XX
PIPER
PIPER SABIA O QUE ERA medo, mas aquilo era diferente. Ondas de terror quebravam sobre ela. Suas juntas se transformaram em gelatina. Seu coração se recusava a bater. Suas piores lembranças inundaram sua mente: o pai amarrado e espancado em Monte Diablo; a briga mortal de Percy e Jason no Kansas; os três se afogando no ninfeu em Roma; ela enfrentando sozinha Quione e os Boreadas. Mas o pior de tudo foi reviver toda a sua conversa com a mãe sobre o que estava para acontecer. Paralisada, Piper viu o gigante erguer o martelo para esmagá-las. No último instante, ela saltou para o lado, derrubando Annabeth. O martelo quebrou o chão, salpicando estilhaços de pedra pelas costas de Piper. O gigante riu. — Ah, isso não foi justo! Ele ergueu outra vez o martelo. — Annabeth, levante-se! Piper a ajudou a ficar de pé e a arrastou para a extremidade mais distante da câmara, mas Annabeth se movia de modo letárgico, com os olhos arregalados e vidrados. Piper entendeu por quê. O templo amplificava os medos delas. Piper tinha visto algumas coisas horríveis, mas não eram nada em comparação ao que Annabeth havia experimentado. Se ela estivesse tendo lembranças do Tártaro, realçadas e somadas a outras recordações ruins, sua mente não seria capaz de resistir. Ela podia ficar literalmente louca. — Eu estou aqui — prometeu Piper, tentando transmitir em sua voz o máximo de segurança. — Nós vamos sair dessa. O gigante riu. — Uma filha de Afrodite liderando uma filha de Atena! Agora eu já vi de tudo. Como você planeja me derrotar, menina? Com maquiagem e dicas de moda? Alguns meses antes, aquele comentário poderia tê-la machucado, mas Piper já tinha superado aquilo. O gigante caminhou pesadamente na direção delas. Felizmente, ele era lento e carregava um martelo pesado. — Annabeth, confie em mim — disse Piper.
— Um… um plano — gaguejou ela. — Eu vou para a esquerda. Você vai para a direita. Se nós… — Annabeth, chega de planos. — O q-quê? — Chega de planos. Só me siga! O gigante golpeou com o martelo, mas elas se esquivaram com facilidade. Piper saltou para a frente e cortou a parte de trás do joelho do gigante com sua espada. Enquanto ele urrava de raiva, Piper puxou Annabeth para o túnel mais próximo. Imediatamente elas foram engolidas pela escuridão. — Suas tolas! — gritou o gigante, de algum lugar atrás delas. — Esse é o caminho errado! — Não pare. — Piper segurava firme a mão de Annabeth. — Está tudo bem. Vamos. Ela não enxergava nada. Até o brilho de sua espada tinha se apagado. Mas Piper mesmo assim seguia em frente rapidamente e sem hesitar, confiando em suas emoções. Pelo eco de seus passos, o espaço em torno delas devia ser uma caverna ampla, mas ela não podia ter certeza. Então simplesmente seguia na direção que a deixava com mais medo. — Piper, é como a Mansão da Noite — disse Annabeth. — Precisamos fechar os olhos. — Não! — exclamou Piper. — Mantenha os olhos abertos. Não podemos tentar nos esconder. A voz do gigante veio de algum lugar à frente delas: — Perdidas para sempre. Engolidas pelas trevas. Annabeth congelou, forçando Piper a parar também. — Por que nós simplesmente entramos aqui? — perguntou Annabeth. — Estamos perdidas. Nós fizemos exatamente o que ele queria! Devíamos ter aguardado um pouco, conversado com o inimigo, pensado em um plano. Isso sempre funciona! — Annabeth, eu nunca ignoro seus conselhos. — Piper mantinha a voz firme. — Mas, desta vez, preciso fazer isso. Não vamos conseguir derrotar este lugar usando a razão. Você não tem como escapar de suas emoções raciocinando. O riso do gigante ecoou como uma detonação subterrânea. — Desespere-se, Annabeth Chase! Eu sou Mimas, nascido para matar Hefesto. Sou o algoz dos planos, o destruidor das máquinas bem-lubrificadas. Nada dá certo em minha presença. Mapas são lidos equivocadamente. Aparelhos quebram. Dados são perdidos. As melhores mentes viram mingau! — E-eu já enfrentei piores que você! — exclamou Annabeth. — Ah, sei! — Dessa vez, a voz do gigante soou muito mais próxima. — Você não está com medo? — Nunca!
— Claro que estamos com medo — corrigiu Piper. — Aterrorizadas! Ela sentiu um movimento no ar. Bem a tempo, Piper empurrou Annabeth para o lado. CRASH! De repente, elas estavam de volta à câmara circular. A luz fraca agora era quase cegante. O gigante estava ali bem perto delas, tentando arrancar o martelo do chão onde ele o cravara. Piper se lançou sobre ele e enfiou sua lâmina na coxa do gigante. — UGHHHHH! Mimas soltou o martelo e arqueou as costas. Piper e Annabeth se esconderam atrás da estátua acorrentada de Ares, que ainda pulsava com um som metálico: tum-tum, tum-tum, tum-tum. O gigante Mimas se virou para elas. O ferimento em sua perna já estava se curando. — Vocês não podem me derrotar — rosnou ele. — Na última guerra, foram necessários dois deuses para me derrotar. Eu nasci para matar Hefesto, e teria feito isso se Ares não tivesse se aliado a ele! Vocês deveriam ter ficado paralisadas de medo. Teriam tido uma morte mais rápida. Alguns dias antes, ao enfrentar Quione no Argo II, Piper tinha começado a falar sem pensar, seguindo seu coração independentemente do que dizia seu cérebro. Naquele momento, ela fez a mesma coisa: foi para a frente da estátua e encarou o gigante, apesar de seu lado racional gritar: FUJA, SUA IDIOTA! — Este templo — disse ela. — Os espartanos não acorrentaram Ares para que seu espírito ficasse na cidade. — Ah, não? Os olhos do gigante brilharam de divertimento. Ele agarrou o martelo e o arrancou do chão. — Este templo é dos meus irmãos, Deimos e Fobos. — A voz de Piper tremia, mas ela não tentou esconder isso. — Os espartanos vinham aqui se preparar para as batalhas, encarar seus medos. Ares foi acorrentado para lembrá-los de que a guerra tinha consequências. O poder dele, os espíritos da batalha, os makhai, não deveriam ser libertados a menos que se entendesse como eles eram terríveis, a menos que se sentisse medo. Mimas riu. — Uma filha da deusa do amor me dando uma lição sobre guerra. O que você sabe sobre os makhai? — Você já vai descobrir. Piper correu direto para o gigante, fazendo-o se desequilibrar. Quando viu a espada dentada vindo em sua direção, os olhos dele se arregalaram, e Mimas
cambaleou para trás e bateu a cabeça na parede. Uma rachadura irregular se abriu e subiu pelas pedras. Poeira choveu do teto. — Piper, este lugar é instável! — alertou Annabeth. — Se não sairmos… — Nem pense em fugir! Piper correu na direção da corda delas, que pendia do teto. Pulou o mais alto que podia e a cortou. — Piper, você ficou maluca? Provavelmente, pensou ela. Mas Piper sabia que aquela era a única maneira de sobreviver. Ela tinha que contrariar a razão e, em vez disso, seguir a emoção, manter o gigante no chão. — Isso doeu! — Mimas esfregou a cabeça. — Você sabe que não pode me matar sem a ajuda de um deus, e Ares não está aqui! Da próxima vez que eu enfrentar aquele idiota petulante, vou fazê-lo em pedaços. Para começar, eu nem teria que lutar contra ele se Damásen, aquele tolo covarde, tivesse feito seu trabalho… Annabeth soltou um grito gutural: — Não fale mal de Damásen! Ela correu para cima de Mimas, que por pouco não conseguiu desviar a lâmina de drakon com o cabo de seu martelo. Ele tentou agarrar Annabeth, mas Piper se lançou sobre ele, cortando o rosto do gigante com sua lâmina. — AHHH! Mimas cambaleou. Uma pilha de dreadlocks caiu no chão com mais uma coisa: algo grande e carnudo que jazia em uma poça de icor dourado. — Minha orelha! — gritou Mimas, cheio de dor. Antes que o gigante pudesse se recuperar, Piper puxou Annabeth pelo braço, e juntas elas entraram correndo pelo segundo túnel. — Eu vou derrubar este templo! — urrou o gigante. — A Mãe Terra vai me libertar, mas vocês serão esmagadas! O chão tremeu. O som de pedras se quebrando ecoava por toda a volta delas. — Piper, pare — implorou Annabeth. — C-como você está lidando com isso? O medo, a raiva… — Não tente controlá-los. Este lugar é para isso. Você tem que aceitar o medo, se adaptar a ele, se deixar levar como se estivesse nas corredeiras de um rio. — Como você sabe disso? — Eu não sei. Eu apenas sinto. Em algum lugar ali perto, uma parede desmoronou com o barulho de tiros de canhão. — Você cortou a corda — disse Annabeth. — Agora nós vamos morrer aqui embaixo!
