os iemenitas] receberam treinamento gratuito,45 dado pela elite da elite das Forças Armadas dos Estados Unidos — os melhores dentre os melhores”, disse
me o ex-assessor de um comandante de Operações Especiais. “Os rapazes da missão ‘Assessoria e Assistência’, integrada principalmente pelo DEVGRU. O trabalho deles consiste em ensinar você a explodir merdas, pilotar helicópteros e fazer ataques noturnos, e eles são ótimos nisso.” Enquanto o treinamento se expandia, também aumentavam as operações do JSOC — unilaterais, secretas e letais.
27. Suicídio ou martírio?
IÊMEN, 2009 — Enquanto o presidente Obama se instalava no Salão Oval, Anwar Awlaki ocupava-se com a construção de seu site e a divulgação de sua mensagem. Postou em seu blog um ensaio intitulado “Suicídio ou martírio?”. Embora dissimulado de debate religioso — o Islã julgava o suicídio um pecado mortal ou não? —, o texto era, em última análise, uma defesa dos atentados suicidas. “Hoje em dia o mundo fica espantado1 quando um muçulmano executa uma operação de martírio. Podem imaginar o que aconteceria se isso fosse feito por setecentos muçulmanos num só dia?”, perguntava Awlaki. “Irmãos e irmãs, quer você concordem, quer não concordem com as operações de martírio, deixemos nossas divergências para trás e apoiemos nossos irmãos muçulmanos que estão nas linhas de frente. Da mesma forma como discordamos em muitas outras coisas, não devemos permitir que essas discórdias prejudiquem a solidariedade que devemos ter perante nossos inimigos.” Poucas semanas antes de publicar esse ensaio, Awlaki postara links para um de seus textos mais lidos, “44 formas de apoiar a jihad”. Em fevereiro, tinha disponibilizado links para que seus seguidores baixassem, gratuitamente, muitas de suas palestras mais apreciadas. A cada postagem nova em seu blog, Awlaki dava uma banana para as autoridades americanas que tinham tentado silenciá-lo e sepultá-lo numa masmorra iemenita. Ali estava Awlaki, atuando on-line à vista de todos, incentivando os muçulmanos a lutar contra os incréus e rotulando os Estados Unidos e seus aliados de “flagelo” e de “os maiores terroristas de todos”.2 Em março de 2009, Awlaki dirigiu-se, pela internet, a uma conferência religiosa no Paquistão. “Estou lhes falando, neste momento, do Iêmen,3 e há certas semelhanças entre o Iêmen e o Paquistão, de modo que quando falo de um, é como falar do outro”, disse Awlaki aos conferencistas, com a voz alterada pelos efeitos da digitalização. “Ambos os países são parceiros importantes dos Estados Unidos na guerra contra o terror. Ambos abriram mão de sua soberania em favor dos Estados Unidos, ao aceitar ataques com drones dentro de seu território.” Ambos tinham “sido usados como postos de abastecimento para a guerra dos Estados Unidos contra os muçulmanos. E ambos são governados por patifes”. Awlaki disse que desejava falar francamente com sua plateia porque “dourar a pílula não vai trazer benefício a ninguém. Assim, se desejamos mudar nossa situação, precisamos realmente nos sentar, refletir e decidir qual é a doença, quais são os sintomas e como curá-la”.
Em sua alocução, ele apelou a todos os muçulmanos aptos que aderissem à jihad contra os Estados Unidos no Afeganistão, no Iraque e em outros países, e recomendou aos que não pudessem combater que fizessem donativos em dinheiro para as causas. Estamos amealhando bens materiais, e deixamos a jihad na trilha de Alá. É por isso que estamos sendo humilhados agora. E essa humilhação não vai acabar”, disse ele. Os Estados Unidos e seus aliados dependem de
poderio — de seus aviões poderosos, de seus porta-aviões nos oceanos, de seus soldados com armamentos de alta tecnologia e de seus mísseis avançados. Isso é poderio. Como, então, conteremos o poderio deles? Será com negociações? Será desistindo? Será nos rendendo? Será nos dobrando diante deles? [...] Irmãos e irmãs, se não lutarmos hoje, quando lutaremos? A terra dos muçulmanos está ocupada, a opressão é geral, as leis do Alcorão são postas de lado. Que outra época é melhor para a jihad do que hoje?
Nasser Awlaki estava ficando preocupado com o filho. Tudo o que o velho Awlaki escutava de seus amigos e colegas no governo iemenita era sinistro. Altas autoridades de informações vinham avisá-lo de que os americanos pretendiam matar Anwar. Falavam de drones que poderiam atacá-lo no interior de Shabwah, onde estava morando. O presidente Saleh telefonou pessoalmente para Nasser e lhe suplicou que convencesse Awlaki a voltar para Sana’a. “No momento em que o presidente me ligava,4 o Ministério do Interior e os órgãos de segurança emitiram uma ordem para que ele fosse capturado”, disse-me Nasser. “E o governador de Shabwah me telefonou e disse: ‘Ouça, temos uma ordem do Ministério do Interior e dos órgãos de segurança para capturar seu filho’.” Isso não pegou Anwar de surpresa. Na aldeia de sua família, em Shabwah, ele estava morando na casa de barro de quatro andares de seu avô, gravando sermões e escrevendo em seu blog. Logo depois de sua chegada, forças de segurança iemenitas começaram a posicionar veículos5 e armas no wadi (rio seco) que passava diante da casa. Anwar contou ao pai que eles apontavam armas automáticas para a casa, tentando intimidá-lo. “Veja, meu filho, não quero que você seja vítima de assédio, porque ou vai matar alguém ou alguém vai matá-lo”, disse Nasser num telefonema. “Por isso, por favor, fique calmo. Não importa o que fizerem, fique calmo, por favor.” Nasser temia que, se as forças iemenitas tentassem prender Anwar, começasse um tiroteio entre a tribo aulaq e as forças de segurança iemenitas. Em maio de 2009, a pedido do presidente Saleh, Nasser e a mulher viajaram a Shabwah para visitar Anwar e pedir-lhe que voltasse com eles para Sana’a. “É isso que o presidente quer”,6 disse Nasser ao filho. “Ele está sendo pressionado pelos americanos.” Falaram sobre a ordem de prisão. “O senhor é meu pai”, disse Anwar. “Como pode me levar para Sana’a se essas pessoas querem me meter na prisão? Como pode ter certeza, pai, de que os americanos não farão
alguma coisa contra mim?” Nasser disse ao filho que não podia lhe dar garantias, mas que acreditava que a volta para Sana’a fosse a medida mais segura. Anwar não quis ceder. “Não permitirei que os americanos7 me digam em que posição pôr a minha cama”, respondeu. “Foi uma discussão acalorada”,8 contou-me Nasser depois. “E isso foi triste para mim, pois foi a última vez que conversei com ele, e não nos despedimos em termos muito amigáveis.” Saleh bin Fareed conversou com Anwar e concluiu que seu sobrinho não estava causando nenhum mal em Shabwah, uma província rural. Na verdade, achava que Anwar teria menos problemas ali. Bin Fareed ligou para o diretor do Serviço de Informações do Iêmen, general Galib al-Qamish. “Acho que vocês e os americanos9 estão errados”, disse ao general. Anwar “está lá, numa aldeia que tem de mil a 2 mil habitantes. Já que vocês pensam que ele é perigoso, em Sana’a vai estar perto de 2 milhões de pessoas. É melhor deixá-lo lá.” Qamish suspirou. “Não é isso o que os americanos querem.” Por que aquela obsessão dos americanos com Anwar era uma coisa que não estava clara para Fareed. Como podia um pregador, nos cafundós do Iêmen, representar uma ameaça para o país mais poderoso do mundo? Anwar não se importava com o que os americanos queriam. Quando seus pais voltaram para Sana’a, começou a planejar o que faria em seguida. Para ele, sua família agira como intermediária para o governo iemenita, que o queria preso. Eram os americanos que vinham dando as ordens. Sabiam onde ele estava, e seus drones poderiam achá-lo. Ele não tinha alternativa: ou se rendia ou entrava para a clandestinidade. Sua mulher e seus filhos ficariam em Sana’a, sob os cuidados dos pais dele. Anwar estava sendo escorraçado, e por fim procurou o companheirismo e a proteção de outros proscritos que estavam sendo caçados no Iêmen. “De que me acusam?10 De dizer a verdade? De defender a jihad por amor a Alá, e em favor das causas da nação islâmica?”, perguntava Awlaki. “O mesmo vale para os americanos. Não tenho a mínima intenção de me entregar a eles. Se me querem, que me procurem.”
Nidal Hasan, o psiquiatra do Exército americano, continuava a escrever a Anwar Awlaki, embora seus e-mails não fossem respondidos. Fazia perguntas sobre teologia e sobre a luta do Hamas contra o governo israelense, indagando, entre outras coisas, “é lícito disparar foguetes contra Israel?”.11 Depois de alguns longos e-mails, Hasan mudou de atitude e começou a perguntar a Awlaki como poderia doar dinheiro para suas causas. Sugeriu que Awlaki lhe desse um endereço para o qual pudessem ser remetidas ordens de pagamento ou cheques, em vez de usarem serviços on-line. “Isso poderá garantir privacidade12 para as partes envolvidas”, escreveu Hasan. No mesmo dia, ele voltou a lhe escrever. “Uma bolsa no valor de 5 mil dólares13 está sendo concedida ao melhor ensaio intitulado ‘Por que Anwar Awlaki é um grande líder e ativista’. Ficaríamos honrados se o senhor entregasse o prêmio.” Hasan acrescentou um P.S.: “Nós nos conhecemos rapidamente, há muito tempo, quando o senhor era o imã em Daral-Hijra. Não creio que o senhor se lembre de mim. Seja como for, depois disso eu me formei em
medicina e terminei a residência”. Awlaki finalmente respondeu. “Rezo para que você receba esta mensagem14 em bom estado de emaan [saúde]”, escreveu ele a Hasan.
Jazakum Allahu khairan [Que Alá o recompense com benevolência] por pensar bem de mim. Eu não viajo, de modo que não poderei entregar fisicamente o prêmio, e, de qualquer forma, me sinto demasiado “embaraçado”, na falta de uma palavra melhor, para entregá-lo. Que Alá o ajude em seus esforços.
Awlaki não deu nenhum indício de que tivesse de Hasan a mais remota lembrança. Hasan escreveu-lhe de novo, voltou a oferecer dinheiro e acrescentou um pós-escrito, dizendo que estava “procurando uma esposa15 que se disponha a se esforçar junto de mim para agradar a Alá […]. Considerarei seriamente uma recomendação que venha do senhor”. Awlaki respondeu:
Obrigado pela oferta de ajuda.16 Ela é necessária, mas simplesmente não sei como se fazem essas coisas. Existem pobres, órfãos, viúvas, projetos de dawa [proselitismo em nome do Islã] e a lista é enorme. Assim, se você sabe como fazer chegar a ajuda de acordo com a lei e num ambiente que, para começar, seja sério, por favor me diga. Fale-me mais de você. Ficarei de olho, em busca de uma irmã.
Enviado em 22 de fevereiro de 2009, esse foi o último e-mail que se sabe ter sido mandado por Awlaki a Hasan. Durante vários meses, Hasan continuou a enviar e-mails a Awlaki. “Sei que o senhor é um homem ocupado.17 Por favor, mantenha meu nome em sua lista de endereços para o caso de eu poder lhe prestar algum serviço e sinta-se à vontade para me telefonar a cobrar”, escreveu Hasan. Daí em diante, as comunicações se tornaram uma via de mão única. O tom das mensagens de Hasan tornou-se o de um paciente em psicoterapia tentando tomar decisões difíceis. Num e-mail de maio de 2009, ele pontificou sobre a moralidade dos atentados suicidas e levantou
a questão do “dano colateral”18 em que se toma a decisão de permitir a morte de inocentes em troca de um alvo valioso. O Alcorão afirma que uma pessoa deve lutar com seus inimigos quando eles a atacam, mas sem exagerar. Por isso, eu diria que é aceitável o caso do homembomba cujo objetivo consiste em matar soldados inimigos ou aqueles que os ajudam, mas que no processo também mata inocentes. Ademais, se os soldados inimigos estão usando táticas antiéticas ou inescrupulosas, então as mesmas táticas podem ser usadas.
Hasan encerrou sua mensagem dizendo a Awlaki: “Sentimos falta de mensagens suas!”.
O blog de Awlaki se tornara muito menos ativo do que fora em 2008. Com os governos dos Estados Unidos e do Iêmen em seu encalço, ele tinha questões mais prementes a resolver. Começou a se mudar de um lugar para outro nas áreas tribais de sua família, ao mesmo tempo que levava uma vida bem discreta. Quando tinha acesso à internet, postava um ou dois ensaios. Enquanto Awlaki se preparava para uma vida na clandestinidade, o governo Obama aumentava a pressão sobre o governo do Iêmen para que caçasse militantes ligados a Al-Qaeda no país. Em 1o de agosto de 2009, Awlaki postou uma análise das batalhas entre o governo iemenita e “os mujahedin” em Marib, em que disse: “O primeiro combate frente a frente19 entre o Exército e os mujahedin terminou numa vitória retumbante para estes últimos. Que Alá os abençoe com novos triunfos. O Exército bateu em retirada depois de pedir uma trégua aos mujahedin”. O texto assim concluía: “Oxalá isto seja o começo da máxima jihad, a jihad da Península Arábica, que libertaria o cerne do mundo islâmico dos tiranos que estão enganando a Ummah e colocando-se entre nós e a vitória”. Para Awlaki, a jihad, pela qual propugnara em discursos durante muitos anos, estava se tornando realidade. Em seu entender, a guerra estava começando agora no Iêmen, e ele teria de decidir se o blog era mais forte que a espada. Em 7 de outubro, Awlaki voltou a aparecer, com um ensaio intitulado “Poderá o Iêmen ser a próxima surpresa da temporada?”,20 em que escreveu:
O povo americano deu a George W. Bush apoio unânime para lutar contra os mujahedin e lhe deu um cheque em branco para gastar o quanto fosse necessário para cumprir aquele objetivo. O resultado? Ele fracassou, horrivelmente. E se os Estados Unidos não conseguiram derrotar os mujahedin quando deram a seu presidente apoio ilimitado, como poderão vencer com Obama, que está com rédea curta? Se os Estados Unidos não lograram vencer quando estavam no pináculo de seu poder econômico, como poderão vencer agora, em meio a uma recessão — senão uma depressão? A resposta é simples: os Estados Unidos não podem vencer e não vencerão. As posições se inverteram, e não há como conter o movimento mundial da jihad. As ideias de jihad proliferam em todo o mundo, os movimentos dos mujahedin ganham força e os campos de batalha estão se expandindo, com os mujahedin abrindo novas frentes… A jihad desta era começou na Palestina, seguindo para o Afeganistão, a Tchetchênia, o Iraque, o Magreb, e a nova frente bem pode tornar-se o Iêmen. E quando essa nova frente da jihad se abrir no Iêmen, ela poderá se tornar a mais importante do mundo […]. A Península Arábica sempre foi uma terra de mujahedin, ainda que nenhum combate tenha ocorrido em seu solo. No Afeganistão, na Bósnia, na Tchetchênia e no Iraque, a participação de mujahedin da Península Arábica representou o maior bloco de combatentes estrangeiros. Quando a jihad começar na Península Arábica, ela estará retornando à sua origem […]. Na Península Arábica ficam Meca e Medina [as cidades santas do Islã]. Libertar os lugares santos do domínio da apostasia e da tirania é libertar o coração do Islã […].
Os Estados Unidos e seus aliados na área estão conspirando contra os mujahedin, mas o número deles aumenta dia a dia. Queira Alá conceder a vitória aos verdadeiros crentes e lhes dar também firmeza para trilhar o Seu caminho.
Por casualidade ou desígnio, Anwar Awlaki viu-se na clandestinidade justamente quando a Al-Qaeda no Iêmen estava se tornando uma força real, com seu núcleo em Shabwah e Abyan, as áreas tribais aulaq. Fahd al-Quso, que ainda era caçado pelos Estados Unidos por sua participação no atentado contra o USS Cole, era membro da tribo de Awlaki, como várias outras figuras importantes da Al-Qaeda na Península Arábica. Muitos iemenitas tinham participado da jihad em outras partes do mundo, como observou Awlaki, mas agora o Iêmen assistiria à ascensão de uma afiliada da organização dentro de suas próprias fronteiras. “Em 2001 ou 2002,21 a Al-Qaeda não tinha mais de dez ou vinte pessoas no Iêmen, e não era uma organização”, disse-me Abdul Rezzaq, repórter iemenita independente que entrevistou muitos membros fundadores da AQPA. “Ela só veio a ter uma estrutura em 2009.” Na época da formação da AQPA, Awlaki julgou ser seu dever apoiar os irmãos jihadistas na luta contra o regime iemenita; achava também que em breve os americanos lançariam uma guerra contra eles. “Vivi nos Estados Unidos 21 anos.22 Era a minha pátria”, declarou Awlaki mais tarde.
Fui um pregador do Islã e me envolvi no ativismo islâmico não violento. Entretanto, com a invasão americana do Iraque e a contínua agressão dos Estados Unidos aos muçulmanos, não pude conciliar minha vida lá com o fato de ser muçulmano […] e cheguei à conclusão de que a jihad contra os Estados Unidos é compulsória para mim, da mesma forma que para todos os demais muçulmanos aptos.
Fazia muito tempo que o governo americano via em Awlaki um estorvo, e a comunidade americana de contraterrorismo o queria calado. Com a ascensão da AQPA no Iêmen, Awlaki passou a ser tido como uma ameaça cada vez mais ativa. O que ocorreu nos dois últimos meses de 2009 selaria a sorte dele. As próprias palavras de Awlaki também cruzaram uma linha essa época, já que ele passou a dar seu endosso, poderoso, a atos específicos de terrorismo contra alvos americanos. Passado menos de um ano da posse do presidente Obama, o Iêmen seria alçado ao topo da lista de áreas conturbadas no radar do contraterrorismo americano, e Awlaki se tornaria uma figura destacada, a ponto de ser comparado a Osama bin Laden por altas autoridades dos Estados Unidos e classificado como uma das maiores ameaças terroristas que o país enfrentava.
28. Obama abraça o JSOC
SOMÁLIA, COMEÇO DE 2009 — No primeiro ano do governo Obama, grande parte da atenção da política externa americana centrou-se no Afeganistão e na promessa do presidente de intensificar a guerra nesse país. Apesar de estimativas segundo as quais restavam lá menos de cem membros1 da Al-Qaeda, Obama cogitava um forte aumento no número de soldados americanos para dar continuidade à intervenção que ele chamara de “guerra justa” na campanha. Todavia, embora o Afeganistão fosse o maior espinho internacional para o governo, a Al-Qaeda vinha elevando bastante o número de seus militantes no Chifre da África e na Península Arábica. Dizimada a União das Cortes Islâmicas, a Al-Shabab tornara-se o principal grupo armado na Somália, controlando territórios em Mogadíscio e outras áreas. Os Estados Unidos e seus prepostos da União Africana estavam apoiando um fraco governo de transição, chefiado pelo xeque Sharif, ex-presidente da UCI. Em maio de 2009, a luta entre o governo de Sharif e grupos ligados à Al-Shabab tornou-se tão intensa na capital que as Nações Unidas acusaram a organização de tentar “tomar o poder à força” numa “tentativa de golpe”.2 Por volta dessa época, a Al-Shabab divulgou dois vídeos muito bem produzidos3 em que aparecia um jovem americano barbado chamado Omar Hammami. Ex-aluno da Universidade do Sul do Alabama, ele se declarava membro da Al-Shabab e exortava outros muçulmanos ocidentais a se juntar a ele no campo de batalha da Somália. Hammami — o sobrenome vinha de seu pai, imigrante sírio4 — tinha sido criado como um americano comum no sul, jogava futebol e namorava. Sendo cristão, durante o ensino médio converteu-se ao islamismo. Depois disso, deixou a faculdade, casou-se com uma somaliana e tornou-se pai. Hammami começara a se radicalizar, falando em aderir à jihad e frequentando fóruns islâmicos na web. Em 2006, viajou ao Egito, onde conheceu Daniel Maldonado, outro cidadão americano, com quem tivera contato por meio de salas de bate-papo pela internet. Persuadido por Maldonado a viajar para a Somália e ver pessoalmente a revolução islâmica, Hammami embarcou para Mogadíscio, onde se hospedou primeiro com a avó de sua mulher. Em dezembro, às vésperas da invasão etíope, Hammami e Maldonado estavam ligados à Al-Shabab. “Achar aqueles caras caso conseguisse ficar na Somália se tornou minha meta”,5 declarou Hammami, dizendo que “tinha se declarado disposto a receber treinamento”.
Maldonado acabou sendo capturado por “uma equipe multinacional de contraterrorismo”6 na fronteira entre o Quênia e a Somália. Extraditado para os Estados Unidos, foi indiciado por terrorismo no começo de 2007 num tribunal federal.7 Hammami, porém, evitou a captura e continuou nas fileiras da Al-Shabab. Segundo autoridades americanas de contraterrorismo, atraiu a atenção de Fazul e Nabhan,8 líderes da Al-Qaeda, sobretudo devido à sua cidadania americana. No fim de 2007, um ano depois de ter chegado à Somália, Hammami apareceu na AlJazeera, com um keffiyeh cobrindo parte do rosto, explicando por que aderira à Al-Shabab. “Muçulmanos dos Estados Unidos,9 levem em consideração a situação na Somália”, exortou, usando seu pseudônimo, Abu Mansoor al-Amriki, ou o americano. “Após quinze anos de caos e domínio opressivo por parte de milícias apoiadas pelos Estados Unidos, seus irmãos se levantaram e instauraram a paz e a justiça nesta terra.” Hammami tornou-se o mais destacado recrutador de jovens muçulmanos ocidentais pela internet. Aproximou-se mais de Nabhan e Fazul, e, por fim, passou a ser um dos principais quadros operacionais estrangeiros da Al-Shabab. A essa altura, autoridades somalianas estimavam que mais de 450 combatentes estrangeiros10 tinham entrado na Somália para aderir à luta da Al-Shabab. “A única razão11 pela qual estamos aqui, longe de nossa família, longe das cidades, longe de […] vocês sabem […] cubos de gelo, barras de cereais, todas essas coisas é porque estamos esperando para enfrentar o inimigo”, disse Hammami no primeiro vídeo que a organização divulgou sobre ele, que estava numa área arborizada usando uma farda de camuflagem e um keffiyeh. “Se vocês puderem incentivar12 seus filhos, seus vizinhos e qualquer pessoa conhecida a mandar mais gente […] para esta jihad, seria uma grande ajuda para nós.” No vídeo de Hammami, outro anglófono — este mascarado e segurando um AK-47 — apela a outros jovens ocidentais a se juntar à Al-Shabab: “Estamos chamando todos os irmãos13 de alémmar, todos os shabab, onde quer que estejam, para que venham viver a vida dos mujahedin. Eles verão com seus próprios olhos, e gostarão do que virem”. Em outros vídeos, Hammami aparece com líderes da Al-Shabab,14 examinando mapas e ajudando a planejar operações. Em 2008, outro americano, Shirwa Ahmed,15 morreu num ataque suicida no norte da Somália, tornando-se o primeiro homem-bomba americano de que se tem notícia a praticar um atentado na Somália. Não seria o último. O número cada vez maior de muçulmanos americanos que viajaram ao Chifre da África para se juntar à Al-Shabab ganhava destaque nas avaliações sobre a ameaça representada pela Somália que esperavam por Barack Obama depois que ele ganhou a eleição, em novembro de 2008. Obama pouco falara sobre aquele país durante a campanha, embora se referisse indiretamente ao crescente imperativo de segurança nacional na África. Haveria, disse, “situações em que os Estados Unidos teriam de atuar com seus parceiros na África para combater o terrorismo com força letal”.16
Quando o presidente Obama tomou posse, a Somália estava se tornando uma preocupação cada vez maior para a comunidade americana de contraterrorismo. Quando as Cortes Islâmicas assumiram o poder, em 2006, a Al-Shabab era uma milícia pouco conhecida na periferia do movimento, com pouca participação de clãs. Seus militantes estrangeiros, em especial Fazul e Nabhan, eram perigosos, com comprovada capacidade de planejar e executar grandes ataques. Mas eles não estavam em posição de conquistar a Somália ou tomar uma parcela substancial do território. Agora, porém, em boa medida como reação à política dos Estados Unidos, as fileiras da Al-Shabab cresciam e os territórios por ela controlados se ampliavam. Sharif Sheikh Ahmed assumiu oficialmente a presidência da Somália no mesmo mês da posse de Obama, porém mal podia afirmar ser o prefeito de Mogadíscio. Governava, frouxamente, uma fatia do território da capital — com a autoridade de um vereador cercado de inimigos bem mais poderosos que queriam matá-lo. “A ideia de que a Somália não passa de um Estado fracassado,17 em algum lugar perdido, onde as pessoas lutam entre si sabe Deus por que razão, é um constructo que adotamos por nossa conta e risco”, declarou Hillary Clinton na sessão em que o Senado confirmou seu nome como secretária de Estado. “O conflito interno no seio dos grupos somalianos é tão intenso quanto sempre foi, só que agora a ele se soma o ingrediente da Al-Qaeda e de terroristas que procuram tirar vantagem do caos.” O governo Obama aumentou o financiamento e os embarques de armas18 para a Missão União Africana na Somália, a força de manutenção da paz conhecida como Amison. As Forças Armadas de Uganda, apoiadas pelo Burundi, assumiram o comando da situação onde os etíopes o tinham deixado, e começaram a expandir sua base militar próxima ao aeroporto internacional de Mogadíscio. A essa altura, a Al-Shabab tinha cercado as forças do governo somaliano e da União Africana no aeroporto e na sede do governo somaliano, semelhante a uma Zona Verde, conhecido como Villa Somalia. As forças da Al-Shabab eram mais bem pagas19 que o Exército somaliano, e estavam muito mais dispostas a morrer do que os soldados da Amison, que não tinham nenhum interesse pessoal no conflito. Em fevereiro de 2009, quadros operacionais da AlShabab executaram ataques suicidas20 que mataram onze soldados do Burundi. A base da Amison passou a ser alvo de constantes ataques com morteiros, e seus comandantes admitiram que o bombardeio estava atingindo um “nível sem precedentes”.21 Um ataque de retaliação contra a Al-Shabab provocou uma troca de fogo que deixou quinze mortos em Mogadíscio e mais de sessenta feridos, muitos devido a um morteiro perdido que explodiu numa área civil. O New York Times disse que os combates tinham sido “os mais violentos de seu gênero22 desde que as tropas etíopes se retiraram da Somália”. Alguns meses depois da posse de Obama, altas autoridades tinham começado a debater sobre ataques militares contra acampamentos da Al-Shabab, apesar de não existir ameaça concreta fora da Somália. O Washington Post noticiou uma cisão entre autoridades do DoD, que criticavam o que entendiam como uma “ausência de ação”, e funcionários civis reticentes,
fortemente impactados pelas desastrosas políticas de Bush nos anos anteriores. O governo Obama está “caminhando devagar,23 e para os atores permanentes, a frustração continua a crescer”, disse um funcionário do governo. “É crescente a apreensão quanto ao que os terroristas que operam na Somália podem fazer”, disse uma autoridade de contraterrorismo ao Post. Nessa altura, o FBI já investigava pelo menos vinte casos24 de jovens americanos de ascendência somaliana que tinham saído dos Estados Unidos para aderir à insurreição no país. Enquanto a Al-Shabab continuava a ampliar sua jurisdição, a primeira grande crise que Obama enfrentou na Somália não veio do grupo islâmico, e sim de uma ameaça inteiramente diferente que, cada vez mais, se fazia sentir em torno do Chifre da África e da Península Arábica: piratas. Foi esse confronto — com piratas, e não com a Al-Qaeda — que cimentou a afinidade do presidente Obama com o JSOC.
A pirataria tinha surgido na Somália após a queda do regime de Siad Barre, em 1991. Durante os seis meses em que governou a Somália, a UCI atuou com decisão contra sequestros.25 Depois da invasão etíope, os piratas tomaram conta dos mares ao redor da Somália. Eles com frequência eram condenados como terroristas e criminosos, mas havia em suas ações um contexto raramente mencionado. Empresas internacionais e Estados-nações tinham tirado proveito da permanente instabilidade da Somália e passaram a tratar a costa somaliana como seu pesqueiro privado,26 enquanto outros a poluíam com derrames ilegais de óleo.27 Inicialmente, a pirataria foi, de certa forma, uma resposta a essas ações, e alguns piratas se viam como uma espécie de guarda costeira somaliana,28 tributando barcos que procuravam lucrar operando numa área que tinha sido de domínio exclusivo de pescadores somalianos. Essas metas acabaram sendo postas de lado quando os piratas se deram conta de que podiam auferir quantias astronômicas sequestrando navios, fazendo reféns e negociando resgates. A pirataria era um grande negócio na Somália. Em certos casos, pagavam-se os resgates, os reféns saíam incólumes e todos iam cuidar da vida. Em raras ocasiões, houve reféns assassinados ou, com mais frequência, mortos de doenças ou descaso. Em 8 de abril de 2009, os piratas somalianos sequestraram o navio errado. Nesse dia, o Maersk Alabama, cargueiro de bandeira americana, navegava no oceano Índico, rumo a Mombasa, acompanhando a costa da Somália, quando se aproximou uma embarcação de pequeno porte, trazendo quatro piratas armados. Os tripulantes do Alabama tinham recebido treinamento antipirataria29 e fizeram tudo o que deviam fazer: soltaram foguetes de sinalização e começaram a transferir todos os que estavam a bordo para um cômodo seguro e protegido.30 A tripulação manobrou o leme31 do Alabama na tentativa de desviar o rumo do barco dos piratas, muito menor, e a seguir desligou a força do navio e incapacitou seus motores. No entanto, os jovens somalianos eram piratas experientes. Na verdade, a embarcação que estavam utilizando no ataque ao Alabama fora lançada do FV Win Far 161,32 um barco de pesca de Taiwan que eles
tinham acabado de capturar. Os piratas não faziam ideia de que o navio que estavam sequestrando pertencia a um importante prestador de serviços do DoD dos Estados Unidos,33 ou que essa operação poderia ser, em algum ponto, diferente de outras que já tinham realizado. Quando a Casa Branca soube que um navio de bandeira americana tinha sido capturado e que seu comandante e outros membros da tripulação de vinte homens eram americanos, o sequestro tornou-se uma prioridade. O presidente Obama ouviu uma breve exposição sobre o caso. Tratava-se do primeiro navio registrado nos Estados Unidos e de bandeira americana a ser sequestrado desde os primeiros anos da década de 1800.34 Horas depois do sequestro, Obama autorizou que um contratorpedeiro, o USS Bainbridge, fosse usado na reação.35 O Bainbridge chegou ao local em 9 de abril e soube que o comandante do Alabama, Richard Phillips, estava refém dos piratas36 em um barco salva-vidas, fechado, a caminho da Somália. Um dos piratas tinha sido ferido durante a abordagem e acabou capturado por uma força da Marinha dos Estados Unidos. Os outros três tinham deixado o Alabama e estavam tentando fugir com o único trunfo que conseguiram para negociar: o comandante Phillips. No impasse que se seguiu, Obama e sua equipe de segurança nacional trabalharam 24 horas por dia com comandantes militares, analisando vários cenários sobre como resolver a crise e libertar Phillips ileso. Duas outras belonaves,37 a fragata USS Halyburton, armada com mísseis teleguiados, e o navio de assalto anfíbio USS Boxer, foram enviadas para a área. Dois dias depois da captura de Phillips, o presidente Obama recebeu dois estudos da Segurança Nacional sobre a situação. O secretário de Defesa, Robert Gates, disse que por duas vezes comandantes americanos tinham pedido autorização para o emprego de força letal, a que Obama assentiu “quase imediatamente”.38 A primeira autorização39 foi dada às oito horas de 10 de abril, depois que oficiais da Marinha que estavam no Bainbridge na véspera viram Phillips tentando fugir40 de seus captores, sendo logo recapturado. Em resposta, os piratas atiraram no mar41 os únicos equipamentos de comunicação que havia no barco salva-vidas, temendo que fossem empregados para vigilância ou para comunicação secreta com Phillips. Isso deixou as Forças Navais americanas equipadas apenas com os próprios olhos, e a Casa Branca com medo de que um cidadão americano morresse em público nas mãos de piratas, apenas três meses depois da posse de Obama. Em 11 de abril, às 9h20, o presidente deu uma segunda autorização42 para o uso de força letal, dessa vez a um “conjunto adicional de forças dos Estados Unidos”. Foi o sequestro do Alabama que, de forma muito direta, apresentou o presidente Obama ao JSOC e a suas habilitações. Essa foi “pelo que sei, a primeira vez43 que Obama teve uma percepção direta de seu próprio poder, como comandante supremo”, comentou Marc Ambinder, jornalista com laços muito estreitos com a equipe de segurança nacional do governo Obama. O presidente autorizou agentes do JSOC a partirem imediatamente para o Chifre da África.44 Ele ouviu também uma exposição a respeito da presença de uma unidade da Equipe 6 dos SEALs na base da baía de Manda,45 no Quênia, que poderia chegar ao Bainbridge em quinze minutos. Esses homens, o presidente soube, eram os melhores atiradores das Forças Armadas
americanas. “Se a situação se reduzir a pôr atiradores de elite num helicóptero, com a certeza de que o primeiro tiro atingirá o alvo, quem deve ser encarregado disso?”, perguntou o general Hugh Shelton, ex-chefe do Estado-Maior Conjunto e ex-comandante do Comando de Operações Especiais. Referindo-se à Equipe 6, ele me disse: “Eles são de uma precisão mortífera”.46 Com os atiradores dos SEALs preparados, os comandantes a bordo do navio pediram autorização para neutralizar os piratas. No governo, “houve certo debate”, lembrou Ambinder. “Obama, o NSC e advogados queriam fazer isso, porque aquela era a primeira vez que criavam uma operação de cima para baixo, de modo que queriam fazer tudo com muito cuidado. Elaboraram normas de fogo claras e detalhadas.” Em 12 de abril, acreditando que os piratas tencionavam matar Phillips, o comandante do JSOC a bordo do Bainbridge foi posto em contato com a Sala de Situação da Casa Branca e falou diretamente com o presidente Obama. “Em síntese, o presidente fez ao comandante uma série de perguntas”, disse Ambinder.
“Essas condições estão sendo atendidas? Há alguma maneira de fazer isso, salvar esse sujeito sem causar dano indevido a soldados americanos? A posição de tiro é boa? Há alguma possibilidade de outras baixas ou danos colaterais?” “Não, senhor.” E, a seguir, o comandante perguntou: “Tenho sua permissão para ir em frente?”. E o presidente disse: “Sim, o senhor tem”. O comandante deu sua ordem.
Pá. Pá. Pá. Três tiros,47 disparados quase exatamente ao mesmo tempo por três atiradores. Três piratas somalianos mortos. O capitão Richard Phillips foi resgatado e levado para os Estados Unidos com muita festa. Obama recebeu elogios de todos os setores do espectro político por sua firmeza para abater os piratas e pôr fim a uma situação de extorsão mediante sequestro sem perder uma só vida americana e com apenas três tiros. Nos bastidores, foi uma excelente lição para o presidente Obama sobre a força clandestina que Bush um dia elogiara como “terrível” — o JSOC. Ao agradecer às equipes que atuaram na operação Maersk Alabama, Obama pela primeira vez mencionou publicamente48 o nome do almirante William McRaven, comandante do JSOC, que supervisionou a operação. “Excelente trabalho”, disse ele a McRaven ao lhe telefonar depois da operação. “Os piratas somalianos estavam mortos, o capitão resgatado, e Obama se deu conta de forma clara, fisicamente, de que tem esse poder como presidente”, lembrou Ambinder. Acionar as Forças de Operações Especiais no Afeganistão ou no Paquistão era uma coisa, mas usá-las numa operação não convencional e não programada foi o que deixou bem claro o potencial delas. Depois do episódio dos piratas, o almirante McRaven tornou-se um convidado
muito mais frequente do presidente e, da mesma forma como acontecera na gestão de Bush, os militares do JSOC passaram a ser os ninjas estimados de Obama. Após a operação Alabama, “o presidente convidou pessoalmente49 os líderes das Forças de Operações Especiais à Casa Branca e pediu-lhes que tivessem um papel participante na política”, recordou uma fonte do JSOC que trabalhava no Chifre da África na época. Obama
pediu-lhes conselhos militares, como profissionais, sobre a melhor forma de levar a cabo essas operações. Foi uma coisa de que nunca se ouvira falar no governo anterior, no sentido de que eles determinariam qual seria a política e a transmitiriam ao Pentágono, que, por sua vez, faria com que os comandos subordinados a executassem.
Obama, disse a fonte, “tinha abraçado” os líderes das Operações Especiais, em especial o almirante McRaven. Seu período na Casa Branca nas primeiras fases da Guerra Global ao Terror “ensinou-lhe a antecipar as necessidades dos formuladores de políticas, de modo que o JSOC estava sempre à frente da curva, eles sempre tinham a prescrição de política perfeita para a Casa Branca”, acrescentou. O JSOC “sabia o que lhe seria pedido que fizesse antes que pedissem. Isso é crucial. É por isso que McRaven é uma figura fundamental […]. Ele liga esses mundos”. Embora o Afeganistão e o Paquistão fossem as linhas de frente primordiais das guerras do JSOC, a situação no Iêmen e na Somália exigia uma atenção especial da equipe de contraterrorismo de Obama. Grande parte da energia da política externa se concentraria publicamente no Afeganistão, mas, em segredo, tanto a Al-Shabab quanto o JSOC estavam transformando a Somália num dos mais importantes campos de batalha da guerra assimétrica.
Em junho de 2009, um homem-bomba executou um ataque ousado50 contra um hotel perto da fronteira da Etiópia, matando o ministro de Segurança da Somália e mais de uma dúzia de outras pessoas, entre elas um ex-embaixador somaliano. Na mesma semana, insurgentes mataram o chefe de polícia de Mogadíscio51 num tiroteio. Em julho de 2009, a Al-Shabab havia conquistado tamanho controle sobre Mogadíscio que suas forças se achavam a algumas centenas de metros52 da Villa Somalia, ameaçando apoderar-se da Zona Verde da capital, que abrigava o governo do xeque Sharif. O ataque só foi repelido com a intervenção da União Africana, apoiada pelos Estados Unidos. Autoridades do frágil governo da Somália estavam sitiadas e com medo. “O governo está sendo enfraquecido pelas forças rebeldes”,53 disse o xeque Aden Mohamed Nur, presidente do Parlamento, depois da morte do chefe de polícia. “Pedimos aos países vizinhos — Quênia, Djibuti, Etiópia e Iêmen — que enviem tropas à Somália dentro de 24 horas.” Isso nunca aconteceu. Naquele verão, os Estados Unidos anunciaram o envio de quarenta toneladas54 de armas para
as forças do governo da Somália. Em agosto, a secretária Hillary Clinton deu uma entrevista coletiva em Nairóbi, ao lado de Sharif Sheikh. Inserindo um ponto de exclamação na extraordinária trajetória do presidente somaliano — da chefia das Cortes Islâmicas, deposto pelos Estados Unidos e depois líder do país com apoio americano —, ela referiu-se a Sharif como a “melhor esperança55 que tivemos em bastante tempo”. No entanto, a prioridade dos Estados Unidos não era o governo de Sharif. Era a caça. “Apresentamos ao presidente Obama diversas ações e iniciativas contra a Al-Qaeda e outros grupos terroristas”, declarou John Brennan, consultor de contraterrorismo de Obama. “Ele não só aprovou essas operações como nos incentivou a sermos ainda mais agressivos, até proativos, a procurar novos meios e novas oportunidades56 para acabar com esses terroristas.” Na mira de Obama, disse Brennan, “destacavam-se aqueles que atacaram nossas embaixadas na África há onze anos […] e nosso país há oito”. No verão de 2009, os somalianos começaram a ver concentrações de grandes navios de guerra ao largo da costa de Mogadíscio. Faziam parte de um grupo de batalha dos Estados Unidos — e estavam ali com um objetivo.
29. “Soltem a rédea do JSOC”
ARÁBIA SAUDITA, WASHINGTON, DC, E IÊMEN, FINS DE 2009 — No fim de agosto de 2009, o príncipe saudita Mohammed bin Nayef recebeu um telefonema1 de um dos homens mais procurados do reino, Abdullah Hasan Tali al-Asiri, quadro operacional da Al-Qaeda. O príncipe Bin Nayef era filho do poderoso ministro do Interior saudita, o príncipe Nayef bin Abdel-Aziz, terceiro na linha sucessória do trono. Além de atuar como substituto do pai, Bin Nayef era também chefe do serviço de contraterrorismo da Arábia Saudita. Como parte de seus deveres oficiais, ele incentivava os combatentes da Al-Qaeda a se entregarem, através do programa de reabilitação de terroristas do reino. Asiri, que em fevereiro de 2009 tinha sido incluído na lista dos 85 sauditas mais procurados, fugira do país2 e estava morando no vizinho Iêmen. Se ele estava ligando para o príncipe a fim de se entregar, isso seria um triunfo de valor inestimável para os sauditas. Segundo constava, ele tinha sido recrutado3 para a Al-Qaeda pelo irmão, Ibrahim Hassan alAsiri, que, para os serviços de Inteligência saudita e americano, era o principal produtor de bombas para a AQPA. “Preciso te encontrar4 para contar toda a história”, disse Asiri ao príncipe Bin Nayef. “Se você vier, eu me encontro com você”, respondeu o príncipe. Asiri disse que veria o príncipe pessoalmente se ele mandasse um jato particular pegá-lo5 numa cidade saudita que ficava pouco além da fronteira com o Iêmen, a fim de levá-lo ao palácio de Bin Nayef. O príncipe concordou. No dia 9 de agosto, os dois se encontraram. De acordo com Richard Barrett, chefe da equipe das Nações Unidas incumbida de monitorar a Al-Qaeda e o Talibã, assim que a reunião começou Asiri ofereceu ao príncipe um telefone celular. “Asiri disse:6 ‘Ah, você precisa falar com meus amigos porque eles também querem se entregar, e se eles falarem com você, com certeza virão’.” Enquanto o príncipe Bin Nayef falava ao telefone com supostos companheiros de Asiri no Iêmen, o telefone ativou uma bomba, explicou Barrett. É difícil crer, mas Asiri embarcara num avião da família real saudita com uma bomba de tetranitrato de pentaeritritol, conhecido como PETN, passara com ela por vários postos de segurança e entrara com ela no palácio do príncipe Bin Nayef em Jeddah. Os sauditas não tinham detectado a bomba, de quase meio quilo,7 porque ela estava alojada no reto de Asiri. Enquanto o príncipe Bin Nayef falava ao celular, Asiri detonou a bomba. “Foi pura sorte que o príncipe só tenha ferido o dedo, porque a explosão
ocorreu para baixo e para cima, e não no sentido lateral, na direção do príncipe”, explicou Barrett. O ataque foi registrado em vídeo. “Pode-se ver o braço esquerdo do sujeito metido no forro da sala […] de modo que a explosão deve ter sido bem forte […] e pedaços dele espalhados por toda a sala”, disse Barrett. Mesmo o príncipe Bin Nayef tendo sobrevivido, o ataque representou um triunfo simbólico para a Al-Qaeda na Península Arábica. Ao que se saiba, esse foi o primeiro atentado à vida de um membro da família real saudita em décadas, e o primeiro ataque relevante da Al-Qaeda desde um surto de atentados a bomba e de mortes que durou vinte meses entre 2003 e 2004. Supôs-se que a bomba tenha sido fabricada por Ibrahim, irmão de Asari.8 A AQPA estava no mapa. Dias depois do malogrado atentado contra o príncipe Bin Sayef, o principal consultor de contraterrorismo de Obama, John Brennan, viajou à Arábia Saudita para entregar uma carta pessoal9 de Obama a Bin Nayef na qual o presidente expressava seu “horror” pelo ataque. “Estive com o príncipe Mohammed bin Nayef”,10 contou Brennan mais tarde. “Entrei na sala onde ocorreu o atentado. Sempre trabalhamos em estreito contato com os sauditas.” E acrescentou: “Estamos muito preocupados11 com relação a assassinatos, e continuamos a examinar todas as evidências que nos permitam tomar as medidas necessárias para impedir quaisquer tipos de ataques”. Para Barrett, o episódio dava ensejo à possibilidade de usar bombas escondidas dentro do corpo, como a de Asari, no ataque a linhas aéreas.