Piper segurou o rosto da amiga e a puxou para a frente até as suas testas se tocarem. Pelas pontas de seus dedos, ela sentia o pulso acelerado da outra. — Não dá para ser racional com o medo. Nem com o ódio. Ambos são como o amor: são emoções quase idênticas. É por isso que Ares e Afrodite gostam um do outro. Seus filhos gêmeos, Medo e Pânico, foram gerados tanto pelo amor quanto pela guerra. — Mas eu não… Isso não faz sentido. — Não — concordou Piper. — Pare de pensar sobre isso. Apenas sinta. — Eu odeio isso. — Eu sei. Você não pode planejar seus sentimentos, Annabeth. É como sua relação com Percy, e sobre o futuro… É impossível controlar todas as possibilidades. Você precisa aceitar isso. Deixe que assuste você. Confie que vai ficar tudo bem mesmo assim. Annabeth balançou a cabeça. — Não sei se consigo. — Então, por enquanto, se concentre em vingar Damásen, e Bob. Um momento de silêncio. — Eu estou bem agora. — Ótimo, porque preciso de sua ajuda. Vamos sair correndo daqui juntas. — E depois? — Não tenho ideia. — Pelos deuses, odeio quando é você que está liderando. Piper riu, o que surpreendeu até ela mesma. Medo e amor estavam mesmo ligados. Naquele momento, ela se agarrou ao amor que sentia pela amiga. — Vamos lá! Elas correram para nenhum lugar em especial e se viram de volta na câmara principal, às costas do gigante. Cada uma cortou uma das pernas de Mimas, fazendo-o cair de joelhos. O gigante uivou. Mais pedaços de pedra caíram do teto. — Mortais fracas! — Mimas lutou para se levantar. — Nenhum de seus planos pode me derrotar! — Isso é bom — disse Piper. — Porque eu não tenho um plano. Ela correu na direção da estátua de Ares. — Annabeth, mantenha nosso amigo ocupado! — Ah, ele está ocupado! — ARGHHHH! Piper olhou para o rosto cruel de bronze do deus da guerra. A estátua vibrava com o ruído baixo de uma pulsação metálica. Os espíritos da batalha, pensou ela. Eles estão lá dentro, esperando para ser libertados. Mas não cabia a ela fazer isso, não até que tivesse provado a própria coragem.
A câmara tornou a trepidar. Surgiram mais rachaduras nas paredes. Piper olhou para as imagens esculpidas acima dos portais: os rostos gêmeos carrancudos de Medo e Pânico. — Meus irmãos — disse Piper. — Filhos de Afrodite… Eu lhes ofereço um sacrifício. Ela pôs sua cornucópia aos pés de Ares. O chifre mágico tinha ficado tão conectado a suas emoções que podia amplificar sua raiva, seu amor ou seu pesar e, de acordo com esses sentimentos, despejar sua generosidade. Ela torcia para que aquilo agradasse aos deuses do medo. Ou talvez eles apenas gostassem de seguir uma dieta rica em frutas e verduras frescas. — Estou apavorada — confessou ela. — Não quero fazer isso. Mas aceito que seja necessário. Ela girou sua espada e decepou a cabeça de bronze da estátua. — Não! — berrou Mimas. Um jato de fogo jorrou violentamente do pescoço cortado da estátua. As chamas giraram em torno de Piper e encheram a câmara com um turbilhão de emoções: ódio, medo e sede de sangue, mas também amor, porque ninguém podia encarar uma batalha sem amar alguma coisa — os companheiros, a família, o lar. Piper abriu os braços; os makhai a colocaram no centro de seu rodamoinho. Vamos responder ao seu chamado, sussurraram eles em sua mente. Apenas uma única vez, quando precisar de nós, destruição, ruína e carnificina irão atendê-la. Nós vamos completar sua cura. As chamas desapareceram com a cornucópia, e a estátua de Ares se transformou em pó. — Menina tola! — Mimas correu na direção dela, com Annabeth seguindo logo atrás. — Os makhai a abandonaram! — Ou talvez eles tenham abandonado você! — gritou Piper. Mimas levantou o martelo, mas tinha se esquecido de Annabeth. Ela deu uma estocada em sua coxa, e o gigante cambaleou para a frente, desequilibrado. Piper avançou com calma até ele e enfiou a espada em sua barriga. Mimas deu de cara no portal mais próximo. Ele virou de costas no momento em que o rosto de pedra de Pânico se soltou da parede e caiu em cima dele para um beijo de uma tonelada. O grito do gigante foi interrompido no meio. Seu corpo ficou imóvel. Depois ele se desintegrou em uma pilha de pó de oito metros de altura. Annabeth encarou Piper. — O que acabou de acontecer? — Não sei direito. — Piper, você foi maravilhosa, mas esses espíritos de fogo que você evocou…
— Os makhai… — Como isso vai nos ajudar a encontrar a cura que estamos procurando? — Não sei. Eles disseram que eu posso invocá-los quando chegar a hora. Talvez Ártemis e Apolo possam explicar… De repente, um pedaço da parede despencou como se fosse uma geleira. Annabeth tropeçou na orelha decepada do gigante e quase caiu. — Temos que ir embora daqui. — Estou trabalhando nisso — disse Piper. — E, hum, acho que essa orelha é seu espólio de guerra. — Que nojo. — Daria um escudo lindo. — Cale a boca, Chase. — Piper olhou fixamente para o segundo portal, o que ainda tinha o rosto de Medo esculpido. — Obrigada, irmãos, por me ajudarem a matar o gigante. Mas preciso de mais um favor: uma saída. E podem acreditar em mim, estou devidamente apavorada. Eu ofereço a vocês essa, hum, bela orelha como sacrifício. O rosto de pedra não respondeu. Outro pedaço da parede se soltou e caiu. Abriram-se ainda mais rachaduras no teto. Piper agarrou a mão de Annabeth. — Vamos passar por este portal. Se isso funcionar, nós talvez saiamos na superfície. — E se não funcionar? Piper levantou a cabeça e olhou para o rosto de Medo. — Vamos descobrir. A câmara desmoronava em volta das duas quando elas mergulharam na escuridão.
XXI
REYNA
PELO MENOS ELES NÃO FORAM parar em outro navio de cruzeiro. Ao saírem de Portugal, tinham aterrissado no meio do Atlântico, onde Reyna passara o dia inteiro no convés do Azores Queen afastando criancinhas da Atena Partenos — elas pareciam achar que a estátua era um toboágua. Infelizmente, o salto seguinte levou Reyna para casa. Eles surgiram a três metros do chão, flutuando sobre a área aberta de um restaurante que Reyna logo reconheceu. Ela e Nico caíram em cima de uma enorme gaiola, que se quebrou no ato, jogando-os — junto com três araras muito assustadas — em um amontoado de vasos de samambaias. Já o treinador Hedge caiu em um toldo que cobria um bar. A Atena Partenos aterrissou de pé, com um sonoro BUM, esmagando uma mesa e jogando para o alto um guarda-sol verdeescuro, que foi parar em cima da estátua de Nice na mão de Atena. No final, parecia que a deusa da sabedoria segurava um drinque tropical. — Aaah! — berrou o treinador Hedge. O toldo se rasgou, fazendo-o cair atrás do bar. Foi um estardalhaço de garrafas e vidros se quebrando. Ele se recuperou bem: ressurgiu por trás do balcão com uma dúzia de miniguarda-chuvas no cabelo, pegou a pistola da máquina de refrigerante e serviu um copo para si mesmo. — Gostei! — exclamou ele, jogando um pedaço de abacaxi na boca. — Mas será que da próxima vez podemos aterrissar logo no chão e não em pleno ar? Nico saiu se arrastando do meio das samambaias e desabou na cadeira mais próxima, espantando uma arara azul que tentava pousar em sua cabeça. Depois da luta contra Licáon, tinha jogado fora sua jaqueta de aviador, toda rasgada. O estado da camiseta preta com estampa de caveira não era muito melhor. Reyna tinha costurado os cortes de Nico na altura dos bíceps, o que o fazia parecer um tanto assustador, uma espécie de Frankenstein, mas os ferimentos continuavam inchados e vermelhos. Ao contrário das mordidas, garras de lobisomem não transmitiam licantropia, mas Reyna sabia, por experiência própria, que demoravam a sarar e queimavam como ácido. — Preciso dormir. — Nico olhou ao redor, confuso. — Estamos em segurança? Reyna observou o pátio do restaurante. O lugar parecia deserto, embora ela não entendesse por quê. Àquela hora da noite, deveria estar lotado. O céu noturno emitia um brilho nublado cor de cerâmica, a mesma cor das paredes do prédio. As sacadas do segundo andar, em torno do pátio, estavam vazias, exceto por
vasos de azaleias pendurados nas grades brancas de metal. Por trás de uma parede de portas de vidro, o interior do restaurante estava às escuras. O único som era o gorgolejar solitário da fonte e o ocasional grito de uma arara malhumorada. — Aqui é o Barrachina — disse Reyna. — Viemos parar na China? — perguntou Hedge, abrindo um vidro de cerejas ao marasquino e começando a comer. — Barrachina. É um restaurante famoso — explicou Reyna. — Fica bem no meio de Viejo San Juan. Acho que foi aqui que inventaram a piña colada, na década de sessenta. Nico se levantou da cadeira, deitou-se encolhido no chão e já começou a roncar. O treinador Hedge soltou um arroto. — Bem, parece que vamos ficar aqui por um tempo. Se eles não inventaram nenhum drinque novo desde os anos sessenta, estão atrasados. Vou começar agora mesmo! Enquanto Hedge remexia nos utensílios atrás do balcão do bar, Reyna chamou Aurum e Argentum com um assovio. Os cães pareciam desgastados devido à luta contra os lobisomens, mas Reyna os deixou de vigia. Verificou a entrada que dava para a rua. Os portões decorativos de ferro estavam trancados. Uma placa em espanhol e inglês avisava que o restaurante tinha sido reservado para uma festa particular. Aquilo parecia estranho, já que o local estava deserto. No canto da placa estavam gravadas as iniciais HDVM. Isso incomodou Reyna, embora ela não conseguisse identificar o motivo. Ela espiou através dos portões. A rua Fortaleza encontrava-se estranhamente silenciosa, e o calçamento de pedras azuladas, totalmente livre, sem nenhum pedestre nem carro passando. As fachadas das lojas em tons pastel estavam fechadas e às escuras. Seria domingo? Ou algum tipo de feriado? A sensação de desconforto de Reyna só aumentava. Atrás dela, o treinador Hedge assoviava alegremente enquanto preparava algo em vários liquidificadores enfileirados. As araras estavam pousadas nos ombros da Atena Partenos. Reyna se perguntou se os gregos ficariam ofendidos se sua estátua sagrada chegasse coberta de cocô de aves tropicais. Tantos lugares em que Reyna podia ter ido parar… e logo San Juan. Talvez fosse coincidência, mas ela não acreditava nisso. Porto Rico não ficava no caminho entre a Europa e Nova York. Eles fizeram um bom desvio para o sul. Além disso, ela estava emprestando sua força para Nico havia alguns dias. Talvez o tivesse influenciado inconscientemente. Ele era atraído por pensamentos dolorosos, medo, escuridão. E a recordação mais dolorosa e sombria de Reyna era San Juan. Seu maior medo? Voltar ali.