No caso de Asari, temos um sujeito que entrou num avião e passou por pelo menos dois postos de controle. Ele deve ter passado por um detector de metais. Poderia ter entrado em qualquer avião. Aquela técnica teria dado certo em qualquer linha aérea e em qualquer lugar, não importa quais medidas de segurança fossem adotadas no aeroporto. E é provável que isso tenha graves consequências. O que se poderá fazer? Que nível de proteção será possível proporcionar nesses casos?
Depois de se encontrar com os sauditas para tratar do ataque a Bin Nayef em 27 de agosto de 2009, Brennan disse: “Não havia nenhum indício12 […] de que a Al-Qaeda estivesse tentando utilizar esse tipo de ataque e esse modus operandi contra aviões”. Brennan estava equivocado nesse ponto. O atentado malogrado contra Bin Nayef, planejado pelo irmão de Asari, não seria o último de que americanos ou sauditas tomariam conhecimento. No entanto, concentrou mais ainda a atenção, por parte de Riade e de Washington, na base da Al-Qaeda no Iêmen.
Em 6 de setembro de 2009, uma semana depois da tentativa de assassinato contra Bin Nayef,
John Brennan mais uma vez reuniu-se com o presidente Saleh em Sana’a.13 Saleh queixou-se, sem meias palavras, de que a ajuda dos Estados Unidos para as atividades de contraterrorismo era insuficiente e alegou que sua ofensiva contra os rebeldes houthis era de interesse de Washington. “Essa guerra que estamos fazendo é em benefício dos Estados Unidos”, disse ele. “Os houthis são inimigos dos americanos também.” No encontro com Brennan, Saleh acusou o Irã de tentar prejudicar sua relação com Washington ao apoiar os houthis e tentar envolver também o Hezbollah. (Num telegrama sigiloso posterior,14 autoridades americanas reconheceram que desde o início da luta, em 2004, não tinham se registrado ataques dos houthis a americanos ou interesses dos Estados Unidos, e levantaram sérias dúvidas sobre a importância do envolvimento iraniano.) Brennan disse a Saleh que seria contrário à lei dar-lhe apoio militar contra os houthis, já que os Estados Unidos consideravam a luta desse grupo uma “insurgência interna”. Saleh replicou que ao negar apoio militar e se recusar a declarar que os houthis eram terroristas, Washington estava solapando as declarações de amizade e cooperação. Autoridades americanas declararam que Saleh estava “em perfeita forma” no encontro com Brennan, “às vezes desdenhoso e desinteressado, em outros momentos conciliador e simpático”. De acordo com o telegrama da embaixada americana sobre a reunião, Saleh “reiterou o pedido de mais recursos e equipamentos para combater” a AQPA. Em troca do aumento da ajuda, que ele sem dúvida desejava mais para suas guerras internas do que para lutar contra a AlQaeda, ofereceu a Brennan um trunfo valioso. “O presidente Saleh prometeu aos Estados Unidos acesso irrestrito ao território nacional do Iêmen para suas operações de contraterrorismo”, destacou o telegrama. “Saleh insistiu em que o território nacional do Iêmen está disponível para operações de CT [contraterrorismo] dos Estados Unidos.” Brennan e outras autoridades americanas viram a oferta como uma tentativa de contar com uma apólice de seguro no caso de ataques futuros à embaixada dos Estados Unidos ou a outros alvos americanos. “Eu lhes dei uma porta aberta contra o terrorismo”, disse Saleh a Brennan, “de modo que não sou responsável.” No entender de Brennan, “o interesse [de Saleh] em delegar o esforço de CT no Iêmen”, entregando-o aos Estados Unidos, estava ligado a seu desejo de liberar suas próprias forças e equipá-las melhor para enfrentar as rebeliões internas. “Uma campanha concertada de antiterrorismo [dos Estados Unidos] no Iêmen dará condições a Saleh de continuar a dedicar seus recursos limitados à guerra contra os insurgentes houthis”, dizia o telegrama.
A consequência cabal — que, com fortes razões, suspeitamos que Saleh calculou — de pôr em ação, ao mesmo tempo, os “punhos de ferro” americano e [iemenita] no Iêmen será uma mensagem clara […], [a] qualquer outro grupo interessado em gerar intranquilidade política no país, de que um destino semelhante o aguarda.
Com relação às reuniões entre Brennan e Saleh, o coronel Lang, que tratou com Saleh durante anos, declarou:
O que eles falam num encontro como aquele não quer dizer absolutamente nada.15 Você só vê o que eles estão mesmo querendo fazer quando conversa com pessoas no nível operacional, nos bastidores. E quanto mais você os compreende, com menos facilidade será engambelado, e para ser franco, mais dispostos eles se mostram a aparecer com algum tipo de acordo razoável.
Fossem quais fossem os motivos de Saleh, Brennan ficou satisfeito com o encontro, pois os Estados Unidos estavam recebendo sinal verde oficial para executar operações especiais dentro do Iêmen. Brennan entregou uma carta do presidente Obama a Saleh, prometendo maior ajuda na “luta contra o terrorismo”. A segurança do Iêmen, escreveu Obama, “é vital para a segurança dos Estados Unidos e da região, e os Estados Unidos adotarão uma iniciativa para ajudar o Iêmen”.16 Durante esse período, segundo fontes das Operações Especiais americanas, o governo Obama começou a autorizar17 planos para operações mais letais no Iêmen. Havia no Pentágono quem temesse que o foco no Iêmen estivesse se impondo tarde demais. “Não houve um número suficiente de pessoas18 na comunidade de informações, ou nas Forças Armadas, que dessem a devida atenção [à região], e a Al-Qaeda tirou proveito disso, pondo-nos em desvantagem”, declarou uma alta autoridade da Defesa ao Washington Times logo depois da visita de Brennan ao Iêmen. “Isso será para nós um sério problema no futuro próximo.”
Em 30 de setembro de 2009, Michael Leiter, diretor do Centro Nacional de Contraterrorismo, compareceu ante o Senado dos Estados Unidos. “A Al-Qaeda encontra-se sob maior pressão19 atualmente, enfrenta maiores desafios e está mais vulnerável do que em qualquer momento desde o Onze de Setembro”, declarou ele à Comissão de Segurança Interna e Assuntos Públicos. “No entanto, mesmo assim, eles continuam sendo um inimigo robusto. E embora eu acredite que fizemos muito no sentido de impedir ataques e de nos defender deles, eles continuam a ser bastante possíveis nos Estados Unidos.” Ainda que “o santuário da Al-Qaeda no Paquistão esteja diminuindo e se tornando menos seguro”, disse Leiter, o grupo estava crescendo em outros países. Leiter advertiu os senadores de que ramificações da Al-Qaeda começavam a “constituir uma crescente ameaça para nosso país”. Algumas delas “têm se mostrado capazes de atacar alvos ocidentais em suas regiões”, declarou, mas “elas aspiram a se expandir ainda mais”. Leiter advertiu, em especial, à ameaça cada vez maior que a AQPA representava para o Iêmen. “Assistimos ao ressurgimento20 da Al-Qaeda na Península Arábica, com o Iêmen
desempenhando o papel de importante campo de batalha e possível base regional de operações, na qual a organização pode planejar ataques, treinar recrutas e facilitar a movimentação de quadros operacionais”, afirmou. “Tememos que se a AQPA se fortalecer, os líderes da Al-Qaeda possam usar o grupo e a presença cada vez mais numerosa de combatentes estrangeiros na região para ampliar sua capacidade de operações transnacionais.” Nesse dia, o presidente Obama convocou seus principais assessores militares e políticos para uma reunião21 na Sala de Situação da Casa Branca na qual se debateria a estratégia americana no Afeganistão. Dela participaram o vice-presidente, Joe Biden; a secretária de Estado, Hillary Clinton; o secretário de Defesa, Robert Gates; o diretor da CIA, Leon Panetta; o chefe do EstadoMaior Conjunto, almirante Mike Mullen; o diretor de Inteligência nacional, almirante Dennis Blair; e o general Petraeus. Os detalhes do que foi discutido na reunião permanecem sigilosos, mas ficou evidente que o Afeganistão não foi o único tema em debate. Pouco depois dessa reunião, o general Petraeus assinou uma ordem secreta, de sete páginas,22 que autorizava pequenas equipes das Forças de Operações Especiais dos Estados Unidos a realizarem operações clandestinas fora dos campos de batalha declarados do Iraque e do Afeganistão. A ordem estava marcada como “LIMDIS” (limited distribution) — para distribuição limitada. Cópias impressas foram entregues a cerca de trinta pessoas. Seu codinome original era “Abacate”. A diretriz, conhecida como uma Ordem de Execução para uma Força-tarefa Conjunta de Guerra Não Convencional (Joint Unconventional Warfare Task Force, JUWTF), servia como uma espécie de autorização23 para que equipes de Operações Especiais militares dos Estados Unidos executassem operações clandestinas sem a aprovação direta do presidente para cada operação. “À diferença de ações secretas realizadas pela CIA, essas atividades clandestinas não exigem a aprovação do presidente ou relatórios periódicos ao Congresso”, informou Mark Mazzetti, do New York Times, a quem foi permitido ler a ordem de execução. Essa ordem era uma clara comprovação da continuidade da política externa do governo anterior por parte da Casa Branca de Obama. Durante o governo Bush, o Pentágono justificava periodicamente suas operações especiais clandestinas insistindo que as forças não estavam em guerra, mas sim “preparando o campo de batalha”. A “ExOrd” de Petraeus, em 2009, manteve e solidificou a justificativa da era Bush para expandir as guerras secretas na presidência de Obama. “Enquanto o governo Bush aprovara algumas atividades militares clandestinas distantes de zonas de guerra designadas como tal, a nova ordem visa tornar essas atividades mais sistemáticas e permanentes”,24 escreveu o New York Times. “Suas metas são construir redes capazes de ‘penetrar, desorganizar, derrotar e destruir’ a Al-Qaeda e outros grupos militantes, bem como ‘preparar o ambiente’ para futuros ataques de forças militares americanas ou locais, dizia o documento.” Além disso, a ordem de Petraeus deixava claro que os Estados Unidos estavam autorizando suas Forças Armadas, e não apenas a CIA, a executar essas operações secretas. “O governo Obama vinha relutando em permitir tal expansão25 de atividades militares não tradicionais em
países onde os Estados Unidos não têm presença formal. Essa prática era associada negativamente ao desrespeito do governo Bush-Cheney pelas normas internacionais”, observou o jornalista Marc Ambinder na época.
Contudo, imperativos políticos, a ameaça do terrorismo e a percepção do que as Forças Armadas americanas são capazes de realizar se suas rédeas forem cortadas aos poucos fizeram com que alguns dos altos assessores de Obama mudassem de opinião. Para isso contribuiu também o fato de o Congresso ter, de modo geral, dado às Forças Armadas ampla margem para realizarem atividades que paramilitares da Agência de Informações teriam julgado condenáveis.
Além de autorizar ações diretas por parte das Forças de Operações Especiais, a ordem de Petraeus tratava da coleta de informações,26 inclusive por militares americanos, executivos e acadêmicos estrangeiros, além de outras pessoas, destinadas a identificar insurgentes ou terroristas e sua localização. A ordem, que Petraeus redigiu em conjunto com o almirante Eric Olson, chefe do Comando de Operações Especiais dos Estados Unidos, expunha um plano de operações clandestinas “que não podem nem devem ser executadas”27 por forças militares regulares ou por órgãos de informações dos Estados Unidos. Entre aqueles que supervisionariam as atividades das Forças de Operações Especiais em todo o mundo, no governo Obama, estava Michael Vickers, ex-paramilitar da CIA da Divisão de Atividades Especiais e um importante ator nas operações de contrabando de armas e dinheiro, pela CIA, para os mujahedin no Afeganistão, na década de 1980. O coronel Lang disse que na época em que a ordem foi emitida, as forças do JSOC no Afeganistão acreditavam ter eliminado ou capturado uma boa parte dos Alvos de Grande Valor no Afeganistão, ou pelo menos obrigado esses líderes a refugiar-se em outros países. “É por isso que se torna muito tentador começar a caçar pessoas em outros países. Porque esses agentes, altamente especializados, estão perseguindo alvos que na verdade não são dignos de suas qualificações”, disse-me ele. “Para a liderança […] para o general de três estrelas e os de maior nível […] a tentação28 é procurar lugares onde empregar seus rapazes em campos mais verdes.” Lang, um ex-boina-verde, falou dos homens do JSOC que travariam as pequenas guerras de Petraeus como “uma espécie de Assassinato S.A.”, acrescentando: “O negócio deles é matar gente da Al-Qaeda. Essa é a missão deles. Não estão no negócio de converter quem quer que seja a nossos objetivos ou qualquer coisa desse tipo”. De acordo com o ex-assistente de um comandante graduado das Forças de Operações Especiais durante os governos de Bush e de Obama, a expansão das atividades de Operações Especiais por Obama no mundo inteiro foi, na realidade, uma continuação da Ordem de Execução AQN assinada no começo de 2004 por Rumsfeld, conhecida como “AQN-ExOrd”, ou
Ordem de Execução da Rede Al-Qaeda. Essa ordem foi criada para contornar processos burocráticos e legais, permitindo às Forças de Operações Especiais dos Estados Unidos atuar em áreas ou países fora das zonas oficiais de batalha no Iraque e no Afeganistão. A mentalidade na Casa Branca de Obama, disse-me essa fonte, era de que “se o Pentágono já tem poder29 para fazer essas coisas, que soltem a rédea do JSOC. E foi isso que essa Casa Branca fez”. A fonte acrescentou: “O governo [de Obama] deu mais poder ao JSOC do que qualquer outro na história recente. Sem dúvida”. Apesar de certa hesitação inicial, ficou claro que Obama queria expandir e codificar a ordem da era Bush. “O governo Obama pegou a ordem de 2004 e foi acima e além dela”, disse-me essa fonte. “O campo de batalha é o mundo. Voltamos a isso”, acrescentou. “Estamos nos afastando dela um pouquinho, mas a ‘preparação do campo de batalha’, de Cambone, ainda está bem viva. Foi adotada para este governo.” No governo Bush, o JSOC e seu comandante, Stanley McChrystal, coordenavam grande parte de suas atividades com o vice-presidente, Dick Cheney, e o secretário de Defesa, Donald Rumsfeld. No governo Obama, o relacionamento com o JSOC tornou-se mais formalizado como um todo. Como aquele ex-assistente me disse: “Antes a estratégia consistia em isolar o presidente.30 Agora eles interagem de forma direta e habitual com essas pessoas”. Em 4 de outubro de 2009, poucos dias depois da assinatura da ordem de execução e um mês depois da reunião de Brennan com o presidente Saleh, o almirante McRaven fez uma discreta viagem ao Iêmen31 para se reunir com Saleh. McRaven usou sua farda da Marinha, com listras amarelas nas mangas. Saleh, com um terno muito bem cortado, sentou-se numa poltrona dourada. O governo de Saleh declarou que os dois homens discutiram a “cooperação” no “combate ao terrorismo”. A embaixada dos Estados Unidos em Sana’a declarou que eles haviam debatido “a cooperação entre os Estados Unidos e o Iêmen32 contra a Al-Qaeda na Península Arábica”, acrescentando: “Essas discussões dão respaldo aos esforços permanentes do governo dos Estados Unidos para ajudar o Iêmen a eliminar a ameaça que a Al-Qaeda representa para a segurança e a estabilidade desse país”. No entanto, fontes iemenitas bem informadas afirmaram que McRaven pressionara Saleh a permitir que pelo menos três drones do JSOC operassem habitualmente no Iêmen e que também autorizasse “a execução de algumas operações especiais33 semelhantes às que estão tendo lugar no Paquistão e na Somália”. Saleh anuiu aos pedidos, cumprindo a promessa que fizera a Brennan para obter a ajuda americana de que precisava. Em 9 de outubro, Obama reuniu-se com sua equipe de segurança nacional para debater a mais importante questão de política externa, o Afeganistão. Durante o encontro, Brennan opinou que a Al-Qaeda representava uma ameaça maior no Iêmen e na Somália do que no Afeganistão. “Estamos elaborando princípios geoestratégicos aqui”,34 disse Brennan, “e não vamos dispor de recursos para fazer, no Iêmen e na Somália, o que estamos fazendo no Afeganistão.”
IÊMEN, 2004-7 — Quando Anwar Awlaki voltou ao Iêmen, em 2004, a história estava traçando para ele um caminho que o conduziria à infâmia internacional e a um confronto com o JSOC, a CIA e o programa de assassinatos dos Estados Unidos. Parece improvável que ele soubesse disso na época. Como poderia saber? Seu pai, Nasser, disse que a decisão de voltar a Sana’a deveu-se a motivos práticos e não foi indício de um radicalismo crescente. “Ele não conseguiu uma bolsa1 para estudar na Grã-Bretanha”, afirmou Nasser, e por isso “decidiu voltar ao Iêmen”. Mas o que aconteceu com Awlaki ao voltar para o Iêmen tornaria mais rígida sua opinião sobre as políticas americanas e o levaria a renunciar a qualquer lealdade que pudesse ter tido para com seu país de nascimento. Awlaki chegou a Sana’a e estava analisando seus próximos passos. Tinha planos de estudar na Universidade da Fé2 e foi convidado a pregar em algumas mesquitas. Numa palestra na Universidade de Sana’a, ele falou sobre o papel do Islã no mundo e condenou a guerra americana no Iraque. Ele, a mulher e os filhos se instalaram na casa de Nasser, perto da universidade. Nessa época, seu filho mais velho, Abdulrahman, tinha nove anos. Como o pai, em seus primeiros anos de vida tinha sido criado como americano. Era um menino magro, de óculos, muito parecido com o pai quando tinha a sua idade. Anwar “pensou em criar um centro de ensino do Islã e também da língua — para ensinar o árabe a não muçulmanos e coisas assim”, lembrou Nasser. “Ele pensava em fundar sua própria escola, algo como uma escola fundamental. Queria pregar com regularidade até encontrar um trabalho adequado para si.” Contudo, os Estados Unidos não tinham se esquecido de Awlaki, e agentes da Inteligência iemenita estavam em seu encalço desde o dia em que chegou ao país. Awlaki tinha se acostumado a viver vigiado e fazia o possível para ganhar a vida. Mas a religião — sua fé — era sua verdadeira paixão. Passava muito tempo diante do computador, gravando sermões e mantendo uma assídua correspondência com seus seguidores no exterior. “Ele dava palestras pela internet”, disse Nasser. “E tentou também abrir um negócio, sabe, uma imobiliária, algum empreendimento. Estava tentando trabalhar como qualquer pessoa, comprando e vendendo propriedades.” Nasser riu, balançando a cabeça, e acrescentou: “Sabe como é, isso não deu certo”. Os filhos de Awlaki estavam adorando o tempo que passavam com os avós, tias e tios, e a família começou a construir um apartamento separado para Anwar e família no terreno de sua casa em Sana’a.
Os membros da família Awlaki falam dessa época como um período de meditação para Anwar. Parece claro que em 2006 ele tinha admitido o fato de que sua vida como americano acabara. O FBI não ia deixá-lo em paz. As guerras do Iraque e do Afeganistão o enfureceram. Passava dias e noites sem fim refletindo acerca de como os muçulmanos deviam reagir às guerras, do Iraque a Gaza, ao Afeganistão e mais além. Seus sermões se tornavam mais rígidos. Com frequência ele debatia a natureza da jihad com seus correspondentes. Parecia realmente estar lutando para descobrir suas próprias verdades em relação ao mundo do pós-Onze de Setembro. Mas Anwar não fazia referência à Al-Qaeda, pelo menos num sentido positivo. “Era tudo normal, e pensamos que ele tinha deixado tudo aquilo [os Estados Unidos] para trás”, lembrou Nasser. “E estávamos construindo nossa casa, fizemos um apartamento para ele e tudo o mais. Então, na verdade, para mim estava tudo normal. E ele só estava trabalhando em seus sermões e coisas assim. Nada além disso.” Nada além disso até que Anwar foi posto na cadeia. “Esse foi o divisor de águas”, disse Nasser.
Anwar Awlaki era um preso político. Em meados de 2006, quando foi detido por forças iemenitas apoiadas pelos Estados Unidos, houve um pretexto. Algo como o fato de ele haver intervindo numa disputa tribal.3 Entretanto, como na maior parte das prisões por motivos políticos, isso foi apenas uma desculpa mal disfarçada para encarcerá-lo. Anwar foi preso de noite e confinado numa solitária na temida prisão de Sana’a4 dirigida pela Organização de Segurança Política (Political Security Organization, PSO), que trabalhava em estreita colaboração com a Inteligência americana. Depois que ele foi preso, agentes da Inteligência iemenita confiscaram5 seu computador e as gravações de palestras feitas na Universidade da Fé. Nunca houve acusações concretas contra ele. Anwar jurava que era o governo americano que o mantinha preso, de modo que Nasser procurou a embaixada dos Estados Unidos para pedir ajuda. Afinal, Anwar era cidadão americano. Certamente eles conheciam Anwar, pensou Nasser. Era aquele que estava sempre na TV depois do Onze de Setembro, o “imã para toda obra”. Um funcionário da embaixada disse que pouco podia prometer além de que “tomaria conta”6 de Anwar. “Durante nove meses,7 fiquei confinado numa solitária subterrânea. Eu diria que a cela media cerca de 2,5 metros por 1,20 metro”, lembrou Awlaki mais tarde. “Não tinha lápis ou papel, nem fazia exercício algum. Fiquei todo esse tempo sem ver a luz do sol.” Ele disse que “não tinha contato com ninguém além dos guardas da prisão”. Não há dúvida de que os Estados Unidos estavam ligados à prisão de Anwar. “Acho que fui preso a pedido do governo americano”,8 disse ele. “Fiquei sob custódia sem explicação alguma.” Assim que foi preso, lembrou ele, os agentes da Inteligência iemenita “começaram a fazer perguntas9 sobre minhas atividades islâmicas no país, e daí em diante foi se tornando claro que
eu fora preso a pedido do governo americano. Foi o que eles me disseram”. Também disseram a Awlaki que os Estados Unidos queriam que seus próprios agentes o interrogassem. No relatório de um inspetor especial das Nações Unidas sobre execuções extrajudiciais sumárias ou arbitrárias é informado que Awlaki tinha sido preso “a pedido do governo dos Estados Unidos”.10 O New York Times noticiou que John Negroponte, que na época da prisão de Anwar era diretor nacional da Inteligência americana, “disse a autoridades iemenitas que os Estados Unidos não se opunham a sua prisão”.11 Mas a atuação americana foi além de não fazer oposição. Uma fonte iemenita com estreitas ligações com Awlaki e com o governo do país contou-me sobre uma reunião entre Negroponte,12 o embaixador americano no Iêmen e o príncipe Bandar bin Sultan, ex-embaixador saudita nos Estados Unidos. Bandar era extremamente próximo do governo Bush e do presidente em particular — tão próximo que seu apelido era “Bandar Bush”.13 Essa mesma fonte disse que tinha conversado com o embaixador iemenita e que este revelara que Negroponte disse algo como: “Foi ótimo vocês terem prendido Anwar. É bom. Porque o que nos preocupa é a [sua] pregação, os sermões, temos medo de que ele venha a influenciar jovens no Ocidente”. O embaixador iemenita, ainda segundo minha fonte, disse a Negroponte:
Olhe, não há acusação alguma contra Anwar, não podemos deixá-lo preso indefinidamente. Gente de tribos do Iêmen, amigos [de Anwar], grupos de direitos humanos americanos e britânicos estão escrevendo cartas a Condoleezza Rice e a nós sobre sua prisão. Por isso não podemos deixá-lo preso indefinidamente.
A resposta de Negroponte, disse minha fonte, foi: “É, mas vocês precisam fazer isso”. Em novembro de 2006, Nasser Awlaki encontrou o presidente do Iêmen, Ali Abdullah Saleh, numa conferência sobre desenvolvimento em Londres. “Pedi a ele que soltasse meu filho”, lembrou Nasser. “E ele disse: ‘Há problemas com os americanos, vou tentar resolvê-los e solto seu filho’.” Saleh bin Fareed, tio de Anwar, com quem ele ficara durante um curto período na Grã-Bretanha, é um dos mais poderosos xeques tribais do Iêmen. É o chefe da tribo aulaq, a qual pertencia Anwar, que conta com cerca de 750 mil pessoas.14 No Iêmen, são as tribos e não o governo as detentoras de poder e influência, e os aulaqs não tolerariam que Anwar ficasse preso sem acusações. Bin Fareed disse-me que procurou o presidente Saleh e perguntou-lhe por que Anwar estava preso. “Os americanos pediram que ele continuasse na cadeia”,15 respondeu Saleh. Segundo Bin Fareed, os americanos disseram a Saleh:
Queremos que ele fique preso uns três ou quatro anos. [Anwar] fala bem — a razão que eles nos deram é que ele fala muito bem, muita gente lhe dá ouvidos nos Estados Unidos,
principalmente jovens. E no mundo inteiro também. E queremos que ele fique [preso] alguns anos, até que o esqueçam.
Quando o presidente Saleh visitou Washington,16 pouco depois de Anwar ter sido preso, reuniu-se com o diretor do FBI, Robert Mueller, com o diretor da CIA, George Tenet, e com outras autoridades da Inteligência americana. Saleh disse a Nasser que tinha discutido o caso de Anwar com eles. Na verdade, ele disse que tinha perguntado diretamente ao presidente Bush sobre Anwar. “Se vocês têm alguma coisa contra Anwar al-Awlaki, digam o que é”, Saleh teria dito a Bush. “Se não disserem, vamos soltá-lo.” Ao que o presidente Bush teria dito: “Dê-me dois meses para que eu responda”. Passaram-se dois meses e Nasser recebeu uma ligação do chefe da Organização de Segurança Política, o general Galib al-Qamish. “Dr. Nasser”, ele disse, “por favor peça a seu filho que colabore com os interrogadores que estão vindo de Washington para vê-lo.” Nasser foi até e prisão para falar com ele.
Eu disse a meu filho: “Por favor, você sabe que queremos resolver isso de uma vez por todas. Por que não colabora e aceita receber essa gente?”. E [Anwar] disse: “Estou disposto a me encontrar com eles. Encontrei-me com eles nos Estados Unidos e vou fazer o mesmo no Iêmen”.
Os agentes do FBI que vieram entrevistar Anwar ficaram dois dias.17 Awlaki “foi levado a uma sala18 e quando se deparou com os americanos não se pôs na posição de acusado; pelo contrário, entrou na sala [e] se comportou como um chefe”, lembrou Shaykh Harith al-Nadari, que estava preso com ele.
Escolheu a melhor cadeira, comeu as frutas oferecidas pelos iemenitas aos americanos e serviu-se de uma xícara de chá. Perguntei-lhe sobre a natureza da investigação. Ele disse que tudo aquilo era para encontrar uma mínima infração que permitisse que ele fosse levado a um tribunal americano. Foi um interrogatório, disse ele. No entanto, eles não encontraram o que procuravam.
A Inteligência iemenita insistiu19 para ter seus próprios representantes na sala. Awlaki disse que, ao ser interrogado pelos agentes americanos durante dois dias, “houve certa pressão,20 que me recusei a aceitar, o que levou a um conflito entre mim e eles, porque achei aquele comportamento inadequado da parte deles […]. Mas isso se solucionou e eles pediram desculpas”. Anwar, segundo Nasser, colaborou com os interrogadores. Mesmo assim, passaramse dias e semanas e ele continuou atrás das grades.
Quando a família Awlaki exigiu que o regime lhe desse explicações, o presidente iemenita pôs as cartas na mesa. O vice-presidente Abd Rabbuh Mansur Hadi disse a Nasser que o presidente tinha de lhe propor uma escolha difícil: ele queria que Anwar continuasse preso ou que fosse libertado “para ser morto por um drone americano?”. “E então o presidente do Iêmen me disse: ‘Deixe seu filho na prisão e não o faça sair, porque se sair vai ser morto’”, disse Nasser, esclarecendo que na época ele acreditava que “o único motivo pelo qual meu filho era visado pelos Estados Unidos era por causa de sua popularidade entre os muçulmanos anglófonos do mundo”. E concluiu: “Acho que Ali Abdullah Saleh sabia de alguma coisa”.
Enquanto a família lutava por sua liberdade do lado de fora, dentro da prisão Anwar se dedicava aos livros. Todos que pudesse conseguir. Durante os dois primeiros meses, o Alcorão foi o único livro que lhe permitiram. Mais tarde, Awlaki diria que via sua “prisão como uma bênção”,21 pois ela lhe proporcionou a “oportunidade de reler o Alcorão, estudá-lo e lê-lo de um modo que seria impossível fora da cadeia. O período em que estive preso foi de férias deste mundo”. Disse também que “foi porque eles me tiraram tudo22 e me deram o Alcorão, que ele ganhou esse significado diferente”, acrescentando que:
É por causa das distrações à nossa volta que não tiramos o máximo de proveito do Alcorão. Mas quando uma pessoa está naquele lugar solitário, todas as distrações desaparecem e nosso coração se fixa na palavra de Alá, e as palavras assumem um significado completamente diverso.
Finalmente, Awlaki pôs as mãos no livro À sombra do Alcorão, de Sayyid Qutb. Havia algumas coincidências significativas entre as experiências de vida de Awlaki e as de Qutb, acadêmico e pensador egípcio cujos escritos e ensinamentos mais tarde seriam considerados a base intelectual dos movimentos militantes islâmicos. No Egito, ele era um dissidente que defendia a implantação de um governo islâmico. Da mesma forma que Awlaki, tinha passado algum tempo no Colorado,23 e em 1949 matriculou-se na Faculdade Estadual de Educação do Colorado. Depois de sua permanência nos Estados Unidos, Qutb investiu contra o que percebia como excessos da cultura americana — mulheres com pouca roupa, o jazz, lutas, o futebol e o álcool. Rotulou a sociedade americana de “primitiva”, dizendo que seu povo era “insensível à fé24 na religião, à fé na arte e também à fé em valores espirituais”. Quando voltou ao Egito, Qutb estabeleceu estreitos vínculos com a Irmandade Muçulmana. Em 1954, foi detido e mandado para a cadeia,25 onde permaneceria durante a maior parte de sua vida futura. Foi torturado na prisão, onde também escreveria seus textos mais influentes,26 entre eles o livro que Awlaki leria em sua cela meio século depois. Em 1966, Qutb foi enforcado27 depois de declarado culpado de
conspiração para derrubar o governo egípcio. Awlaki disse que ficou “tão envolvido28 pelo autor que sentia como se Sayyid estivesse em minha cela, falando diretamente comigo. Minha leitura na prisão tinha uma peculiaridade: eu podia sentir a personalidade do autor por meio de suas palavras. Assim, embora eu estivesse confinado numa solitária, nunca estava sozinho”. Awlaki disse que tentou limitar a leitura a trinta páginas por dia, “mas por causa do estilo fluente de Sayyid eu lia diariamente entre cem e 150 páginas. Na verdade, lia até cansar os olhos.
Meu olho esquerdo se cansava antes do direito, então eu o tapava com a mão e continuava lendo com o olho direito até que ele não aguentava mais e simplesmente se fechava. Minha visão começou a ficar prejudicada, principalmente a do olho esquerdo. Fosse por causa de ler demais, ou pela pouca luz, Alá é quem sabe. Soube que problemas de visão e dos rins eram as queixas mais comuns entre os prisioneiros.
Ele leu também obras de Charles Dickens (Tempos difíceis), Shakespeare (Rei Lear) e Herman Melville (Moby Dick). “Um diretor da prisão especialmente mau29 decidiu proibir-me de ter livros islâmicos”, escreveu Awlaki mais tarde.
Shakespeare foi a pior coisa que li durante todo o tempo em que estive preso. Nunca gostei dele. Provavelmente a única razão pela qual ele se tornou tão famoso foi o fato de ser inglês e ter sido apoiado e promovido pelos falantes de uma língua global.
Awlaki, no entanto, elogiava a obra de Dickens. “O que me fascinou nesses romances foram os surpreendentes personagens criados por Dickens e as semelhanças que guardam com certas pessoas da atualidade. São muito interessantes”, ele escreveu.
Por exemplo, o gordo e prepotente Josiah Bounderby, de Coketown, é parecido com George W. Bush; o pai de Lucy, Gradgrind, é como alguns pais muçulmanos programados para achar que só a medicina e a engenharia são profissões dignas para seus filhos; a surpreendente crueldade de Stephen Blackpool é como a de certas pessoas que aparentemente parecem seres humanos decentes e bondosos; e Uriah Heep parece alguns dos muçulmanos fervorosos de hoje em dia.
Mais tarde, Awlaki refletiria sobre a alimentação na cadeia. Sobre o kudam, “o pão que servia como alimento básico30 dos presos e soldados do Iêmen”, escreveu:
Deveria ser multigrãos. Costumava ser assim antes. Agora ele é feito mais provavelmente de trigo integral. É fermentado, e por isso seu gosto lembra o do pão de sourdough feito de massa lêveda, de San Francisco (quem mora nos Estados Unidos sabe do que estou falando). Consiste numa crosta sólida (quero dizer sólida de verdade) e poderia ser usado com uma arma numa briga. Antes de ser preso,31 tinha conversado com ex-presidiários sobre como era estar na cadeia, que isso serviu como um preparo mental para o que estava por vir. Lembro as palavras de um dos shuyukh [líderes religiosos] que esteve nessa mesma prisão. Ele dizia que a comida era horrível, por isso eu esperava o pior.
Em sua primeira manhã na prisão, Awlaki lembrou:
comecei a ouvir portas se abrindo e soldados gritando para os presos que pegassem sua comida. Quando chegou minha vez eu já estava bem acordado. Abriram a porta e vi dois soldados, um deles com um balde e o outro arrastando um saco de kudam. O que carregava o balde pegou meu prato e verteu nele uma xícara de feijão fumegante enquanto o outro me entregou seis pedaços de kudam.
Depois de poucas semanas, ele concluiu: “Essa comida dá nojo”.
Por fim, as autoridades carcerárias permitiram que Awlaki recebesse da família, duas vezes por semana, comida feita em casa. “No entanto, a administração da prisão usava isso para pressionar os prisioneiros. Com o pretexto de procurar objetos escondidos nos alimentos, às vezes me entregavam minha refeição sem condições de consumo. Uma vez, eles misturaram arroz, bolo de chocolate e salada, e despejaram na massa resultante uma caixa de suco de mirtilo. Até o guarda que me entregou a comida ficou triste com o estado dela”, lembrou Awlaki. A cadeia, disse ele, reafirmou seu compromisso com a religião. “O Islã não é algo que se use para preencher o compartimento espiritual da vida enquanto se relega tudo o mais a caprichos e desejos. O Islã deve governar cada aspecto de nossa vida.” Depois que Anwar Awlaki passou dezessete meses preso, a tremenda pressão de grupos tribais que o regime de Saleh tinha de contentar para se manter no poder e da influente família de Anwar finalmente forçou sua libertação. O xeque Saleh bin Fareed foi ter com o presidente iemenita para lhe dar garantias de que Anwar não causaria problemas se fosse posto em liberdade. “Tudo bem, se o senhor tem alguma coisa contra Anwar, por favor leve-o aos tribunais”, disse Bin Fareed ao presidente. “E se algo for provado, pode matá-lo. Não nos importamos. Se tiver alguma coisa, alguma prova contra ele, não vamos nos importar se o senhor mandá-lo ao tribunal e matá-lo. Se não tiver, devolva-nos nosso filho.” O presidente,
disse ele, respondeu: “Para ser franco, não tenho nada contra Anwar, seja lá o que for”. Naquele dia, ordenou-se que Awlaki fosse solto. “Os americanos não gostaram nem um pouco daquilo”, disse Bin Fareed. Um telegrama diplomático vindo dos Estados Unidos sobre a libertação de Awlaki promoveu-o a “xeque” e se referiu a ele como “o suposto conselheiro espiritual32 de dois dos sequestradores do Onze de Setembro”. O telegrama dizia ainda que “contatos” no governo iemenita disseram a funcionários americanos que “eles não tinham provas suficientes para incriminar [Awlaki] e já não podiam mantê-lo preso ilegalmente”. Poucos anos depois, o governo americano tomaria a prisão de Awlaki como prova de que ele estava havia muito tempo envolvido em complôs do terror contra os Estados Unidos. Sem nenhuma prova para apoiar suas afirmações, a declaração do Departamento do Tesouro dos Estados Unidos afirmou que Awlaki “tinha sido preso no Iêmen em 2006 acusado de extorsão mediante sequestro33 e por envolvimento num complô da Al-Qaeda para sequestrar um alto funcionário americano, mas foi libertado em dezembro de 2007 e depois permaneceu escondido no Iêmen”.
19. “Os Estados Unidos conhecem a guerra. Eles são mestres da guerra”
SOMÁLIA, 2004-6 — Enquanto o JSOC passava a dominar os campos de extermínio que se alastravam pelo Iraque, pelo Afeganistão e por outros países, a Somália continuava em seu mergulho no caos. Os chefes de milícias, assassinos que estavam pondo em prática as operações de morte/captura dirigidas da CIA, eram temidos e detestados. Em 2004, a campanha terceirizada da Agência na Somália estava preparando o terreno para uma série espetacular de eventos que levaria a um aumento quase impensável do prestígio da Al-Qaeda no Chifre da África. Mas o trabalho conjunto da CIA com os chefes de milícias não foi o único responsável pela importante sublevação na Somália. O preço que os civis estavam pagando pela guerra no Iraque e no Afeganistão e os abusos em Abu Ghraib e Guantánamo davam credibilidade à ideia de que os Estados Unidos estavam travando uma guerra contra o Islã. Embora o país apoiasse seus próprios chefes de milícias em Mogadíscio, os atos de Washington depois do Onze de Setembro levaram à formação de uma coalizão de antigos chefes de milícias e movimentos religiosos que ameaçaria o desempenho dos prepostos dos Estados Unidos dentro e fora da Somália. Yusuf Mohammed Siad me contou que foi abordado pela CIA1 em Dubai em 2004. O notório chefe de milícia somaliano, conhecido pelo nome de guerra de Indha Adde, ou Olhos Brancos, estava — como Mohamed Qanyare — entre os facínoras que dividiram e destruíram a Somália durante a guerra civil travada ao longo da década de 1990. Depois de assumir pela força o controle da região de Shabelle Hoose,2 Indha Adde autoproclamou-se governador numa ocupação paramilitar tão brutal que lhe valeu o apelido de Carniceiro. Comandou operações de tráfico3 de armas e drogas a partir do porto de Merca e transformou a cidade numa terra sem lei. Da mesma forma que Qanyare, ele controlava uma milícia de bom tamanho e uma boa quantidade de veículos armados. Mas ao contrário de Qanyare, Indha Adde mantinha uma relação amistosa com o pequeno grupo de radicais islâmicos que se espalhavam no panorama caótico da Somália na década de 1990. Ele admitia abertamente que dava refúgio e proteção a alguns dos mesmos homens que Washington estava perseguindo. Isso fez dele um atraente quadro potencial para a CIA. Em Dubai, ele disse, encontrou-se com o chefe de operações para a África Oriental da CIA. “Eles me ofereceram dinheiro,4 ofereceram verbas para a região que eu controlava, ofereceram-me prestígio e poder na Somália por meio de cooperação com os
Estados Unidos”, lembrou-se ele quando nos encontramos em uma de suas casas em Mogadíscio em junho de 2011. “A CIA estava sempre me dizendo que os homens que eu protegia eram criminosos que atiraram bombas em embaixadas americanas, que eram uma ameaça também para o mundo. Disseram que queriam que eu entregasse esses caras a eles.” Mas Indha Adde tinha visto a aliança de chefes de milícias apoiada pela CIA em ação e não quis saber de nada daquilo. Em sua opinião, estavam matando somalianos a serviço de uma potência estrangeira. “Eles eram contratados para caçar qualquer pessoa procurada pelos americanos. Seus prisioneiros eram todos maltratados — eram desnudados e tinham a boca tapada com fita adesiva”, lembra ele. “Os chefes de milícias matavam os prisioneiros que os americanos deixavam em liberdade para evitar que falassem sobre sua captura.” Além disso, Indha Adde estava num processo de transformação do bandido beberrão que era naquilo que ele via como um muçulmano autêntico. Quando os americanos invadiram o Iraque em 2003, Indha Adde — como muitos muçulmanos no mundo inteiro — julgou que os Estados Unidos eram “arrogantes” e estavam numa cruzada contra o Islã. “As palavras do presidente americano contra o Islã, a invasão do Iraque e a guerra do Afeganistão me levaram a não cooperar pessoalmente com a CIA”, lembrou-se ele. “Recusei todas as propostas.” Indha Adde tomou a decisão de empenhar suas forças para derrotar os chefes de milícias da CIA. “O governo Bush superestimou a força da Al-Qaeda e de Osama [Bin Laden]. Mas quando invadiu o Iraque, todos pensamos que o Islã estava sendo atacado. Aquela foi a maior vitória da Al-Qaeda, e foi por isso que a apoiamos.” Quando membros de destaque da Al-Qaeda buscaram seu apoio ou pediram para instalar santuários nas áreas controladas por ele, Indha Adde concordou. Para ele, os homens estavam do lado certo da história, combatendo os cruzados e seus prepostos, os chefes de milícias, e defendendo o Islã. “Pessoalmente, pensei até mesmo em Osama como um homem bom que só queria a implantação da lei islâmica”, lembrou ele. “Se houvesse equitatividade, Bush deveria ter sido executado como Saddam Hussein. Mas ninguém é poderoso a ponto de levar os Estados Unidos a julgamento.” Enquanto Qanyare trabalhava com os americanos, Indha Adde se tornava um dos principais aliados paramilitares da Al-Qaeda e comandante de uma das facções islâmicas mais poderosas entre as que surgiram na Somália depois do Onze de Setembro. As atividades que tinham começado com um discreto encontro com Qanyare num quarto de hotel de Nairóbi, em 2002, com o objetivo de matar ou capturar cinco terroristas em especial,5 haviam se transformado em esquadrões da morte que perambulavam pela Somália matando com impunidade, sendo vistos por todos como diretamente apoiados e incentivados pelos Estados Unidos. Numa reunião com autoridades americanas no começo de 2006, segundo um telegrama diplomático, o presidente da Somália, internacionalmente reconhecido, “pensava em voz alta nas razões pelas quais os Estados Unidos queriam começar uma guerra aberta em Mogadíscio”.6 Foi essa época horrível que deu origem à União das Cortes Islâmicas (UCI), que se sublevaria
contra os prepostos apoiados pelos Estados Unidos. A UCI não foi um complô organizado pela Al-Qaeda, mas uma resposta autóctone à ilegalidade e à violência dos chefes de milícias, principalmente os apoiados pela CIA. Enquanto a Somália se desintegrava, começaram a aparecer pequenos tribunais islâmicos regionais7 que criaram sistemas locais de justiça baseados na Sharia, pretendendo implantar algum tipo de estabilidade. Durante muitos anos, esses tribunais foram entidades bastante autônomas baseadas em clãs. Em 2004, os doze tribunais8 se uniram para formar o Conselho Supremo das Cortes Islâmicas da Somália, conhecido como “as Cortes”. O xeque Sharif Sheikh Ahmed (conhecido como xeque Sharif), ex-professor primário e clérigo da região de Shabelle Dhexe, foi eleito presidente das Cortes. Indha Adde acabaria sendo seu ministro da Defesa. “Quando a União das Cortes Islâmicas se formou, havia uma guerra civil na Somália. Havia assassinatos, roubos e estupros. As vítimas eram os desvalidos. Todos sofriam, mas os clãs mais fracos eram os mais atingidos”, lembrou Indha Adde. “Os chefes de milícias mandavam, e nós procurávamos uma forma de unir e salvar nosso povo. É o Islã que nos une, por isso formamos a União das Cortes Islâmicas.” Em 2005, armas e dinheiro do estrangeiro eram derramados sobre a Somália. Indha Adde e outras figuras proeminentes das Cortes começaram a receber carregamentos de armas pesadas e munição9 que chegavam da Eritreia a campos de pouso particulares. Nesse meio-tempo, a Etiópia aliou-se aos Estados Unidos em apoio aos chefes de milícias da CIA10 com dinheiro, armas e munição. O primeiro-ministro da Somália, Ali Mohamed Gedi, veterinário formado na Itália, assistia à CIA financiando e armando Qanyare e outros chefes de milícias, alguns deles ministros de seu governo.
Eu seguia de perto aqueles chefes de milícias e principalmente Qanyare, que enganava as organizações americanas de Inteligência dizendo: “Posso derrotar esse terrorista, esse islâmico. Sim, vou pegá-los amanhã, só mais um dia”. E eles pagavam.
A CIA, ele acusou, solapou seu governo e “incentivou a multiplicação de tribunais islâmicos e seu fortalecimento. [Os Estados Unidos] incentivaram os tribunais islâmicos porque sustentavam os chefes de milícias e o ‘grupo de antiterrorismo’ naquela época. Assim, a confusão toda começou naquele ponto”.11 Em fevereiro de 2006, quando a União das Cortes Islâmicas ganhava força, Qanyare e a rede de chefes de milícias da CIA foram a público para anunciar oficialmente12 a Aliança para a Restauração da Paz e do Contraterrorismo e para convocar os somalianos a se unir a eles na luta contra os “jihadistas”. Em março, na Casa Branca, o NSC endossou oficialmente13 a campanha americana de financiamento e apoio aos chefes de milícias. O porta-voz do Departamento de Estado Sean McCormack disse que a estratégia americana consistia em
trabalhar com pessoas responsáveis14 […] no combate ao terror. É nossa real preocupação — o terror criando raízes no Chifre da África. Não queremos ver a criação de outro porto seguro para terroristas. Nosso interesse se resume em ver a Somália chegar a dias melhores.
Washington “preferia ver a situação só pelo prisma de sua ‘guerra ao terror’”, observou Salim Lone, ex-funcionário das Nações Unidas. “A administração Bush apoiou os chefes de milícias — violando o embargo de armas que ela ajudou as Nações Unidas a impor à Somália anos antes —, canalizando para eles, indiretamente, armas e malas cheias de dólares.”15 Qanyare e seus aliados de repente apareceram muito mais bem armados do que antes. “Para lutar com [a AlQaeda], você precisa de forças muito bem treinadas. E de soldados, armas e logística. E também de reforços”, disse-me Qanyare. Sem nenhuma sensibilidade para o irônico fato de que sua aliança com os americanos estava na origem da UCI, Qanyare disse a seus manipuladores que “esta guerra é fácil,16 não vai levar tempo nenhum”. Não levaria nem seis meses, ele previu. Ele estava certo quanto ao prazo, mas não sobre o desfecho. Depois que os chefes de milícias declararam guerra aberta às Cortes Islâmicas, Mogadíscio foi abalada por seus piores combates em mais de uma década. Em maio, o Washington Post noticiava batalhas “que tinham sido das mais violentas17 desde o fim da intervenção americana em 1994, que deixaram 150 mortos e centenas de feridos”. O Grupo de Monitoramento das Nações Unidas, em seu relatório ao Conselho de Segurança, citou o apoio aos chefes de milícias oferecido “clandestinamente por um terceiro país”.18 O relatório não revelava qual era o país, mas todo mundo sabia. Os diplomatas americanos na região em pouco tempo se viram assediados por seus congêneres de outras nações, inclusive da União Europeia. Segundo um telegrama da embaixada americana em Nairóbi, alguns governos europeus, “tendo concluído que os Estados Unidos estão apoiando chefes de milícias como meio de dar curso à GWOT, nos disseram que estão preocupados com a possibilidade de que essas ações retardem o CT e os objetivos de democratização na Somália”. Os Estados Unidos, dizia o telegrama, estavam preparando o lançamento de um relatório que declararia sem meias palavras: “Há sinais preocupantes de que a população em geral — irritada com o visível apoio dos Estados Unidos aos chefes de milícias — está cada vez mais se unindo à causa dos jihadistas”.19 Algumas autoridades americanas estavam claramente descontentes com o programa da CIA para os chefes de milícias. Eles disseram em privado ao New York Times que “a campanha prejudicou as iniciativas contraterroristas20 dentro da Somália e fortaleceu os mesmos grupos islâmicos que pretendia marginalizar”. Com a instância de empresários de Mogadíscio e outras cidades e, com seu forte apoio, a União das Cortes Islâmicas, antes desunida, começou uma mobilização organizada para derrotar os chefes de milícias da CIA. Indha Adde seria o líder de sua campanha militar. A UCI convocou os somalianos a “unir-se à jihad21 contra os inimigos da Somália”.
Mas não se tratava simplesmente de uma causa religiosa. Os chefes de milícias tinham sido um desastre para os negócios em Mogadíscio. O “assassinato [de] líderes religiosos e imãs22 nos bairros locais e de professores primários na verdade inflamou uma cólera providencial”, disse Abdirahman “Aynte” Ali, somaliano especializado no estudo do terrorismo. No entanto, do ponto de vista financeiro, os chefes de milícias “vinham mantendo Mogadíscio como refém havia dezesseis anos. Eles não abriam o aeroporto, nem o porto. Todos tinham pequenos campos de pouso ao lado de suas casas — literalmente suas casas. E assim mantinham as pessoas como reféns”. No fim de 2005, os empresários tinham dado dinheiro à UCI para comprar armamento pesado e pegar os chefes de milícias da CIA. Somalianos de todas as classes começaram a se inscrever para lutar junto à UCI. “As pessoas saíam do trabalho no Mercado Bakaara, pegavam suas armas e se uniam à luta contra os chefes de milícias”, recordou Aynte. “E na manhã seguinte voltavam a suas lojas, ou ao que quer que fosse. Era impressionante.”
A União das Cortes Islâmicas não era um grupo homogêneo. Muitos de seus líderes e soldados não tinham ligação com a Al-Qaeda, pouco sabiam sobre Bin Laden e tinham uma pauta voltada para seus problemas internos. A ascensão meteórica de sua popularidade tinha tudo a ver com o ódio aos chefes de milícias combinado ao desejo ardente de estabilidade e algum tipo de lei e ordem. “Enviamos nossos combatentes a Mogadíscio com a intenção de parar com a guerra civil e pôr fim à brutalidade dos chefes de milícias”,23 disse o xeque Ahmed “Madobe” Mohammed Islam, cuja milícia, a Ras Kamboni, com base em Jubba, no sul da Somália, aderiu à UCI em 2006. Segundo me contou, seus “homens na UCI eram pessoas de opiniões diversas — liberais, moderadas e extremistas”. Além da expulsão dos chefes de milícias e da estabilização do país pela imposição da Sharia, “não havia um programa político em comum”. Havia elementos da UCI, é certo, que tinham um projeto para a Somália semelhante ao do Talibã. Mas os tribunais com bases regionais eram muito mais usados para governar seus próprios clãs e subclãs do que como um sistema nacional de justiça. Embora a Somália seja uma nação quase que exclusivamente muçulmana, tem também uma forte tradição secular que entraria em conflito direto com um programa ao estilo do Talibã imposto nacionalmente. De acordo com o que observou o Internacional Crisis Group em seu relatório de 2005 intitulado “Islâmicos na Somália”:
A promessa de ordem e segurança24 representada pelos tribunais atraía somalianos de todo o espectro religioso. A heterogeneidade de seus membros e a diversidade dos que os apoiavam faziam com que toda tentativa de rotular o sistema da Sharia de “extremista”, “moderado” ou de qualquer orientação específica fosse vã. Na verdade, as Cortes eram uma complicada
coalizão de conveniência, que se mantinha unida por uma convergência de interesses.
A entidade afirmava que apenas duas das Cortes tinham sido “regularmente associadas à militância e eram contrabalançadas por outras Cortes. E conclui:
A maior parte das Cortes parece existir para propósitos principalmente pragmáticos. Mais do que impor um programa islâmico ou um novo governo somaliano, é provável que muitas delas sejam absorvidas de bom grado por um futuro sistema judiciário.
Isso não significa que os extremistas não vissem os tribunais como veículo para a implantação de seu programa radical. “Não partilhamos objetivos,25 metas ou métodos com grupos que patrocinam ou apoiam o terrorismo”, declarou o xeque Sharif, líder da UCI, num apelo dirigido à comunidade internacional. “Não temos estrangeiros em nossas Cortes, e só estamos aqui por uma necessidade da comunidade à qual servimos.” A declaração de Sharif pode ter sido tecnicamente verdadeira, mas só porque a Harakat al-Shabab al-Mujahidin não era oficialmente uma das Cortes. Mais conhecida pelo nome abreviado, Al-Shabab, ou Juventude, o grupo de jovens militantes islâmicos uniu suas forças às da UCI durante a guerra contra os chefes de milícias. Há várias versões sobre a época da formação oficial da Al-Shabab que vão do fim da década de 1990 a 2006. Com base em entrevistas com membros do grupo, Aynte concluiu que sua fundação ocorreu em algum momento de 2003.26 A Al-Shabab foi organizada de início por Aden Hashi Farah Ayro, que segundo os Estados Unidos tinha sido treinado em campos da Al-Qaeda no Afeganistão e estava por trás do assassinato de estrangeiros que trabalhavam em missões de ajuda à Somália. Outro líder influente era Ahmed Abdi Godane, conhecido jihadista do norte da Somália, região relativamente pacífica. Os homens começaram pelo treinamento de um grupo de jovens somalianos para uma guerra santa. “Eles eram extremamente discretos, e muita gente que participou do treinamento não era plenamente aceita na sociedade. Eles não eram intelectuais islâmicos, nem anciãos de clãs”, disse Aynte.
Buscavam legitimidade, e por isso aderiram à União das Cortes Islâmicas, já que não tinham nada a perder. Se a UCI se transformasse no governo central da Somália, seria um grande negócio. Se ela se dissolvesse, eles sabiam que podiam capturar a essência dela. Eram previdentes.
Afinal, a Al-Shabab acabaria ganhando um poderoso aliado com Hassan Dahir Aweys, excoronel do Exército somaliano que se tornara comandante militar da Al-Itihaad al-Islamiya, depois da derrubada do regime de Barre.
Com a Al-Shabab, a Al-Qaeda viu uma oportunidade: a de penetrar efetivamente no panorama político da Somália, objetivo pelo qual ela lutava, em vão, havia muito tempo. Entre os aliados mais próximos da Al-Shabab em seus primeiros tempos estava Indha Adde, na época membro de destaque da facção de Aweys da UCI. “Eu protegia toda aquela gente”, lembrou ele a respeito dos estrangeiros que tinham começado a aparecer dentro da Al-Shabab. “Achava que eram boas pessoas.” Entre os que ele protegia estava Abu Talha al-Sudani, supostamente especialista em explosivos e figura importante no financiamento27 das operações da Al-Qaeda na África Oriental. Indha Adde também deu refúgio a Fazul Abdullah Mohammed, natural das ilhas Comores, supostamente o cérebro dos ataques a bomba às embaixadas em 1998. “Na época, Fazul me pareceu uma pessoa equilibrada”, lembrou Indha Adde. “Na verdade, ele nos disse que não tinha nada a ver com as bombas.” Quando começou a guerra contra os chefes de milícias apoiados pela CIA, Indha Adde percebeu que Fazul “tinha grande experiência militar. Ele e outros [combatentes estrangeiros] tinham sido treinados pessoalmente por Osama”. Para Indha Adde, a CIA e o governo dos Estados Unidos eram os agressores, e os combatentes estrangeiros que pipocavam na Somália faziam parte de uma luta em progresso para retomar a Somália das mãos dos chefes de milícias. Apoiadas pela Al-Qaeda, as forças da Al-Shabab começaram a usar as táticas empregadas pelo próprio Qanyare e outros milicianos, assassinando pessoas relacionadas à aliança entre a CIA e os chefes de milícias. Fazul pode ter convencido Indha Adde de que não tinha nada a ver com terrorismo. Mas nos gabinetes da comunidade americana de contraterrorismo, ele se tornara o HVT número um de Washington na África Oriental. Fazul não era apenas terrorista, era um crente. E, segundo todos os relatos, brilhante. Nascido em 1972 ou 1974,28 dependendo de cada um de seus numerosos passaportes e documentos de identidade, ele foi criado29 numa família estável e economicamente bem-posta no extremamente instável grupo de ilhas que formam o arquipélago de Comores. O cenário político de sua infância foi preenchido com golpes ou tentativas de golpes — pelo menos dezenove ao todo — depois que as Comores se declararam independentes da França, em 1975. Quando menino, Fazul gostava de se fazer de James Bond ao brincar de espionagem com os amigos. Gostava de imitar os passos de dança de Michael Jackson e, segundo seus professores, foi uma criança muito inteligente. Aos nove anos, sabia de cor grande parte do Alcorão e recitava seus versículos na rádio nacional. Quando cresceu, começou a estudar com pregadores ligados ao wahabismo saudita. Ao chegar a Karachi, no Paquistão, em 1990, já estava totalmente radicalizado. Embora tenha começado a fazer o curso de medicina, em pouco tempo se transferiu para estudos islâmicos e foi recrutado para treinar com os mujahedin, que acabavam de expulsar os soviéticos do Afeganistão. Foi em Peshawar, no Paquistão, que ele ouviu pela primeira vez a pregação de Osama bin Laden. Pouco depois chegou ao Afeganistão para treinamento em guerrilhas, em
despistar a vigilância, no uso de armas leves e pesadas e na fabricação de bombas. Em 1991, ele escreveu a seu irmão Omar que tinha “sido confirmado”30 na Al-Qaeda. Sua primeira missão,31 em 1993, foi uma viagem à Somália para ajudar no treinamento de pequenos grupos de militantes islâmicos que tinham aderido à insurreição contra as forças americanas e das Nações Unidas. Trabalhou sob o comando de Abu Ubaidah al-Banshiri, encarregado por Bin Laden de dirigir as operações da Al-Qaeda na Somália. Para Fazul, era o começo de uma longa carreira de terrorista na África Oriental. Foi lá que ele se ligou a Aweys e a membros da Al-Itihaad, que mais tarde o conduziriam ao aprisco da União das Cortes Islâmicas. Fazul dizia32 que tinha participado da derrubada dos helicópteros Black Hawk em 1993, mas a Al-Qaeda não conseguiu entrincheirar-se na Somália enquanto os chefes de milícias dividiam o país entre si. A maior parte deles não tinha serventia para Bin Laden ou para qualquer estrangeiro. De acordo com um estudo do Centro de Combate ao Terrorismo da Academia Militar de West Point:
A longo prazo, o primado do tribalismo na Somália acabou frustrando o esforço de recrutamento da Al-Qaeda e deu origem a uma firme coalizão contra ocupantes estrangeiros. A organização confundiu seu apelo em favor da jihad no Afeganistão com um motivador universal ao qual os muçulmanos da Somália iam aderir na mesma proporção. Na Somália de 1993, esse apelo caiu em ouvidos moucos, já que a sobrevivência diante de competidores locais falou mais alto do que a jihad.
Por isso, Fazul voltou sua atenção para o Quênia. Os atentados a bomba contra embaixadas ali e na Tanzânia levaram cinco anos de cuidadoso planejamento e preparo. Trabalhando com o ativista Saleh Ali Nabhan, da Al-Qaeda, Fazul coordenou diretamente o atentado de Nairóbi, alugando a casa33 que serviria como laboratório para a fabricação dos explosivos para a operação. Nesse período, ele tornou-se uma estrela em ascensão dentro da Al-Qaeda. Transformou-se num de seus mais valiosos emissários, fundando células em toda a África Oriental e, por um período, transferiu sua família34 para Cartum, no Sudão, onde Bin Laden estava erigindo a Al-Qaeda e se preparando para declarar guerra aos Estados Unidos. Em 1997, quando Bin Laden anunciou oficialmente que a Al-Qaeda atacaria alvos americanos, Fazul já tinha saído do Sudão e ficou furioso por ficar sabendo da novidade pela CNN.35 O anúncio desencadeou perseguições,36 inclusive uma incursão na casa de um dos aliados mais próximos de Fazul, que estava preparando o atentado de Nairóbi. No fim, apesar de diversos choques com as autoridades quenianas, os ataques a embaixadas foram um triunfo indiscutível que catapultou Bin Laden e a Al-Qaeda à ignomínia internacional. Ele também pôs Fazul no caminho rumo à liderança das operações da Al-Qaeda na África Oriental. Depois do ataque de Nairóbi, os Estados Unidos começaram uma agressiva campanha de
congelamento dos bens de Bin Laden e da Al-Qaeda. Em resposta, Bin Laden procurou novas fontes de renda e encarregou Fazul de uma ambiciosa operação que visava penetrar no mercado de “diamantes de sangue”. De 1999 a 2001, Fazul trabalhou intensamente na Libéria,37 sob a proteção do ditador Charles Taylor. No total, a Al-Qaeda pôs as mãos em algo em torno de 20 milhões de dólares em dinheiro, obtidos a partir do comércio de diamantes, em grande parte extraídos dos campos de extermínio de Serra Leoa. Nessa altura, Fazul era um homem procurado, caçado com denodo pelas autoridades americanas, e a Al-Qaeda gastava muito dinheiro para mantê-lo em segurança. Ele tinha se tornado um quadro importante. Em 2002, Fazul foi enviado a Lamu, no Quênia — por ironia, a um passo de onde seria criada a base do JSOC na baía de Manda. De lá ele organizou os ataques ao Hotel Paradise de Mombasa e ao avião israelense. Alguns dos quadros operacionais que participaram da missão tinham começado o treinamento em Mogadíscio, e Fazul viajava com regularidade à Somália38 para verificar seus progressos. Durante esse período, trabalhou bastante com Nabhan. Depois dos ataques de Mombasa, Fazul se deslocava discretamente entre o Quênia e a Somália. Ao que parece, a CIA estava sempre em seus calcanhares. Em 2003, a agência contratou Mohamed Dheere,39 que fazia parte da aliança de chefes de milícias da CIA, para caçá-lo. Qanyare disse-me que a foto de Fazul tinha sido mostrada a ele já em janeiro de 2003 por agentes da Inteligência americana. Ele diz que mostrou aos agentes do contraterrorismo americano casas usadas por Fazul e Nabhan e lhes deu coordenadas de GPS, mas os agentes americanos relutavam em desencadear operações de assassinato dirigido em Mogadíscio, dizendo que preferiam que os chefes de milícias capturassem esses homens. “Temiam que pessoas inocentes morressem em decorrência de suas ações”, disse-me Qanyare. “Mas prendê-los não era fácil porque contavam com a proteção de gente da Al-Qaeda natural do país.” Os chefes de milícias não conseguiram pegar Fazul nem Nabhan. Em agosto de 2003, enquanto a CIA estava empenhada na caça a Fazul e a outros suspeitos de terrorismo na África Oriental, um endereço de e-mail que a Agência acreditava estar ligado à Al-Qaeda foi rastreado e levou a um cibercafé em Mombasa. Trabalhando com um agente secreto da CIA, forças de segurança quenianas invadiram o café e prenderam dois homens que estavam diante de um computador com a conta do e-mail suspeito aberta. Quando eram levados a um veículo policial, o maior dos dois suspeitos deu um empurrão no menor, sacou uma granada e a explodiu. Fontes de Operações Especiais disseram mais tarde ao jornalista Sean Naylor que o homem maior era um “guarda-costas suicida” e que o menor, que ele estava protegendo, era na verdade Fazul. “As forças de segurança acorreram ao local, mas Fazul era esperto demais para elas”,40 conta Naylor. “Ele correu para uma mesquita e saiu de lá vestido de mulher, usando um hijab [véu] ou qualquer outra forma de ocultar o rosto usada pelas muçulmanas.” A Inteligência americana vasculhou o apartamento que estava sendo usado por Fazul e seu guarda-costas em Mombasa e descobriu um dispositivo para falsificação de passaportes e vistos. Em 2004, a Inteligência americana disse ter interceptado comunicações41 de Nabhan que
indicavam a intenção de atacar mais uma vez a embaixada americana em Nairóbi, usando um caminhão-bomba e um avião alugado. Nessa época, os agentes do contraterrorismo americano tinham posto Fazul e outros membros do braço somaliano da Al-Qaeda “entre os fugitivos mais procurados do planeta”,42 dizendo que Fazul era “um mestre do disfarce, um perito falsificador e um hábil fabricante de bombas” que era “absurdamente esquivo” e “o mais perigoso e […] mais procurado” dos nomes da Al-Qaeda na Somália. Em Mogadíscio, Fazul ligou-se a Aweys e a Aden Hashi Farah Ayro, militante somaliano treinado pela Al-Qaeda no Afeganistão, e a outros antigos camaradas da Al-Itihaad, que começavam a fundar a Al-Shabab. Ele e Nabhan serviam como principais emissários da AlQaeda junto ao grupo. A essa altura, a Inteligência americana ainda nem sabia seu nome e referia-se a ele simplesmente como “o grupo especial”.43 A base de treinamento da Al-Shabab, o Centro Salahuddin, ficava num terreno antes ocupado por um cemitério italiano44 que tinha sido terrivelmente profanado. Era fortificado e dava aos recrutas a oportunidade de ver vídeos de jihadistas do Afeganistão, do Iraque e da Tchetchênia, assim como vídeos que mostravam Bin Laden. “Depois que a Al-Shabab criou o Centro Salahuddin, começaram a oferecer treinamento e técnicas, trazendo a experiência necessária”, disse Aynte. Quando a União das Cortes Islâmicas começou a se afirmar como uma força capaz de expulsar os chefes de milícias, Fazul garantiu que a Al-Qaeda faria parte dela. “Fazul e Nabhan, todos os estrangeiros estavam conosco”, lembrou Madobe. “Na época eles estavam empenhados em fazer conexões e coordenações que acreditávamos ser parte da jihad, e sabíamos que eram membros da AlQaeda.” Madobe disse que não se preocupou com Fazul e com outros membros da organização quando começaram a rondar a UCI. A Al-Shabab, ele afirmou, tinha muito pouco apoio dos maiores clãs da Somália e era um ator menor se comparado às Cortes, muito mais poderosas. “Estavam em desvantagem em relação aos membros das Cortes, que tinham programas positivos”, disse ele. “Mas posso afirmar que a atuação dos Estados Unidos ajudou a impulsionálos.”
A Al-Shabab começou a conquistar uma reputação em 2005, quando executou uma enxurrada de “assassinatos e profanações de cemitérios de Mogadíscio e outras regiões que foram manchetes”,45 segundo Aynte. Em seu ensaio “A anatomia da Al-Shabab”, ele afirma que nos anos seguintes à constituição da organização, “mais de cem pessoas, principalmente ex-generais, professores, empresários, jornalistas e ativistas foram assassinados sem alarde”. Ele notou que um ex-comandante de campo da Al-Shabad
dissera que os objetivos dos assassinatos eram duplos: em primeiro lugar, eram uma tentativa deliberada e preventiva de eliminar dissidências e possíveis barreiras. Em segundo, pretendiam infundir medo e terror no coração das elites de Mogadíscio, que na época eram
muito influentes porque dominavam completamente os negócios, a imprensa e o meio acadêmico.
Enquanto a CIA permanecia obcecada pelo número relativamente pequeno de combatentes estrangeiros que integravam a UCI na Somália, muitos integrantes das Cortes não os viam como problema. A maior parte dos líderes da UCI acreditava que se eles viessem a causar problemas para as Cortes, seriam controlados pelos clãs, que tinham importância suprema na estrutura de poder da Somália. Mas foi a atuação de Washington que tornou a Al-Shabab e seus aliados da AlQaeda mais poderosos do que o governo americano ou a CIA poderiam imaginar. Com o apoio público esmagador, as Cortes levaram apenas quatro meses para expulsar os chefes de milícias da CIA e pôr para correr Qanyare e seus homens. “Fomos derrotados por insuficiência logística das coisas de que uma milícia precisa para sobreviver: munição, armas superiores e coordenação. Era disso que se precisava”, lembrou Qanyare. Ele reclamava que os Estados Unidos lhe davam apenas “uns trocados”. Apesar disso, a fé de Qanyare em seus parceiros da CIA permanecia inabalável. “Os Estados Unidos conhecem a guerra. Eles são mestres da guerra. Sabem melhor do que eu. Então, quando fazem uma guerra, sabem muito bem como financiá-la. São professores, grandes professores.” Enquanto as Cortes surravam as forças de Qanyare, afirmou ele, a CIA recusou-se a aumentar seu apoio a ele e a outros chefes de milícias. “Não os culpo, porque eles trabalham sob instruções de seus chefes”, disse ele, acrescentando que se os Estados Unidos tivessem dado mais dinheiro e armas no momento decisivo em que a UCI estava sitiando Mogadíscio, “poderíamos ter ganho. Poderíamos tê-los derrotado”. Enquanto se preparava para fugir de Mogadíscio, ele disse que avisou Washington. “Eu disse a eles que seria caro demais para vocês derrotar [a Al-Qaeda e a Al-Shabab] no futuro, no Chifre da África. A Al-Qaeda está crescendo com rapidez, recrutando gente, e tem uma cabeça de ponte, um santuário seguro — um território vasto.” O JSOC tinha uma presença discreta na Somália até esse ponto, pois a CIA controlava a maior parte das operações contraterroristas no lugar. Mas à medida que os chefes de milícias protegidos pela Agência foram sendo afastados do poder, o JSOC começou a considerar a possibilidade de exercer um papel mais ativo. O general McChrystal, comandante do JSOC, já tinha começado a coordenar teleconferências46 sobre o Chifre da África e começava a pressionar a favor da ampliação do papel do JSOC nas operações de contraterrorismo na região.
Em junho de 2006, as forças da UCI assumiram oficialmente o controle de Mogadíscio.47 Alguns especialistas em Somália do governo americano saudaram a expulsão dos chefes de milícias “como uma notícia maravilhosa”,48 nas palavras de Herman Cohen, ex-secretário de
Estado assistente para assuntos africanos. “Os chefes de milícias causaram tremendos infortúnios. […] Com eles, as pessoas estavam sempre inseguras”, declarou Cohen no dia seguinte à tomada da capital pela UCI. “É muito importante impedir que esses chefes voltem a Mogadíscio.” Sobre o apoio de chefes de milícias: como Qanyare, Cohen disse: “Acho que o governo dos Estados Unidos entrou em pânico. Basta ver um grupo muçulmano para dizer: ‘Aí vem o Talibã’”. Quanto ao risco de a Somália se transformar num valhacouto da Al-Qaeda, disse: “Acho que é pequeno, porque o pessoal do movimento islâmico viu o que aconteceu ao Talibã e não quer que aconteça o mesmo com eles”. O presidente da UCI, xeque Sharif, imediatamente escreveu uma carta às Nações Unidas, ao Departamento de Estado, à Liga Árabe, à União Europeia, à União Africana e a outros organismos internacionais negando a relação da UCI com terroristas e afirmando que as Cortes queriam “estabelecer relações amigáveis49 com a comunidade internacional, baseadas em respeito e interesses recíprocos”. “O atual conflito foi alimentado pelas informações incorretas dadas por esses chefes de milícias ao governo dos Estados Unidos”, escreveu ele. “Sua especialidade é aterrorizar pessoas, e foram capazes de usá-la para aterrorizar o governo americano dando informações erradas sobre a presença de terroristas na Somália.” Numa carta posterior dirigida à embaixada americana em Nairóbi, Sharif prometeu apoio no combate ao terrorismo e disse que a UCI queria “convidar uma equipe de investigação50 das Nações Unidas para garantir que os terroristas internacionais não estavam usando a região como rota ou como esconderijo”. Os Estados Unidos não se impressionaram com a carta. “Embora estejamos dispostos a encontrar elementos positivos na UCI”, dizia um telegrama diplomático enviado de Nairóbi, “reconhecer a presença de estrangeiros da Al-Qaeda servirá como teste decisivo51 para nosso compromisso com qualquer de seus líderes.” De modo geral, a opinião dos Estados Unidos sobre a tomada do poder pelas Cortes Islâmicas não era unânime. Dezenas de telegramas diplomáticos do período mostram uma avaliação confusa e contraditória pelas autoridades americanas. Sharif era regularmente considerado “moderado”52 nesses telegramas enviados da embaixada americana em Nairóbi. Ainda assim, segundo Jon Lee Anderson, da New Yorker, “o governo Bush tinha chegado até a cogitar o assassinato de Sharif”.53 A Al-Shabab, por sua vez, o via como um vendido, cujas tentativas de bajular o Ocidente eram uma apostasia. Diplomatas americanos trabalharam com o governo reconhecido da Somália para resolver como se aproximar da UCI, mas as Forças Armadas e a CIA viam a tomada de Mogadíscio pelas Cortes como uma grave crise. “De repente, isso está se tornando uma questão importante, na qual se concentram pessoas de muitas esferas do governo: analistas militares, analistas de Inteligência etc. De repente, a Somália foi catapultada para o radar de todo mundo”,54 disse Daveed Gartenstein-Ross, que sempre prestava consultoria às Forças Armadas dos Estados Unidos, inclusive ao Centcom, que assessorou as forças militares dos Estados Unidos enviadas
ao Chifre da África. “A questão imediata tem dois aspectos: o primeiro é sobre a relação das Cortes com a Al-Qaeda, e o segundo é o surgimento de um possível santuário terrorista na Somália.” O presidente Bush estava em Laredo, Texas, quando chegou a notícia de que a UCI tinha expulsado os chefes de milícias de Mogadíscio. “Obviamente, quando há instabilidade em qualquer parte do mundo, isso nos diz respeito. Há instabilidade na Somália”,55 disse ele. “Estamos observando cuidadosamente o desenrolar dos acontecimentos. E quando eu voltar a Washington vamos formar uma ideia mais estratégica de como reagir corretamente aos últimos incidentes no país.” Enquanto a Casa Branca formava ideias estratégicas, a UCI implantava um programa radical em Mogadíscio — mas que praticamente todos os somalianos viam como benéfico. As Cortes começaram a desmontar a absurda barafunda de barreiras56 que separavam o domínio de um chefe de milícia de outro, o que levou a uma queda significativa no preço dos alimentos. Reabriram os portos e o aeroporto,57 possibilitando um aumento vertiginoso da ajuda humanitária que conseguia chegar a Mogadíscio. Roubos e outros crimes diminuíram substancialmente, e muitos habitantes disseram aos jornalistas que se sentiam mais seguros58 do que em qualquer outro momento dos dezesseis últimos anos. A UCI “trouxe uma pequena dose de estabilidade sem precedentes em Mogadíscio”, lembrou Aynte. “Você podia sair de carro à meia-noite, sem problema, sem seguranças.” Autoridades americanas reconheceram59 a melhora na entrega de ajuda e creditaram à UCI a redução da pirataria no país. Até mesmo membros do governo somaliano no exílio, apoiado pelos Estados Unidos, reconheceram que a UCI tinha conseguido algo importante. “As Cortes Islâmicas trouxeram uma imagem de ordem60 e estabilidade em Mogadíscio”, admitiu Buubaa, ex-primeiro-ministro que se opusera à UCI. “Muita gente em Mogadíscio reconheceu isso.” Não foi o caso da comunidade de Operações Especiais dos Estados Unidos. Depois do Onze de Setembro, o JSOC tinha sido encarregado de caçar os terroristas mais procurados do mundo, na concepção da Casa Branca. O programa social das Cortes Islâmicas não mudaria esse fato. A aventura da CIA com os chefes de milícias tinha sido um fracasso categórico e na verdade teve como resultado um aumento na proteção dada a nomes da AlQaeda que estavam no radar do JSOC. A invasão do Iraque era, de muitas formas, um enorme desvio em relação à missão central do JSOC. “Não há dúvida quanto a isso. O Iraque ferrou com tudo”, disse Gartenstein-Ross. A Somália é um “país que, em comparação com o Iraque, teria sido mais fácil de estabilizar. Mas os recursos nunca eram voltados para lá. O maior problema é que não se fez nada para evitar uma insurreição — e com efeito, desde o começo se anunciava uma insurreição”. Mais precisamente, as próprias medidas tomadas por Washington serviram de faísca para a insurreição. Depois do fracasso da CIA na Somália, as Forças Armadas americanas começaram a preparar uma campanha para esmagar as Cortes. Mas com a lembrança da derrubada dos helicópteros Black Hawk ainda dominante quando se falava de tropas americanas em solo da Somália, a Casa Branca começou a considerar a utilização de um
vizinho humilhado, a Etiópia, como força fantoche que poderia dar cobertura às equipes de ataque americanas, principalmente do JSOC, para entrar dissimuladamente na Somália e começar a perseguir seus Alvos de Grande Valor. Um telegrama das Nações Unidas de junho de 2006, em que se mencionava uma reunião de autoridades do Departamento de Estado e oficiais das forças americanas da Força-tarefa do Chifre da África, indica que os Estados Unidos sabiam da diversidade da UCI, mas “não permitiriam” que ela governasse a Somália. Os Estados Unidos, segundo se notou, pretendiam “unir-se à Etiópia61 se o[s] ‘jihadista[s]’ assumirem o poder”. O telegrama concluía dizendo que “qualquer ação etíope na Somália deve ter o aval de Washington”. Algumas vozes dentro do governo americano se ergueram a favor do diálogo ou da reconciliação, mas foram abafadas por falcões decididos a derrubar a UCI. Equipes de Operações Especiais estavam havia muito na Etiópia, treinando suas famosas unidades de comandos Agazi.62 O país tinha também efetivos aéreos americanos e pequenas instalações militares a que os Etados Unidos tinham acesso. Mas embora a Etiópia viesse a desempenhar um papel importante nos acontecimentos que estavam por vir, outro vizinho da Somália proporcionaria a plataforma de lançamento para as forças do JSOC. As Forças Armadas americanas começaram a construir Camp Simba na baía de Manda, no Quênia, pouco depois do desastre que foi a derrubada dos Black Hawks. Embora seu propósito original fosse treinar e assistir forças marítimas do Quênia ao longo da costa da Somália, depois que a UCI subiu ao poder e os Estados Unidos começaram a esboçar planos de contingência, a base de Manda assumiu um novo papel. Equipes do JSOC, principalmente as que pertenciam à Equipe 6 dos SEALs/DEVGRU, começaram a se instalar ali.63 Sua presença era dissimulada pelas unidades de serviços civis das Forças Armadas americanas, que se misturavam à população local — na reconstrução de escolas e em projetos de tratamento de águas — e treinavam as forças quenianas convencionais. Era da baía de Manda que as equipes de assalto das tropas de elite dos Estados Unidos partiriam para possíveis operações na Somália. Os homens encarregados dessa missão seriam conhecidos como Força-tarefa 88.64 Praticamente desde o instante em que a UCI assumiu o poder, os etíopes começaram a babar com a possibilidade de intervenção. Desde que os dois países travaram uma guerra cruenta na década de 1970, as Forças Armadas etíopes violavam habitualmente a fronteira, irritando os somalianos da região. Militantes somalianos que viam a região etíope de Ogaden como própria faziam incursões e ataques em território do país vizinho. Depois que a UCI assumiu o poder, Adis Abeba teve a oportunidade de reforçar sua retórica65 sobre a ameaça que jihadistas somalianos representavam para a região. Ao fugir de Mogadíscio, Qanyare foi à rádio nacional66 para avisar que a vitória da UCI resultaria na invasão da Etiópia, dizendo que os somalianos estavam cometendo um grave erro ao apoiar as Cortes. “Nunca, jamais apoiei que a Etiópia entrasse na Somália”, lembrou Qanyare. “Juro por minha vida, nunca aceitei isso. Porque eu sei quem eles são, o que querem, o que estão procurando.” Um mês depois que a UCI subiu ao poder,
diplomatas americanos começaram a registrar relatos de “missões clandestinas de reconhecimento”67 da Etiópia “na Somália como preparação para futuras operações”. Os Estados Unidos “já tinham interpretado mal os acontecimentos ao ajudar odiosos chefes de milícias. E interpretaram mal outra vez”, disse-me Aynte.
Deveriam ter aproveitado a oportunidade de se ligar à UCI. Porque das treze organizações que integravam as Cortes, doze eram tribunais islâmicos, tribunais de clãs que não tinham nenhuma jihad global [em seus planos] nem nada parecido. A maioria de seus membros nunca tinha saído da Somália. Eram gente do país. A Al-Shabab era a única ameaça — só isso. E era possível controlá-la. Mais uma vez, porém, a situação foi mal interpretada, e a Etiópia passou a ser pressionada pelos Estados Unidos a invadir a Somália.
Quanto à Al-Qaeda, ele disse: “Foi a dica que eles estavam esperando”. Malcolm Nance, veterano com 25 anos de Programa de Combate ao Terrorismo da comunidade americana de Inteligência, passou a maior parte de sua carreira trabalhando em operações secretas no Oriente Médio e na África. Estudou a ascensão da Al-Qaeda e da AlShabab, e conhecia bem a liderança das duas organizações. Nance disse-me que acreditava que os Estados Unidos tinham administrado muito mal a questão do contraterrorismo na Somália. Antes dos boatos sobre uma intervenção etíope, disse ele, a “Al-Shabab era uma organização secundária, periférica”.68 Nance achava que os Estados Unidos deveriam ter tentado trabalhar com a UCI e buscar isolar os quadros operacionais estrangeiros da Al-Qaeda.
Como um cara da Inteligência, sabe o que eu teria feito? [com um dirigente da Al-Qaeda]: Eu o deixaria de lado. Poria muitos efetivos o mais perto dele possível. Investiria recursos nele e em todos os seus subordinados. Para descobrir tudo o que pudesse. Descobrir qual era a profundidade real da Al-Qaeda ali. Depois ele sofreria um acidente lamentável na estrada […]. Você sabe, um caminhão que bate de frente com ele.
Nance acreditava que, dada a estrutura somaliana de poder baseada nos clãs — e sua insistente marginalização de agentes estrangeiros e a rejeição generalizada de ocupação estrangeira —, os Estados Unidos poderiam ter feito uma guerra de propaganda contra o número relativamente pequeno de quadros operacionais da Al-Qaeda junto às Cortes e assim “acabar com a mentalidade deles, acabar com sua razão de ser”. “Não teria sido muito mais divertido rotular a Al-Qaeda como um culto não islâmico? A ponto de as pessoas se negarem a vender pão para eles, a ponto de lutarem contra eles quando estivessem num campo de batalha.” A Inteligência americana, ele disse, deveria ter promovido operações de desinformação para caracterizá-los como “satânicos, ou pessoas anti-Islã.” E acrescentou:
“Devíamos ter ido atrás deles dessa forma, e isso teria ajudado cada dimensão a acabar com a organização”. As chances de sucesso da estratégia proposta por Nance são discutíveis, dado o sistema de clãs da Somália e a firme oposição à influência externa. Mas isso nunca foi posto à prova. Ele chamou a estratégia real dos Estados Unidos que se seguiu de “absolutamente inacreditável”. Da mesma forma que o JSOC e a CIA, a Al-Qaeda monitorava de perto o que acontecia na Somália. Quando correram os boatos de uma intervenção externa, Osama bin Laden divulgou uma declaração em que dizia que não tinha a ilusão de que a Etiópia estivesse tomando as próprias decisões. “Estamos advertindo todas as nações69 do mundo a não aceitar o pedido dos Estados Unidos de enviar forças internacionais à Somália. Juramos por Alá que vamos combater seus soldados em solo somaliano, e nos reservamos o direito de puni-los em seu próprio território, ou em qualquer outro lugar, no momento azado e da maneira adequada”, declarou ele.
Tenham o cuidado de não esperar e se atrasar, como fizeram alguns muçulmanos quando tardaram em acudir o governo islâmico do Afeganistão. Esta é uma oportunidade de ouro e uma obrigação pessoal de todos os que forem capazes, e vocês não devem perder a oportunidade de criar o núcleo do Califado.