Os cães perceberam sua agitação. Rondaram o pátio, rosnando para as sombras. O pobre Argentum andava em círculos por causa da cabeça deslocada, para conseguir enxergar com o olho de rubi que lhe restava. Reyna tentou se concentrar em lembranças positivas. Sentia saudades do barulho que os pequenos sapos coquí faziam, cantando pelas ruas como um coral de tampas de garrafa se abrindo. Tinha saudades do cheiro do mar, das magnólias e dos limoeiros em flor, do pão fresco das panaderías locais. Até a umidade do ar lhe era confortável e familiar, como o jato de ar perfumado das secadoras de roupas. Parte dela queria abrir os portões daquele restaurante e sair explorando a cidade. Ela queria visitar a Plaza de Armas, onde os velhinhos jogavam dominó e o quiosque de café vendia um espresso tão forte que fazia suas orelhas doerem. Queria passear pela rua onde tinha morado, a San José, contando os gatos de rua e dando-lhes nomes, inventando uma história para cada um, como fazia com sua irmã. Queria invadir a cozinha do Barrachina e preparar um verdadeiro mofongo, com bananas, bacon e alho — um sabor que sempre a lembraria de tardes de domingo, quando ela e Hylla conseguiam escapar de casa por um tempo e, com alguma sorte, comer ali naquela cozinha, onde os funcionários já as conheciam e se compadeciam delas. Ao mesmo tempo, porém, Reyna queria ir embora dali imediatamente. Queria despertar Nico, por mais cansado que ele estivesse, e forçá-lo a transportá-los para longe dali, para qualquer lugar que não fosse San Juan. Estar tão perto de casa a deixava tensa como um arco de balista. Ela olhou para Nico. Apesar da noite quente, ele tremia no chão de lajotas. Ela pegou um cobertor da mochila e o cobriu. Reyna não tinha mais vergonha de querer protegê-lo. Para o bem ou para o mal, eles agora tinham uma ligação. Cada vez que viajavam nas sombras, a exaustão e os tormentos dele transbordavam sobre ela, e Reyna o entendia um pouco melhor. Nico sentia uma solidão arrasadora. Tinha perdido a irmã mais velha, Bianca. Tinha afastado todos os semideuses que haviam tentado se aproximar dele. Suas experiências no Acampamento Meio-Sangue, no Labirinto e no Tártaro haviam lhe rendido cicatrizes e o deixado receoso de confiar em qualquer um. Reyna duvidava que fosse possível mudar os sentimentos dele, mas queria ao menos lhe dar apoio. Era algo que todos os heróis mereciam. E esta era exatamente a ideia da Décima Segunda Legião: unir forças para lutar por uma causa mais importante. Você não estava sozinho. Você fazia amigos e conquistava respeito. Mesmo quando não parava de lutar, você ainda tinha um lugar na comunidade. Nenhum semideus deveria sofrer sozinho, como Nico sofria.
Era vinte e cinco de julho. Faltavam sete dias para primeiro de agosto. Em teoria, era tempo suficiente para chegar a Long Island. Quando completassem a missão — se completassem —, Reyna faria o que pudesse para garantir que Nico fosse reconhecido por sua bravura. Ela tirou a mochila do ombro. Tentou colocá-la sob a cabeça de Nico como um travesseiro improvisado, mas seus dedos o atravessaram como se ele fosse uma sombra. Ela puxou rapidamente a mão. Será que estava tendo alucinações? Nico tinha despendido energia demais viajando nas sombras… talvez estivesse começando a desaparecer permanentemente. Se continuasse daquele jeito, forçando-se até os limites de sua força, por mais sete dias… O ruído de um liquidificador de repente a despertou de seus pensamentos. — Quer um coquetel de frutas? — perguntou o treinador. — Este é de abacaxi, morango, laranja e banana, tudo enterrado debaixo de uma montanha de coco ralado. Eu o batizei de Hércules! — Eu… eu não quero, não, obrigada. — Ela percorreu com o olhar as sacadas que circundavam o pátio interno. Ainda estava achando muito estranho aquele restaurante totalmente vazio. Festa particular. HDVM. — Treinador, acho que vou checar o segundo andar. Não estou gostando do… Seus olhos captaram um vislumbre de movimento. Na sacada à direita; uma forma escura. Acima da sacada, na beira do telhado, surgiram várias outras silhuetas contra o céu alaranjado. Reyna sacou sua espada, mas era tarde demais. Um brilho prateado, um zunido rápido e baixo, e a ponta de uma agulha se enterrou em seu pescoço. Sua visão se turvou. Seus braços e suas pernas ficaram moles. Ela desmoronou ao lado de Nico. Antes de perder a consciência, Reyna viu os cães virem correndo em sua direção, mas eles congelaram no meio de um latido e tombaram. Do bar, o treinador gritou: — Ei! Outro zunido rápido e baixo. Hedge foi derrubado com um dardo de prata no pescoço. Reyna tentou dizer: Nico, acorde. Mas sua voz não saía. Seu corpo tinha sido desativado tão completamente quanto seus cães de metal. Várias figuras escuras haviam surgido no telhado. Meia dúzia delas pulou para o pátio, em silêncio, com elegância. Uma das figuras se debruçou sobre Reyna, que só distinguia um borrão cinza. Uma voz abafada ordenou: — Levem-na. Um saco de pano cobriu sua cabeça. Reyna se perguntou vagamente se ia morrer daquele jeito, sem sequer lutar.
Mas logo isso já não lhe importava mais. Vários pares de mãos rudes a ergueram como se ela fosse um móvel grande demais, difícil de carregar, e ela mergulhou na inconsciência.
XXII
REYNA
A RESPOSTA LHE OCORREU ANTES mesmo que ela despertasse por completo. As iniciais da placa no Barrachina: HDVM. — Não tem graça — murmurou Reyna para si mesma. — Não tem a menor graça. Anos antes, Lupa lhe ensinara a ter um sono leve e acordar já alerta, pronta para atacar. Agora, conforme seus sentidos voltavam, Reyna avaliava sua situação. O saco de pano ainda cobria sua cabeça, mas não parecia estar preso em seu pescoço. Ela se viu amarrada a uma cadeira dura; de madeira, supôs. Cordas apertavam com força suas costelas. Suas mãos estavam presas às costas, mas suas pernas estavam soltas do joelho para baixo. Ou seus captores eram relaxados, ou não esperavam que ela despertasse tão depressa. Reyna experimentou mexer os dedos das mãos e dos pés. O efeito do tranquilizante havia passado. Em algum lugar à frente de Reyna ecoaram passos por um corredor. O som se aproximava. A garota relaxou os músculos e deixou a cabeça pender, o queixo tocando o peito. Um clique de fechadura. Uma porta rangendo. A julgar pela acústica, ela se encontrava em um ambiente pequeno, com paredes feitas de tijolos ou de concreto: talvez um porão ou uma cela. Alguém entrou no aposento. Reyna calculou a distância. Não mais que um metro e meio. Ela se ergueu de um salto, girando o corpo de tal forma que as pernas da cadeira acertassem o corpo de quem quer que tivesse surgido. A força fez a cadeira se quebrar. Seu captor caiu com um grunhido de dor. Gritos vindos do corredor. Mais passos. Sacudindo a cabeça, Reyna se livrou do saco de pano. Depois deu uma cambalhota para trás, passando as mãos amarradas por baixo das pernas para que os braços ficassem na frente do corpo. Seu captor era uma adolescente usando traje camuflado cinza, e estava caída no chão, atordoada; trazia uma faca presa ao cinto. Reyna pegou a faca, montou sobre a garota e pressionou a lâmina contra a garganta de sua captora.
Outras três garotas surgiram à porta. Duas delas sacaram facas. A terceira armou uma flecha e puxou o arco. Por um momento, todos ficaram paralisados. A artéria carótida da garota rendida pulsava sob a lâmina na mão de Reyna. Sabiamente, a garota não fez nenhuma tentativa de se mexer. Pela mente de Reyna passavam várias possibilidades de como derrotar as garotas que estavam à porta. As três usavam camiseta camuflada cinza, calça jeans de um preto desbotado, tênis de corrida pretos e cinto de utilidades como se estivessem indo acampar, fazer uma trilha ou… caçar. — Vocês são as Caçadoras de Ártemis — compreendeu Reyna. — Vá com calma — disse a garota com o arco. Seu cabelo ruivo era raspado dos lados e comprido em cima. Tinha o físico de um lutador de boxe. — Você não está entendendo a situação. A garota no chão soltou todo o ar dos pulmões, mas Reyna conhecia aquele truque: uma forma de tentar afastar a pele da arma do inimigo. Reyna apertou ainda mais a faca. — Vocês é que não estão entendendo se acham que podem me atacar e me capturar — retrucou Reyna. — Onde estão meus amigos? — Ilesos, exatamente onde você os deixou — assegurou a ruiva. — Olhe, somos três contra uma, e suas mãos estão amarradas. — Tem razão — disse Reyna com raiva. — Podem vir mais seis de vocês, e aí talvez seja uma luta justa. Exijo ver a tenente das Caçadoras, Thalia Grace. A ruiva piscou. As outras pareceram vacilar. No chão, a refém de Reyna começou a tremer. Reyna achou que ela estivesse tendo um ataque, mas então percebeu que a garota estava rindo. — Qual é a graça? — perguntou Reyna. A voz da garota era um sussurro rouco: — Jason me disse que você era boa. Mas não imaginei que fosse tanto. Reyna olhou com mais atenção para sua refém. A garota parecia ter uns dezesseis anos, com cabelo preto espetado e lindos olhos azuis. Uma tiara de prata reluzia em sua testa. — Você é Thalia? — E posso explicar tudo com o maior prazer — disse Thalia —, desde que você faça a gentileza de não cortar minha garganta.