A União das Cortes Islâmicas — e o primeiro período de relativa paz que Mogasdíscio experimentou — durou apenas seis meses. Enquanto diplomatas americanos na região alertavam seus superiores, em privado,70 sobre as prováveis consequências terríveis de uma invasão etíope e procuravam identificar meios de reconciliação entre a UCI e o governo de transição internacionalmente reconhecido, a equipe de segurança nacional do governo Bush se preparava para uma guerra que deporia a UCI. No fim de 2006, forças etíopes postavam-se em diversos pontos da fronteira com a Somália. Embora diplomatas americanos manifestassem preocupação com a escalada, pareciam não perceber que o aparato militar americano estava profundamente envolvido naquilo. A UCI percebeu o que estava por vir. Tanto o xeque Sharif, que meses antes prometera colaborar com os Estados Unidos e com as Nações Unidas, quanto Aweys convocaram os somalianos a travar uma jihad contra qualquer força invasora etíope. Em uniforme de combate, Sharif às vezes empunhava um fuzil AK-47 quando fazia pronunciamentos públicos. “Quero dizer ao povo somaliano que ele tem de proteger seu país e sua religião”, dizia. “O velho inimigo da Somália está de volta, portanto dei minhas ordens aos soldados das Cortes Islâmicas: estamos convocando-os para a jihad, como Alá”.71 Em novembro, quando a Etiópia começou a pressionar as autoridades americanas para apoiar uma invasão e depor a UCI, os americanos conseguiram uma “resolução executiva”72 escrita em árabe e supostamente emitida por Aweys,
que recentemente assumira o cargo de presidente da UCI. Essa resolução incitava ao assassinato de dezesseis representantes do governo somaliano no exílio, inclusive o presidente, Mohammed Yusuf, e o primeiro-ministro, Mohamed Gedi. Especificamente, convocava “mártires” da AlShabab a “executar as operações usando os mais mortíferos métodos suicidas empregados por combatentes mujahedin no Iraque, no Afeganistão, na Palestina e em outros países do mundo”. Em dezembro, os Estados Unidos já tinham criado uma estratégia a ser dividida com as Forças Armadas etíopes e com o governo da Somália no exílio para expulsar as Cortes de Mogadíscio. O plano consistia em pôr no poder o governo da Somália, débil mas oficial, que seria sustentado por forças somalianas, treinadas pelos etíopes, e pelas Forças Armadas da Etiópia. Quanto aos líderes da UCI e aos combatentes estrangeiros, a Força-tarefa 88, com base em Manda, executaria um plano para caçá-los e matá-los. Em 4 de dezembro de 2006, o comandante geral do Centcom, John Abizaid,73 pousou em Adis Abeba para uma reunião com o primeiro-ministro, Meles Zenawi. Oficialmente, era uma visita de rotina a um aliado dos Estados Unidos. Por detrás dos panos, estava claro que a guerra era iminente. “Vimos o que estava acontecendo como a chance de nossa vida”,74 disse um oficial do Pentágono à revista Time, “uma raríssima oportunidade para que os Estados Unidos agissem diretamente contra a Al-Qaeda e pegassem esses terroristas.” Dias depois da reunião com Abizaid na Etiópia, o Departamento de Estado americano radicalizou sua retórica e passou a caracterizar publicamente a UCI como uma das frentes da AlQaeda. “O Conselho das Cortes Islâmicas está sendo controlado por membros de células da AlQaeda na África Oriental”, declarou Jendayi Frazer, secretário de Estado assistente para assuntos africanos e o principal funcionário do governo americano na África. “A camada superior das Cortes é extremista até a medula. Eles são terroristas75 e controlam tudo.” De forma análoga ao que fizeram durante a preparação da invasão do Iraque, em 2003, os principais veículos da imprensa começaram a exagerar as conexões da Al-Qaeda, publicando impressões de funcionários americanos anônimos como se fossem fatos incontestes. Começaram a sair manchetes sensacionalistas que anunciavam a “crescente ameaça da Al-Qaeda na África”.76 Repórteres das redes televisivas anunciavam incansavelmente resenhas da história do conflito na Somália, omitindo, como convinha, o papel dos Estados Unidos na geração da crise. Na CBS, o veterano correspondente David Martin declarou: “A Somália tem sido um lugar seguro77 para a Al-Qaeda desde que as Forças Armadas dos Estados Unidos saíram do país, logo após a infame derrubada dos Black Hawks”. A correspondente da CNN no Pentágono, Barbara Starr, falava como se fosse um porta-voz do governo Bush: “A preocupação de hoje na África Oriental78 é fechar a Somália como santuário de terroristas, pois caso contrário a ameaça de um novo ataque continua sendo real”. Embora o governo Bush e alguns destacados veículos da imprensa exagerassem a ameaça terrorista, nem todos rezavam pela mesma cartilha. Mesmo quando as Forças Armadas dos Estados Unidos se preparavam para a ação, o diretor de Inteligência nacional, John Negroponte,
manifestou ceticismo quanto à acusação de que as Cortes estavam sendo dominadas pela AlQaeda. “Não acho que os fatos sejam indubitáveis”,79 disse. A Somália “surgiu na tela do radar bem recentemente”, observou, acrescentando que a questão principal era se a UCI “seria o próximo Talibã”. E concluiu: “Não creio que eu tenha visto uma boa resposta”. John Prendergast, que atuou como especialista em assuntos africanos no NSC e no Departamento de Estado durante o governo Clinton, chamou de “tola”80 a política de Bush para a Somália, dizendo que apoiar uma invasão etíope do país tornaria “praticamente impossível implementar nosso programa de contraterrorismo”. O então senador Joe Biden, que na época se preparava para assumir a presidência da Comissão de Relações Internacionais, falou claro e convincentemente, mostrando um conhecimento histórico perspicaz da sequência de eventos que levou a UCI ao poder. Biden acusou:
Fazendo uma aposta errada81 nos chefes de milícias para jogar nossa cartada, o governo levou ao fortalecimento das Cortes, enfraqueceu nossa posição e não deixou boas opções. Este é um dos desdobramentos menos conhecidos, porém mais perigosos do mundo, e o governo não tem uma estratégia confiável para lidar com ele.
Com ou sem uma estratégia confiável, o governo estava decidido a derrubar as Cortes. Em 24 de dezembro de 2006, aviões de guerra etíopes começaram o bombardeio, enquanto a fronteira com a Somália82 era cruzada por tanques. Era a clássica guerra por procuração comandada por Washington e travada por 40 mil ou 50 mil soldados83 do vizinho mais desprezado da Somália. O ministro de Defesa da UCI, Indha Adde, deu uma entrevista coletiva e convidou publicamente combatentes islâmicos estrangeiros a unir-se à luta. “Que eles venham lutar na Somália e fazer a jihad, e, se Deus quiser, atacar Adis Abeba”,84 disse. Enquanto os aviões de combate bombardeavam a Somália e as forças etíopes avançavam em direção a Mogadíscio, Frazer e outros membros do governo americano negavam que Washington estivesse por trás da invasão. Essas afirmações eram comprovadamente falsas. Gartenstein-Ross afirmou:
Os Estados Unidos patrocinaram a invasão etíope, pagaram tudo, até o combustível gasto, para assumir isso. E havia também forças americanas na frente de batalha, forças de Operações Especiais dos Estados Unidos A CIA estava na frente de batalha. A Força Aérea também fazia parte da história. Tudo isso dava superioridade militar aos etíopes.
“Os etíopes não teriam sido capazes de ir em frente sem o apoio do governo americano”, lembrou Gedi, que na época era o primeiro-ministro no exílio e trabalhou com a Inteligência
americana e com o governo etíope no planejamento da invasão. “As forças aéreas americanas nos apoiavam.” Qanyare viu a aliança que tivera com a CIA ser substituída pelos etíopes, os mais recentes prepostos de Washington. Para ele, foi um desastre incalculável. A “comunidade internacional trouxe [os etíopes], com o pretexto de que estavam lutando contra a Al-Qaeda”, disse Qanyare.
Eles matavam a população por causa do ressentimento que vinha da guerra de 1977. Liquidavam as pessoas, matavam mulheres e crianças. Eliminação. Com o pretexto de combater a Al-Qaeda. Acho que se os Estados Unidos conhecessem o caráter deles, nunca teriam apelado para eles.
No dia de Ano-Novo, o primeiro-ministro no exílio, Gedi, estava instalado em Mogadíscio. “A era dos chefes de milícias na Somália está terminada”,85 declarou ele. Numa mostra do que estava por vir, eclodiram por toda parte manifestações86 contra as forças que o tinham levado ao poder, e a população começou pronta e raivosamente a denunciar a “ocupação” etíope. Os acontecimentos de 2007 empurrariam a Somália para uma trajetória de mais horror e caos, levando a um aumento surpreendente no poder e no tamanho das forças que Washington pretendia combater. “A Etiópia e a Somália eram arqui-inimigas, inimigas históricas, e as pessoas achavam que aquilo estava agravando ainda mais a situação”, disse Aynte. “Estava nascendo uma insurreição.” “Se houve uma lição em termos de operações militares nos dez últimos anos, ela nos diz que os Estados Unidos são uma força insurgente muito eficaz”, disse Gartenstein-Ross. “Nas áreas em que tentam derrubar um governo, são bastante bons nisso. O que não se vê é sucesso em estabelecer uma estrutura de governo viável.” As ações dos Estados Unidos e da Etiópia, disse Buubaa, ex-ministro das Relações Exteriores, vão acabar “conduzindo a Somália ao redil da AlQaeda”. Nance, o veterano de Inteligência, acha que a invasão etíope apoiada pelos Estados Unidos foi uma bênção para a Al-Shabab:
Antes daquilo, a organização existia dentro de uma estrutura muito pequena, como as dos chefes de milícias, mas depois que a Etiópia chegou — é bastante óbvio que ela agia como um representante [dos Estados Unidos] — a Al-Qaeda disse: “Ótimo! Uma nova frente de batalha completa para a jihad. É lá que vamos pegá-los. Vamos pegar os cristãos etíopes, vamos pegar conselheiros americanos. Agora basta criar um novo campo de batalha e revigoraremos a organização da Al-Qaeda na África Oriental”. Foi exatamente o que aconteceu.
20. Fuga da prisão
IÊMEN, 2006 — Enquanto os chefes de milícias da CIA combatiam a União das Cortes Islâmicas na Somália e o governo Bush se concentrava quase exclusivamente na insurreição em ascensão no Iraque, houve uma fuga em massa da prisão de Sana’a que se tornaria um fato da maior importância para a reconstrução da Al-Qaeda na região. Entre os fugitivos estavam figuras de destaque que integrariam o núcleo da liderança de uma nova organização, a Al-Qaeda na Península Arábica (AQPA), inclusive Nasir al-Wuhayshi, que tinha sido secretário pessoal de Bin Laden. Em 3 de fevereiro de 2006, Wuhayshi e outros 22 presos escaparam da prisão de segurança máxima1 por um túnel construído entre uma cela e uma mesquita próxima, embora mais tarde2 Wuhayshi tenha se vangloriado de ter saído literalmente pela porta da frente depois das orações matinais. Wuhayshi se reuniria aos braços saudita e iemenita da Al-Qaeda sob a bandeira regional da AQPA. Qasim al-Rimi, que fugiu na mesma ocasião, tornar-se-ia comandante militar da AQPA. “É um problema sério”,3 disse Rumsfeld alguns dias depois da fuga. “Eram pessoas intimamente envolvidas com as atividades da Al-Qaeda e diretamente ligadas ao atentado contra o USS Cole e a morte de marinheiros que estavam a bordo.” Entretanto, enquanto Rumsfeld e outras autoridades americanas se dedicavam quase somente a pressionar o presidente iemenita Ali Abdullah Saleh a recapturar Jamal al-Badawi, que os Estados Unidos queriam que fosse extraditado, e outros suspeitos do atentado contra o Cole, seriam Wuhayshi e Rimi os que se tornariam os mais perigosos e problemáticos dos fugitivos. Diversos ex-dirigentes da Inteligência americana, autoridades policiais e militares que trabalharam em operações e na política do Iêmen disseram-me que essas fugas não eram acidentais e que tampouco o fato de a AQAP ter escolhido o Iêmen estava inteiramente fora do controle de Saleh. Embora normalmente descartassem a ideia de um conluio direto entre Saleh e a Al-Qaeda no planejamento dos atentados, essas pessoas comentavam que durante muitos anos Saleh dera permissão tácita para atos de terrorismo em território iemenita, ou explorara esses ataques, depois de ocorridos, como meio de lembrar Washington da ameaça representada pela Al-Qaeda no Iêmen. “Saleh sabia fazer o jogo4 de modo que todos — da Al-Qaeda aos sauditas e aos Estados Unidos — ficassem sabendo que ele era necessário”, disse a ex-autoridade máxima do contraterrorismo americano, com grande experiência no Iêmen. “E jogava muito bem.”
O jogo tinha como objetivo obter dinheiro, armas e treinamento especializado para que as principais forças de elite combatessem as rebeliões internas que ele via como a verdadeira ameaça a sua sobrevivência. “Durante anos, vimos alguns desses regimes fazendo esse tipo de jogo”, disse em 2010 o dr. Emile Nakhleh, antigo agente sênior de Inteligência da CIA.
Eles fazem esse jogo para sobreviver,5 para ficar do lado certo, para conseguir todo tipo de ajuda militar — e na verdade a ajuda militar equivale a duas ou três vezes a ajuda econômica que o Iêmen recebe. […] Portanto, se isso é verdade, eles não estão necessariamente servindo à política contraterrorista estratégica, de longo prazo [dos Estados Unidos].
Alguns experimentados analistas políticos iemenitas acreditam, no entanto, que havia na verdade uma cooperação direta do regime de Saleh com a Al-Qaeda. Dizia-se que alguns membros da Guarda Republicana, da PSO e das Forças Centrais de Segurança (Central Security Forces, CSF) — todas elas recebiam apoio de Washington — estavam trabalhando com células da Al-Qaeda ou já tinham ajudado a organização com suprimentos, esconderijos e informações sobre instalações diplomáticas estrangeiras. A fuga da prisão em 2006 pareceu a alguns especialistas em segurança bem informados “um trabalho interno”,6 afirmou o jornalista Sam Kimball num relatório para a revista Foreign Policy.
A prisão é uma imponente fortaleza no coração de Sana’a, com soldados à paisana patrulhando todo o seu entorno. As pequenas celas dos internos — onde só entram utensílios de plástico — são revistadas várias vezes por dia. Os presos só saem para o banho de sol durante meia hora diária.
O coronel da reserva Muhsin Khosroof disse:
Não sabemos como foi que eles conseguiram as ferramentas para cavar um túnel de trezentos metros, nem sabemos onde foi parar a terra que saiu dali. Sem apoio direto de funcionários da prisão, essa operação teria sido impossível.7
A fuga contribuiu diretamente para o crescimento da Al-Qaeda no Iêmen. Se for verdade o que disseram o coronel Khosroof e outros oficiais, isso significa que os Estados Unidos apoiavam o mesmo governo que ajudava a ressurreição da Al-Qaeda no Iêmen. Depois da fuga, o governo Bush continuou aumentando a assistência militar ao país. Segundo a mais alta autoridade do contraterrorismo americano na época, Saleh achava que o custo político de acabar com a Al-Qaeda de maneira definitiva — entregando seus líderes — seria alto demais. “No momento em que entregar as principais figuras, [Saleh] despenca no abismo junto
com a Al-Qaeda. Eles vão deixar de apoiá-lo. Ou seja, o relacionamento vai ficar gravemente abalado.” E acrescentou que Saleh “não deu aos Estados Unidos nada de substancial em troca do dinheiro que recebeu”. Em julho de 2006, cinco meses depois da fuga, os Estados Unidos promoveram uma grande ampliação de Camp Lemonnier8 no Djibuti, que passou de 35 hectares para quase duzentos. Seus efetivos chegaram a 1500, e o local transformou-se num grande eixo da CIA e um ponto de escala para Forças de Operações Especiais que estivessem executando ações secretas ou clandestinas na região. “Algumas equipes usam a base9 quando não estão trabalhando ‘às ocultas’ em países como Quênia, Etiópia e Iêmen”, publicou a revista Stars and Stripes, citando o oficial executivo do campo, coronel Joseph Moore. Enquanto Saleh fazia seu jogo com os americanos sobre a fuga de prisioneiros, os Estados Unidos consolidavam gradualmente sua presença na região, embora os funcionários do governo Bush continuassem tratando o reagrupamento da Al-Qaeda no Iêmen como questão secundária. Em outubro de 2007, Saleh recebeu a mais alta assessora10 do presidente Bush em questões de segurança nacional e contraterrorismo, Frances Townsend, em Aden. Durante o encontro, ela pediu a Saleh que atualizasse suas informações sobre Jamal al-Badawi, o suposto cérebro do ataque ao Cole. Saleh confirmou que ele tinha sido solto e estava “trabalhando em sua fazenda” a pouca distância do local onde ele e Frances Towsend estavam reunidos. Saleh disse ainda que vinha de um encontro com Badawi duas semanas antes. “Ele me prometeu abandonar o terrorismo e eu lhe disse que seus atos prejudicavam o Iêmen e sua imagem; ele começou a entender”, disse Saleh. Quando Frances Townsend “manifestou desânimo” com a libertação de Badawi, Saleh disse a ela que não se preocupasse porque “ele está debaixo de meu microscópio”. Foi Saleh quem, segundo um telegrama diplomático enviado depois do encontro, mencionou Wuhayshi e disse a Towsend, sem rodeios, que ele tinha assumido o posto de líder da Al-Qaeda no Iêmen. Townsend, segundo o telegrama, desviou a conversa para o sistema fracassado de prisão domiciliar do país. Ainda na mesma reunião, Saleh falou sobre sua luta contra os secessionistas do sul, mais uma vez retratando sua sobrevivência como central para a política de Washington. “É importante que o Iêmen não chegue a um estado de instabilidade”, disse a Townsend. “Precisamos do apoio de vocês.” Ao que ela respondeu: “Não precisa se preocupar. É claro que apoiamos o Iêmen”. O momento mais inusitado da reunião talvez tenha sido aquele em que Saleh fez entrar Faris Mana’a, grande traficante de armas iemenita, e o fez sentar-se ao lado de Townsend. Segundo as Nações Unidas, “apesar do embargo de armas11 imposto pelas Nações Unidas à Somália desde 1992, os interesses de Mana’a no tráfico de armas para o país remonta pelo menos a 2003”, e Mana’a “forneceu, transferiu ou vendeu à Somália, direta ou indiretamente, armas ou material similar em violação ao embargo de armamentos”. Quando Mana’a entrou na sala, deram-lhe um assento à mesa de Townsend. “Olá, FBI”, disse Saleh a um dos representantes americanos, “se ele não se comportar direito, podem levá-lo… de volta para Washington no avião de
Townsend, ou para Guantánamo”. Saleh disse a Townsend que suas forças tinham interceptado recentemente um carregamento de armas de Mana’a, que teria sido entregue às Forças Armadas iemenitas. “Ele doou armas para as Forças Armadas da nação — e agora pode ser considerado um patriota”, brincou Townsend. Saleh riu. “Não, ele é um agente duplo — doou armas para os rebeldes de Al-Houthi também.” Um telegrama diplomático americano autorizado por Townsend logo após a reunião proclamou: “Vocês não vão acreditar”. Pondo um ponto de exclamação no episódio todo, dois anos depois, Mana’a passou a coordenar as iniciativas de “paz” do presidente Saleh junto aos rebeldes houthi. O contato de Townsend com Saleh — e os de outros funcionários do governo americano — mostra bem o talento de Saleh para jogar em diversas posições em sua guerra para se manter no poder. “O modo como ele usa a dupla ameaça de terrorismo e instabilidade quando se refere ao conflito interno também não é novo”, afirma o telegrama diplomático aprovado por Townsend depois da visita. “Saleh usa repetidamente essa tática quando tenta ganhar apoio do USG [governo dos Estados Unidos].” É claro que Saleh usava essa atitude porque dava resultado. No que diz respeito à Al-Qaeda, quanto menos estável parecia o governo de Saleh, mais dinheiro e treinamento ele conseguia extrair dos Estados Unidos. “Todos esses representantes americanos se viam em apuros12 ao tratar com Saleh”, disse um ex-militar americano que trabalhou no país. “Quando se trata do Iêmen, ele é muito mais esperto que qualquer um deles.” Depois do ataque do drone americano em 2002 e da prisão de dezenas de supostos militantes, a Al-Qaeda no Iêmen foi gravemente atingida e tornou-se uma organização de existência mais teórica. Mas depois da fuga de presos de 2006, os fugitivos reconstruíram a organização adormecida. Saleh pouco fez para impedi-los. Os Estados Unidos estavam tão obcecados pela recaptura de Jamal al-Badawi e de outro suspeito da explosão do Cole, um cidadão americano chamado Jabir al-Banna, que deram pouca atenção aos demais. “Os Estados Unidos fizeram muita pressão13 sobre o Iêmen para que capturassem os dois”, segundo Gregory Johnsen, especialista em estudos sobre o Oriente Médio de Princeton. “Mas, como muitas vezes acontece, as pessoas que causavam os maiores problemas não eram aquelas com quem os Estados Unidos mais se preocupavam. Aquelas sobre as quais pouco se sabia se mostraram as mais perigosas.” Como disse Saleh a Townsend durante a reunião de 2007, a Al-Qaeda estava, com certeza, se reagrupando depois da fuga de presos. E, como ele disse, a organização estava sendo liderada por Wuhayshi, ex-secretário de Bin Laden. Wuhayshi era um jihadista calejado14 que foi primeiro ao Afeganistão no fim da década de 1990, onde se ligou a Bin Laden. Em 2001, quando os Estados Unidos invadiram o Afeganistão, Wuhayshi lutou na famosa batalha de Tora Bora e depois fugiu para o Irã, onde foi capturado e ficou preso durante dois anos antes de ser entregue ao Iêmen, em 2003. Nunca foi acusado de nenhum crime. Depois de fugir da prisão iemenita, ele redefiniu a Al-Qaeda do Iêmen como organização regional e não nacional, e chamou-a Organização da Jihad Al-Qaeda no Sul da Península Arábica, que se tornaria a AQPA. Sob sua
liderança, a Al-Qaeda no Iêmen “tornou-se mais estridente,15 mais bem organizada e mais ambiciosa do que nunca”, afirmou Johnsen na época. Wuhayshi “reestruturou completamente a organização”. O fato de a Al-Qaeda estar de volta à ativa foi bom para Saleh, porque exigiu que americanos e sauditas tomassem uma atitude — e principalmente que financiassem e armassem seu regime. Mas o JSOC estava perdendo a paciência com Saleh e logo começaria a ampliar suas próprias operações no interior do Iêmen, com ou sem a anuência do presidente.
21. Perseguição transfronteiras
PAQUISTÃO, 2006-8 — A gestão de Donald Rumsfeld como secretário de Defesa chegou a um fim inglório nos últimos meses de 2006. Meia dúzia de generais reformados, alguns dos quais tinham sido comandantes de importância na guerra do Iraque, cerraram fileiras com vários parlamentares republicanos e democratas a fim de promover uma campanha exigindo sua demissão. Muitos procuraram culpá-lo pela deterioração da situação no Iraque, outros pelos abusos na prisão de Abu Ghraib. Os republicanos sofreram perdas graves nas eleições para o Legislativo, que deram maioria aos democratas no Senado e na Câmara dos Representantes, o que muitos analistas políticos atribuíram à crescente oposição à guerra do Iraque. Entre os auxiliares do presidente na Casa Branca que haviam lutado para que Bush o mantivesse no cargo estava Dick Cheney. Embora o presidente tivesse defendido Rumsfeld de início, por fim aceitou sua demissão. Rumsfeld era, sem dúvida, um dos nomes de destaque no esquema de assassinatos secretos e tortura instituído depois do Onze de Setembro, mas sua saída não alteraria radicalmente o rumo das ações e dos programas que ele ajudara a criar. Em dezembro de 2006, Robert Gates sucedeu a Rumsfeld. Gates tinha um estreito relacionamento de trabalho com a CIA, órgão em que havia passado grande parte de sua carreira. Trabalhou na Agência em fins da década de 1960 e, posteriormente, no começo da década de 1990, foi seu diretor — tendo sido o primeiro funcionário de carreira a subir na hierarquia1 até o cargo de diretor. Gates servira em várias ocasiões ao NSC e tinha também ligações estreitas2 com as Forças de Operações Especiais dos Estados Unidos. Fora alvo de investigação por uma suposta participação no escândalo Irã-contras, e embora a comissão independente que investigou o caso tivesse concluído que ele “esteve próximo a muitas figuras que exerceram papéis relevantes no caso Irã-contras e estivesse em condições de ter conhecimento de suas atividades”, decidiu-se que sua intervenção “não justificava indiciamento”. Gates fora também um ator importante na guerra do Afeganistão contra os soviéticos, alimentada pelos Estados Unidos3 na década de 1980. Um de seus primeiros atos no Pentágono foi recolocar o Paquistão, com firmeza, no radar da campanha de assassinatos dirigidos. Em depoimento perante a Comissão de Serviços Armados do Senado, três meses depois da posse de Gates no DoD, o general Douglas Lute, diretor de operações do Estado-Maior Conjunto, afirmou que os comandantes militares americanos tinham “poder de morte e
captura” ou de “ação direta no Afeganistão”,4 o que lhes dava “liberdade para agir contra aqueles que demonstrassem atos hostis”. Lute, entretanto, acrescentou que esses poderes também permitiam operações no interior do Paquistão. Se “o inimigo” tenta “fugir transpondo a fronteira, temos todos os poderes de que precisamos para persegui-lo”. Interrogado sobre o poder para empreender operações mais invasivas, como atacar diretamente Osama bin Laden no Paquistão, Lute disse que só falaria sobre isso numa sessão fechada. O acordo de “perseguição ativa” tinha deixado a ISI enfurecida desde que foi acertado por Musharraf e o JSOC, em 2002. Não havia no Paquistão quem não soubesse que a CIA estava operando intensamente no país — todo ataque com drone era um claro lembrete disso —, mas não se podia admitir que as Forças Armadas americanas estivessem atuando com outra finalidade que não fosse treinar as forças paquistanesas. Enquanto os militares paquistaneses e a ISI exigiam menos ações americanas em seu território, fazia anos que o JSOC vinha “pressionando bastante”5 para que a Casa Branca lhe desse maior liberdade para atacar, mesmo em casos em que a operação fosse mais complexa do que a simples perseguição, do outro lado da fronteira, de suspeitos de serem agentes da Al-Qaeda. “Deem-nos mais liberdade, temos de atacar os locais onde ficam seus santuários” — foi assim que uma autoridade americana resumiu na época o discurso do JSOC. Embora o Paquistão negociasse com dureza — às vezes superava estrategicamente os Estados Unidos —, o fato era que precisava do dinheiro, das armas e do apoio de Washington. Assim, no final das contas, se o Paquistão não queria lidar com certos elementos terroristas, o JSOC e a CIA o faziam. E a Casa Branca dava sua aprovação. No caso do JSOC, isso significava incursões dirigidas no interior do país. “Creio que essa era uma daquelas coisas para as quais os paquistaneses às vezes fechavam os olhos,6 quase como no programa dos drones”, disse-me Anthony Shaffer, quadro operacional da DIA que atuava bastante no Paquistão. “Não acredito, nem por um minuto, que o presidente [Asif Ali] Zardari e o [diretor da ISI] general [Ashfaq Parvez] Kayani, e mesmo Musharraf antes, não soubessem que fazíamos essas coisas.” Em 2007, o orçamento para as operações especiais americanas tinha subido 60% em relação a 2003,7 passando para mais de 8 bilhões de dólares anuais. Em janeiro, o presidente Bush anunciou a “escalada no Iraque”. O número de militares convencionais americanos aumentou para 20 mil, e Bush autorizou também um aumento substancial de operações de assassinatos direcionados, executados por forças do JSOC. A operação foi o canto do cisne do general McChrystal no JSOC. No fim de 2007, o presidente começou a declarar que a escalada no Iraque fora um sucesso. Isso deu condições ao JSOC de voltar a se concentrar no Paquistão. Em fins de 2007, o governo Bush começou a elaborar planos para uma intensificação substancial no emprego das Forças de Operações Especiais dos Estados Unidos no interior do Paquistão. Não obstante, o plano empacou em decorrência da luta entre a CIA e o Pentágono pelo controle das operações no Paquistão, num desacordo a que o New York Times se referiu como “intensas discórdias8 dentro do governo Bush e dentro da CIA” quanto à “conveniência de
comandos americanos realizarem ataques terrestres no interior de áreas tribais”. Em junho de 2008, um incidente pôs à mostra os riscos associados a uma possível expansão das atividades das operações especiais americanas no Paquistão. Uma batalha entre forças americanas e do Talibã na província afegã de Kunar transbordou para o Paquistão. As forças dos Estados Unidos pediram apoio aéreo, e helicópteros americanos lançaram mísseis contra os talibãs. Os ataques mataram também onze soldados paquistaneses posicionados em seu lado da fronteira. O Paquistão denunciou a ação como um ataque “não provocado e covarde”9 dos Estados Unidos. “Assumiremos uma posição definida em favor da soberania, da integridade e de respeito próprio”, declarou o primeiro-ministro paquistanês, Yousaf Raza Gillani, ao Parlamento. “Não permitiremos que nosso solo [seja atacado].” Na verdade, porém, o Paquistão não tinha como sustentar tais declarações. Dois dias depois do incidente, em 13 de junho de 2008, o vice-almirante William McRaven assumiu o comando do JSOC, que até então era exercido pelo general McChrystal, herdando a tarefa de dar continuidade à caçada de Osama bin Laden e outros HVTs. Ficou evidente que o malfadado ataque que matou os soldados paquistaneses não o perturbara. McRaven, ex-líder de uma equipe de SEALs da Marinha e vice-comandante de McChrystal no JSOC, passou a clamar por mais liberdade para efetuar ataques no Paquistão. Em julho de 2008, o presidente Bush aprovou uma ordem secreta10 — que dera ensejo a muitos debates entre a CIA, o DoD e o Pentágono —, autorizando as Forças de Operações Especiais dos Estados Unidos a realizar operações dirigidas de morte ou captura. Ao contrário do acordo anterior com o presidente Musharraf, as Forças de Operações Especiais dos Estados Unidos não atuariam em conjunto com forças paquistanesas nem pediriam autorização prévia ao governo do Paquistão para efetuar ataques em solo paquistanês. “Para amenizar os temores da embaixadora dos Estados Unidos, Anne Patterson, em relação ao número crescente de óbitos de civis em decorrência de incursões do JSOC em outros países, os comandos deram-lhe um terminal do sistema Predator, para que ela pudesse acompanhar uma incursão em tempo real”, segundo os repórteres Dana Priest e William Arkin. Ameaçado de impeachment, o presidente Musharraf, que durante muito tempo fora um maleável aliado dos Estados Unidos, deixou o cargo em agosto de 2008. Quase de imediato, as forças do JSOC passaram a testar seu sucessor. Como uma fonte das Operações Especiais, que trabalhava com McRaven, me disse na época, “Bill rapidamente expandiu as operações”11 no Paquistão. Em 3 de setembro de 2008, dois helicópteros levaram uma equipe de SEALs da Marinha que estava a serviço do JSOC para o outro lado da fronteira entre o Afeganistão e o Paquistão. Apoiados por um avião de artilharia aerotransportada AC-130 Spectre, com capacidade de infligir sérios danos, os americanos desceram numa aldeia perto de Angoor Adda,12 pequena cidade de montanha no Waziristão do Sul, no Paquistão, perto da fronteira com o Afeganistão. Os helicópteros pousaram silenciosamente, e 24 SEALs equipados com óculos de visão noturna tomaram posição em torno da casa de um lenhador e vaqueiro de cinquenta anos. De acordo
com alguns relatos, a equipe de Operações Especiais tinha informações de que um líder da AlQaeda estava na casa. Para o Washingon Post, esse foi “o primeiro ataque terrestre dos Estados Unidos contra um alvo do Talibã dentro do país”. Seja como for, uma vez posicionados, os SEALs executaram sua missão. O que ocorreu depois de disparados os primeiros tiros ainda é motivo de polêmica. De acordo com as autoridades americanas, “cerca de duas dezenas de supostos combatentes da AlQaeda”13 foram mortos numa “ofensiva planejada contra militantes que vinham atacando uma base avançada americana do outro lado da fronteira com o Afeganistão”. Já segundo aldeões,14 os SEALs abriram fogo, matando o dono da casa, Payo Jan Wazir, seis crianças, entre elas uma menina de três anos e um menino de dois, e duas mulheres. Quando os vizinhos de Payo Jan ouviram os tiros e correram para ver o que acontecia, disseram os aldeões, os SEALs dispararam contra eles, matando mais dez pessoas. O governo paquistanês declarou que todos eram civis. Os Estados Unidos insistiram que eram militantes da Al-Qaeda. O Ministério das Relações Exteriores do Paquistão convocou a embaixadora Patterson. Numa nota, denunciou a operação, tachando-a de “grave violação do território do Paquistão”,15 alegando que a incursão causara uma “imensa perda de vidas civis”. O Ministério das Relações Exteriores declarou “lamentável” o fato de forças americanas terem “cruzado a fronteira e recorrido ao uso de força contra civis”, asseverando que “tais ações são contraproducentes e decerto não contribuem para nossos esforços conjuntos contra o terrorismo. Pelo contrário, solapam a própria base da cooperação e podem alimentar o fogo do ódio e da violência que estamos tentando extinguir”. Depois de anos em que era instruído a concentrar a maior parte de seus recursos no Iraque, o JSOC estava, finalmente, conseguindo realizar operações mais coordenadas no Paquistão. No fim das contas, a visão que Rumsfeld tinha do mundo como um campo de batalha concretizou-se mais plenamente depois que ele deixou o DoD do que quando estava no poder. Sua saída inaugurou uma era em que as mais potentes forças sombrias dos Estados Unidos transferiram-se do Iraque para as guerras crepusculares americanas no sul da Ásia, na África e em outras áreas.
22. “Todas as medidas tomadas pelos Estados Unidos beneficiaram a Al-Shabab”
SOMÁLIA, 2007-9 — Grande parte da atenção da mídia na Somália, no começo de 2007, se voltava para a invasão e ocupação pela Etiópia, mas o JSOC estava concentrado na caça. No começo de janeiro, montara rapidamente sua “ninfeia” improvisada na discreta base militar dos Estados Unidos na baía de Manda, no Quênia, e estava à espera do momento de atacar. Os planejadores americanos queriam que a invasão etíope forçasse os líderes da União das Cortes Islâmicas a deixar a capital e se refugiar em redutos, sobretudo ao longo da fronteira com o Quênia, onde a Força-tarefa 88 poderia investir contra eles. O JSOC tinha aviões AC-130 posicionados secretamente numa base aérea perto de Dire Dawa,1 Etiópia, capazes de atacar líderes da UCI e combatentes estrangeiros que batessem em retirada, o que possibilitaria a equipes do JSOC deixar a base na baía de Manda e penetrar na Somália para terminar o trabalho, se fosse necessário. A política americana na Somália se reduzira a um único princípio: achar, atacar e acabar. “É um abate duro, fulminante”,2 afirmou Malcolm Nance. “Se não for um abate duro, não dá certo, sabe?” Em 7 de janeiro, um drone Predator dos Estados Unidos,3 desarmado e lançado de Camp Lemonnier, sobrevoou o sul da Somália, rastreou um comboio e transmitiu informações ao vivo para o comando da Força-tarefa. Logo depois, um AC-130 decolou para a Somália e metralhou o comboio4 no momento em que ele entrava numa floresta na fronteira entre o Quênia e a Somália. Segundo relatos,5 o alvo era Aden Hashi Farah Ayro, o comandante militar da AlShabab, ou Fazul ou Nabhan, líderes da Al-Qaeda na África Oriental. Autoridades americanas declararam que o ataque matara de oito a doze combatentes, e espalhou-se o boato de que entre os mortos estaria um “líder da Al-Qaeda”.6 Fontes de informações dos Estados Unidos e da Etiópia acreditavam que essa pessoa poderia ser Ayro ou Abu Talha al-Sudani, o financista da Al-Qaeda. Uma equipe do JSOC, vinda da baía de Manda, pousou no local do ataque, na Somália, a fim de colher amostras de DNA dos mortos. Entre os corpos e os destroços acharam o passaporte de Ayro, sujo de sangue,7 e acreditaram ter abatido um líder importante. No entanto, soube-se depois que Ayro realmente estivera no comboio e deve ter ficado ferido, mas acabou escapando. Em 9 de janeiro, o JSOC lançou outro ataque, dessa vez “contra membros da célula da Al
Qaeda na África Oriental, possivelmente refugiados numa área remota da Somália, perto da fronteira queniana”,8 segundo um telegrama diplomático americano enviado pela embaixada em Nairóbi. Seguiram-se, durante vários dias, outros ataques aéreos que mataram dezenas de civis, segundo testemunhas e grupos de direitos humanos. Nunca se confirmou se esses ataques foram realizados pelos Estados Unidos, pela Etiópia ou pelos dois países em conjunto. Sem dúvida, helicópteros e outras aeronaves etíopes atacavam a Somália unilateralmente. O Pentágono assumiu o ataque de 7 de janeiro,9 mas não fez comentários sobre os demais, embora autoridades americanas anônimas tenham admitido que foram de responsabilidade dos Estados Unidos. Os primeiros relatos da imprensa americana descreveram os ataques como operações bem-sucedidas que estavam eliminando, um a um, os líderes da “Al-Qaeda” na Somália. Segundo vários relatos, baseados em informações fornecidas por autoridades americanas anônimas, Ayro e Fazul tinham sido mortos em operações especiais dos Estados Unidos. Uma notícia particularmente cômica da anunciada morte de Fazul no New York Post tinha o seguinte título: “Al-Qaeda esmagada: ataque dos Estados Unidos na Somália mata demônio da embaixada”.10 Na realidade, com exceção de uma, todas as figuras importantes procuradas pelos Estados Unidos saíram incólumes dessas operações. Em algum momento, quando os AC130 e helicópteros americanos e aeronaves etíopes atacavam redutos da Al-Shabab, Sudani foi morto por acaso,11 embora os militares americanos só tenham sabido disso meses depois. Foi o começo de uma campanha concentrada de operações dirigidas de assassinato e captura pelo JSOC na Somália, mas de início ela deu poucos resultados relevantes. Na verdade, os homens que estavam sendo caçados se tornariam, por ironia, beneficiários dos próprios ataques destinados a matá-los. “Estávamos investindo e fazendo ataques com aviões AC-130”, disse-me Nance. “É um aparelho excelente quando usado contra tropas numerosas e conhecidas, para isso o AC-130 é ótimo.” No entanto, em vez de tropas, disse ele, “estávamos eliminando grupos de civis”. Realmente, os ataques dos AC-130 resultaram num número absurdo de mortes de civis somalianos. Num incidente particularmente tenebroso, foi atacado um grande grupo de pastores nômades e suas famílias. A Oxfam, organização de direitos humanos da Somália, afirmou que setenta somalianos inocentes foram mortos. “Não havia combatentes entre eles”,12 declarou um representante do grupo. “A causa do ataque talvez se relacionasse a uma fogueira que os pastores tinham acendido de noite, mas isso é algo que eles fazem normalmente para afastar mosquitos e outros animais dos rebanhos.” A Oxfam juntou-se à Anistia Internacional para contestar a legalidade dos ataques aéreos. “Segundo o direito internacional, há o dever de distinguir entre alvos militares e civis”, advertiu a Oxfam. “Estamos muito preocupados com a possibilidade de que esse princípio não esteja sendo seguido e que pessoas inocentes na Somália estejam pagando o preço.”13 Os ataques americanos concentravam-se principalmente ao longo da fronteira entre o Quênia e a Somália, reduto de Ahmed Madobe e de sua milícia Ras Kamboni. Madobe era cunhado e
protegido de Hassan Turki, comandante jihadista que fundou a milícia e liderou forças militares de cada um dos sucessivos movimentos islâmicos na Somália: a União Islâmica (Al-Itihaad alIslamiya), a UCI e, por fim, a Al-Shabab. Quando os ataques começaram, Madobe e seus homens estavam voltando para sua base perto da fronteira com o Quênia, pondo-se inadvertidamente ao alcance direto da Força-tarefa 88, do JSOC. Membros da divisão de Inteligência do JSOC, a Atividade, vinham rastreando os movimentos de Madobe e de outros líderes da UCI. Tal como Indha Adde, Madobe conhecia e respeitava os combatentes internacionais que tinham acorrido à Somália para ajudar na batalha contra os chefes de milícias respaldados pela CIA. Seu mentor, Turki, era agora um terrorista perseguido pelos Estados Unidos.14 Tudo isso, além de sua posição como líder, inseriu Madobe na lista dos alvos do JSOC. Madobe sabia que os Estados Unidos e a Etiópia estavam atacando líderes da UCI que fugiam, e depois de incidentes em que escapou por um triz, levando-o a suspeitar de que tivesse se tornado um alvo, ele e um pequeno grupo saíram pelo interior da Somália, procurando manterse longe do número cada vez maior de aviões que viam no céu. “À noite, tínhamos medo de acender uma fogueira para cozinhar, e de dia não queríamos fazer fumaça”, disse-me ele quando o conheci, num posto avançado perto da fronteira queniana. “Como não tínhamos alimentos pré-cozidos, a situação ficou muito difícil.” Pensando bem, disse, provavelmente sua perdição tinha sido a tecnologia. “Tínhamos telefones Thuraya, com transmissão por satélite, e é evidente que isso ajudou os americanos a nos localizar com mais facilidade.”15 Na noite de 23 de janeiro de 2007, Madobe e seu grupo acamparam debaixo de uma grande árvore. “Por volta das quatro da manhã, levantamo-nos para as orações matinais, e foi então que os aviões começaram a nos atacar”, contou. “Todo o espaço aéreo estava coalhado de aviões. Havia AC-130, helicópteros e caças a jato. O céu estava cheio de atacantes. Atiravam em nós com armas pesadas.” Morreram as oito pessoas que estavam com ele no acampamento, entre as quais, segundo Madobe, havia mulheres. Ele próprio foi ferido. Ele supôs que uma força terrestre viria em seu encalço. “Peguei uma arma e uma porção de pentes de munição. Achei que a morte estava chegando para mim e queria matar o primeiro inimigo que visse”, disse. “Mas nada disso aconteceu.” Madobe ficou ali, ferido, perdendo sangue e energia. Depois, por volta das dez da manhã, soldados americanos e etíopes chegaram num helicóptero, que pousou perto de onde ele estava. Madobe lembra que um soldado americano aproximou-se dele, que jazia estirado no chão, sem camisa. “Você é Ahmed Madobe?”, perguntou. “E vocês quem são?”, Madobe devolveu. O soldado americano respondeu: “Somos as pessoas que vieram aqui para capturar você”. O americano exibiu uma foto de Madobe, que enquanto estava sendo algemado perguntou se aquilo seria mesmo necessário. “Você pode ver que já estou meio morto”, disse. Puseram-no num helicóptero e levaram-no para uma base improvisada em Kismayo, que estava sendo utilizada pelas forças americanas e etíopes. Os americanos, disse ele, começaram a interrogá-lo imediatamente, e só depois que agentes etíopes intervieram foi que lhe deram água e lhe prestaram atendimento médico. Em Kismayo, enquanto se recuperava dos ferimentos, os
americanos o interrogavam a intervalos regulares. “Tinham os nomes de diversos rebeldes e combatentes numa lista e me perguntavam se eu os conhecia ou se tinha informações sobre eles”, disse. Um mês depois, ele foi entregue à Etiópia, onde ficou preso durante mais de dois anos. Ao contrário de Madobe, o ex-presidente da UCI, xeque Sharif, desejava fazer um acordo. Embora altas autoridades americanas tivessem dado a entender que a UCI equivalia ao Talibã ou estava sendo dirigida pela Al-Qaeda, na verdade os Estados Unidos viam o xeque Sharif como um “moderado”. Em 31 de dezembro, enquanto a UCI se desintegrava, Sharif foi a Kismayo, de onde falou pelo telefone com o embaixador dos Estados Unidos em Nairóbi. Segundo um cabograma diplomático americano, enviado de Nairóbi ao Departamento de Estado, “o embaixador disse a Sharif16 que, no entender dos Estados Unidos, ele poderia desempenhar um papel importante ajudando a promover a paz e a estabilidade na Somália”. O embaixador, que consultara Washington antes para propor um acordo a Sharif, “declarou que os Estados Unidos estavam dispostos a recomendar que o Quênia ajudasse a levá-lo [Sharif] a Nairóbi se ele se dispusesse a colaborar no apoio à paz e à estabilidade na Somália […] e a rejeitar o terrorismo”. Era o começo de uma campanha americana, nos bastidores, para mudar a imagem de Sharif. Para o vice-secretário de Estado, Jendayi Frazer, seria “preferível cooptar17 um xeque fraco, Sharif Sheikh Ahmed, para evitar que os linhas-duras cerrem fileiras em torno dele”. Por fim, com a ajuda dos serviços de Inteligência americanos, Sharif deixou a Somália e se refugiou no Quênia.18 Ali Mohamed Gedi, ex-primeiro-ministro da Somália, me disse: “Acredito que [Sharif] estivesse trabalhando com a CIA.19 Eles o protegiam”. Gedi me contou que quando Sharif fugiu para o Quênia, no começo de 2007, o governo americano pediu-lhe que emitisse documentos de viagem para Sharif poder viajar ao Iêmen. Gedi disse que também escreveu cartas de recomendação aos governantes quenianos e iemenitas, pedindo-lhes que permitissem a Sharif fixar residência no país. “Eu fiz isso a pedido do governo dos Estados Unidos”, declarou. No Iêmen,20 Sharif começou a organizar seu retorno ao poder em Mogadíscio, dessa vez com o apoio dos Estados Unidos. Ao contrário de Sharif, muitos dos que fugiam da Somália estavam em desacordo com a CIA e com os serviços de informações americanos. As forças de segurança do Quênia — às vezes agindo a pedido de Washington — começaram a prender dezenas e dezenas de pessoas. A organização Human Rights Watch informou que o Quênia deteve
pelo menos 150 homens,21 mulheres e crianças de mais de dezoito países — inclusive dos Estados Unidos, do Reino Unido e do Canadá — em operações realizadas perto da fronteira da Somália. Suspeitando de que os detidos tivessem ligações com o terrorismo, os quenianos os mantiveram sob custódia durante semanas, sem acusação, em Nairóbi. Durante três semanas, de 20 de janeiro a 10 de fevereiro, o governo queniano transportou de avião para a
Somália dezenas dessas pessoas — sem aviso às famílias, a advogados ou aos próprios detidos —, que foram entregues a militares etíopes.
Em sua investigação, a Human Rights Watch concluiu que quando os prisioneiros foram entregues à Etiópia, “eles na verdade desapareceram”, sendo-lhes “negado acesso a suas embaixadas, suas famílias e a organizações humanitárias internacionais como o Comitê Internacional da Cruz Vermelha”. O texto acrescentava: “Entre fevereiro e maio de 2007, diariamente, as autoridades de segurança etíopes transportaram detidos — entre os quais várias mulheres grávidas — para uma casa onde autoridades americanas os interrogaram a respeito de ligações com terroristas”. Ao todo, as forças de segurança e de informações do Quênia detiveram grande número de pessoas para os Estados Unidos e outros países, incluindo 85 pessoas entregues à Somália só em 2007. Pelo menos uma delas foi levada para Guantánamo.22 A Somália estava se tornando um microcosmo de guerra maior contra o terror, tanto para a AlQaeda quanto para os Estados Unidos.
Na época em que o JSOC e as forças etíopes intensificavam sua caça aos líderes da União das Cortes Islâmicas, em janeiro de 2007, Fazul Abdullah Mohammed deixou a família23 perto da fronteira do Quênia e desapareceu. Por fim, chegou de volta a Mogadíscio, para reencontrar-se com os combatentes da Al-Shabab que ele ajudara a treinar e financiar. Ele já se tornara o mais experiente quadro operacional da Al-Qaeda no Chifre da África, tendo a seu crédito vários ataques espetaculares, entre eles os atentados contra a embaixada, em 1998. Estava prestes a assumir papel de destaque numa peça que a Al-Qaeda vinha montando desde o começo da década de 1990. O grupo enfim arrastara os Estados Unidos de volta a uma guerra assimétrica no coração da África Oriental. Com os líderes somalianos da UCI foragidos, a Al-Qaeda via a Somália como uma linha de frente ideal para a jihad e começou a aumentar seu apoio à Al-Shabab. No começo de janeiro de 2007, um dos principais homens de Osama bin Laden, Ayman al- Zawahiri, abordou a situação na Somália numa gravação distribuída pela internet. “Falo-lhes hoje enquanto as forças invasoras etíopes conspurcam o solo da amada Somália muçulmana”, começou. “Convoco a nação muçulmana da Somália a permanecer no novo campo de batalha, que é um dos campos lançados pelos Estados Unidos e seus aliados e pelas Nações Unidas contra o Islã e os muçulmanos.” Implorou aos mujahedin: “Façam emboscadas, plantem minas, organizem ataques e combates suicidas, até acabar com eles como os leões devoram suas presas”.24 Com a desintegração da UCI, a Al-Qaeda viu seu caminho para a Somália se abrir. “Com a ajuda de todos esses combatentes estrangeiros,25 a Al-Shabab assumiu o combate, sob a liderança da Al-Qaeda”, recordou Indha Adde, que tinha sido ministro da Defesa da UCI.
A Al-Shabab começou a ordenar execuções, e muçulmanos inocentes foram mortos. Chegaram a ter como alvos membros [da UCI]. Eu fui comandante de todas as operações militares [da UCI] e me voltei contra a Al-Shabab depois de ver todos esses crimes contra o Islã.
Por fim, Indha Adde entrou para a clandestinidade,26 juntamente com Hassan Dahir Aweys, e passou a receber apoio do inimigo-mor da Etiópia, a Eritreia.27 Os dois homens se aproximaram do movimento islâmico militante à espera de ver como ficariam as coisas. Por fim, ambos tomaram rumos bastante diferentes. No começo de fevereiro de 2007, a invasão etíope transformara-se numa ocupação que vinha ensejando uma intranquilidade cada vez maior. Numa nação que já sofrera um dos piores destinos na história recente, os civis somalianos vinham pagando outro preço altíssimo. A ocupação foi marcada por brutalidades indiscriminadas contra civis. Soldados etíopes e do governo somaliano, com apoio americano, dominavam os bairros de Mogadíscio à força, vasculhando casas em busca de partidários da UCI, saqueando propriedades de civis e espancando ou fuzilando qualquer pessoa suspeita de colaboração com forças contrárias ao governo. Punham atiradores nos terraços de edifícios e, segundo testemunhos, revidavam qualquer ataque com força desproporcional,28 bombardeando áreas densamente povoadas e vários hospitais, de acordo com a Human Rights Watch. Tornaram-se frequentes relatos de execuções extrajudiciais por parte de soldados etíopes, sobretudo nos últimos meses de 2007. Segundo a Anistia Internacional, abundavam relatos de que soldados etíopes “chacinavam” homens, mulheres e crianças “como cabritos”29 — degolando-os a faca. Tanto as forças do governo de transição da Somália, liderado por exilados e apoiado pelos Estados Unidos, quanto as forças etíopes foram acusadas de horrenda violência sexual. Embora as forças ligadas à AlShabab também fossem acusadas de crimes de guerra, uma grande proporção dos crimes30 informados à Anistia Internacional, que incluíam saques, estupros e execuções extrajudiciais, foi cometida pelo governo somaliano e por forças etíopes. Informou-se que cerca de 6 mil civis31 teriam sido mortos em combates em Mogadíscio e no sul e no centro da Somália em 2007, e mais de 600 mil foram desalojados, na capital e ao redor da cidade. Estima-se que 335 mil refugiados somalianos32 deixaram o país em 2007. A estabilidade das Cortes Islâmicas tinha sido substituída por um retorno aos bloqueios de estradas, atividades de milícias e, pior, por tropas do arqui-inimigo da Somália, a Etiópia, que patrulhavam as ruas e com frequência matavam somalianos. “O grande problema33 é que não foram tomadas medidas para evitar uma rebelião […] e com efeito, logo no começo, assistiu-se ao surgimento de uma sublevação, em decorrência da falta de estabilidade no país”, lembrou-se Daveed Gartenstein-Ross, que prestara assessoria ao Centcom com relação à sua política para a Somália. “O que acabamos fazendo foi depender basicamente
dos etíopes para estabilizar a Somália. E isso, em si, foi uma decisão terrível.” Como a UCI se desmantelara e a brutal ocupação etíope prosseguiria ainda por mais quase três anos, a Al-Shabab assumiu a vanguarda na luta contra a ocupação estrangeira. Aynte disse:
Para eles, foi a brecha que estavam esperando.34 Foi a fúria que vinham procurando, a fim de mobilizar a raiva das pessoas e apresentar-se como o novo movimento nacionalista que expulsaria os etíopes da Somália. Por isso, durante os três anos em que a Etiópia ocupou a Somália, a Al-Shabab nunca emitiu uma única palavra sobre a jihad global. Sempre afirmou que sua meta principal era escorraçar os etíopes dali.
Para a Al-Qaeda, isso era apenas o começo de todo um mundo novo, possibilitado em boa parte pelas ações de Washington. “O que gerou as Cortes Islâmicas?”, perguntava Madobe.
Os chefes de milícias, apoiados pelos Estados Unidos. E se a Etiópia não invadisse a Somália, e se os Estados Unidos não realizassem ataques aéreos, vistos como uma continuação da brutalidade dos chefes de milícias e da Etiópia, a Al-Shabab não teria sobrevivido. Todas as medidas tomadas pelos Estados Unidos beneficiaram a organização.
Em abril, estava em curso uma insurreição de vulto contra a ocupação etíope. Numa batalha de quatro dias,35 calcula-se que tenham morrido quatrocentos soldados etíopes e rebeldes somalianos. Mais tarde, multidões de somalianos arrastaram soldados etíopes pelas ruas,36 e a Al-Shabab começou a visar a liderança do governo, posta no poder com o apoio dos tanques etíopes. Em 3 de junho de 2007, um Toyota Land Cruiser37 carregado de explosivos ultrapassou as barreiras de segurança diante da residência do primeiro-ministro Gedi, em Mogadíscio, e explodiu bem diante da casa. O ataque suicida matou seis guardas e feriu dezenas de outros. Depois do incidente, testemunhas acharam membros decepados a 1,5 quilômetro do local. “O alvo era eu, e eles usaram um carro-bomba com mais de duzentos quilos de explosivos. Explodiram minha casa”, disse-me Gedi. “Isso foi o começo dos atentados suicidas em Mogadíscio, visando aos líderes e ao governo.” Foi a quinta tentativa de assassinato contra Gedi. Naquele mesmo ano, ele renunciou. Embora o primeiro-ministro etíope, Meles Zenawi, tenha declarado que a invasão fora um “tremendo sucesso”,38 a afirmação simplesmente não correspondia à verdade. Se a Somália já era uma área de recreação para militantes islâmicos, a invasão, apoiada pelos Estados Unidos, abriu as portas de Mogadíscio para a Al-Qaeda. Washington estava dando a Osama bin Laden e à Al-Qaeda a oportunidade de garantir uma presença na Somália que tinham tentado obter várias vezes, mas em vão. “Creio que eles [começaram a ter] um poder real quando ocorreu a
invasão etíope”, disse. Fazul e Nabhan “tinham se tornado a ponte entre a Al-Shabab e a AlQaeda, valendo-se dos meios da Al-Qaeda, trazendo para a Somália mais combatentes estrangeiros, assim como recursos financeiros — e, mais importante ainda, know-how militar: como fabricar explosivos, como treinar pessoas etc. Foi então que ganharam a grande influência de que precisavam. Enquanto Aweys e seus aliados — entre eles Indha Adde — juravam continuar a luta contra os etíopes e o governo somaliano, o xeque Sharif intensificava sua cooperação com o Governo Federal Transitório (GFT) e o governo dos Estados Unidos. A Al-Shabab observava e esperava, vendo na luta pelo poder uma oportunidade. Em 26 de fevereiro de 2008, a secretária de Estado Condoleezza Rice designou oficialmente a Al-Shabab como uma organização terrorista39 e o JSOC intensificou a caçada. Em 2 de março, os Estados Unidos atacaram com mísseis40 uma casa da Al- Shabab onde estaria residindo Saleh Ali Saleh Nabhan, o principal líder da Al-Qaeda na África Oriental. Segundo alguns relatos, ele teria sido morto, mas quando a poeira assentou, viu-se que entre os mortos estavam vários civis, algumas vacas e um burro, mas nada de Nabhan. Em 1o de maio, após três meses de ataques que pareciam estar matando mais inocentes do que pessoas visadas, o JSOC atingiu seu alvo. Às três horas da manhã, cinco mísseis de cruzeiro Tomahawk41 caíram sobre a cidade de Dhusa Mareb, na região central da Somália, fazendo voar pelos ares uma casa que, segundo o Centcom, era usada por “um conhecido quadro operacional da Al-Qaeda, também chefe de milícia”. A missão, de acordo com autoridades militares, fora resultado de semanas de vigilância e rastreamento.42 Testemunhas na área declararam ter visto os corpos de dezesseis pessoas.43 Um deles era o de Aden Hashi Ayro, comandante militar da Al-Shabab. Embora os serviços de informações americanos tivessem errado várias vezes quanto à morte de líderes da Al-Shabab, dessa feita havia pouca margem para dúvida. Depois do ataque, a organização divulgou uma nota em que confirmava a morte de Ayro e o enaltecia como herói. A declaração incluía a primeira fotografia de Ayro dada a público e uma biografia sua.44 Pouco antes da morte de Ayro, segundo um telegrama diplomático americano, o líder da Al-Shabab se reunira com Indha Adde, membro do clã Ayr, talvez para intermediar um acordo. As autoridades americanas esperavam que sua morte isolasse a AlShabab de seus ex-aliados da UCI e causasse “a curto prazo uma interrupção de operações terroristas”.45 O ataque pode ter dissuadido Indha Adde de aprofundar sua aliança com a AlShabab, mas o assassinato também estimulou a organização e fez de Ayro um mártir.
A ocupação etíope começou a perder força após um acordo firmado no Djibuti,46 em agosto de 2008, entre a facção do xeque Sharif e representantes do GFT. Na realidade, a insurreição da Al-Shabab debilitara enormemente os etíopes, mas a farsa diplomática serviu para salvar as aparências. O “Acordo do Djibuti” abriu caminho para que Sharif assumisse a presidência em
Mogadíscio. Para os observadores experientes da política somaliana, o ressurgimento de Sharif foi inacreditável. Os Estados Unidos e a Etiópia derrubaram seu governo, porém depois o apoiaram como presidente do país. Quando me encontrei com Sharif no gabinete presidencial em Mogadíscio, ele se recusou a falar47 sobre esse período em sua carreira, dizendo apenas que aquela não era a ocasião indicada. Ironicamente, o xeque Sharif, que certa vez se declarou um guerreiro contra a ocupação estrangeira, viria a depender inteiramente da força da União Africana, apoiada pelos Estados Unidos, que substituiu os etíopes, para manter seu poder nominal. Quando alguns membros da UCI e do governo somaliano se aliaram, depois do Acordo do Djibuti, Aweys e a Al-Shabab rejeitaram a aliança, como era de esperar, por acreditar que a UCI “se submetera aos infiéis”, como disse Aynte. Fazul e Nabhan foram
fundamentais para persuadir a Al-Shabab a não aderir ao Acordo do Djibuti. Se a Al-Shabab tivesse aderido ao Acordo, que possibilitou o governo liderado pelo xeque Sharif, Fazul e outros nomes da Al-Qaeda não teriam sido [capazes de permanecer] na Somália. Por isso, creio que foi de interesse pessoal de nomes da Al-Qaeda, para garantir que isso não acontecesse.
Ahmed Abdi Godane, líder da Al-Shabab na Somália, declarou que Sharif era um apóstata e um “fantoche servil”48 dos “infiéis”. Por ocasião da formação do novo governo, a Al-Shabab preparou-se para ampliar sua insurreição, dispondo-se a derrubar o novo governo de coalizão e expulsar as forças da Missão da União Africana na Somália (African Union Mission in Somalia, Amisom), apoiada pelos Estados Unidos, que substituíra os etíopes. Como grande parte dos líderes da UCI tinha morrido, estava exilado ou disputava cargos ministeriais no recém-instalado governo apoiado pelos Estados Unidos, a Al-Shabab tirava proveito da desordem. O grupo acolheu os combatentes desencantados, que se consideravam traídos pela liderança das Cortes. Além de seu compromisso de levar avante a jihad, o que separava a Al-Shabab do governo somaliano era a diversidade de clãs.49 Sua liderança era formada por membros dos quatro clãs principais da Somália, mas também punha membros de clãs minoritários em posições de relevo. Além disso, fazendo jus a seu nome, a Al-Shabab começou a recrutar jovens somalianos que pudesse doutrinar com facilidade. Isso lhes dava uma sensação de poder50 num ambiente mais uma vez dominado por brutais chefes de milícias e pela política de clãs. Em 2008, a Al-Shabab tornou-se um movimento de base ampla e uma importante força social. Ao mesmo tempo que mantinha sua ofensiva militar, começou a se instalar no sul do país, projetando uma imagem de soft power e cultivando o apoio popular. Os membros da organização faziam “visitas” diplomáticas,51 como diziam, a cidades e a seus habitantes,
levando alimentos, dinheiro e “tribunais islâmicos itinerantes” para resolver disputas locais. Lembrando a atitude da UCI, os militantes islâmicos dedicavam-se a realizar julgamentos rápidos em cada cidade, solucionando disputas locais e sentenciando criminosos. Muitos desses controles de cidades somalianas eram incruentos, envolvendo longas negociações52 com os anciões que lideravam os clãs para convencê-los das nobres intenções da Al-Shabab. Ela deu continuidade a essa diplomacia com programas sociais populares. Uma medida de grande importância consistiu em reduzir ainda mais os bloqueios de estradas53 e os postos de controle, o que a UCI já começara a fazer quando estava no poder. Historicamente, esses postos de controle eram usados pelos chefes de milícias como instrumentos de extorsão, e não como meios de segurança. “A ideia de que [a Al-Shabab] e outros grupos rebeldes islâmicos são um exército desorganizado de fanáticos ignorantes, cujo primeiro instinto consiste em usar de força e de terror para impor sua visão radical, é uma caricatura”,54 diz um relatório do Grupo Crise Internacional (International Crisis Group, ICG).
As táticas dessas organizações têm se mostrado mais adequadas e eficazes do que as de seus adversários. Em larga medida, elas tiveram êxito em passar uma imagem de verdadeiros patriotas somalianos, em oposição ao GFT, aliado dos etíopes. Em consequência disso, vêm ganhando popularidade no centro e no sul da Somália, tal como antes da invasão etíope, em dezembro de 2006.
Entretanto, ao mesmo tempo que se empenhava em sua versão de uma campanha de popularização, a Al-Shabab também pôs em prática políticas que lembravam as do Talibã,55 proibindo os apreciados filmes indianos, cobrindo à força o cabelo de homens que usavam cortes “impróprios” e impondo sentenças rigorosas por infrações a sua interpretação da Sharia. No começo de 2009, a Al-Shabab já controlava a maior parte do sul da Somália. “Em muitas áreas, ela é a única organização56 em condições de proporcionar serviços sociais básicos, como postos médicos rudimentares, centros de distribuição de alimentos e um sistema de justiça elementar fundamentado na lei islâmica”, concluiu um informe da Comissão de Relações Exteriores do Senado americano.
Os diplomatas ocidentais temem que a Al-Shabab continue a conquistar adeptos ao proporcionar serviços, da mesma forma que o Hamas teve sucesso na Faixa de Gaza. Os especialistas advertem: há pouca coisa que os Estados Unidos possam fazer para debilitá-la.
Um aumento dos bombardeios pelos Estados Unidos ou uma maior intervenção militar estrangeira, avisa o informe, poderia fortalecer a Al-Shabab. Enquanto a organização consolidava seu apoio local, no cenário global a Al-Qaeda podia
agora usar a jihad na Somália para recrutar ativistas. Nesse quadro, uma nação cristã, a Etiópia, apoiada pelos Estados Unidos — a raiz de todo mal — tinha invadido a Somália e matado muçulmanos. Jihadistas tinham se insurgido e repelido a invasão, tornando a Somália um campo de batalha contra a cruzada que, havia tempos, Osama bin Laden afirmava que os Estados Unidos estavam travando. Quando os etíopes se retiraram, segundo Aynte, a Al-Shabab “viu-se mais popular57 e poderosa do que nunca”, transformando “sua luta interna irredentista num pronunciamento jihadista global”. Combatentes estrangeiros começaram a chegar à Somália em número cada vez maior. Osama bin Laden divulgou a gravação de um discurso intitulado “Continuem a lutar, campeões da Somália”,58 em que ampliava as exortações à derrubada do governo “apóstata” de Sharif. A Al-Shabab começou a dominar facilmente territórios de todo o sul da Somália, e logo se viu no controle de uma área muito maior do que aquela controlada pelo governo somaliano, embora este último fosse apoiado por milhares de soldados da União Africana, financiados e treinados pelos Estados Unidos e outros países ocidentais. A Al-Shabab acabou se tornando a principal força jihadista na Somália — e em breve tinha sob seu domínio um território maior que o de qualquer outro grupo ligado à Al-Qaeda na história. A política americana dera errado de alto a baixo, transformando, em poucos anos, uma turba somaliana desorganizada nos novos heróis da luta global da Al-Qaeda.
23. “Se seu filho não vier para cá, será morto pelos americanos”
IÊMEN, 2007-9 — Durante o tempo em que Anwar Awlaki cumpriu pena em regime de prisão solitária num cárcere do Iêmen, a Al-Qaeda ressurgia naquele país. Embora a liderança civil do governo Bush praticamente não prestasse atenção nisso, o JSOC acompanhava de perto a reorganização da Al-Qaeda no Iêmen. Em 27 de março de 2007, uma unidade militar iemenita da província de Hadramaut descobriu um drone espião dos Estados Unidos1 que a maré levara à praia, no mar da Arábia. O Scan Eagle, um veículo desarmado de reconhecimento aéreo, fora lançado pelo navio USS Ashland, mandado para lá no começo de 2007 para dar apoio às operações de contraterrorismo da Força-tarefa Combinada 150 no Chifre da África. Grupos de direitos humanos também alegavam que o Ashland estava sendo usado pelas forças americanas como prisão flutuante,2 recebendo suspeitos de ligação com a Al-Qaeda detidos na região. Um dia depois que os militares iemenitas resgataram o drone, o presidente Saleh ligou para o encarregado de negócios dos Estados Unidos no Iêmen, que garantiu que o Scan Eagle tinha caído no mar e não penetrara no espaço aéreo iemenita. Saleh disse ao americano que não engolia a história, mas prometeu que o Iêmen não “transformaria aquilo num incidente internacional”, como se lê num telegrama diplomático americano, enviado depois do telefonema, e que “instruiria as autoridades do governo [iemenita] a não comentar” o acontecimento. Em vez disso, o governo Saleh divulgou uma versão que ajudava a promover a campanha de propaganda de Saleh contra o Irã. Em 29 de março, órgãos de comunicação oficiais do Iêmen noticiaram que forças militares iemenitas tinham derrubado um “avião de espionagem” iraniano, depois de consultas a “forças multinacionais” na região. De acordo com o telegrama americano, Saleh “poderia ter aproveitado a oportunidade para ganhar pontos políticos, mostrando-se duro contra os Estados Unidos em público, mas preferiu culpar o Irã”. O drone acidentado foi um presságio do que estava por vir. Enquanto a Al-Qaeda se reagrupava no Iêmen, começou a realizar uma série de ações em pequena escala, principalmente na província de Marib, local do ataque do drone americano que matou Harithi em 2002. Entre essas ações estavam ataques suicidas contra instalações produtoras de petróleo e gás.3 Em março de 2007, assassinaram o chefe das investigações criminais4 em Marib, Ali Mahmud al Qasaylah, por sua suposta atuação no ataque do drone.
Numa mensagem gravada em áudio,5 o assistente de Wuhayshi, Qasim al-Rimi, anunciou que Wuhayshi era o novo chefe da Al-Qaeda no Iêmen. Na mesma mensagem, Rimi declarou que o grupo continuaria a vingar-se dos responsáveis pelo ataque do drone americano. Duas semanas depois da divulgação da fita de Rimi, homens-bomba atacaram um comboio de turistas espanhóis6 em Marib, matando oito deles, juntamente com dois motoristas iemenitas. Após dezoito meses na prisão, Awlaki voltou para um mundo em que as guerras americanas a que se opusera ativamente tinham se espalhado. Ao que parecia, a guerra estava chegando ao Iêmen. À medida que o JSOC e a CIA intensificavam suas operações, a história de Awlaki passou a lembrar uma imagem especular. Ao ser libertado, em fins de 2007, ele não se escondeu, como o governo dos Estados Unidos afirmou. Foi para a casa onde morava com a família,7 em Sana’a, tentando achar um meio de apoiá-la e continuar sua pregação. Numa entrevista, dias após sua libertação, perguntaram a Awlaki se ele voltaria para os Estados Unidos ou para a Grã-Bretanha a fim de pregar. “Bem, eu gostaria de viajar.8 Entretanto, só depois que os Estados Unidos retirarem todas as suas acusações desconhecidas contra mim”, respondeu ele. A verdade9 é que minha volta aos estados Unidos não está proibida. Saí por livre e espontânea vontade e me recuso a voltar de moto próprio”, disse Awlaki mais tarde.
Na verdade, ocorre o contrário. O cônsul americano me incentivou a voltar aos Estados Unidos durante a visita que me fez quando estive preso. Alhamdulillah [graças a Deus], Alá me abençoou dando-me para viver uma terra abençoada pelo testemunho de Rasulullah [o profeta]. Por que trocar isso pela vida nos Estados Unidos? Eu me recuso até a visitar esse país, pois seu governo não merece confiança, já que mente tanto quanto seus meios de comunicação.
Quanto ao que faria em seguida, Awlaki disse: “Tenho algumas oportunidades abertas10 no momento, e ainda não escolhi entre elas. Por ora, estou estudando a situação”. No começo de 2008, a internet tornou-se a mesquita digital de Awlaki, por meio da qual ele podia alcançar muçulmanos em todo o mundo. Em fevereiro, ele criou seu próprio site na rede (www.anwar-alawlaki.com), intitulado “Iman Anwar’s Blog”. Criou também uma página no Facebook, atraindo milhares de visitantes. Em sua primeira postagem no blog, Awlaki escreveu:
Antigamente,11 era preciso alguns dias para viajar, por exemplo, de Meca a Medina, que estão separadas por apenas 450 quilômetros. Agora, podemos nos comunicar com o mundo inteiro em poucos segundos. Texto, áudio e vídeo, tudo em poucos segundos. Por isso, eu gostaria de dizer a todos os irmãos que conheço pessoalmente e com quem passei horas inesquecíveis: Salam aleicum e woxa Alá, nunca os esquecerei [...]. E àqueles que conheci através desses
meios de comunicação modernos, mas com quem não pude estar pessoalmente, impedido pelas circunstâncias, digo que ainda me sinto vinculado a eles e que os amo em nome de Alá, porque preferiram seguir o Islã. Salam aleicum, e se não nos encontrarmos neste mundo, pedimos a Alá que estejamos entre aqueles que se encontrarão reclinados nos tronos do Paraíso.
O site de Awlaki tinha uma vibrante seção de comentários, e ele construiu uma ampla comunidade on-line a que dava muita atenção. As qualidades humanas — e uma atenção à discussão mundana — que Awlaki mostrava nesses debates complicavam a forma caricatural como era retratado na imprensa ocidental e ajudavam a explicar a simpatia que despertava, em especial entre certos muçulmanos no Ocidente. Numa postagem intitulada “Você gosta de queijo?”,12 Awlaki levantou a seguinte questão: “Queijo é ótimo. Por isso, se você é fã de queijo, talvez esteja se perguntando: é lícito ou não consumir queijos feitos por não muçulmanos?”. Em outra postagem do blog, tratou de práticas financeiras compatíveis com o Alcorão e advertiu os muçulmanos residentes nos Estados Unidos contra a aquisição de uma casa mediante hipoteca imobiliária. “Se você é uma pessoa13 a quem Alá tornou rico, deve evitar ser proprietário de bens de raiz nos Estados Unidos, investindo seus dólares em ouro e prata”, escreveu.
Além de ser a atitude mais prudente do ponto de vista financeiro, é também o que o Islã recomenda. Os muçulmanos não devem apoiar a economia de um país que os está combatendo. Por fim, os que estão pensando em comprar uma residência nos Estados Unidos mediante hipoteca, que é uma forma clara de Riba [usura], devem temer a ira de Alá.
Entretanto, as postagens de Awlaki também eram marcadas por hostilidade aos Estados Unidos e mostravam uma clara radicalização de sua postura política. Não havia mais nenhuma moderação em relação aos Estados Unidos ou à democracia. “Os muçulmanos não procuram se infiltrar14 no sistema e trabalhar de dentro para fora. Não é esse o nosso estilo. É o estilo dos judeus e dos munafíquin [hipócritas], mas não dos muçulmanos”, postou ele em agosto de 2008.
Como muçulmanos, não devemos submeter o Islã aos caprichos das pessoas, ou seja, se elas o escolhem nós o implementamos, se não, aceitamos sua decisão. Nossa posição é que havemos de impor o reino de Alá na Terra pela ponta da espada, queiram as massas ou não. Não submeteremos a Sharia a testes de popularidade. Rasulullah [o profeta] diz: Fui enviado com a espada até que somente Alá seja cultuado. Esse caminho, o caminho de Rasulullah, é aquele que devemos seguir.
E acrescentou:
Atualmente o mundo muçulmano está sob ocupação, e as declarações de nossos sábios são claras no sentido de que é a fardh ayn [um dever iniludível] de todo muçulmano apto lutar para libertar a terra muçulmana. Quando uma coisa é fardh ayn, ela é fardh ayn. Não se pode teorizar ou imaginar hipóteses diferentes. A lei é clara e suas implicações também.
Awlaki elogiou o Talibã no Afeganistão e a União das Cortes Islâmicas na Somália como dois “exemplos bem-sucedidos, ainda que longe de perfeitos” de um sistema de governança islâmica. A jihad, ele escreveu, “é o que [o teórico militar Carl] Clausewitz chamaria de ‘guerra total’, mas com as normas de fogo islâmicas. É uma batalha no campo de batalha e também pelos corações e mentes das pessoas”. Awlaki começou instando seus seguidores nos Estados Unidos a romperem com o governo e a sociedade do país e se afastarem de qualquer participação no processo político:
Hoje, os Estados Unidos são a terra de um interessante conjunto de pecados15 colhidos a dedo em todas as nações que existiram antes de nós: a obstinação do povo de Nuh; a arrogância do povo de Aad; a rejeição dos sinais de Alá pelo povo de Thamud; a sodomia do povo de Lut; o desvio financeiro do povo de Shuyab, pois os Estados Unidos são os maiores emprestadores e promotores da economia baseada nos juros; a opressão de Abu Jahl e outros; a cupidez, a fraude, o amor à vida temporal e a falsidade dos filhos de Israel; e também a arrogância do faraó, que tinha a ideia torta de que só por ser o líder da nação mais poderosa do mundo e estava à testa do maior exército de seu tempo, podia, de uma forma ou de outra, derrotar os servos de Alá. Irmãos e Irmãs, isso leva à convicção de que o castigo de Alá paira sobre os Estados Unidos. Quando? Como? Alá sabe melhor. Por conseguinte, se vocês fazem parte do grupo de infelizes que foram morar no lugar errado e na época errada, é aconselhável que saiam daí. Isso, obviamente, se me derem ouvidos. Muitos não dão, e ainda estão vivendo a utopia do sonho americano. Não estou falando de Mo e Mike, que ainda estão dançando as músicas da MTV, com sua Coca e seu Big Mac, e que só são muçulmanos no nome; estou falando dos muçulmanos praticantes, que, lamentavelmente, ainda pensam que os Estados Unidos de George W é a Abissínia do Négus.
A IC americana via os sermões de Awlaki na internet como uma ameaça. Algumas autoridades começaram a fazer uma campanha surda contra ele na imprensa. “Há bons motivos para crer16 que Anwar Awlaki tenha se envolvido em atividades terroristas seríssimas desde que deixou os Estados Unidos, inclusive tramando ataques contra os Estados Unidos e nossos aliados”, declarou uma autoridade americana de contraterrorismo ao Washington Post em
fevereiro de 2008, sem apresentar provas. Em seu blog e por meio de e-mails, Awlaki levantou questões como a conveniência da participação de muçulmanos ocidentais na jihad, e começou a debater os méritos de viajarem às linhas de frente para lutar. Uma nova geração de jovens muçulmanos privados de direitos procuravam com avidez as gravações de Awlaki em vídeo e áudio. Uma das mais desejadas era “Constantes no caminho da jihad”, uma palestra em áudio que, segundo se acreditava, fora gravada em 2005.17 A palestra baseava-se nas lições de Yusuf al-Ayyiri, o primeiro líder operacional18 da Al-Qaeda na Península Arábica e articulado estrategista de guerrilhas, morto por forças de segurança sauditas em 2003. Na palestra, Awlaki expunha as ideias de Ayyiri sobre a jihad, inserindo num contexto corrente as histórias de batalhas épicas travadas por guerreiros islâmicos em defesa de sua fé. “Sempre que vocês virem a palavra terrorismo,19 substituam-na pela palavra jihad.” Todos os “governos no mundo estão unidos para lutar contra o Islã”, acrescentou Awlaki. “As pessoas procuram achar um meio de cair fora da jihad porque não gostam dela. A realidade da guerra é horrível, e por isso as pessoas tentam evitá-la, mas a luta foi imposta a vocês, é uma instrução de Alá.” Os verdadeiros muçulmanos, disse Awlaki, citando os textos de Ayyiri, definem a vitória não como um simples triunfo militar, mas como um ato de sacrifício. “O mujahid sacrificando a ‘si mesmo’ e a sua riqueza é vitória. A vitória é sua ideia, sua religião. Se você morre por sua religião, sua morte espalhará a da’wa [proselitismo em nome do Islã] […]. Alá escolhe Shuhada [mártires] entre os crentes. Isso é uma vitória.” Os analistas de contraterrorismo da CIA e o FBI começaram a esquadrinhar os sermões de Awlaki em busca de pistas que ele pudesse ter deixado sobre suas possíveis ligações com a AlQaeda. Não descobriram nada de específico, mas viram uma ameaça em sua influência e na inspiração que muitos buscavam nele. Várias investigações revelavam referências aos sermões de Awlaki, e em especial à palestra “Constantes”. “Em certo sentido, Awlaki transpõe um fosso,20 pois fala em árabe, mas também fala em inglês e é cidadão americano, por isso sabe como se dirigir aos jovens”, disse-me o dr. Emile Nakhleh, que já dirigiu a Divisão Política do Islã da CIA. “E assim o perigo não é que ele seja outro Bin Laden. O que algumas pessoas no governo temem em relação a Awlaki é o fato de ele representar esse novo fenômeno de recrutamento, reunindo pessoas comuns que caem no radar.” À medida que crescia a popularidade de Awlaki — muitas de suas postagens recebiam centenas de comentários de pessoas que lhe pediam conselhos —, os Estados Unidos passaram a fazer enorme pressão sobre os serviços de informações iemenitas para que voltassem a prendêlo. “Os americanos estavam muito furiosos21 com o governo [iemenita]”, disse Saleh bin Fareed, líder da tribo aulaq, que se reunia periodicamente com autoridades americanas e iemenitas para solucionar disputas entre o governo e as tribos iemenitas. “Estavam realmente irritados. E acho que faziam muita pressão sobre o presidente [iemenita] para que ele fosse posto de novo” em custódia. Awlaki era seguido onde quer que fosse. “Era molestado22 e ficava sob vigilância durante todo o tempo que passava em Sana’a. E não podia fazer nada”, lembrou o pai de
Awlaki, Nasser, que morava com o filho na época. “Eles o vigiavam de perto”, acrescentou Bin Fareed. “E ele não gostava disso. Onde quer que fosse, havia agentes de informações a sua direita e a sua esquerda. Se ele ia à mesquita, iam com ele. Se fosse de carro, estavam atrás dele. Se ele comia, eles também comiam. Acho que ele não se sentia livre.” O xeque Harith al-Nadari, amigo de Awlaki, comentou: “Vivíamos sob vigilância e assédio”,23 e Awlaki determinou que “Sana’a não era mais um lugar adequado para nós”. Por fim, decidiu sair de Sana’a e ir para Ataq,24 capital da província de Shabwah, área tribal de sua família situada no sul do Iêmen, perto do mar da Arábia. Achou que seria deixado em paz pelos serviços de informações iemenitas e pelo governo americano. Estava enganado. Washington exercia uma pressão constante sobre o regime iemenita. Quando Anwar saiu de Sana’a, a Inteligência americana exigiu que os serviços de informações iemenitas o levassem de volta para lá. Yahya Saleh, chefe da Unidade de Contraterrorismo do Iêmen, organismo de elite treinado e financiado pelos Estados Unidos, disse a Nasser: “Se seu filho não vier para cá, será morto pelos americanos”. Nasser e Bin Fareed viajaram a Shabwah a fim de tentar convencer Anwar a voltar para Sana’a. “Fui a Shabwah. Estive com Anwar. Tentei convencê-lo”, disse-me Fareed.
Ele me respondeu: “Tio, não vou fazer isso. Nasci livre. Eu lhe asseguro que não tenho nada a ver com terrorismo. Não tenho nada a ver com a Al-Qaeda […]. Vou de casa para a mesquita e da mesquita para casa, e as pessoas que a frequentam são todas da aldeia. Eu escrevo na internet, as pessoas me fazem perguntas, e eu respondo. Eu prego o Islã, essa é a minha ocupação”.
Anwar disse a seu poderoso tio que se encontrasse alguma prova de que ele estava envolvido em terrorismo, “pode vir, me prender e me pôr na cadeia”.25 Awlaki tinha levado a mulher e os filhos para Ataq, mas depois eles voltaram para Sana’a a fim de morar com os pais dele. Em Ataq, como me contaram fontes da família, agentes do Serviço de Informações iemenita submetiam Anwar à vigilância constante. Por isso ele resolveu mudar-se para mais longe, indo para a pequena aldeia da família,26 Al-Saeed, na zona rural. “É um vilarejo. Quer dizer, uns poucos milhares de pessoas moram ali no vale. Todos são da mesma tribo”, disse-me Bin Fareed. “Se vem alguém de outra aldeia, sabe-se que é um estranho. Ou seja, todo mundo se conhece. Acho que os americanos não gostaram disso.” Na aldeia de sua família, Awlaki continuou a postar mensagens em seu blog, mostrando-se cada vez mais radical. Começou a dizer a amigos e parentes27 que acreditava que os Estados Unidos estavam em seu rastro.
A caçada dos Estados Unidos a Awlaki coincidiu com a escalada dos ataques da Al-Qaeda ao Iêmen. Em 17 de setembro de 2008, o grupo fez um violento ataque camicase28 à embaixada dos Estados Unidos em Sana’a. O conjunto de prédios, que lembrava uma fortaleza, foi alvo de uma investida coordenada com carros-bomba, granadas lançadas por foguetes e armas automáticas, matando treze guardas e civis, um deles americano. Todos os seis atacantes morreram também. A Al-Qaeda declarou que o ataque fora bem-sucedido. “Esse ataque é um lembrete29 de que estamos em guerra com extremistas que se dispõem a matar pessoas inocentes para alcançar seus objetivos ideológicos”, disse o presidente Bush ao general David Petraeus na Casa Branca. “Um dos objetivos desses extremistas ao matarem pessoas é tentar fazer com que os Estados Unidos percam a calma e se retirem de algumas regiões do mundo.” Pouco tempo depois, Petraeus assumiria a chefia do Centcom, cargo em que supervisionaria as guerras dos Estados Unidos — declaradas e não declaradas — no Oriente Médio. Uma de suas tarefas seria coordenar uma expansão dos ataques militares secretos dos Estados Unidos no Iêmen. Em maio, pouco depois de ter sido informado de que iria para o comando do Centcom, ele se encontrou no Qatar30 com o diretor da CIA, Michael Hayden, com o comandante do JSOC, almirante McRaven, e com outras pessoas para discutir planos de aumento dos ataques a suspeitos de pertencerem à Al-Qaeda, onde quer que atuassem. Quando o ataque à embaixada foi noticiado nos Estados Unidos, o futuro chefe de Petraeus, o senador Barack Obama, estava em plena campanha. “Isso só nos faz lembrar31 que temos de redobrar nossos esforços para erradicar e destruir as organizações terroristas internacionais”, comentou Obama em Grande Junction, Colorado. O Iêmen começava a deixar de ser um local de baixa prioridade. Michael Scheuer, veterano da CIA com 22 anos de experiência e ex-chefe da unidade da Agência que cuidava de Bin Laden, observou que “a organização da Al-Qaeda no Iêmen parece ter se estabilizado32 depois do período de confusão e repressão pelo governo que se seguiu à morte de seu líder Abu Ali Harithi, em novembro de 2002”. Scheuer acrescentou:
Para a Al-Qaeda, o Iêmen constitui uma base central, fundamental, que liga seus teatros de operações no Afeganistão, no Iraque, na África Oriental e no Extremo Oriente; proporciona também uma base para treinamento de combatentes iemenitas e para descanso e reaparelhamento de combatentes de múltiplos grupos islâmicos depois de seus períodos de atuação no Afeganistão, no Iraque e na Somália.
Ao todo, houve dezenas de ataques documentados da Al-Qaeda contra solo iemenita, de 2000 até o fim do governo Bush. Com o tempo, cresceram a ajuda militar dos Estados Unidos e o financiamento pela CIA. “Quando [a Al-Qaeda] começa a criar problemas no Iêmen, o dinheiro americano começa a fluir”,33 disse Scheuer. “Para Saleh, a Al-Qaeda é a dádiva perpétua. Para
ele, ela é a principal arrecadadora de recursos sauditas e americanos.” Em outubro de 2008, a base americana no Djibuti foi posta, oficialmente, sob o controle do Comando dos Estados Unidos na África (United States Africa Command, Africom), o sexto comando geográfico unificado do Pentágono. O Iêmen permaneceu na AOR do Centcom e se tornou foco de atenção especial do SOC(FWD)-Yemen (Comando Especial de OperaçõesAvançado Iêmen). Enquanto Saleh administrava suas complexas relações com os Estados Unidos através de canais oficiais, de vez em quando, como disseram veteranos das Forças de Operações Especiais dos Estados Unidos, equipes do JSOC realizavam “ações diretas, unilaterais” no Iêmen contra suspeitos de ligações com a Al-Qaeda. Tais ações jamais eram mencionadas em público, e algumas podem ter sido feitas sem conhecimento ou autorização direta de Saleh. “Naquele período, estávamos treinando e organizando as forças nacionais de segurança no Iêmen”, disse-me o ex-assessor de um alto dirigente do JSOC. “Ao mesmo tempo, localizávamos e, depois, matávamos pessoas34 que sabíamos que eram extremistas da Al-Qaeda — ou sobre as quais recaíam suspeitas — na península ou em torno dela, e no próprio Iêmen.” Ainda que o Iêmen aparecesse com frequência cada vez maior nos radares do JSOC e da CIA, de modo geral o país permanecia fora das manchetes. Nos três debates entre Barack Obama e John McCain durante a campanha eleitoral de 2008, o Iêmen não foi mencionado uma só vez. Um dos argumentos usados por Obama em sua campanha foi que Bush desperdiçara, no Iraque, recursos que deviam ter sido usados para combater a Al-Qaeda. “Ela não estava35 no Iraque até George Bush e John McCain se decidirem pela invasão”, declarou em fevereiro de 2008. “Desviaram os olhos dos responsáveis pelo Onze de Setembro — da Al-Qaeda.” O novo presidente se comprometeu a reformular as prioridades americanas no Afeganistão, onde o excomandante do JSOC, o general McChrystal, ficaria encarregado da guerra, porém Obama logo se deu conta de que sua promessa de fazer a luta se voltar contra a Al-Qaeda não se limitaria ao Afeganistão. Uma pequena nação árabe, o Iêmen, viria a se tornar peça importante no xadrez do contraterrorismo de Obama.
Quando os oito anos da era Bush chegavam ao fim, e a campanha eleitoral americana entrava em suas últimas semanas, Anwar Awlaki invectivou contra as esperanças que os muçulmanos, nos Estados Unidos e em todo o mundo, estavam expressando em relação à candidatura de Barack Obama. “Aqueles que defendem a participação nas eleições americanas argumentam que estão escolhendo o menor de dois males.36 Esse princípio está correto, mas o que eles não percebem é que, ao escolher o menor de dois males, cometem um mal ainda maior”, escreveu Awlaki em outubro de 2008.
Os tipos de candidatos que a política americana tem exibido são totalmente repulsivos. Pergunto-me: como pode algum muçulmano que tenha uma pitada de iman [fé] no coração
caminhar até a urna e nela depositar um voto que endossa criaturas como McCain ou Obama?! [...]. Não importa o quanto seu voto seja irrelevante, no Dia do Juízo você será chamado a explicá-lo. Você, sem pressão ou coerção, optou, conscientemente, por votar a favor do líder de uma nação que está promovendo a guerra contra o Islã.