* * *
As Caçadoras a guiaram por um labirinto de corredores. As paredes eram blocos de concreto pintados de verde-musgo, sem nenhuma janela. A única luz vinha de fracas lâmpadas fluorescentes posicionadas a cada dez metros no teto. As
passagens viravam e faziam curvas de um lado para outro. A Caçadora ruiva, Phoebe, seguia na frente; parecia saber aonde estava indo. Thalia Grace seguia mancando, a mão apertando as costelas, na altura em que Reyna a acertara com a cadeira. Devia estar sentindo dor, mas em seus olhos havia um brilho de divertimento. — Mais uma vez, me desculpe por raptá-la. — Thalia não parecia muito arrependida. — Este esconderijo é seguro. As amazonas têm certos protocolos… — As amazonas. Vocês trabalham para elas? — Com elas — corrigiu Thalia. — Temos uma relação amistosa. Às vezes, as amazonas nos mandam recrutas. E quando temos garotas que não querem ser virgens para sempre, as mandamos para as amazonas, que não exigem esses votos. Uma das outras Caçadoras bufou, indignada. — Manter homens como escravos, de coleira e tudo… Sou mais ter uma matilha de cães. — Eles não são escravos, Celyn — repreendeu Thalia. — São apenas subservientes. — Ela olhou para Reyna. — As amazonas e as Caçadoras não têm exatamente a mesma opinião sobre tudo, mas desde que Gaia começou a se agitar, temos atuado em cooperação mútua. Com o Acampamento Júpiter e o Acampamento Meio-Sangue se engalfinhando… bem… alguém tem que lidar com todos os monstros. Nossas forças estão espalhadas pelo continente inteiro. Reyna massageou as marcas de corda no pulso. — Achei que você tivesse dito a Jason que não sabia nada sobre o Acampamento Júpiter. — E era verdade. Mas esses dias agora são passado, graças às maquinações de Hera. — Thalia assumiu uma expressão séria. — Como vai meu irmão? — Quando eu o deixei em Épiro, ele estava bem. E Reyna contou a ela o que sabia. Os olhos de Thalia a perturbavam: de um azul eletrizante, intensos e alertas. Lembravam muito os de Jason. Tirando isso, os irmãos não se pareciam em nada. O cabelo de Thalia era espetado e preto. Ela vestia uma calça jeans toda rasgada, partes presas com alfinetes de segurança; usava correntes de metal no pescoço e nos pulsos, e um button em sua camiseta dizia O PUNK NÃO MORREU. O MORTO É VOCÊ. Reyna sempre pensara em Jason como o típico garoto americano. Thalia parecia mais alguém que aparecia no beco com uma faca para assaltar típicos garotos americanos. — Espero que ele ainda esteja bem — disse Thalia, pensativa. — Faz alguns dias, sonhei com nossa mãe. Não foi… não foi muito agradável. Depois recebi, em meus sonhos, a mensagem de Nico, de que vocês estavam sendo caçados por Órion. Foi ainda menos agradável.
— Foi por isso que você veio. Você recebeu a mensagem dele. — Bem, não viemos correndo até Porto Rico para passar umas férias. Esta é uma das fortalezas mais seguras das amazonas. Achamos que conseguiríamos interceptar vocês. — Interceptar? Como? E por quê? Phoebe, que ia na frente, parou. O corredor terminava bruscamente em uma porta dupla de metal. Phoebe bateu nela com o cabo da faca, uma complicada sequência de toques que parecia código Morse. Thalia esfregou as costelas machucadas. — Vou ter que deixar você aqui. As Caçadoras estão patrulhando a cidade antiga, à espera de Órion. Preciso voltar para as linhas de frente. — Ela estendeu a mão como se esperasse algo. — Minha faca, por favor? Reyna a devolveu. — E as minhas armas? — Você vai tê-las de volta quando for embora. Sei que parece bobagem, o rapto, a venda nos olhos, essas coisas, mas as amazonas levam muito a sério a própria segurança. Mês passado tiveram um incidente na base de operações delas, em Seattle. Talvez você tenha ouvido falar. Uma garota chamada Hazel Levesque roubou um cavalo. A Caçadora Celyn sorriu. — Naomi e eu vimos o vídeo da câmera de segurança. Lendário. — Épico — concordou a terceira Caçadora. — Enfim — continuou Thalia. — Estamos de olho em Nico e no sátiro. Homens não autorizados não têm permissão de chegar nem perto deste lugar, mas deixamos um bilhete, para eles não ficarem preocupados. Thalia pegou um papel do cinto, desdobrou-o e entregou-o a Reyna. Era uma xerox de um bilhete escrito à mão.
Pegamos emprestada de vcs uma pretora romana. Será devolvida sã e salva. Fiquem quietinhos aí. Senão, matamos vcs.
Bjs, As Caçadoras de Ártemis
Reyna devolveu o bilhete. — Ótimo. Eles vão ficar bem tranquilos. Phoebe sorriu.
— Está tudo bem. Cobri a Atena Partenos com uma nova rede de camuflagem que eu projetei. Deve servir para evitar que monstros, inclusive Órion, a encontrem. Além disso, se meu palpite estiver certo, o gigante na verdade não está seguindo o rastro da estátua, mas o seu. Reyna sentiu como se tivesse levado um soco na cara. — Como você pode saber isso? — Phoebe é minha melhor rastreadora — explicou Thalia. — E minha melhor curandeira. Sem contar que… bem, ela geralmente tem razão em quase tudo. — Quase tudo? — protestou a própria Phoebe. Thalia ergueu as mãos em um gesto de rendição. — Quanto ao porquê de termos interceptado vocês, vou deixar que as amazonas expliquem. Phoebe, Celyn, Naomi: entrem com Reyna. Tenho que cuidar de nossas defesas. — Você está preparada para uma luta — observou Reyna. — Mas você disse que este lugar era secreto e seguro… Thalia embainhou a faca. — Você não conhece Órion. Bem que eu queria que tivéssemos mais tempo, pretora. Queria lhe perguntar sobre o seu acampamento, saber como foi parar lá. Você me lembra muito sua irmã, mas ao mesmo tempo… — Você conhece Hylla? — perguntou Reyna. — Ela está em segurança? Thalia inclinou a cabeça ao responder: — Nenhum de nós está seguro no momento, pretora, por isso eu preciso muito ir. Boa caçada! E desapareceu pelo corredor. As portas de metal se abriram com um rangido. As três Caçadoras conduziram Reyna para dentro. Depois daqueles túneis claustrofóbicos, o tamanho do armazém fez Reyna perder o fôlego. O teto era tão amplo que daria para uma ninhada de águias gigantes fazerem manobras pelo ar. Fileiras de estantes de uns dez metros de altura se estendiam até o infinito. Braços mecânicos iam e vinham rapidamente pelos corredores, pegando caixas. Ali perto, meia dúzia de jovens em terninhos pretos comparavam anotações em seus tablets. Diante delas havia contêineres identificados com FLECHAS EXPLOSIVAS E FOGO GREGO: (PCT ABRE FÁCIL, 500G) e FILÉ DE GRIFO (ORGÂNICO — CRIAÇÃO EM GRANJA). Bem diante de Reyna, uma figura familiar estava sentada a uma mesa de reuniões coberta de relatórios e armas brancas. — Irmãzinha. — Hylla se levantou. — Aqui estamos nós de novo, em casa. Encarando a morte certa mais uma vez. Temos que parar de nos encontrar assim.