Posteriormente, numa outra postagem, Awlaki escreveu que “na maioria das questões que dizem respeito aos muçulmanos, há pouca diferença37 entre McCain e Obama. “Por exemplo, eles têm as mesmas ideias sobre a guerra contra o terror e a questão da Palestina. Toda pessoa que conheça a história da política americana, ainda que por alto, sabe que, no tocante às questões principais, os dois partidos rezam pela mesma cartilha.” À medida que Awlaki elevava o tom de sua retórica, a IC americana aumentava o nível da ameaça que via nele. Um mês antes da eleição de Obama, abriu-se uma minúscula janela na forma como Awlaki era considerado quando Charles Allen, subsecretário de Segurança Interna para Informações e Análise, referiu-se a ele como “partidário da Al-Qaeda38 e ex-líder espiritual de três dos sequestradores do Onze de Setembro”. Foi a primeira vez que uma autoridade do governo americano ligou publicamente Awlaki ao terrorismo. Allen acusou Awlaki de “dirigir aos mulçumanos americanos pela internet, a partir de sua nova residência no Iêmen, palestras radicais incentivando ataques terroristas”. Quando as observações de Allen foram publicadas, Awlaki redarguiu em seu blog. Quanto a sua suposta função de “conselheiro espiritual” de alguns dos sequestradores, escreveu: “Essa é uma afirmação sem fundamento,39 que refutei repetidas vezes durante os interrogatórios do FBI e junto aos meios de comunicação. O governo dos Estados Unidos e a imprensa insistem ainda em espalhar essa inverdade”. Quanto a incentivar ataques terroristas, respondeu: “Eu o desafio a apontar uma única palestra em que eu tenha estimulado ‘ataques terroristas’”. Contudo, aos olhos do governo americano, os apelos de Awlaki em prol da jihad equivaliam a incentivá-los. Quando Obama, como presidente eleito, começou a plasmar sua política externa e suas equipes de contraterrorismo, o Iêmen apareceu como uma alta prioridade. Embora a maioria dos americanos e do resto da população mundial nunca tivesse ouvido falar de Anwar Awlaki, o novo governo estava monitorando seus movimentos no Iêmen. As autoridades americanas não apresentaram nenhuma prova concreta de que ele estivesse envolvido ativamente em alguma trama terrorista, mas asseveravam que era uma figura inspiradora, cujos sermões não cessavam de aparecer na investigação de vários complôs. Em 2006, descobriu-se que muçulmanos canadenses, acusados de planejar a invasão do Parlamento para decapitar o primeiro-ministro, tinham ouvido as prédicas de Awlaki. Ademais, alguns dos homens condenados pelo plano de ataque a Fort Dix,40 em Nova Jersey, em 2007, tinham elogiado Awlaki, segundo uma gravação feita por um informante do governo. Outras referências a ele surgiam em inquéritos realizados no Reino Unido, assim como em Chicago e Atlanta. Awlaki louvava abertamente a Al-Shabab
da Somália, onde os Estados Unidos se preocupavam cada vez mais com a possibilidade de muçulmanos ocidentais aderirem à jihad. Jovens americanos de Minneapolis, de ascendência somaliana, que tinham ido para a Somália41 a fim de juntar-se à Al-Shabab teriam sido inspirados pela palestra “Constantes no caminho da jihad”, de Awlaki. Numa postagem de 21 de dezembro de 2008 intitulada “Saudações à Al-Shabab da Somália”, Awlaki escreveu que a captura, pelo grupo, de territórios em Mogadíscio e outras partes da Somália
enche nosso coração42 de imensa alegria. Gostaríamos de parabenizar vocês por suas vitórias e realizações […]. A Al-Shabab não só teve êxito em ampliar as áreas que estão sob seu domínio como conseguiu pôr em vigor a Sharia e nos dar um exemplo vivo de como nós, muçulmanos, devemos proceder a fim de mudar nossa situação. O voto não nos valeu, mas a bala, sim.
Awlaki comparou as insurreições armadas da Al-Shabab contra os apaniguados dos americanos aos ensinamentos de “universidades islâmicas dirigidas por Letrados de Zonas Verdes submetidos a governos liderados por proxenetas”, cujos ensinamentos defendiam “fraqueza e humilhação”. Awlaki afirmou que a “universidade da Somália” haveria de “formar um alunado” de
combatentes temperados no campo e dispostos a seguir avante sem temor ou hesitação. Ela proporcionará a seus discentes a experiência prática de que a Ummah necessita muitíssimo para seu próximo estágio. Mas o sucesso deles depende do apoio de vocês. Cumpre à Ummah auxiliá-los com homens e dinheiro.
A Al-Shabab respondeu à mensagem de Awlaki, que postou a resposta em seu blog. Dirigindo-se a ele como “amado xeque Anwar”,43 sua declaração dizia:
Olhamos para o senhor como um dos pouquíssimos letrados que assumem uma postura firme em relação à verdade e defendem a honra dos mujahedin e dos muçulmanos com sua contínua revelação das tramas insensatas dos inimigos de Alá. Alá sabe quantos outros irmãos e irmãs foram tocados por seu trabalho, e por isso lhe pedimos que prossiga com o esforço importante que vem fazendo onde quer que esteja e que nunca tema a acusação dos acusadores.
E concluía: “Oh, xeque, nós o admiramos não só como soldado, mas também como um seguidor
de Ibn Taymiya [letrado islâmico famoso por resistir aos mongóis no século XIII]”. Durante o cerco israelense de Gaza, conhecido como operação Chumbo Fundido, iniciado no fim de 2008, o tom de Awlaki tornou-se bem mais radical e belicoso. “O Estado ilegal de Israel44 precisa ser erradicado. Da mesma forma como Rasulullah os expulsou da Península Arábica, os judeus da Palestina precisam ser empurrados para o mar”, ele escreveu. “Não existem civis israelenses, a menos que sejam muçulmanos. Quando o inimigo investe contra nossas mulheres e crianças, devemos investir contra as deles.” Awlaki era influente junto a círculos jihadistas e entre muçulmanos ocidentais jovens e conservadores, inclusive aqueles que pretendiam participar das lutas armadas contra os Estados Unidos, Israel e seus aliados. Seus sermões tinham se tornado virais em fóruns jihadistas na internet, acompanhados com toda a atenção pelos serviços de informações americanos. Mas não foi apresentada nenhuma prova concreta de que Awlaki tenha feito alguma coisa que não estivesse protegida pela Primeira Emenda à Constituição americana, que trata da liberdade de expressão, ou que não exigisse uma longa batalha judiciária para mostrar que era inconstitucional. Havia, porém, muita fumaça em torno dele que levava os serviços de informações americanos a desejar que ele fosse silenciado, como esteve nos dezoito meses que passou numa prisão iemenita. Agora que ele estava fora do cárcere e se tornando mais popular a cada postagem em seu blog, intensificou-se a vigilância digital sobre ele. Sem que Awlaki soubesse, seus e-mails estavam sendo interceptados e lidos, enquanto seu blog era vasculhado em busca de pistas de contatos. Em 17 de dezembro de 2008, o FBI interceptou um e-mail que ele recebera de Nidal Hasan, o major do Exército cujos pais tinham sido membros da mesquita de Awlaki na Virgínia, em 2001. O último contato de Awlaki com Hasan se dera antes que ele trocasse os Estados Unidos pelo Iêmen, e fora tão somente para falar com ele a pedido de seus pais. Em retrospecto, o e-mail era fatídico. “Há muitos soldados45 nas Forças Armadas americanas que se converteram ao Islã durante o tempo de serviço. Há também muitos muçulmanos que aderem às Forças Armadas por uma quantidade de outros motivos”, escreveu Hasan a Awlaki.
Alguns parecem ter conflitos internos e até mataram ou tentaram matar outros soldados [americanos] em nome do Islã, como, por exemplo, Hasan Akbar [soldado americano condenado por matar dois colegas de farda no Kuwait] etc. Outros consideram que não há conflito algum. Fatwas anteriores parecem vagas e não muito definidas.
A seguir, ele perguntou a Awlaki:
O senhor poderia tecer alguns comentários gerais sobre os muçulmanos nas Forças Armadas [americanas]? O senhor consideraria que uma pessoa como Hasan Akbar ou outros soldados
que tenham cometido tais atos com o objetivo de ajudar os muçulmanos/o Islã a lutar pela jihad (vamos apenas imaginar isso por ora), se eles morressem, o senhor os consideraria shahids [mártires]? Compreendo que essas perguntas são difíceis, mas o senhor parece ser um dos poucos que moraram nos [Estados Unidos e que] tem um bom conhecimento do Alcorão e da suna, e que não tem medo de falar claro.
Awlaki não respondeu a esse e-mail, mas Hasan continuou a lhe escrever durante meses. Embora os investigadores americanos nada tenham feito contra Hasan depois desse e-mail, um ano depois, quando ele abateu treze de seus colegas de farda em Fort Hood, no Texas, seus e-mails ajudaram a compor a versão de que Awlaki era um terrorista. “Awlaki sintetiza a filosofia da Al-Qaeda46 em palestras palatáveis e bem escritas”, declarou Evan Kohlmann, que se proclamou estudioso da Al-Qaeda e foi uma conhecida “testemunha especialista” em julgamentos de acusados de terrorismo, ao New York Times. “Eles podem não ensinar às pessoas como fabricar uma bomba ou usar uma arma, mas ele lhes diz quem devem matar e por quê, e ressalta a urgência da missão.” Kohlmann era chamado com frequência para esclarecer temas referentes à Al-Qaeda junto a autoridades do governo americano, embora não falasse árabe,47 nem tivesse viajado exaustivamente por países onde a organização tinha forte presença. Kohlmann fez uma exposição ao Departamento de Justiça dos Estados Unidos e disse que já os avisara quanto ao que disse ser a capacidade cada vez maior de Awlaki para incitar jovens ocidentais a aderir a jihads estrangeiras ou realizar ataques terroristas em seus próprios países. Kohlmann observou que deveria haver “pouca surpresa48 pelo nome de Anwar Awlaki e seu sermão sobre “Constantes no caminho da jihad” aparecerem em todas as investigações sobre terrorismo de origem nacional, fosse nos Estados Unidos, no Reino Unido, no Canadá ou em outros países”. Segundo ele, a prédica “Constantes” de Awlaki era “uma palestra que com o tempo tornou-se a ‘bíblia virtual’ para extremistas muçulmanos solitários”. Embora Awlaki sem dúvida estivesse chamando a atenção de um número cada vez maior de autoridades e analistas de contraterrorismo nos Estados Unidos, havia na comunidade de informações quem julgasse que sua importância estava sendo exagerada. Os sermões de Awlaki estavam mesmo pipocando em vários inquéritos sobre incidentes ligados ao terrorismo, mas ele era praticamente desconhecido no mundo das verdadeiras células da Al-Qaeda. Salvo entre os muçulmanos ocidentais de língua inglesa, ele não exercia influência na maior parte do mundo muçulmano. “Acho que tendemos a concentrar tanta atenção nele porque ele prega em inglês.49 E por causa disso estamos mais expostos ao que ele diz, e porque estamos mais expostos ao que ele diz, supomos que ele tenha mais influência do que realmente tem”, declarou Joshua Foust, que na época era analista da DIA no Iêmen. Foust disse que estava preocupado com a possível influência dos sermões de Awlaki sobre jovens muçulmanos ocidentais, mas achava que certas pessoas na IC estavam exagerando o papel que suas prédicas desempenhavam em tramas
terroristas. “Não vejo nenhum indício de que [Awlaki] represente alguma espécie de ameaça ideológica contra os Estados Unidos. Eu diria que 99,99% das pessoas que escutam a ideologia de Awlaki, ou acreditam nela, nunca a põem em prática”, disse-me Foust.
Por isso, se você vai argumentar que foi a ideologia que levou alguém a fazer alguma coisa, precisa ter — ao menos na minha opinião — honestidade intelectual e rigor analítico. Vai ter de me explicar o motivo pelo qual aquela ideologia compeliu aquela pessoa a agir, mas por que não compeliu todos os que não agiram a não agir. E quanto a mim, não creio que seja possível mesmo explicar isso. Nunca vi um argumento que realmente o faça. Assim, para começar, creio que grande parte da atenção em Awlaki não faz sentido algum, porque lhe atribuímos uma importância e uma influência que na verdade ele não tem.
Da perspectiva de Awlaki, ele vinha pregando aquela mensagem anos antes do Onze de Setembro, e fazendo isso nos Estados Unidos. “Organizações [muçulmanas americanas] apoiavam a jihad no Afeganistão, na Bósnia, na Tchetchênia e na Palestina. Eu estava lá, nos Estados Unidos, naquele tempo”, lembrou Awlaki.
Clamávamos dos púlpitos50 […] pela jihad, por Alá, pela criação do Califado. Obediência e Repúdio. Podíamos falar livremente. A liberdade que havia nos Estados Unidos nos permitia dizer essas coisas, e tínhamos muito mais liberdade lá do que em muitos países do mundo islâmico.
Awlaki acreditava que sua mensagem não tinha passado por mudanças fundamentais, mas que o alvo da jihad que ele defendia, sim. Palestras que ele tinha feito na década de 1990, defendendo a jihad na Tchetchênia, no Afeganistão ou na Bósnia, eram condizentes com as metas das políticas americanas. Uma década depois, as mesmas mensagens — aplicadas contra os Estados Unidos — ganharam um novo significado e mostraram Awlaki como traidor do país em que nascera. Em fins de 2008, Awlaki postou “Um novo ano: realidade e aspirações”, mensagem na qual fazia uma análise de várias guerras no mundo islâmico e citava países em que os mujahedin muçulmanos estavam logrando vitórias sobre as potências ocidentais. No Iraque, escreveu:
Os Estados Unidos chegaram à conclusão51 de que não podem resolver o problema sozinhos e precisam buscar a ajuda dos munafíquin [hipócritas]. Com todas as forças externas e internas combinando seus esforços para lutar contra os portadores da verdade no Iraque, nossos irmãos não precisam vencer para ser vitoriosos. Tudo que precisam fazer é dar tempo ao tempo. Se conseguirem fazer isso, estão [vencendo]. O invasor não poderá permanecer lá
para sempre.
No Afeganistão, afirmou Awlaki, “os mujahedin estão ganhando, a OTAN está perdendo […]. Obama está todo animado a pôr fim ao terrorismo concentrando-se no Afeganistão. Rezo para que os irmãos deem a ele e a suas forças umas boas lições este ano”. Awlaki também comemorou a melhora da situação da Al-Shabab na Somália como “a melhor notícia do ano” e escreveu que ela “está vencendo em todas as frentes. Queira Alá que assistamos ao anúncio da criação de um emirado islâmico. A Etiópia está cansada de travar uma guerra por procuração em nome dos Estados Unidos”. Awlaki predisse que os Estados Unidos voltariam a investir contra a Somália, observando, como se adivinhasse o futuro: “O mar ao redor da Somália já está ocupado sob o pretexto de proteção contra os piratas. Este ano poderá assistir a bombardeios aéreos, havendo a possibilidade de uma nova invasão por forças terrestres”. Sobre o plano global, Awlaki afirmou: “Está em andamento a separação entre os fiéis e os hipócritas que precede todas as vitórias muçulmanas”.
A jihad prosseguirá.52 E tudo isso são tijolos para a construção da Ummah em seu próximo estágio. Se Alá deseja um fim, ele prepara o meio para tal. Alá deseja a vitória para essa Ummah e está preparando os meios para isso. Não nos sentemos longe do palco dos acontecimentos. Façamos parte dessa vitória.
De certa forma, a fixação de Awlaki pelos protagonistas islâmicos de uma escalada da guerra global de civilizações tinha paralelo num novo conjunto de listas compiladas secretamente pelas equipes de contraterrorismo do governo Obama. Havia nessas listas dezenas de líderes da AlQaeda, bem como militantes situados em níveis muito inferiores da cadeia alimentar: “facilitadores”, “suspeitos de militância”, “propagandistas”. O governo se preparava para uma série de guerras menores no Oriente Médio, no Chifre da África e na Península Arábica, bem como para uma mudança de estratégia no Afeganistão, na tentativa de cortar a cabeça da liderança do Talibã. No centro da nova estratégia de Obama havia um programa de assassinatos que concretizava a visão que Rumsfeld tinha do mundo como campo de batalha. Awlaki previu que o novo presidente americano seria um falcão contra os movimentos de resistência islâmicos. Estava certo. Obama logo daria carta branca ao JSOC e à CIA para empreender uma caçada humana global. A captura era a segunda opção. A missão precípua era matar aqueles que o presidente considerava uma ameaça aos Estados Unidos, malgrado afirmações públicas em contrário por porta-vozes das Forças Armadas e do governo. A tarefa do JSOC não seria apenas matar os líderes máximos da Al-Qaeda, mas dizimar sua infraestrutura de apoio, matando também todos os seus integrantes. Foi por meio desse programa que Awlaki se viu na alça de mira do novo presidente. Em breve, ele se tornaria um cidadão americano
condenado à morte sem ter passado por julgamento.
24. “Obama decidiu manter o rumo fixado por Bush”
ESTADOS UNIDOS, 2002-8 — Barack Obama é professor de direito constitucional, formado numa universidade da Ivy League, e sua carreira política foi cuidadosamente planejada. Em outubro de 2002, quando era senador estadual em Illinois, assumiu uma posição quanto à guerra no Iraque que prenunciava a política externa que mais tarde ele articularia como candidato à presidência. “Não me oponho a todas as guerras”, declarou.
Eu me oponho a uma guerra tola.1 A uma guerra irrefletida. Eu me oponho à tentativa cínica, por parte de […] guerreiros de salão, guerreiros de fim de semana desse governo, de nos meter pela goela abaixo suas próprias agendas ideológicas, sem levar em conta os custos em vidas perdidas e as dificuldades suportadas.
Obama aludiria frequentemente a esse discurso, mas pouquíssimos americanos o ouviram na época. Obama surgiu no cenário nacional em 2004, quando fez um ardoroso discurso programático, muito elogiado, na Convenção Nacional Democrata, obteve um lugar no Senado federal e, três anos depois, anunciou sua candidatura à presidência. “Sejamos a geração2 que nunca esquecerá o que aconteceu naquele dia de setembro e que confrontará os terroristas com tudo o que temos”, disse no discurso em que anunciou que concorreria à presidência. “Podemos trabalhar juntos para rastrear terroristas com Forças Armadas mais fortes, podemos apertar a rede ao redor de suas finanças e podemos melhorar nossa capacidade de coleta de informações.” Ao definir sua estratégia de campanha em relação à política externa, Obama e seus assessores precisaram assumir uma postura difícil: criticar as políticas de segurança nacional da era Bush e, ao mesmo tempo, mostrar-se muito duros com o terrorismo. Ele adotou uma linha dupla para atacar o candidato republicano, John McCain: ligá-lo à guerra no Iraque, à ausência de prestação de contas e aos segredos da era Bush e, ao mesmo tempo, comprometer-se a travar uma guerra mais inteligente, mais focada, contra a Al-Qaeda. Na manhã de 4 de outubro de 2007, o New York Times publicou uma longa reportagem de primeira página sobre um parecer do Departamento de Justiça, emitido em 2005, que concedia “um endosso franco das mais duras técnicas de interrogatório3 já utilizadas pela Agência Central de Inteligência”. Na gestão do recém-nomeado procurador-geral Alberto Gonzales, a CIA “pela
primeira vez recebeu autorização explícita para submeter suspeitos de terrorismo a uma combinação de métodos físicos dolorosos e táticas psicológicas, que incluíam tapas na cabeça, simulação de afogamento e temperaturas gélidas”. Naquela manhã, Obama apareceu em rede nacional de televisão. “Isso é um exemplo4 do que perdemos nos últimos seis anos e que temos de reconquistar”, disse ele a Mika Brzezinski, âncora da rede MSNBC.
Você sabe, todos nós acreditamos que temos de rastrear e capturar ou matar terroristas que ameaçam os Estados Unidos, mas temos de entender que a tortura não vai nos proporcionar informações, e vai criar mais inimigos. Por isso, como estratégia para criar um país mais seguro e protegido, acho isso errado, além de imoral.
Obama acrescentou: “Acho que esse governo, basicamente, julgava aceitável qualquer tática, desde que pudesse dar-lhe uma interpretação que fosse conveniente e mantê-la longe dos olhos do público”. À medida que a campanha presidencial avançava, as promessas de reverter as políticas da era Bush vieram a ocupar lugar de destaque no temário de Obama. A tortura, a prisão de Guantánamo, as guerras sem justificativas nem prestação de contas e a evisceração das liberdades civis nos Estados Unidos chegariam ao fim, prometeu Obama. “Temos sido governados pelo medo5 nesses últimos seis anos, e esse presidente utilizou o medo do terrorismo para lançar uma guerra que jamais devia ter sido autorizada”, disse no fim de outubro de 2007. Segundo ele, o clima político fomentado pelo governo Bush corroera insidiosamente os Estados Unidos, interna e externamente. “Nem sequer falamos sobre as liberdades civis e sobre o impacto daquelas políticas de medo, do que foi feito em termos de minar as liberdades civis básicas neste país, do que isso fez em termos de solapar nossa reputação em todo o mundo”, disse Obama. No entanto, mesmo enquanto recebia elogios e apoio de liberais e de organizações contrárias à guerra nos Estados Unidos, Obama articulava uma visão de política externa que, no capítulo do contraterrorismo, deixava claro que ele tencionava autorizar operações secretas e clandestinas. “Foi um erro terrível6 deixar de agir quando tivemos a oportunidade de acabar com uma reunião da liderança da Al-Qaeda em 2005”, declarou Obama. “Se temos informações sobre alvos terroristas importantes que nos permitam agir, e se o presidente Musharraf não se dispuser a agir, nós o faremos.” McCain criticou Obama por dizer que executaria ataques dentro do Paquistão, qualificando sua atitude de irresponsável. “Não se diz pelo rádio7 que se vai bombardear um país sem sua permissão”, disse McCain. Obama replicou que o governo Bush tinha feito “exatamente isso”, e acrescentou: “Essa é a posição que deveríamos ter assumido desde logo […] o fato é que essa seria a estratégia correta”.8 Em 2008, ao aceitar a indicação democrata para concorrer à presidência num campo de
futebol apinhado em Denver, Colorado, Obama anunciou a política que pretendia executar: ampliar a guerra no Afeganistão e aumentar globalmente as operações americanas de captura e morte. “John McCain gosta de dizer9 que vai perseguir Bin Laden até as portas do inferno, mas não vai persegui-lo nem até a caverna onde ele mora”, disse Obama, reiterando que, se fosse eleito, os Estados Unidos agiriam unilateralmente no Paquistão ou onde quer que fosse para matar terroristas. “Devemos acabar com Osama bin Laden e seus representantes se os tivermos em mira.” Em seus discursos de campanha, Obama falava sempre em pôr fim à guerra no Iraque, mas também articulava uma linha dura com relação a ataques unilaterais dos Estados Unidos que exigiriam uma participação significativa do JSOC e da CIA. Depois da posse, quando começou a formar a equipe de política externa, ele aliciou uma série de democratas linha-dura, entre eles o vice-presidente, Joe Biden, e a secretária de Estado, Hillary Clinton, que tinham apoiado a invasão do Iraque em 2003. Susan Rice seria a embaixadora na ONU, e Richard Holbrooke chefiaria o componente civil do plano de Obama de ampliar a guerra no Afeganistão. Todos eles tinham apoiado, no passado, intervenções militares e políticas econômicas neoliberais, além de demonstrar uma visão do mundo sintonizada com o arco da política externa que vinha desde a gestão do primeiro presidente Bush até o presente. Obama manteve também o secretário de Defesa de Bush, Robert Gates, indicou John Brennan, veterano da CIA, para ser seu principal consultor em contraterrorismo e segurança interna, e nomeou o general James Jones seu consultor de segurança nacional. Republicanos conservadores cobriram de elogios as escolhas de Obama. O principal consultor de Bush, Karl Rove, classificou-as como “tranquilizadoras”,10 e Max Boot, líder neoconservador que trabalhara na campanha de McCain, exultou: “Estou surpreso11 com essas nomeações. Muitas delas poderiam ter sido feitas por McCain na presidência”. Para Boot, a voz de Hillary Clinton seria “poderosa” em “defesa do ‘neoliberalismo’, que, em muitos aspectos, não difere tanto assim do ‘neoconservadorismo’”. Michael Goldfarb, colega de Boot, escreveu no Weekly Standard, órgão oficial do movimento neoconservador, que com certeza “nada vi que represente uma mudança drástica no modo de atuar de Washington. O que se espera é que Obama decida manter o rumo12 fixado por Bush em seu segundo mandato”. Semanas depois de assumir o cargo, no começo de 2009, Obama emitiu uma mensagem clara de que pretendia manter intactas muitas das políticas mais agressivas de contraterrorismo de Bush. Entre elas estavam os assassinatos dirigidos, escutas telefônicas não autorizadas, o uso de prisões secretas, uma atitude dura em relação ao direito de habeas corpus para prisioneiros, detenções indefinidas, transferência internacional de presos pela CIA, emprego de drones em bombardeios, utilização de mercenários em guerras americanas e uso da “Prerrogativa do Segredo de Estado”. Houve casos em que Obama ampliou os programas da era Bush que antes havia censurado como característicos de um Poder Executivo irresponsável. Durante a campanha, ele declarou que faria os torturadores da era Bush responderem por
seus malfeitos, mas voltou atrás em relação a essa retórica, dizendo depois da eleição que “precisamos olhar para a frente,13 em contraposição a olhar para trás”. Disse que seu trabalho como presidente “consiste em garantir, por exemplo, que na CIA haja pessoas de extraordinário talento que trabalhem duro para manter os americanos em segurança. Não quero que elas sintam, de repente, que têm de passar todo o tempo olhando por cima do ombro”. No começo do mandato de Obama, Dick Cheney acusou-o de estar tomando medidas “para desmontar várias políticas14 que criamos e que mantiveram a nação em segurança durante quase oito anos contra ataques terroristas como o do Onze de Setembro”. Cheney estava enganado. Na realidade, Obama garantiu que muitas dessas políticas se tornassem instituições bipartidárias, bem estabelecidas, na política de segurança nacional dos Estados Unidos durante muitos e muitos anos. Se essas políticas mantiveram os americanos em segurança — ou se lhes deram menos segurança — é outra questão.
25. Ataques com o selo de Obama
PAQUISTÃO E WASHINGTON, DC, 2009 — Ao se instalar no Salão Oval, em seu novo papel de comandante supremo, o presidente Obama ajustou a retórica da vasta Guerra Total contra o Terror, de Bush, rebatizando-a como “guerra contra a Al-Qaeda e seus aliados”. Em seu terceiro dia no cargo, assinou uma série de resoluções executivas que, segundo a versão oficial, “desmantelavam” os programas de tortura e detenção da era Bush. “A mensagem que divulgamos1 para o mundo é a de que os Estados Unidos pretendem dar seguimento à luta em curso contra a violência e o terrorismo, e que vamos fazer isso com vigilância; vamos fazer isso com eficácia; e vamos fazer isso de maneira compatível com os nossos valores e os nossos ideais”, declarou Obama, ao lado de dezesseis oficiais reformados. “Tencionamos vencer essa luta. Vamos vencê-la em nossos termos.” Entretanto, ao mesmo tempo que dispensava os rótulos da era Bush e a retórica dos oito últimos anos da política externa americana, ele agia rapidamente para expandir as guerras secretas que haviam marcado os mandatos de seu predecessor. Um dia depois de Obama ter assinado suas resoluções executivas, o diretor da CIA, Michael Hayden, fez-lhe uma exposição2 a respeito de uma operação que a Agência estava para realizar no interior do Paquistão: um ataque de drone perto da fronteira do Afeganistão. Os alvos, disse Hayden ao presidente, eram integrantes do alto escalão da Al-Qaeda e do Talibã. Naquele mesmo dia, 23 de janeiro, dois mísseis Hellfire foram lançados contra objetivos situados no Waziristão do Norte e do Sul. O primeiro ataque3 atingiu um vilarejo perto de Mir Ali, no Waziristão do Norte, por volta das dezessete horas, hora local. O segundo4 atingiu uma construção na aldeia de Karez Kot, no Waziristão do Sul, mais ou menos às 20h30. Hayden, que daí a semanas deixaria a Agência, admitiu ante o presidente que os HVTs não tinham sido atingidos, mas que “pelo menos cinco militantes5 da Al-Qaeda” tinham morrido. “Ótimo”, comentou Obama, que deixou claro que apoiava a escalada de ataques de drones no Paquistão. Quando agentes de Inteligência examinaram a filmagem dos ataques de drones de 23 de janeiro, ficou claro que tinha havido morte de civis. John Brennan procurou o presidente6 e lhe contou o acontecido. Cinco “militantes” podiam ter morrido nos ataques, mas não eram as únicas vítimas fatais. De acordo com o Bureau de Jornalismo Investigativo, o primeiro ataque, no Waziristão do Norte, matou entre sete e quinze pessoas,7 quase todas civis. Muitas delas
eram de uma mesma família. Segundo relatos, um menino tinha sobrevivido, embora com uma fratura de crânio, uma perfuração de estômago e a perda de um olho.8 O segundo ataque, no Waziristão do Sul, atingira a “casa errada”9 e matara de cinco a oito civis, segundo relatos posteriores. Muitos desses mortos, entre os quais ao menos duas crianças, pertenciam à família do ancião de uma tribo, que também morrera. Esse ancião, segundo informações, seria membro de uma “comissão de paz pró-governo”.10 Obama convocou Hayden para uma reunião e pediu uma exposição em detalhes dos protocolos do programa de drones. Apesar das dezenas de sumários sobre temas de segurança nacional que ele havia recebido desde sua indicação para candidato democrata à presidência, foi nessa ocasião que o novo presidente ouviu falar pela primeira vez daquilo que a CIA chamava de “ataques por indícios”.11 Nos últimos meses do governo Bush, a Agência começara a atacar pessoas com base em comportamentos, e não em informações específicas. Segundo a CIA, “homens em idade militar” que faziam parte de um grande agrupamento de pessoas em determinada região, ou que tinham contatos com outros suspeitos de militância ou com terroristas, podiam ser considerados alvos para ataques de drones. Para a realização de um ataque não era necessário uma identificação positiva. Bastavam alguns dos “indícios” que a Agência definira para identificar suspeitos de terrorismo. Depois de ouvir a argumentação de Hayden, Obama decidiu não rejeitar a política de ataques por indícios, embora lhe acrescentasse uma restrição:12 o diretor da CIA teria a palavra final em todos os ataques. Vez por outra, essa autoridade era delegada ao subdiretor ou ao chefe do Centro de Contraterrorismo da Agência. Obama avisou que poderia retirar a autorização para ataques por indícios em data posterior. Mas não fez isso.13 Nos meses seguintes, o novo diretor da CIA, Leon Panetta, com ajuda de “autoridades secretas” do Centro de Contraterrorismo da CIA, ministrou ao presidente um “curso intensivo”14 sobre ataques dirigidos. Panetta fez uma revisão do programa de drones e de outros protocolos de ação, que incluíam a lista de autorizações necessárias para a execução de um ataque. Obama e Panetta teriam reuniões diretas depois que HTVs foram atingidos no Paquistão. Durante aquele primeiro ano no cargo, Obama realizou reuniões periódicas, de uma hora de duração, com grandes autoridades, nas quais se discutiam todas as questões de segurança nacional e contraterrorismo. De acordo com os participantes, essas primeiras reuniões tinham um caráter “pedagógico”.15 Debatiam-se temas ligados à coleta de informações e ameaças à segurança, mas Obama ainda estava tomando conhecimento de novas capacidades e potenciais. Na maior parte do primeiro ano, os debates sobre captura ou morte de pessoas fora do Afeganistão e do Paquistão foram sobretudo hipotéticos. O vice-diretor do Estado-Maior Conjunto, general “Hoss” Cartwright, e o principal consultor de contraterrorismo de Obama, John Brennan, bem como o almirante McRaven, comandante do JSOC, ganharam voz cada vez mais ativa nas deliberações. Uma das primeiras tarefas relacionadas à agenda de segurança nacional de Obama foi uma revisão rigorosa das resoluções executivas de Bush referentes a
assuntos militares. Na área de contraterrorismo, Obama conservou muitas políticas de seu antecessor e acabou mantendo a maior parte das resoluções executivas sem emendas.16 Em alguns casos, procurou ampliar as autorizações. Obama começou a atacar o Paquistão praticamente todas as semanas.
Obama herdou de Bush um programa ampliado de uso de drones. Os ataques no Paquistão tinham se tornado mais frequentes nos últimos meses de 2008. Pouco antes de Obama ganhar a eleição, Bush havia “acertado um acordo tácito17 para permitir que [os ataques com drones] continuassem sem envolvimento paquistanês”. A política americana consistia em avisar o Paquistão sobre os ataques quando já estavam em curso ou minutos depois de terem sido realizados. O presidente Obama aprovou a mudança, que trouxe consigo uma elevação da atividade dos drones, e “endossou plenamente18 o programa de ações secretas”. Ele também manteve em suas funções “praticamente todo o pessoal-chave”19 da CIA que dirigira a campanha secreta no governo Bush. Obama foi apresentado a esse programa, logo depois da eleição, por Mike McConnell, diretor dos Serviços Nacionais de Informações, que estava de saída. Parte dele era uma rede de Humint dentro do Paquistão. Os espiões proporcionavam as informações colhidas no campo, que constituíam uma contrapartida indispensável à vigilância e ao ataque feito pelos drones. O programa de espionagem, que vinha sendo implantado havia cinco anos e, segundo constava, era caro, foi “o verdadeiro [segredo]20 que Obama guardaria consigo a partir daquele momento”. Algum tempo depois da posse, Obama passou a pressionar Panetta com relação à caçada de Osama bin Laden. Em maio de 2009, disse ao diretor da CIA que ele tinha de transformar essa caçada em “sua meta número um”21 e determinou a Panetta que apresentasse um “plano de operação detalhado”22 para localizar Bin Laden. Panetta tinha trinta dias para formular esse plano, durante os quais passava ao presidente atualizações semanais sobre seus progressos, mesmo quando havia pouco a informar. Enquanto a caçada a Bin Laden se intensificava, os ataques com drones prosseguiam. E também a morte de civis. Em 23 de junho, a CIA matou diversos supostos militantes num ataque de míssil Hellfire no Waziristão do Sul, e horas depois fez outro ataque contra pessoas que participavam de um serviço fúnebre pelos mortos. Dezenas de civis foram mortos23 — as estimativas variaram de dezoito a 45. “Depois que terminaram24 as orações, as pessoas pediam umas às outras que deixassem a área, pois havia drones no ar”, disse um homem que perdeu a perna no ataque. “Primeiro, dois drones dispararam dois mísseis, o que provocou grande confusão, pois havia fumaça e poeira por todo lado. Pessoas feridas gritavam e pediam ajuda […]. Daí a um minuto, dispararam o terceiro míssil, e eu caí no chão.” Segundo se divulgou, os serviços de informações americanos acreditavam que Baitullah Mehsud, líder do Talibã no Paquistão, estaria “entre os presentes”.25 Não estava, pelo menos quando os mísseis foram
disparados. Dizia-se que o esquivo Mehsud já tinha sobrevivido a mais de uma dúzia de atentados contra a sua vida, nos governos de Bush e Obama, em ações que deixaram um saldo de centenas de mortes. Foi então que, no começo de agosto, os serviços de informações americanos localizaram Mehsud na casa de seu sogro,26 na aldeia de Zanghara, no Waziristão do Sul. Em 5 de agosto, drones da CIA dispararam contra ele, que se achava no terraço da casa, com parentes e outros convidados. Ele foi estraçalhado por dois mísseis Hellfire, que mataram mais onze pessoas. Em outubro de 2009, ao que se sabe, Obama ampliou as “áreas-alvo”27 no Paquistão, aumentando o espaço em que a CIA podia atacar, autorizou a Agência a adquirir mais drones e “aumentou a verba das forças paramilitares secretas da Agência”. Ele já autorizara, em dez meses, o mesmo número de ataques com drones28 que Bush autorizara em seus oito anos de governo.
A CIA recebia grande parte do crédito e das críticas pelo programa americano de ataques com drones no Paquistão, mas ela não atuava sozinha. O JSOC tinha suas operações de Inteligência no país e às vezes realizava seus próprios ataques. No centro dos programas de assassinato dirigido do JSOC e da CIA havia membros de uma divisão de elite da empresa Blackwater, que colaborava no planejamento de assassinatos de pessoas suspeitas de pertencer aos quadros do Talibã e da Al-Qaeda, em operações de “agarrar e prender” Alvos de Grande Valor e outras ações reservadas no Paquistão. Integrantes da Select, a divisão de elite da Blackwater, trabalhavam para a CIA em “bases ocultas29 no Paquistão e no Afeganistão, onde fornecedores da empresa montam mísseis Hellfire e bombas de quinhentas libras [227 quilos] guiadas a laser, que instalam em aviões Predator pilotados por controle remoto”. Técnicos da Blackwater também trabalhavam para o JSOC num programa paralelo dirigido da Base Aérea de Bagram, no vizinho Afeganistão. Fontes dos serviços de informações e da empresa disseram-me que alguns elementos da Blackwater recebiam permissões permanentes de acesso acima do nível aprovado para eles. Ao pessoal da Blackwater era concedido ingresso no Programa de Acesso Especial, usando Medidas Alternativas Compartimentalizadas de Controle (Alternative Compartmentalized Control Measures, ACCMs). “Com uma ACCM,30 o gerente de segurança pode lhe dar acesso para que você conheça programas altamente compartimentados, muito acima de “secretos”, e opere com eles — mesmo que não tenha nada a ver com isso”, disse-me uma fonte dos serviços de informações americanos. Isso permitia a membros da Blackwater que “não têm a permissão de acesso exigida, ou não têm direito a nenhuma permissão de acesso, participarem de operações sigilosas em confiança”, acrescentou a fonte. “Pense na situação como um nível superexclusivo acima de sigilo máximo. É exatamente isso o que é: um círculo de amor.” Em consequência disso, a Blackwater tinha acesso a informações de “todas as fontes”, parte delas coletadas junto a unidades do JSOC em campo. “É
assim que, no decorrer dos anos, muitas coisas foram feitas com terceirizados”, disse a fonte. “Temos terceirizados que, normalmente, veem coisas que grandes autoridades não veem, a não ser que peçam.” Segundo minha fonte, essa operação Blackwater-JSOC no Paquistão era chamada de Qatar ao Cubo, em referência à base operacional avançada dos Estados Unidos no Qatar que serviu como centro de planejamento e execução da invasão do Iraque. “Isso passa por ser o admirável mundo novo”, disse-me ele.
Essa é a Jamestown do novo milênio, e se espera que seja um ninho. Você pode saltar para o Uzbequistão, pode saltar de volta pela fronteira, pode saltar de lado, pode saltar para noroeste. Sua localização é estratégica, de modo que eles podem levar seu pessoal para onde quiserem sem ter de discutir com a cadeia de comando militar no Afeganistão, que é complicada. Eles não têm de lidar com essas coisas porque operam numa missão sigilosa.
Além de planejar ataques com drones e operações contra suspeitos de pertencerem às forças da Al-Qaeda e do Talibã para o JSOC e para a CIA, as equipes da Blackwater também ajudaram a planejar missões para o JSOC, dentro do Uzbequistão, contra o Movimento Islâmico do Uzbequistão. A Blackwater não executou diretamente as operações, que em terra couberam ao JSOC, disse-me a fonte de informações militares. “Isso despertou minha curiosidade e realmente me preocupa, porque não sei se você notou, mas nunca me disseram que estávamos em guerra com o Uzbequistão”, disse ele. “E então, será que perdi alguma coisa? Rumsfeld está de volta ao poder?” Quando morrem civis,
as pessoas dizem: “Ah, lá vai a CIA fazendo merda de novo, sem que ninguém a controle”. Bem, pelo menos em 50% do tempo, foi o JSOC [que atacou] alguém que eles identificaram por meio de Humint, ou eles próprios colheram as informações, ou elas lhes foram passadas, e aí eles acabam com essa pessoa, e é assim que a coisa funciona.
O Congresso controla as operações da CIA, mas não as operações paralelas do JSOC. “Assassinatos dirigidos não são a coisa mais popular atualmente, e a CIA sabe disso”, disse-me a fonte em 2009. “Os terceirizados e, sobretudo, o pessoal do JSOC, que atua protegido por uma missão sigilosa não são [controlados pelo Congresso], de modo que não estão nem aí. Se eles estiverem atrás de uma pessoa e houver 34 [outras] no prédio, 35 pessoas vão morrer. É essa a mentalidade.” E acrescentou: “Eles não têm de prestar contas a ninguém e sabem disso. É um segredo de polichinelo, mas o que você vai fazer, fechar o JSOC?”. Quando o presidente Obama e seu novo gabinete começaram a rever as ações e os programas secretos formulados na era Bush, viram-se diante de uma série de escolhas difíceis.
Quais deviam ser interrompidos? Quais deviam prosseguir? O labirinto do programa de ações secretas da CIA, do JSOC e da Blackwater no Paquistão era um legado das lutas internas e do clima de segredo que dominavam a comunidade de contraterrorismo americana desde o Onze de Setembro. Como senador, Obama criticou a Blackwater e apresentou projetos31 que procuravam fazer com que essa empresa e outras entidades privadas de segurança prestassem contas de suas ações. Agora, na qualidade de comandante supremo das Forças Armadas, ouviu sumários da CIA e das Forças Armadas que destacavam a necessidade de operações secretas. Expor concepções de política durante a campanha eleitoral era fácil, mas confrontar as forças de elite, as mais secretas da máquina de segurança nacional dos Estados Unidos, era outra coisa. E, de maneira geral, Obama preferiu aceitar — e não reprimir — essas forças. Quanto mais o presidente se envolveu com o dia a dia do programa de assassinatos dirigidos, mais esse programa cresceu. No fim de seu primeiro ano de governo, Obama e sua nova equipe de contraterrorismo começariam a construir a infraestrutura de um programa americano formal de assassinatos.
26. Os caras das operações especiais querem “resolver essa merda como fizeram na América Central nos anos 1980”
WASHINGTON, DC, E IÊMEN, 2009 — No dia em que Obama assinou uma resolução executiva determinando o fechamento da prisão de Guantánamo, a causa dos que se opunham a isso ganhou um impulso substancial depois que se soube que um ex-prisioneiro, libertado dentro de um programa de reabilitação apoiado pelos Estados Unidos, tinha reaparecido no Iêmen e declarado ser um líder da Al-Qaeda. Registrado em Guantánamo com o número 372,1 Said Ali al-Shihri, capturado na fronteira do Afeganistão, tinha sido um dos primeiros detidos levados para Guantánamo, em 21 de janeiro de 2002. Segundo a versão do Pentágono para os acontecimentos, Shihri tinha recebido treinamento em táticas de guerra urbana no Afeganistão e era um “facilitador itinerante da Al-Qaeda”,2 financiando combatentes. De acordo com documentos relativos à sua estada em Guantánamo, Shihri declarou que tinha viajado ao Afeganistão, depois do Onze de Setembro, para participar de operações de socorro humanitário. Por fim, em novembro de 2007, o DoD decidiu repatriar Shihri para a Arábia Saudita. Depois de terminar o programa de reabilitação, apoiado pelo governo Bush, ele desapareceu.3 Se era membro da Al-Qaeda antes de ser levado para Guantánamo, não se sabe ao certo. Mas não há dúvida sobre o que aconteceu depois de sua libertação. Em janeiro de 2009, Shihri apareceu num vídeo com outro saudita que estivera preso em Guantánamo, Aby Hareth Muhammad al-Awfi, e dois notórios membros iemenitas da AlQaeda: Nasir al-Wuhayshi e Qasim al-Rimi. Nesse vídeo, postado no YouTube no fim de janeiro, os quatro homens, vestidos com uma mistura de traje tribal e farda militar, anunciavam a formação de uma nova organização regional, a AQPA. “Por Alá,4 a prisão só fez aumentar nossa dedicação aos princípios pelos quais fomos à luta, pelos quais fizemos a jihad e pelos quais fomos presos”, declarou Shihri, que usava um keffiyeh na cabeça e exibia uma cartucheira a tiracolo. Embora o nome da AQPA fosse conhecido em certos círculos de informações, principalmente na Arábia Saudita, antes da postagem do vídeo, para grande parte do mundo a notícia representou a estreia de uma Al-Qaeda rebatizada. Não por acaso, o quarteto do vídeo era formado por dois sauditas e dois iemenitas: isso era uma declaração sobre a ilegitimidade e o conluio dos governos saudita e iemenita. A nova AQPA “transformava a Al-Qaeda no Iêmen,5 antes uma subsidiária da franquia, num organismo regional principal, que absorverá a entidade saudita, antes maior”,
segundo Barak Barfi, pesquisador da Fundação Nova América e especialista em assuntos do Oriente Médio. Para ele, Wuhayshi “e seus quadros efetivamente reconstruíram uma organização morta e tornaram-na mais forte”. Naquele mês, a Arábia Saudita divulgou uma lista das 85 pessoas mais procuradas.6 Vinte delas, de acordo com os serviços de informações sauditas, haviam aderido à AQPA no Iêmen. A Al-Qaeda voltava ao Iêmen para se vingar. Um informe do Centro Nacional de Contraterrorismo, divulgado no começo de 2009, assim terminava: “A situação de segurança no Iêmen deteriorou-se substancialmente7 no ano que passou, uma vez que a Al-Qaeda no Iêmen aumentou seus ataques contra as instituições públicas ocidentais e iemenitas”. Durante grande parte do primeiro ano da presidência de Obama, o Iêmen raramente era mencionado em público fora de um pequeno círculo de autoridades de segurança nacional e jornalistas. O governo estava focado na escalada da guerra no Afeganistão e numa redução das tropas dos Estados Unidos no Iraque. Durante o primeiro ano do governo Obama, as operações secretas de contraterrorismo foram dominadas por uma ampliação da campanha de ataques com drones no Paquistão, complementados com ações secretas ocasionais do JSOC. O presidente declarou várias vezes que a guerra dos Estados Unidos contra a Al-Qaeda tinha foco nas áreas tribais dos dois lados da fronteira entre o Afeganistão e o Paquistão. “Não creio que ainda haja alguma dúvida8 de que se desenvolveu um consórcio do terror, cujos tentáculos se estendem por toda parte”, declarou a nova secretária de Estado, Hillary Clinton, numa das primeiras vezes que compareceu ao Senado. “Sim, eles alcançam a Somália, o Iêmen, o Maghreb etc., mas têm foco e raízes na área fronteiriça entre o Paquistão e o Afeganistão.” No entanto, as autoridades de segurança nacional americanas já sabiam que quanto mais violentas eram suas ações no Paquistão, maior se tornava a probabilidade de que a Al-Qaeda conquistasse santuários em outros lugares. Em 25 de fevereiro de 2009, em depoimento ante a Comissão Permanente de Inteligência da Câmara dos Representantes, o almirante Dennis Blair, recém-nomeado diretor nacional de Inteligência, afirmou que a sede da Al-Qaeda ficava nas áreas tribais do Paquistão, mas acrescentou: “Estamos preocupados com a mobilidade deles. Parecem pasta de dente num tubo”.9 Blair disse ainda: “Uma preocupação especial é a expansão das redes da Al-Qaeda” no “norte da África e o surgimento e a intensificação da presença da Al-Qaeda no Iêmen”. O Iêmen, disse ele, “está ressurgindo como um campo de batalha jihadista”, acrescentando sem meias palavras: “Estamos preocupados com a possibilidade de extremistas americanos, criados aqui e inspirados pela ideologia militante da Al-Qaeda, planejarem ataques dentro dos Estados Unidos”. O diretor da CIA, recém-nomeado por Obama, fez eco às apreensões de Blair. “Estamos lidando com um inimigo muito persistente”,10 disse Panetta a um grupo de jornalistas que ele convidou a Langley para uma mesa-redonda.
Quando são atacados, acham meios de se reagrupar, de se instalar em outras áreas. E é por isso que estou preocupado com a Somália, é por isso que estou preocupado com o Iêmen […] por causa desse tipo de possibilidade. Por isso, não creio que possamos parar no esforço de tentar desorganizá-los. Creio que o esforço terá de ser contínuo, porque eles não vão parar.
Blair advertiu que o Iêmen e a Somália poderiam “tornar-se santuários seguros” para a AlQaeda. Durante a campanha presidencial, John McCain e outros republicanos tinham tentado convencer os eleitores de que Obama estava mal preparado para enfrentar a ameaça do terrorismo internacional. Entretanto, a partir dos primeiros dias de seu governo, o novo presidente mostrou-se, na verdade, extremamente concentrado em ampliar a guerra secreta dos Estados Unidos contra a Al-Qaeda e em expandi-la muito acima dos níveis da era Bush, em especial no Iêmen. Dois dias depois da eleição, quando McConnell, diretor nacional de Inteligência que antecedeu a Blair, fez ao presidente eleito uma exposição sobre segurança global, disse-lhe que, depois da presença da Al-Qaeda nas áreas tribais do Paquistão, “uma “ameaça imediata11 era a organização no Iêmen”. Duas semanas depois, quando Obama se encontrou com o almirante Mike Mullen, presidente do Estado-Maior Conjunto, ouviu dele que apesar das informações substanciais dos Estados Unidos sobre a ressurreição da Al-Qaeda no Iêmen, não existiam “planos adequados”12 para fazer frente a ela. Menos de um ano após a posse de Obama, uma alta autoridade da Casa Branca acusou o governo Bush de ter permitido à Al-Qaeda “se regenerar” no Iêmen e na Somália, “criando novos santuários13 que têm crescido ao longo dos anos”. No começo de 2009, o governo Obama viu-se num impasse difícil com o presidente Saleh. Obama havia feito campanha prometendo fechar Guantánamo e assinara uma resolução executiva determinando seu fechamento. Quando de sua posse, cerca de metade14 dos mais de duzentos prisioneiros em Guantánamo era formada por iemenitas. Em vista do histórico do Iêmen referente a fugas de prisões e falsos programas de reabilitação, o governo não confiava em Saleh para dar o tratamento adequado a prisioneiros que fossem repatriados. Embora os sauditas tivessem “reabilitado” Shihri só para vê-lo transformado em líder da AQPA, a Casa Branca preferia transferir os prisioneiros iemenitas para a custódia saudita. John Brennan, o principal consultor sobre contraterrorismo do presidente Obama, tornou-se seu porta-voz no trato com o Iêmen. Fluente em árabe, Brennan passara 25 anos na CIA, onde começou como analista e espião para tornar-se diretor das operações da Agência na Arábia Saudita. Em 1996, era chefe da estação da CIA em Riade quando se deu o atentado contra as Torres Khobar,15 no qual dezenove militares americanos foram mortos. Durante a maior parte do governo Bush, ele esteve no epicentro das operações de informações dos Estados Unidos e
veio a ser chefe do Centro Nacional de Contraterrorismo, rastreando informações sobre terroristas em todo o mundo. Brennan ligou-se à equipe de transição de Obama depois da eleição, ajudando a coordenar a estratégia de coleta de informações do novo governo. De início, Obama o escolhera para diretor da CIA, mas Brennan retirou seu nome quando ficou claro que declarações suas, no passado, em apoio a técnicas de “interrogatório estimulado” e a transferências de prisioneiros sem autorização judicial tornariam difícil que sua nomeação fosse confirmada. Em vez disso, Brennan teria o cargo de consultor assistente de segurança nacional para segurança interna e contraterrorismo, que não exigia confirmação pelo Senado. O cargo ganhou maiores poderes quando Obama fundiu as pastas da segurança interna e da segurança nacional e autorizou Brennan a ter acesso “direto e imediato”16 ao presidente. Em sua função como porta-voz de Obama em relação ao Iêmen, Brennan viu-se desempenhando um papel duplo: negociar acesso ao território do Iêmen para Operações Especiais e operações da CIA, assim como para treinamento de unidades iemenitas; e tratar da questão dos prisioneiros em Guantánamo. Como era de se prever, Saleh às vezes juntava as duas coisas, usando os prisioneiros como moeda de troca. Em fevereiro de 2009, depois de fazer acordos com líderes tribais, Saleh liberou 176 homens17 detidos ao longo de vários anos por suspeita de ligações com a Al-Qaeda. Em 15 de março, na histórica cidade fortificada de Shibam, no sul do país, quatro turistas sul-coreanos18 morreram num atentado a bomba enquanto posavam para fotografias perto da área designada pelas Nações Unidas como patrimônio cultural. No dia seguinte, Brennan e o diretor de contraterrorismo do NSC, John Duncan, reuniram-se com Saleh, em Sana’a, para persuadir o presidente iemenita a permitir que os Estados Unidos enviassem prisioneiros iemenitas para a Arábia Saudita. Segundo um telegrama diplomático posterior, as propostas de Brennan foram “repetidamente repelidas”.19 Saleh exigiu que os prisioneiros fossem devolvidos ao Iêmen e postos num centro de reabilitação que, por sugestão de Saleh, deveria ser custeado por americanos e sauditas. “Ofereceremos a área em Aden, e vocês e os sauditas arcam com o custeio”, disse-lhes Saleh, acrescentando que, em seu entender, 11 milhões de dólares, a título de ajuda, bastariam para a construção do centro. Brennan disse que Saleh estava “assoberbado” com a questão da Al-Qaeda e ocupado demais para dirigir esse centro. Segundo o telegrama, Saleh “mostrou-se ora desinteressado, ora enfastiado, ora impaciente durante a reunião de quarenta minutos”. Nessa reunião, Brennan entregou a Saleh uma carta do presidente Obama. A Saba, agência oficial de notícias do Iêmen, informou que a carta “tratava de cooperação entre os dois países no campo da segurança e do combate ao terror” e “louvava os esforços iemenitas20 no combate ao terror e afirmava o apoio dos Estados Unidos ao Iêmen”. Conforme um telegrama diplomático americano, a carta só se referia à situação de Guantánamo.21 Antes de deixar Sana’a, Brennan declarou a um sobrinho de Saleh, alta autoridade na área de contraterrorismo no Iêmen, que “transmitia ao presidente Obama sua decepção com o fato de [o Iêmen] mostrar-se inflexível no
trato” da questão de Guantánamo. Semanas após a reunião, Saleh afirmou à Newsweek: “Não somos soldados obedientes22 dos Estados Unidos. Não dizemos sim a tudo o que eles nos pedem”. Foi quando Brennan atuava como analista da CIA na Arábia Saudita que o coronel Patrick Lang o conheceu. “Não creio que Brennan esteja à altura de lidar com Saleh em termos de pura sagacidade e manhas”, disse-me Lang na época, acrescentando que os iemenitas “sabem como lidar conosco”.23
Enquanto Brennan e outras autoridades civis discutiam com Saleh sobre os prisioneiros de Guantánamo, o assunto estava longe de ser uma prioridade na política de contraterrorismo de Washington. O governo Obama estava absorvido pela estratégia da guerra no Afeganistão e passaria vários meses debatendo qual seria o número adicional de soldados que deveria enviar ao país e sobre como lidar com os santuários da Al-Qaeda no Paquistão. O comandante do Centcom, general Petraeus, fez todo o possível24 para que Obama desse ao general Stanley McChrystal o comando supremo da guerra no Afeganistão, pois McChrystal partilhava seu pendor para ações fulminantes e operações clandestinas. Petraeus, entrementes, fazia planos para a intensificação da ação direta dos Estados Unidos no Iêmen e em outros territórios de sua área de controle. Ainda em abril, diante da Comissão das Forças Armadas do Senado, Petraeus delineou a postura do Centcom, falando em termos gerais muito consentâneos com a visão do mundo como campo de batalha, como na era Bush.
O êxito contra as redes extremistas25 na AOR do Centcom — no Iraque, na África, no Paquistão, no Iêmen, no Líbano e em outras partes — requer todas as forças e meios à nossa disposição, empregados numa conduta estratégica fundamentada nos princípios da contrarrebelião [...]. Nossos esforços de contraterrorismo, que buscam desmantelar as redes extremistas e suas lideranças, com frequência mediante o uso de forças militares, são cruciais.
No mesmo mês de abril, Petraeus aprovou um plano,26 elaborado em conjunto pela embaixada dos Estados Unidos em Sana’a, a CIA e outros órgãos de Inteligência, que visava expandir a ação militar americana no Iêmen. Parte do plano envolvia dar treinamento em operações especiais a forças iemenitas, mas também ataques unilaterais contra a AQPA. Petraeus queixou-se do que via como a “incapacidade do governo iemenita27 para dar segurança e exercer controle em todo o seu território”, que, segundo ele, “oferece a grupos terroristas e insurgentes na região, e em especial à Al-Qaeda, um santuário onde planejar, organizar e apoiar operações terroristas”. Petraeus disse ainda, sem rodeios: “É importante que esse problema seja resolvido, e o Centcom está trabalhando nesse sentido”. Apesar da retórica sobre cooperação
entre os Estados Unidos e o Iêmen, Petraeus deixou claro que os Estados Unidos fariam ataques no Iêmen sempre que desejassem. “Quando era comandante do Centcom, estava numa posição que lhe permitia começar a aplicar essa ‘doutrina sagrada’ em outros lugares, no teatro que comandava”, recordou o coronel Lang. “E quando você está sentado em seu quartel-general, é muito fácil cogitar ideias como essa.” Lang fez uma pausa e acrescentou: “Você sabe como é: que isso seja feito, e isso é feito”. Na época, no verão de 2009, o general McChrystal tinha deixado o JSOC e servia como diretor de operações no Estado-Maior Conjunto. Embora fosse assumir em breve o posto de comandante da guerra no Afeganistão, sugeriu a Obama que mudasse a forma como o JSOC tinha sido usado no governo Bush, e empregasse a unidade como parte de forças-tarefas chefiadas por comandantes combatentes, e não como força independente. Junto com Petraeus, McChrystal procurou convencer Obama a autorizar a expansão das operações secretas contra a Al-Qaeda em uma dúzia de países no Oriente Médio, no Chifre da África e na Ásia Central. O presidente deu sinal verde ao plano. No caso do Iêmen, isso significava que as “ações diretas” ficariam sob comando de Petraeus28 e seriam executadas pelos ninjas do JSOC. Em 28 de maio, o vice-diretor da CIA, Stephen Kappes, embarcou num helicóptero da Força Aérea Iemenita29 e viajou 190 quilômetros para o sul, até a cidade de Taiz, onde foi levado a uma das residências privadas do presidente. Saleh recebeu-o vestindo camisa social branca e calça preta. Tinha um leve corte sobre o olho esquerdo, devido a um acidente que sofrera na piscina, cerca de uma semana antes, em seu palácio de Sana’a. O foco da conversa de 45 minutos foram operações contra a AQPA e o intercâmbio de informações entre o Iêmen e os Estados Unidos, mas primeiro Saleh confirmou que decidira dar apoio à transferência de alguns dos prisioneiros iemenitas de Guantánamo para a Arábia Saudita — coisa que ele garantira a Brennan que não faria. Kappes agradeceu a Saleh em nome do presidente Obama, e, a seguir, Saleh reiterou seu pedido de um centro de reabilitação no valor de 11 milhões de dólares, acrescentando que o governo Bush o prometera. Passaram então a falar da questão central para Kappes: a AQPA. Kappes disse que os Estados Unidos estavam preocupados com a possibilidade de uma tentativa de assassinato contra Saleh. O líder iemenita respondeu que também temia essa possibilidade, acrescentando que já desmontara um plano para abater um dos aviões presidenciais em sua recente visita a Áden. Quando Kappes disse ao presidente que o governo Obama estava determinado a destruir a Al-Qaeda em todo o mundo, Saleh respondeu: “Espero que essa campanha prossiga e tenha êxito. Estamos fazendo o mesmo aqui. Nossa posição é inabalável”. Para Kappes, o resultado mais importante de seu encontro foi “a decisão [de Saleh] de mudar de posição e falar da AQPA como a ameaça mais séria que o Iêmen enfrentava”. Kappes e seus assessores observaram que o foco principal de Saleh na AQPA, e não nos houthis ou nos secessionistas do sul, “tinha sido decidido quase que com certeza tendo em mente seus interlocutores [do governo dos Estados Unidos]” e “visava a obter o nível necessário de
assistência política, econômica e militar para protelar o colapso do Iêmen, bem como as consequências negativas que isso traria para a estabilidade e a segurança da região”. Durante a reunião com Saleh, Kappes também destacou que, no norte, os houthis estavam sendo apoiados pelo Irã e pelo Hezbollah. Sem que Kappes soubesse, Saleh estava preparando o caminho para outra ofensiva no norte. Os dois homens concordaram que a cooperação na área das informações estava avançando bem e só poderia tornar-se mais forte.
Em 1o de junho de 2009, Abdulhakim Mujahid Muhammad, cidadão americano, passou de carro diante do centro de recrutamento militar30 em Little Rock, no Arkansas, e disparou. Matou o soldado raso William Long e feriu o cabo Quinton Ezeagwula, que estavam na rua. Nascido Carlos Bledsoe, Muhammad, convertido ao Islã, viajara em 2007 ao Iêmen, onde se casou e permaneceu por um ano e meio. Foi preso por autoridades locais depois de ser parado num posto de controle portando um passaporte somaliano falso, manuais de armas e publicações de Anwar Awlaki.31 Muhammad passou quatro meses numa prisão, onde, de acordo com seu advogado, foi torturado por agentes de segurança iemenitas e transformado num radical por outros presos. “Se você um dia sair deste lugar desgraçado,32 vamos caçá-lo até o dia de sua morte”, teria dito a ele um agente do FBI durante a visita que lhe fez na prisão iemenita, segundo seu advogado. Por fim, o governo dos Estados Unidos persuadiu o do Iêmen a deportá-lo para seu país. Em solo americano, a Força-tarefa Conjunta de Terrorismo, do FBI, investigou-o33 mas não o pôs sob custódia. Muhammad declarou aos policiais que o interrogaram34 que tinha sido motivado pelas guerras dos Estados Unidos no Iraque e no Afeganistão. Após o tiroteio no Arkansas, enquanto seu advogado preparava a defesa, Muhammad enviou uma carta manuscrita ao juiz do processo, em que proclamava sua intenção de se declarar culpado. Explicou que os tiros tinham sido “um ataque jihadista35 contra forças infiéis”, afirmou sua fidelidade a Wuhayshi e à AQPA e disse: “Eu não estava louco, nem passava por pós-trauma, nem fui forçado àquela ação, na qual acredito e que é justificada pelas leis islâmicas e pela jihad da religião do Islã: combater aqueles que travam guerra contra o Islã e os muçulmanos”. Talvez nunca venhamos a saber se Muhammad realmente tinha vínculos com a AQPA. Seu pai aventou a hipótese de lavagem cerebral e de que o filho “pudesse estar tentando mostrar-se ligado36 à AlQaeda por acreditar que isso o levaria à execução e a se tornar um mártir”. Se aquele tiroteio foi um ataque da AQPA ou não é uma questão que em breve se tornaria irrelevante, ainda que, como outros incidentes sangrentos, tenha contribuído para a percepção de que o grupo estava determinado a atacar nos Estados Unidos. Pouco tempo depois dos tiros contra o centro de recrutamento, o ex-vice-presidente Dick Cheney fez uma contundente denúncia pública contra as políticas de contraterrorismo do presidente Obama. Discursando no Instituto Americano de Empreendedorismo, entidade
neoconservadora, Cheney atacou a interrupção formal das técnicas de “interrogatório estimulado” e comemorou a decisão do Congresso que cortou a verba destinada por Obama à transferência dos presos de Guantánamo para solo americano, manobra que bloqueou o fechamento da prisão. Cheney classificou as políticas de contraterrorismo de Obama, em especial a proscrição da tortura, como “irresponsabilidade travestida de moralismo”,37 anunciando que essas políticas “diminuiriam a segurança dos americanos”. Enquanto Cheney atacava em público, o governo Obama, nos bastidores, se preparava para lançar uma campanha de contraterrorismo muito maior e mais sofisticada do que a travada por Cheney e seu ex-chefe, sobretudo no que dizia respeito ao Iêmen, com base na polêmica doutrina Bush, segundo a qual o mundo é um campo de batalha. Obama tinha “duplicado a política de Bush”,38 disse Joshua Foust, que trabalhou como analista de assuntos iemenitas para a DIA na primeira metade do governo Obama. Logo depois de deixar a DIA, no começo de 2011, Foust me disse que a postura de Obama em relação ao Iêmen era “fortemente militarizada, fortemente focada em neutralizar diretamente a ameaça, em vez de drenar o pântano”. Desde o começo, os homens encarregados de “neutralizar a ameaça” eram, na verdade, dois dos principais atores da equipe de guerra do governo Bush. Enquanto o general McChrystal coordenava a escalada no Afeganistão e no Paquistão, o general Petraeus supervisionaria as “guerras pequenas” em outras áreas do Centcom, principalmente no Iêmen, em coordenação com o sucessor de McChrystal no JSOC, o almirante McRaven. Na estrutura da Força-tarefa, o JSOC constituía a força principal para ações secretas no Iêmen. Para muitos quadros operacionais do JSOC, o Iêmen parecia mais adequado a suas qualificações do que o Afeganistão, onde a AlQaeda tinha sido em grande medida obliterada ou posta em fuga. “Esses caras são bisturis.39 Eles não gostam de ser usados como marretas e postos para perseguir pastores de cabras do Talibã. No Iêmen, poderiam voltar a ser bisturis, extirpando a Al-Qaeda.” Foust acrescentou que os caras das Operações Especiais “querem resolver essa merda como fizeram na América Central nos anos 1980. Não querem nem saber de perfumaria, contrainsurreição e ‘construção nacional’”. Depois da visita de Kappes a Saleh, em maio, como parte do projeto para o Iêmen que envolvia a CIA, as Forças Armadas, o JSOC e o Departamento de Estado, Hillary Clinton autorizou o embaixador dos Estados Unidos no Iêmen, Stephen Seche, a negociar com Saleh a autorização para que os americanos utilizassem à vontade drones e helicópteros40 sobre águas territoriais iemenitas. Seche foi instruído com todas as letras a não pôr nada no papel e só discutir a proposta pessoalmente. O motivo oficial que daria a Saleh para pedir esses direitos de sobrevoo era que o Centcom precisava dar acesso a seus drones para “impedir o contrabando de armas para Gaza”. Um dos argumentos que usaria junto era um dado dos serviços de informações americanos, segundo os quais um “volume significativo de embarques de armas para o Hamas, do Iêmen ao Sudão, atravessa o mar Vermelho em apenas 24 horas”. Outro argumento dizia que os Estados Unidos tinham descoberto “uma rede de contrabando originária
do Iêmen que estava entregando armas a várias organizações no país, provavelmente incluindo grupos terroristas associados à Al-Qaeda”. A cooperação do Iêmen em relação aos drones e helicópteros “aumentaria em muito a capacidade do Centcom para coletar as informações necessárias para identificar e rastrear” os embarques. Ainda que o objetivo dos Estados Unidos ao solicitar essa autorização pudesse realmente ser, até certo ponto, o combate ao contrabando de armas, a época em que foi feito o pedido leva a crer que havia outro motivo, mantido em segredo. O general Petraeus foi ao Iêmen, em 26 de julho de 2009, para continuar preparando o terreno41 para o plano conjunto da CIA e das Forças Armadas de ampliar a campanha contra a AQPA. O general levou um presente para Saleh — a confirmação oficial de que Obama estava aumentando a ajuda militar ao Iêmen. Tanto para Saleh quanto para os Estados Unidos, era importante que o Iêmen demonstrasse estar combatendo a AQPA por sua própria conta e ocultasse a importância do envolvimento americano, que não cessava de aumentar. Uma semana depois do encontro com Petraeus, Saleh mandou o sobrinho,42 Ammar Muhammad Abdullah Saleh, alto comandante do Bureau de Segurança Nacional, para Marib, um viveiro de atividade da Al-Qaeda. Sua missão seria acabar com uma suposta célula da organização por meio de uma operação destinada a mostrar a Washington que Saleh estava agindo com seriedade. Foi um desastre. Apesar das negociações de Ammar com líderes tribais locais sobre as condições do ataque, as unidades iemenitas de contraterrorismo se saíram muito mal. Em vez de disparar contra o esconderijo da Al-Qaeda, atacaram uma área tribal, provocando uma batalha de artilharia em que os combatentes tribais na verdade se uniram à AQPA no revide às forças do governo. Um caminhão de suprimentos militares se perdeu e foi capturado por membros da Al-Qaeda. Por fim, as forças de Saleh perderam cinco tanques e vários soldados, enquanto sete outros foram aprisionados. A AQPA não perdeu tempo para tirar proveito do fiasco, chamando-o de “Batalha de Marib” e postando um vídeo43 que mostrava os soldados capturados. Embora a operação tivesse sido uma catástrofe, foi útil para os Estados Unidos e para Saleh, por mostrar publicamente que o governo iemenita vinha combatendo a AQPA, ajudando assim a acobertar as ações americanas no Iêmen. Em 10 de agosto, numa reunião com militares americanos, perguntaram ao almirante Mullen “em quais regiões, nós, das Forças Armadas, podemos esperar que tenhamos de nos concentrar não no ano que vem, ou daqui a dois anos, mas daqui a cinco ou dez anos”. Ele respondeu: “O que eu vi a Al-Qaeda fazer nos últimos cinco ou seis anos foi confederar-se”, acrescentando: “Preocupa-me que estejam sendo criados santuários44 no Iêmen e na Somália, por exemplo. Não é diferente do que tinham no Afeganistão quando isso começou, em 2001”. Mullen mencionou também o norte da África, as Filipinas e a Indonésia. “É uma rede que está crescendo”, disse. O governo Obama elevou o número de treinadores das Forças de Operações Especiais dos Estados Unidos no Iêmen. “Eles [os iemenitas] receberam treinamento gratuito,45 dado pela elite da elite das Forças Armadas dos Estados Unidos — os melhores dentre os melhores”, disse
me o ex-assessor de um comandante de Operações Especiais. “Os rapazes da missão ‘Assessoria e Assistência’, integrada principalmente pelo DEVGRU. O trabalho deles consiste em ensinar você a explodir merdas, pilotar helicópteros e fazer ataques noturnos, e eles são ótimos nisso.” Enquanto o treinamento se expandia, também aumentavam as operações do JSOC — unilaterais, secretas e letais.
27. Suicídio ou martírio?
IÊMEN, 2009 — Enquanto o presidente Obama se instalava no Salão Oval, Anwar Awlaki ocupava-se com a construção de seu site e a divulgação de sua mensagem. Postou em seu blog um ensaio intitulado “Suicídio ou martírio?”. Embora dissimulado de debate religioso — o Islã julgava o suicídio um pecado mortal ou não? —, o texto era, em última análise, uma defesa dos atentados suicidas. “Hoje em dia o mundo fica espantado1 quando um muçulmano executa uma operação de martírio. Podem imaginar o que aconteceria se isso fosse feito por setecentos muçulmanos num só dia?”, perguntava Awlaki. “Irmãos e irmãs, quer você concordem, quer não concordem com as operações de martírio, deixemos nossas divergências para trás e apoiemos nossos irmãos muçulmanos que estão nas linhas de frente. Da mesma forma como discordamos em muitas outras coisas, não devemos permitir que essas discórdias prejudiquem a solidariedade que devemos ter perante nossos inimigos.” Poucas semanas antes de publicar esse ensaio, Awlaki postara links para um de seus textos mais lidos, “44 formas de apoiar a jihad”. Em fevereiro, tinha disponibilizado links para que seus seguidores baixassem, gratuitamente, muitas de suas palestras mais apreciadas. A cada postagem nova em seu blog, Awlaki dava uma banana para as autoridades americanas que tinham tentado silenciá-lo e sepultá-lo numa masmorra iemenita. Ali estava Awlaki, atuando on-line à vista de todos, incentivando os muçulmanos a lutar contra os incréus e rotulando os Estados Unidos e seus aliados de “flagelo” e de “os maiores terroristas de todos”.2 Em março de 2009, Awlaki dirigiu-se, pela internet, a uma conferência religiosa no Paquistão. “Estou lhes falando, neste momento, do Iêmen,3 e há certas semelhanças entre o Iêmen e o Paquistão, de modo que quando falo de um, é como falar do outro”, disse Awlaki aos conferencistas, com a voz alterada pelos efeitos da digitalização. “Ambos os países são parceiros importantes dos Estados Unidos na guerra contra o terror. Ambos abriram mão de sua soberania em favor dos Estados Unidos, ao aceitar ataques com drones dentro de seu território.” Ambos tinham “sido usados como postos de abastecimento para a guerra dos Estados Unidos contra os muçulmanos. E ambos são governados por patifes”. Awlaki disse que desejava falar francamente com sua plateia porque “dourar a pílula não vai trazer benefício a ninguém. Assim, se desejamos mudar nossa situação, precisamos realmente nos sentar, refletir e decidir qual é a doença, quais são os sintomas e como curá-la”.
Em sua alocução, ele apelou a todos os muçulmanos aptos que aderissem à jihad contra os Estados Unidos no Afeganistão, no Iraque e em outros países, e recomendou aos que não pudessem combater que fizessem donativos em dinheiro para as causas. Estamos amealhando bens materiais, e deixamos a jihad na trilha de Alá. É por isso que estamos sendo humilhados agora. E essa humilhação não vai acabar”, disse ele. Os Estados Unidos e seus aliados dependem de
poderio — de seus aviões poderosos, de seus porta-aviões nos oceanos, de seus soldados com armamentos de alta tecnologia e de seus mísseis avançados. Isso é poderio. Como, então, conteremos o poderio deles? Será com negociações? Será desistindo? Será nos rendendo? Será nos dobrando diante deles? [...] Irmãos e irmãs, se não lutarmos hoje, quando lutaremos? A terra dos muçulmanos está ocupada, a opressão é geral, as leis do Alcorão são postas de lado. Que outra época é melhor para a jihad do que hoje?
Nasser Awlaki estava ficando preocupado com o filho. Tudo o que o velho Awlaki escutava de seus amigos e colegas no governo iemenita era sinistro. Altas autoridades de informações vinham avisá-lo de que os americanos pretendiam matar Anwar. Falavam de drones que poderiam atacá-lo no interior de Shabwah, onde estava morando. O presidente Saleh telefonou pessoalmente para Nasser e lhe suplicou que convencesse Awlaki a voltar para Sana’a. “No momento em que o presidente me ligava,4 o Ministério do Interior e os órgãos de segurança emitiram uma ordem para que ele fosse capturado”, disse-me Nasser. “E o governador de Shabwah me telefonou e disse: ‘Ouça, temos uma ordem do Ministério do Interior e dos órgãos de segurança para capturar seu filho’.” Isso não pegou Anwar de surpresa. Na aldeia de sua família, em Shabwah, ele estava morando na casa de barro de quatro andares de seu avô, gravando sermões e escrevendo em seu blog. Logo depois de sua chegada, forças de segurança iemenitas começaram a posicionar veículos5 e armas no wadi (rio seco) que passava diante da casa. Anwar contou ao pai que eles apontavam armas automáticas para a casa, tentando intimidá-lo. “Veja, meu filho, não quero que você seja vítima de assédio, porque ou vai matar alguém ou alguém vai matá-lo”, disse Nasser num telefonema. “Por isso, por favor, fique calmo. Não importa o que fizerem, fique calmo, por favor.” Nasser temia que, se as forças iemenitas tentassem prender Anwar, começasse um tiroteio entre a tribo aulaq e as forças de segurança iemenitas. Em maio de 2009, a pedido do presidente Saleh, Nasser e a mulher viajaram a Shabwah para visitar Anwar e pedir-lhe que voltasse com eles para Sana’a. “É isso que o presidente quer”,6 disse Nasser ao filho. “Ele está sendo pressionado pelos americanos.” Falaram sobre a ordem de prisão. “O senhor é meu pai”, disse Anwar. “Como pode me levar para Sana’a se essas pessoas querem me meter na prisão? Como pode ter certeza, pai, de que os americanos não farão
alguma coisa contra mim?” Nasser disse ao filho que não podia lhe dar garantias, mas que acreditava que a volta para Sana’a fosse a medida mais segura. Anwar não quis ceder. “Não permitirei que os americanos7 me digam em que posição pôr a minha cama”, respondeu. “Foi uma discussão acalorada”,8 contou-me Nasser depois. “E isso foi triste para mim, pois foi a última vez que conversei com ele, e não nos despedimos em termos muito amigáveis.” Saleh bin Fareed conversou com Anwar e concluiu que seu sobrinho não estava causando nenhum mal em Shabwah, uma província rural. Na verdade, achava que Anwar teria menos problemas ali. Bin Fareed ligou para o diretor do Serviço de Informações do Iêmen, general Galib al-Qamish. “Acho que vocês e os americanos9 estão errados”, disse ao general. Anwar “está lá, numa aldeia que tem de mil a 2 mil habitantes. Já que vocês pensam que ele é perigoso, em Sana’a vai estar perto de 2 milhões de pessoas. É melhor deixá-lo lá.” Qamish suspirou. “Não é isso o que os americanos querem.” Por que aquela obsessão dos americanos com Anwar era uma coisa que não estava clara para Fareed. Como podia um pregador, nos cafundós do Iêmen, representar uma ameaça para o país mais poderoso do mundo? Anwar não se importava com o que os americanos queriam. Quando seus pais voltaram para Sana’a, começou a planejar o que faria em seguida. Para ele, sua família agira como intermediária para o governo iemenita, que o queria preso. Eram os americanos que vinham dando as ordens. Sabiam onde ele estava, e seus drones poderiam achá-lo. Ele não tinha alternativa: ou se rendia ou entrava para a clandestinidade. Sua mulher e seus filhos ficariam em Sana’a, sob os cuidados dos pais dele. Anwar estava sendo escorraçado, e por fim procurou o companheirismo e a proteção de outros proscritos que estavam sendo caçados no Iêmen. “De que me acusam?10 De dizer a verdade? De defender a jihad por amor a Alá, e em favor das causas da nação islâmica?”, perguntava Awlaki. “O mesmo vale para os americanos. Não tenho a mínima intenção de me entregar a eles. Se me querem, que me procurem.”
Nidal Hasan, o psiquiatra do Exército americano, continuava a escrever a Anwar Awlaki, embora seus e-mails não fossem respondidos. Fazia perguntas sobre teologia e sobre a luta do Hamas contra o governo israelense, indagando, entre outras coisas, “é lícito disparar foguetes contra Israel?”.11 Depois de alguns longos e-mails, Hasan mudou de atitude e começou a perguntar a Awlaki como poderia doar dinheiro para suas causas. Sugeriu que Awlaki lhe desse um endereço para o qual pudessem ser remetidas ordens de pagamento ou cheques, em vez de usarem serviços on-line. “Isso poderá garantir privacidade12 para as partes envolvidas”, escreveu Hasan. No mesmo dia, ele voltou a lhe escrever. “Uma bolsa no valor de 5 mil dólares13 está sendo concedida ao melhor ensaio intitulado ‘Por que Anwar Awlaki é um grande líder e ativista’. Ficaríamos honrados se o senhor entregasse o prêmio.” Hasan acrescentou um P.S.: “Nós nos conhecemos rapidamente, há muito tempo, quando o senhor era o imã em Daral-Hijra. Não creio que o senhor se lembre de mim. Seja como for, depois disso eu me formei em
medicina e terminei a residência”. Awlaki finalmente respondeu. “Rezo para que você receba esta mensagem14 em bom estado de emaan [saúde]”, escreveu ele a Hasan.
Jazakum Allahu khairan [Que Alá o recompense com benevolência] por pensar bem de mim. Eu não viajo, de modo que não poderei entregar fisicamente o prêmio, e, de qualquer forma, me sinto demasiado “embaraçado”, na falta de uma palavra melhor, para entregá-lo. Que Alá o ajude em seus esforços.
Awlaki não deu nenhum indício de que tivesse de Hasan a mais remota lembrança. Hasan escreveu-lhe de novo, voltou a oferecer dinheiro e acrescentou um pós-escrito, dizendo que estava “procurando uma esposa15 que se disponha a se esforçar junto de mim para agradar a Alá […]. Considerarei seriamente uma recomendação que venha do senhor”. Awlaki respondeu:
Obrigado pela oferta de ajuda.16 Ela é necessária, mas simplesmente não sei como se fazem essas coisas. Existem pobres, órfãos, viúvas, projetos de dawa [proselitismo em nome do Islã] e a lista é enorme. Assim, se você sabe como fazer chegar a ajuda de acordo com a lei e num ambiente que, para começar, seja sério, por favor me diga. Fale-me mais de você. Ficarei de olho, em busca de uma irmã.
Enviado em 22 de fevereiro de 2009, esse foi o último e-mail que se sabe ter sido mandado por Awlaki a Hasan. Durante vários meses, Hasan continuou a enviar e-mails a Awlaki. “Sei que o senhor é um homem ocupado.17 Por favor, mantenha meu nome em sua lista de endereços para o caso de eu poder lhe prestar algum serviço e sinta-se à vontade para me telefonar a cobrar”, escreveu Hasan. Daí em diante, as comunicações se tornaram uma via de mão única. O tom das mensagens de Hasan tornou-se o de um paciente em psicoterapia tentando tomar decisões difíceis. Num e-mail de maio de 2009, ele pontificou sobre a moralidade dos atentados suicidas e levantou
a questão do “dano colateral”18 em que se toma a decisão de permitir a morte de inocentes em troca de um alvo valioso. O Alcorão afirma que uma pessoa deve lutar com seus inimigos quando eles a atacam, mas sem exagerar. Por isso, eu diria que é aceitável o caso do homembomba cujo objetivo consiste em matar soldados inimigos ou aqueles que os ajudam, mas que no processo também mata inocentes. Ademais, se os soldados inimigos estão usando táticas antiéticas ou inescrupulosas, então as mesmas táticas podem ser usadas.
Hasan encerrou sua mensagem dizendo a Awlaki: “Sentimos falta de mensagens suas!”.
O blog de Awlaki se tornara muito menos ativo do que fora em 2008. Com os governos dos Estados Unidos e do Iêmen em seu encalço, ele tinha questões mais prementes a resolver. Começou a se mudar de um lugar para outro nas áreas tribais de sua família, ao mesmo tempo que levava uma vida bem discreta. Quando tinha acesso à internet, postava um ou dois ensaios. Enquanto Awlaki se preparava para uma vida na clandestinidade, o governo Obama aumentava a pressão sobre o governo do Iêmen para que caçasse militantes ligados a Al-Qaeda no país. Em 1o de agosto de 2009, Awlaki postou uma análise das batalhas entre o governo iemenita e “os mujahedin” em Marib, em que disse: “O primeiro combate frente a frente19 entre o Exército e os mujahedin terminou numa vitória retumbante para estes últimos. Que Alá os abençoe com novos triunfos. O Exército bateu em retirada depois de pedir uma trégua aos mujahedin”. O texto assim concluía: “Oxalá isto seja o começo da máxima jihad, a jihad da Península Arábica, que libertaria o cerne do mundo islâmico dos tiranos que estão enganando a Ummah e colocando-se entre nós e a vitória”. Para Awlaki, a jihad, pela qual propugnara em discursos durante muitos anos, estava se tornando realidade. Em seu entender, a guerra estava começando agora no Iêmen, e ele teria de decidir se o blog era mais forte que a espada. Em 7 de outubro, Awlaki voltou a aparecer, com um ensaio intitulado “Poderá o Iêmen ser a próxima surpresa da temporada?”,20 em que escreveu:
O povo americano deu a George W. Bush apoio unânime para lutar contra os mujahedin e lhe deu um cheque em branco para gastar o quanto fosse necessário para cumprir aquele objetivo. O resultado? Ele fracassou, horrivelmente. E se os Estados Unidos não conseguiram derrotar os mujahedin quando deram a seu presidente apoio ilimitado, como poderão vencer com Obama, que está com rédea curta? Se os Estados Unidos não lograram vencer quando estavam no pináculo de seu poder econômico, como poderão vencer agora, em meio a uma recessão — senão uma depressão? A resposta é simples: os Estados Unidos não podem vencer e não vencerão. As posições se inverteram, e não há como conter o movimento mundial da jihad. As ideias de jihad proliferam em todo o mundo, os movimentos dos mujahedin ganham força e os campos de batalha estão se expandindo, com os mujahedin abrindo novas frentes… A jihad desta era começou na Palestina, seguindo para o Afeganistão, a Tchetchênia, o Iraque, o Magreb, e a nova frente bem pode tornar-se o Iêmen. E quando essa nova frente da jihad se abrir no Iêmen, ela poderá se tornar a mais importante do mundo […]. A Península Arábica sempre foi uma terra de mujahedin, ainda que nenhum combate tenha ocorrido em seu solo. No Afeganistão, na Bósnia, na Tchetchênia e no Iraque, a participação de mujahedin da Península Arábica representou o maior bloco de combatentes estrangeiros. Quando a jihad começar na Península Arábica, ela estará retornando à sua origem […]. Na Península Arábica ficam Meca e Medina [as cidades santas do Islã]. Libertar os lugares santos do domínio da apostasia e da tirania é libertar o coração do Islã […].
Os Estados Unidos e seus aliados na área estão conspirando contra os mujahedin, mas o número deles aumenta dia a dia. Queira Alá conceder a vitória aos verdadeiros crentes e lhes dar também firmeza para trilhar o Seu caminho.
Por casualidade ou desígnio, Anwar Awlaki viu-se na clandestinidade justamente quando a Al-Qaeda no Iêmen estava se tornando uma força real, com seu núcleo em Shabwah e Abyan, as áreas tribais aulaq. Fahd al-Quso, que ainda era caçado pelos Estados Unidos por sua participação no atentado contra o USS Cole, era membro da tribo de Awlaki, como várias outras figuras importantes da Al-Qaeda na Península Arábica. Muitos iemenitas tinham participado da jihad em outras partes do mundo, como observou Awlaki, mas agora o Iêmen assistiria à ascensão de uma afiliada da organização dentro de suas próprias fronteiras. “Em 2001 ou 2002,21 a Al-Qaeda não tinha mais de dez ou vinte pessoas no Iêmen, e não era uma organização”, disse-me Abdul Rezzaq, repórter iemenita independente que entrevistou muitos membros fundadores da AQPA. “Ela só veio a ter uma estrutura em 2009.” Na época da formação da AQPA, Awlaki julgou ser seu dever apoiar os irmãos jihadistas na luta contra o regime iemenita; achava também que em breve os americanos lançariam uma guerra contra eles. “Vivi nos Estados Unidos 21 anos.22 Era a minha pátria”, declarou Awlaki mais tarde.
Fui um pregador do Islã e me envolvi no ativismo islâmico não violento. Entretanto, com a invasão americana do Iraque e a contínua agressão dos Estados Unidos aos muçulmanos, não pude conciliar minha vida lá com o fato de ser muçulmano […] e cheguei à conclusão de que a jihad contra os Estados Unidos é compulsória para mim, da mesma forma que para todos os demais muçulmanos aptos.