XXIII
REYNA
OS SENTIMENTOS DE REYNA NÃO estavam muito embaralhados. Na verdade, tinham sido jogados em um liquidificador com cascalho e gelo. Toda vez que encontrava a irmã, ela não sabia se a abraçava, se chorava ou se dava meia-volta e ia embora. Claro que ela amava Hylla. Teria morrido várias vezes se não fosse pela irmã. Mas o passado que elas compartilhavam era mais que complicado. Hylla deu a volta na mesa, indo ao encontro da irmã. A calça de couro preto e a camiseta de malha preta lhe caíam bem. Em sua cintura brilhava uma corrente com intrincados elos de ouro, o cinto da rainha das amazonas. Ela estava agora com vinte e dois anos, mas podia se passar por gêmea de Reyna. As duas tinham cabelo escuro e comprido, os mesmos olhos castanhos. Até usavam anéis de prata idênticos com o símbolo da mãe, Belona. A diferença mais óbvia entre elas era a grande cicatriz branca na testa de Hylla. Tinha esmaecido após quatro anos; agora podia passar por uma mera ruga de preocupação. Mas Reyna se lembrava do dia em que Hylla ganhara aquela cicatriz, em um duelo a bordo do navio pirata. — E então? — disse Hylla. — Não tem nada a dizer para sua irmã? — Obrigada por me sequestrar — disse Reyna. — Por me acertar com um dardo tranquilizante, botar um saco na minha cabeça e me amarrar a uma cadeira. Hylla revirou os olhos com desdém. — Regras são regras. Como pretora, você deveria entender isso. O centro de distribuição é uma das nossas bases mais importantes. Temos que controlar o acesso. Não posso abrir exceções. Muito menos para familiares. — Acho que você fez isso por pura diversão. — Também. Será que Hylla era mesmo tão tranquila e controlada quanto parecia?, perguntou-se Reyna. Era impressionante (e um pouco assustador) como a irmã tinha se adaptado rápido a sua nova identidade. Seis anos antes, Hylla era uma irmã mais velha assustada fazendo o possível para proteger Reyna da fúria do pai. Suas principais habilidades eram correr e encontrar lugares para as duas se esconderem. Depois, na ilha de Circe, Hylla se esforçava muito para chamar atenção. Usava roupas berrantes e maquiagem. Ria, vivia sorridente e alegre, como se
parecer feliz fosse de fato fazê-la feliz. Tinha se tornado uma das assistentes preferidas de Circe. Depois que seu santuário na ilha foi destruído pelo fogo, elas viraram prisioneiras dos piratas. Hylla mudou mais uma vez. Duelou por sua liberdade, foi mais pirata que os piratas, ganhou tanto o respeito da tripulação que BarbaNegra finalmente as libertou, por medo de que Hylla tomasse seu navio. Agora ela havia se reinventado de novo como rainha das amazonas. Claro, Reyna entendia por que a irmã era tão camaleônica. Se ela estivesse sempre mudando, jamais iria fossilizar na mesma coisa em que o pai tinha se transformado… — Aquelas iniciais na placa do Barrachina — disse Reyna. — HDVM. Hylla Duas Vezes Mortal, seu novo apelido. É uma piadinha? — Só queria ver se você estava atenta. — Você sabia que íamos aterrissar no pátio. Como? Hylla deu de ombros. — A viagem nas sombras opera por magia. Várias de minhas seguidoras são filhas de Hécate. Foi bem fácil para elas desviar vocês do seu curso, ainda mais com a conexão que nós duas temos. Reyna tentava manter sua raiva sob controle. Hylla, mais que qualquer outra pessoa, deveria saber como ela se sentiria ao ser arrastada de volta para Porto Rico. — Quanto trabalho vocês tiveram — observou Reyna. — A rainha das amazonas e a tenente de Ártemis indo às pressas a Porto Rico para nos interceptar, e imediatamente após receberem a mensagem… Imagino que não tenha sido porque você sentiu saudades de mim. Phoebe, a Caçadora ruiva, riu. — A garota é esperta. — Claro — disse Hylla. — Fui eu que ensinei tudo a ela. Outras amazonas se aproximaram, provavelmente detectando uma luta em potencial. Amazonas amavam a violência como entretenimento, quase tanto quanto piratas. — Órion — compreendeu Reyna. — Foi o que trouxe você aqui. O nome dele chamou sua atenção. — Eu não podia deixar que ele a matasse — disse Hylla. — É mais que isso. — Sua missão de escoltar a Atena Partenos… — … é importante. Mas também não é só isso. Você tem algum interesse pessoal nessa história. E as Caçadoras também. Por que não abre o jogo? Hylla passou os polegares pelo cinto de ouro. — Órion é um problema. Diferente dos outros gigantes, faz séculos que ele caminha pela Terra. Ele gosta de matar amazonas, ou Caçadoras, ou qualquer
mulher que ouse ser forte. — Por quê? Reyna teve a impressão de que uma onda de medo percorreu as garotas ali em torno dela. Hylla olhou para Phoebe. — Quer explicar? Você estava lá. O sorriso da Caçadora desapareceu. — Em tempos antigos, Órion se aliou às Caçadoras. Era o melhor amigo de Ártemis. Ninguém era páreo para ele no arco, exceto pela própria deusa, e talvez seu irmão, Apolo. Reyna sentiu um calafrio. Phoebe parecia não ter mais que catorze anos. E pensar que ela conhecia Órion havia três ou quatro mil anos… — Até que…? — perguntou Reyna. As orelhas de Phoebe ficaram vermelhas. — Órion ultrapassou os limites. Apaixonou-se por Ártemis. Hylla torceu o nariz em desprezo. — Sempre acontece com os homens. Eles prometem amizade. Prometem tratar você como igual. No fim, só querem mesmo possuí-la. Phoebe cutucava a unha do polegar. Atrás dela, as outras duas Caçadoras pareciam inquietas e desconfortáveis. — Lady Ártemis o rejeitou, é claro — prosseguiu Phoebe. — O que deixou Órion amargurado. Ele começou a partir em viagens cada vez mais longas por florestas e territórios ermos, sempre sozinho. No fim… não sei dizer ao certo o que aconteceu. Um dia, Ártemis voltou para o acampamento e nos contou que Órion tinha morrido. E se recusou a tocar no assunto. Hylla franziu a testa, o que acentuou a cicatriz branca em sua testa. — Seja lá o que aconteceu, Órion voltou do Tártaro como o pior inimigo de Ártemis. O maior ódio possível é por alguém que um dia você já amou. Reyna compreendia isso. Veio-lhe à mente uma conversa que ela tivera com a deusa Afrodite dois anos antes, em Charleston… — Se ele é um problema tão grande assim, por que Ártemis simplesmente não o mata outra vez? — perguntou Reyna. Phoebe fez um esgar de insatisfação. — Falar é fácil. Órion é sorrateiro. Sempre que Ártemis está conosco, ele se afasta. Sempre que nós, Caçadoras, estamos por conta própria, como agora… ele ataca sem avisar e desaparece de novo. Nossa tenente anterior, Zoë DoceAmarga, passou séculos tentando encontrá-lo para matá-lo. — As amazonas também tentaram — disse Hylla. — Órion não distingue entre nós e as Caçadoras. Acho que todas nós o lembramos demais Ártemis. Ele sabota nossos armazéns, embarga nossos centros de distribuição, mata nossas guerreiras…
— Em outras palavras — disse Reyna secamente —, fica no caminho dos seus planos de dominação mundial. Hylla deu de ombros. — Exatamente. — Foi por isso que vocês vieram correndo me interceptar — continuou Reyna. — Vocês sabiam que Órion estaria bem atrás de mim. Estão preparando uma armadilha. E eu sou a isca. Todas as outras garotas deram um jeito de olhar para qualquer outra coisa que não o rosto de Reyna. — Ah, por favor — reclamou Reyna. — Não me venham agora com crise de consciência. É um bom plano. Como vamos fazer? Hylla abriu um sorriso satisfeito para suas companheiras. — Não falei que minha irmã era durona? Phoebe, explique os detalhes a ela. A Caçadora pendurou o arco no ombro. — Como eu disse, acreditamos que Órion esteja seguindo você, não a Atena Partenos. O faro dele para semideusas é especialmente aguçado. Ou seja, pelo visto somos a presa natural de Órion. — Maravilha — disse Reyna. — Então meus amigos… Nico e Gleeson Hedge… eles não correm perigo? — Ainda não consigo entender por que você viaja com homens — resmungou Phoebe. — Mas eu diria que eles estão mais seguros sem você por perto. Fiz o possível para camuflar a estátua. Com sorte, Órion vai seguir você até aqui, direto para nossas linhas de defesa. — E quando isso acontecer? — perguntou Reyna. Hylla dirigiu a ela o tipo de sorriso frio que em outros tempos deixava os piratas de Barba-Negra nervosos. — Thalia e a maioria de suas Caçadoras estão vigiando o perímetro de Viejo San Juan. Assim que Órion se aproximar de nós, vamos saber. Montamos armadilhas em todos os pontos por onde ele pode tentar passar. Tenho minhas melhores guerreiras em alerta. Vamos pegar o gigante. Depois, de um jeito ou de outro, vamos mandá-lo de volta para o Tártaro. — É realmente possível matá-lo? — perguntou Reyna, incerta. — Achei que a maioria dos gigantes só pudesse ser destruída por um deus e um semideus lutando juntos. — É o que pretendemos descobrir — disse Hylla. — Com Órion capturado, essa sua missão e dos seus amigos vai ser muito mais fácil. Vocês poderão seguir caminho com nossa bênção. — Vocês podiam nos dar mais que uma bênção — disse Reyna. — As amazonas enviam produtos para o mundo inteiro. Por que não fornecer um transporte seguro para a Atena Partenos? Ou nos levar até o Acampamento Meio-Sangue até primeiro de agosto…
— Não posso — disse Hylla. — Se eu pudesse, irmã, eu a levaria, mas com certeza você já sentiu a raiva que emana da estátua. Nós, amazonas, somos filhas honorárias de Ares. A Atena Partenos nunca toleraria nossa interferência. Além disso, você sabe como as Parcas são. Para que a missão tenha sucesso, vocês devem entregar a estátua pessoalmente. A decepção de Reyna deve ter ficado evidente. Phoebe a cutucou com o ombro, como um gato tentando parecer sociável. — Ei, não fique assim. Vamos ajudar você o máximo possível. O setor de manutenção da Amazon consertou aqueles seus cães de metal. E temos uns presentes de despedida muito legais. Celyn entregou a Phoebe uma bolsinha de couro. — Vamos ver… — disse Phoebe, remexendo dentro da bolsinha. — Poções de cura. Dardos tranquilizantes iguais aos que usamos em vocês. Humm, o que mais? Ah, sim! Ela ergueu triunfantemente um tecido prateado dobrado em formato retangular. — Um lenço? — perguntou Reyna. — Melhor que isso. Afaste-se um pouco. Phoebe jogou no chão o tecido, que imediatamente se expandiu, tornando-se uma barraca de camping de três por três metros. — Tem ar-condicionado — disse Phoebe. — Cabem quatro pessoas. No interior tem uma mesa para refeições e sacos de dormir. Qualquer equipamento extra que você guardar dentro da barraca desmonta junto. Quer dizer, no limite do razoável… Não tente botar sua estátua gigante aí. Celyn deu um riso de escárnio e comentou: — Se os homens que viajam com você começarem a ficar irritantes, é só deixá-los aí dentro. Naomi franziu a testa. — Isso não ia funcionar… ou ia? — Enfim — disse Phoebe. — Essas barracas são maravilhosas. Tenho uma igualzinha. Uso sempre. Quando estiver pronta para fechá-la, a palavra de comando é Actáion. E nisso a barraca voltou a ser um pequeno retângulo de tecido. Phoebe o pegou, guardou na bolsinha e a entregou a Reyna. — Eu… eu não sei o que dizer — gaguejou Reyna. — Obrigada. — Ownnn… — Phoebe deu de ombros. — É o mínimo que posso fazer por… A uns quinze metros delas, uma porta se abriu com violência. Uma amazona veio correndo na direção de Hylla, uma garota de terninho preto que trazia o cabelo castanho comprido preso em um rabo de cavalo. Reyna a reconheceu da batalha no Acampamento Júpiter. — Kinzie, não é?
A garota assentiu distraidamente. — Pretora. A recém-chegada sussurrou algo no ouvido de Hylla, e a expressão da rainha das amazonas se nublou. — Entendo. — Ela olhou de relance para Reyna. — Tem alguma coisa errada. Perdemos contato com as defesas externas. Estou com medo de que Órion… Atrás de Reyna, as portas de metal explodiram.