Fazia muito tempo que o governo americano via em Awlaki um estorvo, e a comunidade americana de contraterrorismo o queria calado. Com a ascensão da AQPA no Iêmen, Awlaki passou a ser tido como uma ameaça cada vez mais ativa. O que ocorreu nos dois últimos meses de 2009 selaria a sorte dele. As próprias palavras de Awlaki também cruzaram uma linha essa época, já que ele passou a dar seu endosso, poderoso, a atos específicos de terrorismo contra alvos americanos. Passado menos de um ano da posse do presidente Obama, o Iêmen seria alçado ao topo da lista de áreas conturbadas no radar do contraterrorismo americano, e Awlaki se tornaria uma figura destacada, a ponto de ser comparado a Osama bin Laden por altas autoridades dos Estados Unidos e classificado como uma das maiores ameaças terroristas que o país enfrentava.
28. Obama abraça o JSOC
SOMÁLIA, COMEÇO DE 2009 — No primeiro ano do governo Obama, grande parte da atenção da política externa americana centrou-se no Afeganistão e na promessa do presidente de intensificar a guerra nesse país. Apesar de estimativas segundo as quais restavam lá menos de cem membros1 da Al-Qaeda, Obama cogitava um forte aumento no número de soldados americanos para dar continuidade à intervenção que ele chamara de “guerra justa” na campanha. Todavia, embora o Afeganistão fosse o maior espinho internacional para o governo, a Al-Qaeda vinha elevando bastante o número de seus militantes no Chifre da África e na Península Arábica. Dizimada a União das Cortes Islâmicas, a Al-Shabab tornara-se o principal grupo armado na Somália, controlando territórios em Mogadíscio e outras áreas. Os Estados Unidos e seus prepostos da União Africana estavam apoiando um fraco governo de transição, chefiado pelo xeque Sharif, ex-presidente da UCI. Em maio de 2009, a luta entre o governo de Sharif e grupos ligados à Al-Shabab tornou-se tão intensa na capital que as Nações Unidas acusaram a organização de tentar “tomar o poder à força” numa “tentativa de golpe”.2 Por volta dessa época, a Al-Shabab divulgou dois vídeos muito bem produzidos3 em que aparecia um jovem americano barbado chamado Omar Hammami. Ex-aluno da Universidade do Sul do Alabama, ele se declarava membro da Al-Shabab e exortava outros muçulmanos ocidentais a se juntar a ele no campo de batalha da Somália. Hammami — o sobrenome vinha de seu pai, imigrante sírio4 — tinha sido criado como um americano comum no sul, jogava futebol e namorava. Sendo cristão, durante o ensino médio converteu-se ao islamismo. Depois disso, deixou a faculdade, casou-se com uma somaliana e tornou-se pai. Hammami começara a se radicalizar, falando em aderir à jihad e frequentando fóruns islâmicos na web. Em 2006, viajou ao Egito, onde conheceu Daniel Maldonado, outro cidadão americano, com quem tivera contato por meio de salas de bate-papo pela internet. Persuadido por Maldonado a viajar para a Somália e ver pessoalmente a revolução islâmica, Hammami embarcou para Mogadíscio, onde se hospedou primeiro com a avó de sua mulher. Em dezembro, às vésperas da invasão etíope, Hammami e Maldonado estavam ligados à Al-Shabab. “Achar aqueles caras caso conseguisse ficar na Somália se tornou minha meta”,5 declarou Hammami, dizendo que “tinha se declarado disposto a receber treinamento”.
Maldonado acabou sendo capturado por “uma equipe multinacional de contraterrorismo”6 na fronteira entre o Quênia e a Somália. Extraditado para os Estados Unidos, foi indiciado por terrorismo no começo de 2007 num tribunal federal.7 Hammami, porém, evitou a captura e continuou nas fileiras da Al-Shabab. Segundo autoridades americanas de contraterrorismo, atraiu a atenção de Fazul e Nabhan,8 líderes da Al-Qaeda, sobretudo devido à sua cidadania americana. No fim de 2007, um ano depois de ter chegado à Somália, Hammami apareceu na AlJazeera, com um keffiyeh cobrindo parte do rosto, explicando por que aderira à Al-Shabab. “Muçulmanos dos Estados Unidos,9 levem em consideração a situação na Somália”, exortou, usando seu pseudônimo, Abu Mansoor al-Amriki, ou o americano. “Após quinze anos de caos e domínio opressivo por parte de milícias apoiadas pelos Estados Unidos, seus irmãos se levantaram e instauraram a paz e a justiça nesta terra.” Hammami tornou-se o mais destacado recrutador de jovens muçulmanos ocidentais pela internet. Aproximou-se mais de Nabhan e Fazul, e, por fim, passou a ser um dos principais quadros operacionais estrangeiros da Al-Shabab. A essa altura, autoridades somalianas estimavam que mais de 450 combatentes estrangeiros10 tinham entrado na Somália para aderir à luta da Al-Shabab. “A única razão11 pela qual estamos aqui, longe de nossa família, longe das cidades, longe de […] vocês sabem […] cubos de gelo, barras de cereais, todas essas coisas é porque estamos esperando para enfrentar o inimigo”, disse Hammami no primeiro vídeo que a organização divulgou sobre ele, que estava numa área arborizada usando uma farda de camuflagem e um keffiyeh. “Se vocês puderem incentivar12 seus filhos, seus vizinhos e qualquer pessoa conhecida a mandar mais gente […] para esta jihad, seria uma grande ajuda para nós.” No vídeo de Hammami, outro anglófono — este mascarado e segurando um AK-47 — apela a outros jovens ocidentais a se juntar à Al-Shabab: “Estamos chamando todos os irmãos13 de alémmar, todos os shabab, onde quer que estejam, para que venham viver a vida dos mujahedin. Eles verão com seus próprios olhos, e gostarão do que virem”. Em outros vídeos, Hammami aparece com líderes da Al-Shabab,14 examinando mapas e ajudando a planejar operações. Em 2008, outro americano, Shirwa Ahmed,15 morreu num ataque suicida no norte da Somália, tornando-se o primeiro homem-bomba americano de que se tem notícia a praticar um atentado na Somália. Não seria o último. O número cada vez maior de muçulmanos americanos que viajaram ao Chifre da África para se juntar à Al-Shabab ganhava destaque nas avaliações sobre a ameaça representada pela Somália que esperavam por Barack Obama depois que ele ganhou a eleição, em novembro de 2008. Obama pouco falara sobre aquele país durante a campanha, embora se referisse indiretamente ao crescente imperativo de segurança nacional na África. Haveria, disse, “situações em que os Estados Unidos teriam de atuar com seus parceiros na África para combater o terrorismo com força letal”.16
Quando o presidente Obama tomou posse, a Somália estava se tornando uma preocupação cada vez maior para a comunidade americana de contraterrorismo. Quando as Cortes Islâmicas assumiram o poder, em 2006, a Al-Shabab era uma milícia pouco conhecida na periferia do movimento, com pouca participação de clãs. Seus militantes estrangeiros, em especial Fazul e Nabhan, eram perigosos, com comprovada capacidade de planejar e executar grandes ataques. Mas eles não estavam em posição de conquistar a Somália ou tomar uma parcela substancial do território. Agora, porém, em boa medida como reação à política dos Estados Unidos, as fileiras da Al-Shabab cresciam e os territórios por ela controlados se ampliavam. Sharif Sheikh Ahmed assumiu oficialmente a presidência da Somália no mesmo mês da posse de Obama, porém mal podia afirmar ser o prefeito de Mogadíscio. Governava, frouxamente, uma fatia do território da capital — com a autoridade de um vereador cercado de inimigos bem mais poderosos que queriam matá-lo. “A ideia de que a Somália não passa de um Estado fracassado,17 em algum lugar perdido, onde as pessoas lutam entre si sabe Deus por que razão, é um constructo que adotamos por nossa conta e risco”, declarou Hillary Clinton na sessão em que o Senado confirmou seu nome como secretária de Estado. “O conflito interno no seio dos grupos somalianos é tão intenso quanto sempre foi, só que agora a ele se soma o ingrediente da Al-Qaeda e de terroristas que procuram tirar vantagem do caos.” O governo Obama aumentou o financiamento e os embarques de armas18 para a Missão União Africana na Somália, a força de manutenção da paz conhecida como Amison. As Forças Armadas de Uganda, apoiadas pelo Burundi, assumiram o comando da situação onde os etíopes o tinham deixado, e começaram a expandir sua base militar próxima ao aeroporto internacional de Mogadíscio. A essa altura, a Al-Shabab tinha cercado as forças do governo somaliano e da União Africana no aeroporto e na sede do governo somaliano, semelhante a uma Zona Verde, conhecido como Villa Somalia. As forças da Al-Shabab eram mais bem pagas19 que o Exército somaliano, e estavam muito mais dispostas a morrer do que os soldados da Amison, que não tinham nenhum interesse pessoal no conflito. Em fevereiro de 2009, quadros operacionais da AlShabab executaram ataques suicidas20 que mataram onze soldados do Burundi. A base da Amison passou a ser alvo de constantes ataques com morteiros, e seus comandantes admitiram que o bombardeio estava atingindo um “nível sem precedentes”.21 Um ataque de retaliação contra a Al-Shabab provocou uma troca de fogo que deixou quinze mortos em Mogadíscio e mais de sessenta feridos, muitos devido a um morteiro perdido que explodiu numa área civil. O New York Times disse que os combates tinham sido “os mais violentos de seu gênero22 desde que as tropas etíopes se retiraram da Somália”. Alguns meses depois da posse de Obama, altas autoridades tinham começado a debater sobre ataques militares contra acampamentos da Al-Shabab, apesar de não existir ameaça concreta fora da Somália. O Washington Post noticiou uma cisão entre autoridades do DoD, que criticavam o que entendiam como uma “ausência de ação”, e funcionários civis reticentes,
fortemente impactados pelas desastrosas políticas de Bush nos anos anteriores. O governo Obama está “caminhando devagar,23 e para os atores permanentes, a frustração continua a crescer”, disse um funcionário do governo. “É crescente a apreensão quanto ao que os terroristas que operam na Somália podem fazer”, disse uma autoridade de contraterrorismo ao Post. Nessa altura, o FBI já investigava pelo menos vinte casos24 de jovens americanos de ascendência somaliana que tinham saído dos Estados Unidos para aderir à insurreição no país. Enquanto a Al-Shabab continuava a ampliar sua jurisdição, a primeira grande crise que Obama enfrentou na Somália não veio do grupo islâmico, e sim de uma ameaça inteiramente diferente que, cada vez mais, se fazia sentir em torno do Chifre da África e da Península Arábica: piratas. Foi esse confronto — com piratas, e não com a Al-Qaeda — que cimentou a afinidade do presidente Obama com o JSOC.
A pirataria tinha surgido na Somália após a queda do regime de Siad Barre, em 1991. Durante os seis meses em que governou a Somália, a UCI atuou com decisão contra sequestros.25 Depois da invasão etíope, os piratas tomaram conta dos mares ao redor da Somália. Eles com frequência eram condenados como terroristas e criminosos, mas havia em suas ações um contexto raramente mencionado. Empresas internacionais e Estados-nações tinham tirado proveito da permanente instabilidade da Somália e passaram a tratar a costa somaliana como seu pesqueiro privado,26 enquanto outros a poluíam com derrames ilegais de óleo.27 Inicialmente, a pirataria foi, de certa forma, uma resposta a essas ações, e alguns piratas se viam como uma espécie de guarda costeira somaliana,28 tributando barcos que procuravam lucrar operando numa área que tinha sido de domínio exclusivo de pescadores somalianos. Essas metas acabaram sendo postas de lado quando os piratas se deram conta de que podiam auferir quantias astronômicas sequestrando navios, fazendo reféns e negociando resgates. A pirataria era um grande negócio na Somália. Em certos casos, pagavam-se os resgates, os reféns saíam incólumes e todos iam cuidar da vida. Em raras ocasiões, houve reféns assassinados ou, com mais frequência, mortos de doenças ou descaso. Em 8 de abril de 2009, os piratas somalianos sequestraram o navio errado. Nesse dia, o Maersk Alabama, cargueiro de bandeira americana, navegava no oceano Índico, rumo a Mombasa, acompanhando a costa da Somália, quando se aproximou uma embarcação de pequeno porte, trazendo quatro piratas armados. Os tripulantes do Alabama tinham recebido treinamento antipirataria29 e fizeram tudo o que deviam fazer: soltaram foguetes de sinalização e começaram a transferir todos os que estavam a bordo para um cômodo seguro e protegido.30 A tripulação manobrou o leme31 do Alabama na tentativa de desviar o rumo do barco dos piratas, muito menor, e a seguir desligou a força do navio e incapacitou seus motores. No entanto, os jovens somalianos eram piratas experientes. Na verdade, a embarcação que estavam utilizando no ataque ao Alabama fora lançada do FV Win Far 161,32 um barco de pesca de Taiwan que eles
tinham acabado de capturar. Os piratas não faziam ideia de que o navio que estavam sequestrando pertencia a um importante prestador de serviços do DoD dos Estados Unidos,33 ou que essa operação poderia ser, em algum ponto, diferente de outras que já tinham realizado. Quando a Casa Branca soube que um navio de bandeira americana tinha sido capturado e que seu comandante e outros membros da tripulação de vinte homens eram americanos, o sequestro tornou-se uma prioridade. O presidente Obama ouviu uma breve exposição sobre o caso. Tratava-se do primeiro navio registrado nos Estados Unidos e de bandeira americana a ser sequestrado desde os primeiros anos da década de 1800.34 Horas depois do sequestro, Obama autorizou que um contratorpedeiro, o USS Bainbridge, fosse usado na reação.35 O Bainbridge chegou ao local em 9 de abril e soube que o comandante do Alabama, Richard Phillips, estava refém dos piratas36 em um barco salva-vidas, fechado, a caminho da Somália. Um dos piratas tinha sido ferido durante a abordagem e acabou capturado por uma força da Marinha dos Estados Unidos. Os outros três tinham deixado o Alabama e estavam tentando fugir com o único trunfo que conseguiram para negociar: o comandante Phillips. No impasse que se seguiu, Obama e sua equipe de segurança nacional trabalharam 24 horas por dia com comandantes militares, analisando vários cenários sobre como resolver a crise e libertar Phillips ileso. Duas outras belonaves,37 a fragata USS Halyburton, armada com mísseis teleguiados, e o navio de assalto anfíbio USS Boxer, foram enviadas para a área. Dois dias depois da captura de Phillips, o presidente Obama recebeu dois estudos da Segurança Nacional sobre a situação. O secretário de Defesa, Robert Gates, disse que por duas vezes comandantes americanos tinham pedido autorização para o emprego de força letal, a que Obama assentiu “quase imediatamente”.38 A primeira autorização39 foi dada às oito horas de 10 de abril, depois que oficiais da Marinha que estavam no Bainbridge na véspera viram Phillips tentando fugir40 de seus captores, sendo logo recapturado. Em resposta, os piratas atiraram no mar41 os únicos equipamentos de comunicação que havia no barco salva-vidas, temendo que fossem empregados para vigilância ou para comunicação secreta com Phillips. Isso deixou as Forças Navais americanas equipadas apenas com os próprios olhos, e a Casa Branca com medo de que um cidadão americano morresse em público nas mãos de piratas, apenas três meses depois da posse de Obama. Em 11 de abril, às 9h20, o presidente deu uma segunda autorização42 para o uso de força letal, dessa vez a um “conjunto adicional de forças dos Estados Unidos”. Foi o sequestro do Alabama que, de forma muito direta, apresentou o presidente Obama ao JSOC e a suas habilitações. Essa foi “pelo que sei, a primeira vez43 que Obama teve uma percepção direta de seu próprio poder, como comandante supremo”, comentou Marc Ambinder, jornalista com laços muito estreitos com a equipe de segurança nacional do governo Obama. O presidente autorizou agentes do JSOC a partirem imediatamente para o Chifre da África.44 Ele ouviu também uma exposição a respeito da presença de uma unidade da Equipe 6 dos SEALs na base da baía de Manda,45 no Quênia, que poderia chegar ao Bainbridge em quinze minutos. Esses homens, o presidente soube, eram os melhores atiradores das Forças Armadas
americanas. “Se a situação se reduzir a pôr atiradores de elite num helicóptero, com a certeza de que o primeiro tiro atingirá o alvo, quem deve ser encarregado disso?”, perguntou o general Hugh Shelton, ex-chefe do Estado-Maior Conjunto e ex-comandante do Comando de Operações Especiais. Referindo-se à Equipe 6, ele me disse: “Eles são de uma precisão mortífera”.46 Com os atiradores dos SEALs preparados, os comandantes a bordo do navio pediram autorização para neutralizar os piratas. No governo, “houve certo debate”, lembrou Ambinder. “Obama, o NSC e advogados queriam fazer isso, porque aquela era a primeira vez que criavam uma operação de cima para baixo, de modo que queriam fazer tudo com muito cuidado. Elaboraram normas de fogo claras e detalhadas.” Em 12 de abril, acreditando que os piratas tencionavam matar Phillips, o comandante do JSOC a bordo do Bainbridge foi posto em contato com a Sala de Situação da Casa Branca e falou diretamente com o presidente Obama. “Em síntese, o presidente fez ao comandante uma série de perguntas”, disse Ambinder.
“Essas condições estão sendo atendidas? Há alguma maneira de fazer isso, salvar esse sujeito sem causar dano indevido a soldados americanos? A posição de tiro é boa? Há alguma possibilidade de outras baixas ou danos colaterais?” “Não, senhor.” E, a seguir, o comandante perguntou: “Tenho sua permissão para ir em frente?”. E o presidente disse: “Sim, o senhor tem”. O comandante deu sua ordem.
Pá. Pá. Pá. Três tiros,47 disparados quase exatamente ao mesmo tempo por três atiradores. Três piratas somalianos mortos. O capitão Richard Phillips foi resgatado e levado para os Estados Unidos com muita festa. Obama recebeu elogios de todos os setores do espectro político por sua firmeza para abater os piratas e pôr fim a uma situação de extorsão mediante sequestro sem perder uma só vida americana e com apenas três tiros. Nos bastidores, foi uma excelente lição para o presidente Obama sobre a força clandestina que Bush um dia elogiara como “terrível” — o JSOC. Ao agradecer às equipes que atuaram na operação Maersk Alabama, Obama pela primeira vez mencionou publicamente48 o nome do almirante William McRaven, comandante do JSOC, que supervisionou a operação. “Excelente trabalho”, disse ele a McRaven ao lhe telefonar depois da operação. “Os piratas somalianos estavam mortos, o capitão resgatado, e Obama se deu conta de forma clara, fisicamente, de que tem esse poder como presidente”, lembrou Ambinder. Acionar as Forças de Operações Especiais no Afeganistão ou no Paquistão era uma coisa, mas usá-las numa operação não convencional e não programada foi o que deixou bem claro o potencial delas. Depois do episódio dos piratas, o almirante McRaven tornou-se um convidado
muito mais frequente do presidente e, da mesma forma como acontecera na gestão de Bush, os militares do JSOC passaram a ser os ninjas estimados de Obama. Após a operação Alabama, “o presidente convidou pessoalmente49 os líderes das Forças de Operações Especiais à Casa Branca e pediu-lhes que tivessem um papel participante na política”, recordou uma fonte do JSOC que trabalhava no Chifre da África na época. Obama
pediu-lhes conselhos militares, como profissionais, sobre a melhor forma de levar a cabo essas operações. Foi uma coisa de que nunca se ouvira falar no governo anterior, no sentido de que eles determinariam qual seria a política e a transmitiriam ao Pentágono, que, por sua vez, faria com que os comandos subordinados a executassem.
Obama, disse a fonte, “tinha abraçado” os líderes das Operações Especiais, em especial o almirante McRaven. Seu período na Casa Branca nas primeiras fases da Guerra Global ao Terror “ensinou-lhe a antecipar as necessidades dos formuladores de políticas, de modo que o JSOC estava sempre à frente da curva, eles sempre tinham a prescrição de política perfeita para a Casa Branca”, acrescentou. O JSOC “sabia o que lhe seria pedido que fizesse antes que pedissem. Isso é crucial. É por isso que McRaven é uma figura fundamental […]. Ele liga esses mundos”. Embora o Afeganistão e o Paquistão fossem as linhas de frente primordiais das guerras do JSOC, a situação no Iêmen e na Somália exigia uma atenção especial da equipe de contraterrorismo de Obama. Grande parte da energia da política externa se concentraria publicamente no Afeganistão, mas, em segredo, tanto a Al-Shabab quanto o JSOC estavam transformando a Somália num dos mais importantes campos de batalha da guerra assimétrica.
Em junho de 2009, um homem-bomba executou um ataque ousado50 contra um hotel perto da fronteira da Etiópia, matando o ministro de Segurança da Somália e mais de uma dúzia de outras pessoas, entre elas um ex-embaixador somaliano. Na mesma semana, insurgentes mataram o chefe de polícia de Mogadíscio51 num tiroteio. Em julho de 2009, a Al-Shabab havia conquistado tamanho controle sobre Mogadíscio que suas forças se achavam a algumas centenas de metros52 da Villa Somalia, ameaçando apoderar-se da Zona Verde da capital, que abrigava o governo do xeque Sharif. O ataque só foi repelido com a intervenção da União Africana, apoiada pelos Estados Unidos. Autoridades do frágil governo da Somália estavam sitiadas e com medo. “O governo está sendo enfraquecido pelas forças rebeldes”,53 disse o xeque Aden Mohamed Nur, presidente do Parlamento, depois da morte do chefe de polícia. “Pedimos aos países vizinhos — Quênia, Djibuti, Etiópia e Iêmen — que enviem tropas à Somália dentro de 24 horas.” Isso nunca aconteceu. Naquele verão, os Estados Unidos anunciaram o envio de quarenta toneladas54 de armas para
as forças do governo da Somália. Em agosto, a secretária Hillary Clinton deu uma entrevista coletiva em Nairóbi, ao lado de Sharif Sheikh. Inserindo um ponto de exclamação na extraordinária trajetória do presidente somaliano — da chefia das Cortes Islâmicas, deposto pelos Estados Unidos e depois líder do país com apoio americano —, ela referiu-se a Sharif como a “melhor esperança55 que tivemos em bastante tempo”. No entanto, a prioridade dos Estados Unidos não era o governo de Sharif. Era a caça. “Apresentamos ao presidente Obama diversas ações e iniciativas contra a Al-Qaeda e outros grupos terroristas”, declarou John Brennan, consultor de contraterrorismo de Obama. “Ele não só aprovou essas operações como nos incentivou a sermos ainda mais agressivos, até proativos, a procurar novos meios e novas oportunidades56 para acabar com esses terroristas.” Na mira de Obama, disse Brennan, “destacavam-se aqueles que atacaram nossas embaixadas na África há onze anos […] e nosso país há oito”. No verão de 2009, os somalianos começaram a ver concentrações de grandes navios de guerra ao largo da costa de Mogadíscio. Faziam parte de um grupo de batalha dos Estados Unidos — e estavam ali com um objetivo.
29. “Soltem a rédea do JSOC”
ARÁBIA SAUDITA, WASHINGTON, DC, E IÊMEN, FINS DE 2009 — No fim de agosto de 2009, o príncipe saudita Mohammed bin Nayef recebeu um telefonema1 de um dos homens mais procurados do reino, Abdullah Hasan Tali al-Asiri, quadro operacional da Al-Qaeda. O príncipe Bin Nayef era filho do poderoso ministro do Interior saudita, o príncipe Nayef bin Abdel-Aziz, terceiro na linha sucessória do trono. Além de atuar como substituto do pai, Bin Nayef era também chefe do serviço de contraterrorismo da Arábia Saudita. Como parte de seus deveres oficiais, ele incentivava os combatentes da Al-Qaeda a se entregarem, através do programa de reabilitação de terroristas do reino. Asiri, que em fevereiro de 2009 tinha sido incluído na lista dos 85 sauditas mais procurados, fugira do país2 e estava morando no vizinho Iêmen. Se ele estava ligando para o príncipe a fim de se entregar, isso seria um triunfo de valor inestimável para os sauditas. Segundo constava, ele tinha sido recrutado3 para a Al-Qaeda pelo irmão, Ibrahim Hassan alAsiri, que, para os serviços de Inteligência saudita e americano, era o principal produtor de bombas para a AQPA. “Preciso te encontrar4 para contar toda a história”, disse Asiri ao príncipe Bin Nayef. “Se você vier, eu me encontro com você”, respondeu o príncipe. Asiri disse que veria o príncipe pessoalmente se ele mandasse um jato particular pegá-lo5 numa cidade saudita que ficava pouco além da fronteira com o Iêmen, a fim de levá-lo ao palácio de Bin Nayef. O príncipe concordou. No dia 9 de agosto, os dois se encontraram. De acordo com Richard Barrett, chefe da equipe das Nações Unidas incumbida de monitorar a Al-Qaeda e o Talibã, assim que a reunião começou Asiri ofereceu ao príncipe um telefone celular. “Asiri disse:6 ‘Ah, você precisa falar com meus amigos porque eles também querem se entregar, e se eles falarem com você, com certeza virão’.” Enquanto o príncipe Bin Nayef falava ao telefone com supostos companheiros de Asiri no Iêmen, o telefone ativou uma bomba, explicou Barrett. É difícil crer, mas Asiri embarcara num avião da família real saudita com uma bomba de tetranitrato de pentaeritritol, conhecido como PETN, passara com ela por vários postos de segurança e entrara com ela no palácio do príncipe Bin Nayef em Jeddah. Os sauditas não tinham detectado a bomba, de quase meio quilo,7 porque ela estava alojada no reto de Asiri. Enquanto o príncipe Bin Nayef falava ao celular, Asiri detonou a bomba. “Foi pura sorte que o príncipe só tenha ferido o dedo, porque a explosão
ocorreu para baixo e para cima, e não no sentido lateral, na direção do príncipe”, explicou Barrett. O ataque foi registrado em vídeo. “Pode-se ver o braço esquerdo do sujeito metido no forro da sala […] de modo que a explosão deve ter sido bem forte […] e pedaços dele espalhados por toda a sala”, disse Barrett. Mesmo o príncipe Bin Nayef tendo sobrevivido, o ataque representou um triunfo simbólico para a Al-Qaeda na Península Arábica. Ao que se saiba, esse foi o primeiro atentado à vida de um membro da família real saudita em décadas, e o primeiro ataque relevante da Al-Qaeda desde um surto de atentados a bomba e de mortes que durou vinte meses entre 2003 e 2004. Supôs-se que a bomba tenha sido fabricada por Ibrahim, irmão de Asari.8 A AQPA estava no mapa. Dias depois do malogrado atentado contra o príncipe Bin Sayef, o principal consultor de contraterrorismo de Obama, John Brennan, viajou à Arábia Saudita para entregar uma carta pessoal9 de Obama a Bin Nayef na qual o presidente expressava seu “horror” pelo ataque. “Estive com o príncipe Mohammed bin Nayef”,10 contou Brennan mais tarde. “Entrei na sala onde ocorreu o atentado. Sempre trabalhamos em estreito contato com os sauditas.” E acrescentou: “Estamos muito preocupados11 com relação a assassinatos, e continuamos a examinar todas as evidências que nos permitam tomar as medidas necessárias para impedir quaisquer tipos de ataques”. Para Barrett, o episódio dava ensejo à possibilidade de usar bombas escondidas dentro do corpo, como a de Asari, no ataque a linhas aéreas.
No caso de Asari, temos um sujeito que entrou num avião e passou por pelo menos dois postos de controle. Ele deve ter passado por um detector de metais. Poderia ter entrado em qualquer avião. Aquela técnica teria dado certo em qualquer linha aérea e em qualquer lugar, não importa quais medidas de segurança fossem adotadas no aeroporto. E é provável que isso tenha graves consequências. O que se poderá fazer? Que nível de proteção será possível proporcionar nesses casos?
Depois de se encontrar com os sauditas para tratar do ataque a Bin Nayef em 27 de agosto de 2009, Brennan disse: “Não havia nenhum indício12 […] de que a Al-Qaeda estivesse tentando utilizar esse tipo de ataque e esse modus operandi contra aviões”. Brennan estava equivocado nesse ponto. O atentado malogrado contra Bin Nayef, planejado pelo irmão de Asari, não seria o último de que americanos ou sauditas tomariam conhecimento. No entanto, concentrou mais ainda a atenção, por parte de Riade e de Washington, na base da Al-Qaeda no Iêmen.
Em 6 de setembro de 2009, uma semana depois da tentativa de assassinato contra Bin Nayef,
John Brennan mais uma vez reuniu-se com o presidente Saleh em Sana’a.13 Saleh queixou-se, sem meias palavras, de que a ajuda dos Estados Unidos para as atividades de contraterrorismo era insuficiente e alegou que sua ofensiva contra os rebeldes houthis era de interesse de Washington. “Essa guerra que estamos fazendo é em benefício dos Estados Unidos”, disse ele. “Os houthis são inimigos dos americanos também.” No encontro com Brennan, Saleh acusou o Irã de tentar prejudicar sua relação com Washington ao apoiar os houthis e tentar envolver também o Hezbollah. (Num telegrama sigiloso posterior,14 autoridades americanas reconheceram que desde o início da luta, em 2004, não tinham se registrado ataques dos houthis a americanos ou interesses dos Estados Unidos, e levantaram sérias dúvidas sobre a importância do envolvimento iraniano.) Brennan disse a Saleh que seria contrário à lei dar-lhe apoio militar contra os houthis, já que os Estados Unidos consideravam a luta desse grupo uma “insurgência interna”. Saleh replicou que ao negar apoio militar e se recusar a declarar que os houthis eram terroristas, Washington estava solapando as declarações de amizade e cooperação. Autoridades americanas declararam que Saleh estava “em perfeita forma” no encontro com Brennan, “às vezes desdenhoso e desinteressado, em outros momentos conciliador e simpático”. De acordo com o telegrama da embaixada americana sobre a reunião, Saleh “reiterou o pedido de mais recursos e equipamentos para combater” a AQPA. Em troca do aumento da ajuda, que ele sem dúvida desejava mais para suas guerras internas do que para lutar contra a AlQaeda, ofereceu a Brennan um trunfo valioso. “O presidente Saleh prometeu aos Estados Unidos acesso irrestrito ao território nacional do Iêmen para suas operações de contraterrorismo”, destacou o telegrama. “Saleh insistiu em que o território nacional do Iêmen está disponível para operações de CT [contraterrorismo] dos Estados Unidos.” Brennan e outras autoridades americanas viram a oferta como uma tentativa de contar com uma apólice de seguro no caso de ataques futuros à embaixada dos Estados Unidos ou a outros alvos americanos. “Eu lhes dei uma porta aberta contra o terrorismo”, disse Saleh a Brennan, “de modo que não sou responsável.” No entender de Brennan, “o interesse [de Saleh] em delegar o esforço de CT no Iêmen”, entregando-o aos Estados Unidos, estava ligado a seu desejo de liberar suas próprias forças e equipá-las melhor para enfrentar as rebeliões internas. “Uma campanha concertada de antiterrorismo [dos Estados Unidos] no Iêmen dará condições a Saleh de continuar a dedicar seus recursos limitados à guerra contra os insurgentes houthis”, dizia o telegrama.
A consequência cabal — que, com fortes razões, suspeitamos que Saleh calculou — de pôr em ação, ao mesmo tempo, os “punhos de ferro” americano e [iemenita] no Iêmen será uma mensagem clara […], [a] qualquer outro grupo interessado em gerar intranquilidade política no país, de que um destino semelhante o aguarda.
Com relação às reuniões entre Brennan e Saleh, o coronel Lang, que tratou com Saleh durante anos, declarou:
O que eles falam num encontro como aquele não quer dizer absolutamente nada.15 Você só vê o que eles estão mesmo querendo fazer quando conversa com pessoas no nível operacional, nos bastidores. E quanto mais você os compreende, com menos facilidade será engambelado, e para ser franco, mais dispostos eles se mostram a aparecer com algum tipo de acordo razoável.
Fossem quais fossem os motivos de Saleh, Brennan ficou satisfeito com o encontro, pois os Estados Unidos estavam recebendo sinal verde oficial para executar operações especiais dentro do Iêmen. Brennan entregou uma carta do presidente Obama a Saleh, prometendo maior ajuda na “luta contra o terrorismo”. A segurança do Iêmen, escreveu Obama, “é vital para a segurança dos Estados Unidos e da região, e os Estados Unidos adotarão uma iniciativa para ajudar o Iêmen”.16 Durante esse período, segundo fontes das Operações Especiais americanas, o governo Obama começou a autorizar17 planos para operações mais letais no Iêmen. Havia no Pentágono quem temesse que o foco no Iêmen estivesse se impondo tarde demais. “Não houve um número suficiente de pessoas18 na comunidade de informações, ou nas Forças Armadas, que dessem a devida atenção [à região], e a Al-Qaeda tirou proveito disso, pondo-nos em desvantagem”, declarou uma alta autoridade da Defesa ao Washington Times logo depois da visita de Brennan ao Iêmen. “Isso será para nós um sério problema no futuro próximo.”
Em 30 de setembro de 2009, Michael Leiter, diretor do Centro Nacional de Contraterrorismo, compareceu ante o Senado dos Estados Unidos. “A Al-Qaeda encontra-se sob maior pressão19 atualmente, enfrenta maiores desafios e está mais vulnerável do que em qualquer momento desde o Onze de Setembro”, declarou ele à Comissão de Segurança Interna e Assuntos Públicos. “No entanto, mesmo assim, eles continuam sendo um inimigo robusto. E embora eu acredite que fizemos muito no sentido de impedir ataques e de nos defender deles, eles continuam a ser bastante possíveis nos Estados Unidos.” Ainda que “o santuário da Al-Qaeda no Paquistão esteja diminuindo e se tornando menos seguro”, disse Leiter, o grupo estava crescendo em outros países. Leiter advertiu os senadores de que ramificações da Al-Qaeda começavam a “constituir uma crescente ameaça para nosso país”. Algumas delas “têm se mostrado capazes de atacar alvos ocidentais em suas regiões”, declarou, mas “elas aspiram a se expandir ainda mais”. Leiter advertiu, em especial, à ameaça cada vez maior que a AQPA representava para o Iêmen. “Assistimos ao ressurgimento20 da Al-Qaeda na Península Arábica, com o Iêmen
desempenhando o papel de importante campo de batalha e possível base regional de operações, na qual a organização pode planejar ataques, treinar recrutas e facilitar a movimentação de quadros operacionais”, afirmou. “Tememos que se a AQPA se fortalecer, os líderes da Al-Qaeda possam usar o grupo e a presença cada vez mais numerosa de combatentes estrangeiros na região para ampliar sua capacidade de operações transnacionais.” Nesse dia, o presidente Obama convocou seus principais assessores militares e políticos para uma reunião21 na Sala de Situação da Casa Branca na qual se debateria a estratégia americana no Afeganistão. Dela participaram o vice-presidente, Joe Biden; a secretária de Estado, Hillary Clinton; o secretário de Defesa, Robert Gates; o diretor da CIA, Leon Panetta; o chefe do EstadoMaior Conjunto, almirante Mike Mullen; o diretor de Inteligência nacional, almirante Dennis Blair; e o general Petraeus. Os detalhes do que foi discutido na reunião permanecem sigilosos, mas ficou evidente que o Afeganistão não foi o único tema em debate. Pouco depois dessa reunião, o general Petraeus assinou uma ordem secreta, de sete páginas,22 que autorizava pequenas equipes das Forças de Operações Especiais dos Estados Unidos a realizarem operações clandestinas fora dos campos de batalha declarados do Iraque e do Afeganistão. A ordem estava marcada como “LIMDIS” (limited distribution) — para distribuição limitada. Cópias impressas foram entregues a cerca de trinta pessoas. Seu codinome original era “Abacate”. A diretriz, conhecida como uma Ordem de Execução para uma Força-tarefa Conjunta de Guerra Não Convencional (Joint Unconventional Warfare Task Force, JUWTF), servia como uma espécie de autorização23 para que equipes de Operações Especiais militares dos Estados Unidos executassem operações clandestinas sem a aprovação direta do presidente para cada operação. “À diferença de ações secretas realizadas pela CIA, essas atividades clandestinas não exigem a aprovação do presidente ou relatórios periódicos ao Congresso”, informou Mark Mazzetti, do New York Times, a quem foi permitido ler a ordem de execução. Essa ordem era uma clara comprovação da continuidade da política externa do governo anterior por parte da Casa Branca de Obama. Durante o governo Bush, o Pentágono justificava periodicamente suas operações especiais clandestinas insistindo que as forças não estavam em guerra, mas sim “preparando o campo de batalha”. A “ExOrd” de Petraeus, em 2009, manteve e solidificou a justificativa da era Bush para expandir as guerras secretas na presidência de Obama. “Enquanto o governo Bush aprovara algumas atividades militares clandestinas distantes de zonas de guerra designadas como tal, a nova ordem visa tornar essas atividades mais sistemáticas e permanentes”,24 escreveu o New York Times. “Suas metas são construir redes capazes de ‘penetrar, desorganizar, derrotar e destruir’ a Al-Qaeda e outros grupos militantes, bem como ‘preparar o ambiente’ para futuros ataques de forças militares americanas ou locais, dizia o documento.” Além disso, a ordem de Petraeus deixava claro que os Estados Unidos estavam autorizando suas Forças Armadas, e não apenas a CIA, a executar essas operações secretas. “O governo Obama vinha relutando em permitir tal expansão25 de atividades militares não tradicionais em
países onde os Estados Unidos não têm presença formal. Essa prática era associada negativamente ao desrespeito do governo Bush-Cheney pelas normas internacionais”, observou o jornalista Marc Ambinder na época.
Contudo, imperativos políticos, a ameaça do terrorismo e a percepção do que as Forças Armadas americanas são capazes de realizar se suas rédeas forem cortadas aos poucos fizeram com que alguns dos altos assessores de Obama mudassem de opinião. Para isso contribuiu também o fato de o Congresso ter, de modo geral, dado às Forças Armadas ampla margem para realizarem atividades que paramilitares da Agência de Informações teriam julgado condenáveis.
Além de autorizar ações diretas por parte das Forças de Operações Especiais, a ordem de Petraeus tratava da coleta de informações,26 inclusive por militares americanos, executivos e acadêmicos estrangeiros, além de outras pessoas, destinadas a identificar insurgentes ou terroristas e sua localização. A ordem, que Petraeus redigiu em conjunto com o almirante Eric Olson, chefe do Comando de Operações Especiais dos Estados Unidos, expunha um plano de operações clandestinas “que não podem nem devem ser executadas”27 por forças militares regulares ou por órgãos de informações dos Estados Unidos. Entre aqueles que supervisionariam as atividades das Forças de Operações Especiais em todo o mundo, no governo Obama, estava Michael Vickers, ex-paramilitar da CIA da Divisão de Atividades Especiais e um importante ator nas operações de contrabando de armas e dinheiro, pela CIA, para os mujahedin no Afeganistão, na década de 1980. O coronel Lang disse que na época em que a ordem foi emitida, as forças do JSOC no Afeganistão acreditavam ter eliminado ou capturado uma boa parte dos Alvos de Grande Valor no Afeganistão, ou pelo menos obrigado esses líderes a refugiar-se em outros países. “É por isso que se torna muito tentador começar a caçar pessoas em outros países. Porque esses agentes, altamente especializados, estão perseguindo alvos que na verdade não são dignos de suas qualificações”, disse-me ele. “Para a liderança […] para o general de três estrelas e os de maior nível […] a tentação28 é procurar lugares onde empregar seus rapazes em campos mais verdes.” Lang, um ex-boina-verde, falou dos homens do JSOC que travariam as pequenas guerras de Petraeus como “uma espécie de Assassinato S.A.”, acrescentando: “O negócio deles é matar gente da Al-Qaeda. Essa é a missão deles. Não estão no negócio de converter quem quer que seja a nossos objetivos ou qualquer coisa desse tipo”. De acordo com o ex-assistente de um comandante graduado das Forças de Operações Especiais durante os governos de Bush e de Obama, a expansão das atividades de Operações Especiais por Obama no mundo inteiro foi, na realidade, uma continuação da Ordem de Execução AQN assinada no começo de 2004 por Rumsfeld, conhecida como “AQN-ExOrd”, ou
Ordem de Execução da Rede Al-Qaeda. Essa ordem foi criada para contornar processos burocráticos e legais, permitindo às Forças de Operações Especiais dos Estados Unidos atuar em áreas ou países fora das zonas oficiais de batalha no Iraque e no Afeganistão. A mentalidade na Casa Branca de Obama, disse-me essa fonte, era de que “se o Pentágono já tem poder29 para fazer essas coisas, que soltem a rédea do JSOC. E foi isso que essa Casa Branca fez”. A fonte acrescentou: “O governo [de Obama] deu mais poder ao JSOC do que qualquer outro na história recente. Sem dúvida”. Apesar de certa hesitação inicial, ficou claro que Obama queria expandir e codificar a ordem da era Bush. “O governo Obama pegou a ordem de 2004 e foi acima e além dela”, disse-me essa fonte. “O campo de batalha é o mundo. Voltamos a isso”, acrescentou. “Estamos nos afastando dela um pouquinho, mas a ‘preparação do campo de batalha’, de Cambone, ainda está bem viva. Foi adotada para este governo.” No governo Bush, o JSOC e seu comandante, Stanley McChrystal, coordenavam grande parte de suas atividades com o vice-presidente, Dick Cheney, e o secretário de Defesa, Donald Rumsfeld. No governo Obama, o relacionamento com o JSOC tornou-se mais formalizado como um todo. Como aquele ex-assistente me disse: “Antes a estratégia consistia em isolar o presidente.30 Agora eles interagem de forma direta e habitual com essas pessoas”. Em 4 de outubro de 2009, poucos dias depois da assinatura da ordem de execução e um mês depois da reunião de Brennan com o presidente Saleh, o almirante McRaven fez uma discreta viagem ao Iêmen31 para se reunir com Saleh. McRaven usou sua farda da Marinha, com listras amarelas nas mangas. Saleh, com um terno muito bem cortado, sentou-se numa poltrona dourada. O governo de Saleh declarou que os dois homens discutiram a “cooperação” no “combate ao terrorismo”. A embaixada dos Estados Unidos em Sana’a declarou que eles haviam debatido “a cooperação entre os Estados Unidos e o Iêmen32 contra a Al-Qaeda na Península Arábica”, acrescentando: “Essas discussões dão respaldo aos esforços permanentes do governo dos Estados Unidos para ajudar o Iêmen a eliminar a ameaça que a Al-Qaeda representa para a segurança e a estabilidade desse país”. No entanto, fontes iemenitas bem informadas afirmaram que McRaven pressionara Saleh a permitir que pelo menos três drones do JSOC operassem habitualmente no Iêmen e que também autorizasse “a execução de algumas operações especiais33 semelhantes às que estão tendo lugar no Paquistão e na Somália”. Saleh anuiu aos pedidos, cumprindo a promessa que fizera a Brennan para obter a ajuda americana de que precisava. Em 9 de outubro, Obama reuniu-se com sua equipe de segurança nacional para debater a mais importante questão de política externa, o Afeganistão. Durante o encontro, Brennan opinou que a Al-Qaeda representava uma ameaça maior no Iêmen e na Somália do que no Afeganistão. “Estamos elaborando princípios geoestratégicos aqui”,34 disse Brennan, “e não vamos dispor de recursos para fazer, no Iêmen e na Somália, o que estamos fazendo no Afeganistão.”
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