XXIV
REYNA
REYNA LEVOU A MÃO À espada, mas então se lembrou de que a haviam confiscado. — Saiam daqui! — gritou Phoebe, preparando o arco. Celyn e Naomi correram em direção à porta fumegante, só para serem derrubadas por flechas negras. Phoebe gritou de raiva, e respondeu com fogo enquanto as amazonas avançavam com escudos e espadas. — Reyna! — Hylla a puxou pelo braço. — Precisamos ir embora! — Não podemos simplesmente… — Minhas guardas vão ganhar tempo para você! — gritou Hylla. — Sua missão precisa ser cumprida. Mesmo se odiando por isso, Reyna saiu correndo com Hylla. Quando alcançaram uma porta lateral, Reyna olhou rapidamente para trás. Dezenas de lobos, escuros como os que ela enfrentara em Portugal, jorraram para dentro do armazém. Amazonas corriam para interceptá-los. No vão da porta de metal, tomado pela fumaça, amontoavam-se os corpos das que não haviam resistido: Celyn, Naomi, Phoebe. A Caçadora ruiva que tinha vivido por milhares de anos agora jazia imóvel, os olhos arregalados em choque, uma flecha negra imensa cravada em sua barriga. A amazona Kinzie avançou, grandes facas reluzindo em suas mãos. Saltando os corpos, ela mergulhou na fumaça. Hylla puxou Reyna. As duas cruzaram a porta e puseram-se a correr, juntas. — Todas elas vão morrer! — gritou Reyna. — Tem que haver alguma coisa que… — Não seja estúpida, minha irmã! — Lágrimas brilhavam nos olhos de Hylla. — Órion foi mais esperto que nós. Ele transformou a emboscada em um massacre. Só o que podemos fazer agora é segurá-lo enquanto você foge. Você precisa levar aquela estátua para os gregos e derrotar Gaia! Guiando Reyna, ela subiu um lance de escadas. As duas seguiram por um labirinto de corredores, até chegarem a um vestiário. Lá, viram-se cara a cara com um grande lobo, mas, antes que a fera pudesse sequer rosnar, Hylla lhe deu um soco bem entre os olhos. O lobo desabou. — Por aqui. — Hylla correu para a fileira de armários mais próxima. — Suas armas estão aí dentro. Depressa.
Reyna pegou a adaga, o gládio e a mochila. Depois, ainda seguindo a irmã, subiu por uma escada de metal em caracol. A escada terminava no teto do vestiário. Hylla se virou e olhou com uma expressão muito séria para a irmã. — Não vou ter tempo de explicar isto, ok? Segure firme. Fique bem junto de mim. Reyna não sabia o que poderia ser pior do que a cena que elas tinham acabado de deixar para trás. Então Hylla abriu uma portinhola de alçapão, que levou as duas até… sua antiga casa. A sala estava exatamente como Reyna se lembrava. A luz entrava por claraboias opacas posicionadas nos tetos altos. As paredes imaculadamente brancas não tinham nenhum adorno. A mobília era de carvalho, aço e couro branco, totalmente impessoal e masculina. Sacadas se projetavam nas duas extremidades do cômodo, o que sempre fizera Reyna sentir como se estivesse sendo observada (porque, afinal, muitas vezes não era apenas uma sensação). O pai das duas tinha feito de tudo para dar um visual moderno à centenária hacienda. Tinha instalado as claraboias, pintara tudo de branco para tornar o ambiente mais claro e arejado. Mas só conseguira fazer com que o lugar parecesse um cadáver bem-arrumado em um terno novo. A portinhola se abriu no interior da enorme lareira. Reyna nunca tinha entendido por que eles tinham uma lareira em Porto Rico, mas ela e Hylla fingiam que era um esconderijo secreto; onde o pai não as encontraria. Imaginavam que, ao entrar ali, viajariam para outros lugares. Agora, Hylla fazia essa fantasia se tornar realidade. Ela havia ligado seu esconderijo subterrâneo ao lar de sua infância. — Hylla… — Já falei que não temos tempo. — Mas… — A casa é minha agora. Passei para o meu nome. — Você fez o quê? — Eu estava cansada de fugir do passado, Reyna. Resolvi recuperá-lo. Reyna a encarava, pasma. Um celular ou uma mala perdida no aeroporto, esse tipo de coisa dava para recuperar. Até um depósito de lixo tóxico. Mas aquela casa, e o que havia acontecido ali? Não tinha como recuperar aquilo. — Irmã — disse Hylla —, estamos perdendo tempo. Você vem ou não? Reyna olhou para as sacadas, quase esperando que formas luminosas tremeluzissem nos gradis. — Você os tem visto? — Alguns. — E papai?
— Claro que não — respondeu Hylla com aspereza. — Você sabe que ele nunca mais vai voltar. — Não sei nada sobre isso. Como você pôde voltar? Por quê? — Para entender! — gritou Hylla. — Você não quer saber o que aconteceu com ele? — Não! Não há nada para se aprender com fantasmas, Hylla. Você, mais que todo mundo, deveria saber que… — Estou indo — disse Hylla. — Seus amigos estão a alguns quarteirões daqui. Você vem comigo ou eu digo a eles que você morreu porque ficou perdida no passado? — Não fui eu que me apossei deste lugar! Hylla girou nos calcanhares e saiu pisando forte, cruzando a porta da frente. Reyna olhou para o cômodo mais uma vez. Ela se lembrava de seu último dia ali, quando tinha dez anos. Quase podia ouvir os gritos de raiva do pai ecoando pela sala, o coral de almas lamuriantes nas sacadas internas. Ela correu para a porta, mergulhando no agradável calor do sol da tarde. A rua não havia mudado: as casas em tons pastel, todas caindo aos pedaços; as pedras azuladas do calçamento; dezenas de gatos dormindo embaixo dos carros ou à sombra das bananeiras. Reyna teria sentido nostalgia naquele momento… não fosse por sua irmã estar, a poucos metros dela, cara a cara com Órion. — Ora, ora. — O gigante sorriu. — As duas filhas de Belona juntas. Excelente!
* * *
Reyna tomou aquilo como uma ofensa pessoal. Ela criara uma imagem de Órion como um demônio feio e enorme, ainda pior que Polibotes, o gigante que havia atacado o Acampamento Júpiter. Em vez disso, Órion podia passar por humano; um humano alto, musculoso e bonito. Sua pele era da cor de pão torrado. Tinha cabelo preto, raspado dos lados e espetado em cima. Com a calça e o gibão de couro, ambos em estilo medieval, a faca de caça, o arco e a aljava, ele parecia o irmão malvado e bonitão de Robin Hood. Só os olhos é que estragavam. À primeira vista, ele parecia estar usando óculos militares de visão noturna. Depois Reyna percebeu que não eram óculos. Eram criações de Hefesto: olhos mecânicos de bronze engastados nas enormes órbitas do gigante. Anéis de foco, como os das câmeras manuais, giraram e fizeram clique quando ele olhou para Reyna. Miras a laser mudaram de vermelho para verde. Reyna teve a desagradável sensação de que ele estava
vendo muito mais que sua forma: sua temperatura corporal, seu ritmo cardíaco, seu nível de medo. Ele segurava junto ao corpo um grande arco de metal e madeira quase tão sofisticado quanto seus olhos. Eram cordas dando inúmeras voltas por uma série de polias que pareciam rodas de trem em miniatura. A empunhadura era de bronze polido, cheia de displays e botões. Ele não tinha nenhuma flecha armada. Não fazia nenhum movimento ameaçador. Possuía um sorriso tão fascinante que Reyna quase esqueceu que aquele sujeito ali era um inimigo, alguém que havia matado pelo menos meia dúzia de Caçadoras e amazonas para chegar até ali. Hylla sacou suas facas. — Reyna, vá embora daqui. Eu dou um jeito nesse monstro. Órion deu uma risadinha. — Hylla Duas Vezes Mortal, você é corajosa. Suas tenentes também eram. E agora elas estão mortas. Hylla deu um passo à frente. Reyna segurou o braço da irmã. — Órion! — chamou ela. — Suas mãos já estão bem sujas de sangue de amazonas. Talvez seja a hora de experimentar uma romana. Com um clique, os olhos do gigante se dilataram. Pontos de laser vermelho dançaram pelo peitoral de Reyna. — Ah, a jovem pretora. Admito que estava curioso. Antes de matá-la, talvez você possa me esclarecer: por que uma filha de Roma está se esforçando tanto pelos gregos? Você deixou seu posto, abandonou sua legião, tornou-se uma desertora… em troca de quê? Jason Grace a desprezou. Percy Jackson também. Não acha que já foi bastante… qual é a palavra… rejeitada? Os ouvidos de Reyna zumbiram. Ela se lembrou do aviso de Afrodite, dois anos antes, em Charleston: Você não vai encontrar amor onde deseja ou espera. Nenhum semideus vai curar seu coração. Ela se obrigou a sustentar o olhar do gigante. — Eu não me defino pelos garotos que podem ou não gostar de mim. — Bravas palavras. — O sorriso do gigante era de enfurecer. — Mas você não é diferente das amazonas, nem das Caçadoras, nem da própria Ártemis. Fala de força e independência, mas, assim que encara um homem de verdadeira força, sua confiança desmorona. Você se sente ameaçada por meu grande poder, e porque esse poder atrai você. Então fuja ou se renda, ou você vai morrer. Hylla livrou o braço da mão de Reyna. — Vou matar você, gigante. Vou cortá-lo em pedacinhos tão pequenos… — Hylla — interrompeu Reyna. Ela não se importava com o que pudesse acontecer, só sabia que não podia ver a irmã morrer. Precisava atrair a atenção do gigante para si mesma. — Você diz ser forte, Órion. No entanto, não
conseguiu manter os votos da Caçada. Morreu rejeitado. E agora fica de paumandado da sua mãe. Então me explique, de que forma exatamente você é ameaçador? Órion trincou os dentes. Seu sorriso ficou mais tenso e mais frio. — Boa tentativa — reconheceu ele. — Você está tentando me desestabilizar. Acha que, se conseguir ganhar tempo com essa conversinha, seus reforços vão chegar para salvá-las. Infelizmente, pretora, não há reforços. Queimei o refúgio subterrâneo de sua irmã com seu próprio fogo grego. Ninguém sobreviveu. Com um rugido, Hylla se lançou à frente e atacou. Órion a acertou com a extremidade do arco, lançando-a para trás. Hylla caiu na rua. Órion puxou uma flecha da aljava. — Pare! — gritou Reyna. Seu coração martelava em seu peito. Ela precisava encontrar a fraqueza do gigante. O Barrachina ficava a poucos quarteirões dali. Se as duas conseguissem chegar até lá, talvez Nico pudesse transportá-los. E as Caçadoras não podiam estar todas mortas… Elas estavam patrulhando o perímetro inteiro da cidade antiga. Com certeza ainda havia algumas delas por aí… — Órion, você perguntou o que me motiva. — Ela manteve a voz firme. — Não quer a resposta antes de nos matar? Aposto que fica intrigado em ver as mulheres insistindo em rejeitar um cara grande e bonitão como você. O gigante armou a flecha no arco. — Agora você me confundiu com Narciso. Não vai conseguir me comprar com lisonjas. — Claro que não — disse Reyna. Hylla se levantou com uma expressão assassina no rosto, mas Reyna tentou expandir seus sentidos, transmitir à irmã o tipo mais difícil de força: o autocontrole. — Mas mesmo assim… você deve ficar furioso. Primeiro, levou um fora de uma princesa mortal… — Mérope — disse Órion, em tom de escárnio. — Garota bonita, mas burra. Se tivesse o mínimo de bom senso, teria entendido que eu estava apenas flertando com ela. — Já sei — disse Reyna. — Ela gritou e chamou os guardas. — Na hora, eu estava desarmado. Ninguém leva o arco e as facas quando está cortejando uma princesa. Os guardas me prenderam com facilidade. O pai dela, o rei, me cegou e me exilou. Logo acima da cabeça de Reyna, uma pedrinha rolou sobre um telhado de telhas de cerâmica. Talvez fosse sua imaginação, mas ela se lembrava daquele som das muitas noites em que Hylla fugia do quarto trancado e subia pelo telhado para ver como ela estava. Foi preciso toda a sua força de vontade para não olhar para cima.
— Mas você agora tem olhos novos — disse ela ao gigante. — Hefesto ficou com pena de você. — Sim… — O olhar de Órion perdeu o foco. Reyna sabia disso porque os pontos das miras a laser desapareceram do peito dela. — Fui parar em Delos, onde conheci Ártemis. Tem ideia de como é estranho conhecer sua arqui-inimiga e acabar atraído por ela? — Ele riu. — Ora, o que estou dizendo, pretora? É claro que você sabe. Deve sentir pelos gregos o que eu senti por Ártemis, um fascínio culpado, uma admiração que se transforma em amor. Mas amor demais é como veneno, ainda mais quando ele não é correspondido. Se você ainda não entendeu isso, Reyna Ramírez-Arellano, vai entender em breve. Hylla avançou, mancando, as facas ainda nas mãos. — Irmã, por que está deixando esse animal falar? Vamos acabar com ele. — Como se você fosse conseguir — refletiu Órion. — Muitos tentaram. Nem o próprio irmão de Ártemis, Apolo, conseguiu me matar, nos tempos antigos. Teve que trapacear para se livrar de mim. — Ele não gostava que você andasse com a irmã dele? Reyna ficou atenta, ansiosa por ouvir mais sons dos telhados, mas não ouviu nada. — Apolo era ciumento. — Os dedos do gigante se fecharam em torno da corda do arco. Órion a tensionou, acionando as engrenagens e polias da arma. — Ele tinha medo de que eu seduzisse Ártemis e a fizesse se esquecer de seus votos de castidade. Quem sabe? Sem a interferência de Apolo, talvez acontecesse isso mesmo. Ela teria sido mais feliz. — Como sua criada? — gritou Hylla com raiva. — Sua mulherzinha obediente? — Isso agora não importa — disse Órion. — Apolo me infligiu a loucura, o desejo de matar todos os animais da terra. Abati milhares antes que minha mãe, Gaia, finalmente pusesse um fim a meu acesso de fúria. Ela invocou um escorpião gigante da terra, que me matou com uma picada nas costas. Sou grato a ela por isso. — Você é grato a Gaia — disse Reyna — por matar você. As pupilas mecânicas de Órion se fecharam em espiral, virando minúsculos pontos reluzentes. — Minha mãe me mostrou a verdade. Eu estava lutando contra minha própria natureza, o que não me trouxe nada além de infelicidade. Os gigantes não nasceram para amar mortais nem deuses. Gaia me ajudou a aceitar o que sou. No fim, todos temos que voltar para casa, pretora. Temos que abraçar nosso passado, por mais amargo e sombrio que ele seja. — Ele apontou com o queixo para a villa atrás de Reyna. — Exatamente como você fez. Você tem sua própria cota de fantasmas, não é mesmo?
Reyna sacou a espada. Não há nada para se aprender com fantasmas, dissera ela à irmã. Talvez com gigantes também não. — Esta não é minha casa — disse ela. — E nós não somos iguais. — Eu já vi a verdade. — O gigante falava como se realmente quisesse ajudar. — Você se agarra à fantasia de que pode fazer seus inimigos a amarem. Não pode, Reyna. Não há amor para você no Acampamento Meio-Sangue. As palavras de Afrodite ecoaram em sua cabeça: Nenhum semideus vai curar seu coração. Reyna observava o belo e cruel rosto do gigante, com seus olhos mecânicos brilhantes. Por um momento terrível, ela entendeu por que mesmo uma deusa, até uma virgem eterna como Ártemis, se deixaria levar pelas palavras melosas de Órion. — Eu podia ter matado você vinte vezes agora mesmo — disse o gigante. — Você se dá conta disso, não? Quero poupá-la, e isso só depende de você. Só preciso de um pequeno voto de confiança. Diga-me onde está a estátua. Reyna quase deixou a espada cair. Onde está a estátua… Órion não tinha localizado a Atena Partenos. A camuflagem das Caçadoras tinha funcionado. Durante todo aquele tempo, o gigante estava seguindo o rastro de Reyna, o que significava que mesmo se ela morresse agora, Nico e o treinador Hedge estariam a salvo. A missão não estava perdida. Ela sentiu como se tivesse tirado uma armadura de cinquenta quilos. Deu uma risada. O som ecoou pela rua de pedras. — Phoebe foi mais esperta que você — disse ela. — Ao seguir meu rastro, você perdeu a estátua. Agora meus amigos estão livres para prosseguir com a missão. Órion franziu o lábio. — Ah, mas eu vou encontrá-los, pretora. Depois que acabar meu assunto com você. — Então — falou Reyna — acho que vamos ter que acabar com você primeiro. — Essa é a minha irmãzinha — disse Hylla com orgulho. E as duas atacaram juntas.
* * *
O disparo do gigante teria perfurado Reyna, mas Hylla foi mais rápida: interceptou a flecha em pleno ar e então se lançou sobre Órion enquanto Reyna tentava golpeá-lo no peito. Mas o gigante interceptou os dois ataques com o arco. Ele chutou Hylla para trás, fazendo-a cair sobre o capô de um Chevrolet velho. Meia dúzia de gatos saiu correndo de sob o carro. O gigante então girou,
repentinamente com uma adaga na mão, e Reyna por pouco não conseguiu desviar do golpe. Ela atacou de novo, cortando o gibão de couro de Órion, mas mal conseguiu arranhar seu peito. — Você luta bem, pretora — reconheceu ele. — Mas não o suficiente para sobreviver. Reyna desejou que sua espada se estendesse em um pilum. — Minha morte não significa nada. Se Nico e Hedge pudessem prosseguir com a missão em paz, ela estava totalmente disposta a morrer lutando. Mas primeiro pretendia machucar tanto aquele gigante que ele jamais esqueceria o nome dela. — E a morte da sua irmã? — perguntou Órion. — Significa alguma coisa? Antes mesmo que Reyna pudesse piscar, ele lançou uma flecha na direção do peito de sua irmã. Um grito se formou na garganta de Reyna, mas, sabe-se lá como, Hylla pegou a flecha. Hylla desceu do capô do carro e quebrou a flecha com uma das mãos. — Eu sou a rainha das amazonas, seu idiota. Uso o cinto real. Com a força que ele me transmite, vou vingar as amazonas que você matou hoje. Hylla agarrou o para-choque dianteiro do Chevrolet e arremessou o carro inteiro na direção de Órion com tanta facilidade como se estivessem em uma piscina e ela jogasse água na cabeça dele. O Chevrolet esmagou Órion contra a parede de uma casa. O estuque rachou. Uma bananeira tombou. Mais gatos saíram correndo. Reyna foi correndo na direção dos destroços, mas o gigante, urrando, empurrou o carro para longe. — Vocês vão morrer juntas! — prometeu ele. Duas flechas surgiram armadas em seu arco, a corda já totalmente tensionada. Nesse instante, os telhados explodiram com um estrondo. — MORRA! Saltando para a rua, Gleeson Hedge surgiu bem atrás de Órion. Ele acertou a cabeça do gigante com tanta força que o taco de beisebol, da famosa marca Louisville Slugger, partiu-se ao meio. Ao mesmo tempo, Nico di Angelo surgiu na frente do gigante. O menino cortou a corda do arco de Órion com sua espada estígia, fazendo polias e engrenagens rangerem e zunirem e a corda se recolher com centenas de quilos de força, acertando Órion no nariz como um chicote de couro. — AAAAHHHHHHH! Órion cambaleou e deixou o arco cair. Caçadoras de Ártemis surgiram nos telhados, enchendo Órion de flechas de prata até deixá-lo parecido com um porco-espinho brilhante. Ele foi
cambaleando às cegas, segurando o nariz; icor dourado escorria por seu rosto. Alguém segurou Reyna pelo braço. — Vamos embora! Thalia Grace tinha voltado. — Vá com ela! — ordenou Hylla. Reyna sentia como se seu coração estivesse se despedaçando. — Irmã… — Você precisa ir! AGORA! — Era exatamente o que Hylla tinha lhe dito seis anos antes, na noite em que fugiram da casa do pai. — Vou segurar Órion o máximo possível. Hylla agarrou uma das pernas do gigante, desequilibrou-o e o arremessou longe. Órion foi parar a vários quarteirões dali, para consternação geral de mais dezenas de gatos. As Caçadoras partiram atrás dele pelos telhados, disparando flechas que explodiam em fogo grego, envolvendo o gigante em chamas. — Sua irmã tem razão — disse Thalia. — Você precisa ir. Nico e Hedge se juntaram a ela, ambos exibindo um ar de plena satisfação consigo mesmos. Aparentemente, tinham feito algumas compras na lojinha do Barrachina, pois, em vez das camisas sujas e rasgadas, usavam agora espalhafatosos modelos com estampa tropical. — Nico — disse Reyna —, você está… — Não quero ouvir nem uma palavra sobre a camisa — avisou ele. — Nem uma palavra. — Por que vocês vieram atrás de mim? — perguntou ela. — Vocês podiam ter ido embora ilesos. O gigante estava seguindo o meu rastro. Se tivessem simplesmente… — De nada, docinho — resmungou o treinador. — Não podíamos ir embora sem você. Agora vamos dar o fora daqui… Ele então olhou por cima dos ombros de Reyna e perdeu a voz. Reyna se virou. Atrás dela, as sacadas do segundo andar de sua antiga casa estavam cheias de figuras reluzentes: um homem com uma barba bifurcada e armadura enferrujada de colonizador; outro homem barbado, em roupas de pirata do século XVIII, com a camisa salpicada de furos de tiro; uma mulher com uma camisola ensanguentada; um capitão da Marinha americana usando uniforme de gala; e mais uma dúzia de outros fantasmas que Reyna conhecia de sua infância, todos a encarando acusadoramente. As vozes deles sussurravam em sua mente: Traidora. Assassina. — Não… Reyna sentiu como se tivesse dez anos outra vez. Queria se encolher no canto do quarto e tapar os ouvidos para fazer as acusações sumirem.
— Reyna, quem são eles? — perguntou Nico, segurando seu braço. — O que…? — Não consigo — suplicou ela. — N-não consigo. Ela havia passado muitos anos construindo uma represa dentro de si mesma para conter seus medos. Agora a represa tinha se rompido, levando embora suas forças. — Está tudo bem. — Nico olhou atentamente para as sacadas. Os fantasmas não estavam mais lá, mas Reyna sabia que eles não tinham ido embora de verdade. Eles nunca iam. — Vamos embora daqui logo, logo — prometeu Nico. — Vamos andando. Thalia pegou o outro braço de Reyna, e os quatro foram correndo na direção do restaurante, da Atena Partenos. Às suas costas, Reyna ouvia urros de dor de Órion e explosões de fogo grego. E, em sua mente, as vozes ainda sussurravam: Assassina. Traidora. Você nunca conseguirá fugir de seu crime.
XXV
JASON
JASON GRACE SE ERGUEU DE seu leito de morte só para se afogar com o restante da tripulação. O navio balançava com tanta violência que ele teve que ficar de quatro para sair da enfermaria. O casco rangia. O motor bramia como um búfalo. Em meio ao uivo do vento, a deusa Nice gritava dos estábulos: — VOCÊ PODE FAZER MELHOR DO QUE ISSO, TEMPESTADE! QUERO VER CENTO E DEZ POR CENTO! Jason subiu até o andar das cabines. Suas pernas tremiam. Sua cabeça girava. O navio guinou para bombordo, jogando-o contra a parede oposta. Hazel saiu cambaleando de sua cabine, segurando a barriga. — Eu odeio o mar! Quando ela o viu, seus olhos se arregalaram. — O que você está fazendo fora da cama? — Eu vou lá em cima! — insistiu ele. — Posso ajudar! Hazel fez menção de argumentar. Então o navio tombou para estibordo, e ela foi trôpega na direção do banheiro, a mão na boca. Jason teve dificuldade para chegar até a escada. Ele não saía da cama havia um dia e meio, desde que as garotas tinham voltado de Esparta e ele desmaiara inesperadamente. Seus músculos protestavam contra o esforço. Suas entranhas doíam como se Michael Varus estivesse atrás dele, golpeando-o repetidas vezes e gritando: Morra como romano! Morra como romano! Jason ignorou a dor. Estava cansado de ter pessoas cuidando dele, sussurrando quanto estavam preocupadas. Estava cansado de sonhar que virava churrasquinho. Ele já passara tempo suficiente cuidando da ferida em sua barriga. Ou aquilo ia matá-lo, ou não. Ele não ia ficar esperando que o ferimento se decidisse. Precisava ajudar seus amigos. De algum modo ele conseguiu chegar ao convés. O que viu lá o deixou quase tão enjoado quanto Hazel. Uma onda do tamanho de um arranha-céu arrebentou sobre a proa, carregando as balistas e metade da amurada a bombordo para o mar. As velas foram rasgadas em pedaços. Raios lampejavam por todos os lados, atingindo o mar como refletores elétricos. Uma chuva forte fustigou o rosto de Jason. As nuvens estavam tão escuras que ele honestamente não sabia dizer se era dia ou noite. A tripulação fazia o possível… o que não era muito.
Leo tinha se prendido ao painel de controle com um rolo de cabo elástico. A princípio, aquilo devia ter parecido uma boa ideia, mas toda vez que uma onda quebrava, ele era arrastado e depois jogado de volta sobre o painel como se tivesse levado uma raquetada. Piper e Annabeth tentavam salvar o cordame. Desde Esparta, elas tinham se tornado uma dupla e tanto, capazes de trabalhar juntas sem sequer trocar uma palavra — o que era ótimo, já que não conseguiriam ouvir uma à outra no meio da tempestade. Frank — pelo menos Jason imaginava que fosse Frank — tinha virado um gorila. Ele estava pendurado de cabeça para baixo na amurada a estibordo, usando sua força enorme e seus pés flexíveis para se segurar enquanto soltava alguns remos quebrados. Aparentemente eles estavam tentando fazer o navio decolar, mas, mesmo que conseguissem levantar voo, Jason não tinha certeza de que o céu seria mais seguro. Até Festus, a figura de proa, tentava ajudar. Ele cuspia fogo na chuva, apesar de isso não parecer desanimar a tempestade. Só Percy tinha algum sucesso. Ele estava de pé junto ao mastro principal com os braços abertos como se estivesse sobre uma corda bamba. Toda vez que o navio inclinava, ele empurrava na direção oposta, e o casco se estabilizava. Ele invocava punhos gigantes de água do oceano para golpear as ondas maiores antes que elas atingissem o convés, fazendo parecer que o oceano estava batendo repetidas vezes na própria cara. Com a tempestade forte daquele jeito, Jason percebeu que o navio já teria virado ou sido feito em pedaços se Percy não estivesse ali. Jason foi com dificuldade até o mastro. Leo gritou alguma coisa, provavelmente “Volte lá para baixo!”, mas Jason apenas acenou de volta. Ele chegou perto de Percy e tocou seu ombro. Percy balançou a cabeça como quem dá oi. Não pareceu chocado nem mandou que Jason voltasse para a enfermaria, o que agradou a Jason. Se Percy se concentrasse, podia ficar seco, mas obviamente ele tinha coisas mais importantes com que se preocupar naquele momento. Seu cabelo escuro estava grudado no rosto. Sua roupa, encharcada e rasgada. Ele gritou algo no ouvido de Jason, mas o garoto só conseguiu entender algumas palavras: — LÁ EMBAIXO… AQUELA COISA… PARAR! Percy apontou para a amurada. — Tem alguma coisa provocando a tempestade? — perguntou Jason. Percy sorriu e deu tapinhas nas orelhas. Ele claramente não conseguia ouvir nem uma palavra. Fez um gesto com as mãos como se estivesse mergulhando do barco, depois cutucou Jason no peito. — Quer que eu vá?
Jason se sentiu um pouco orgulhoso. O resto da tripulação o estava tratando como se ele fosse de cristal, mas Percy… bem, ele parecia concluir que, se Jason estava no convés, estava pronto para a ação. — É pra já! — gritou Jason. — Mas não posso respirar embaixo d’água! Percy deu de ombros. Desculpe, não consigo ouvir você. Então correu para a amurada a estibordo, empurrou outra onda para longe do navio e mergulhou no mar. Jason olhou para Piper e Annabeth. As duas se agarraram ao cordame e olharam fixamente para ele, chocadas. A expressão no rosto de Piper dizia Ficou maluco? Ele levantou o polegar para elas, em parte para garantir que ia ficar bem (coisa da qual não tinha certeza), em parte para concordar que, de fato, ele era maluco (coisa da qual ele tinha certeza). Jason caminhou com dificuldade até a amurada, onde parou e avaliou a tempestade. Os ventos sopravam, furiosos. As nuvens ribombavam. Jason sentiu um exército inteiro de venti girando acima dele, raivosos e agitados demais para assumir uma forma física, mas famintos por destruição. Ele ergueu o braço e invocou uma corda de vento. Jason aprendera havia muito tempo que a melhor maneira de controlar uma multidão de valentões era pegar o cara mais poderoso e perverso e submetê-lo à força. Depois os outros seguiriam. Ele jogou sua corda de vento, à procura do ventus mais forte e encrenqueiro da tempestade. Laçou um pedaço especialmente maldoso de nuvem carregada de tempestade e o puxou. — Você vai me ajudar hoje. Uivando em protesto, o ventus o cercou. A tormenta acima do navio pareceu arrefecer um pouco, como se os outros venti estivessem pensando: Droga. Esse cara está falando sério. Jason levitou do convés envolto em seu próprio furacão em miniatura. Girando como um saca-rolha, mergulhou na água.
* * *
Jason achou que as coisas estariam mais calmas debaixo d’água. Ledo engano. É claro que isso podia estar relacionado com a forma como ele foi parar ali. Descer de ciclone até o fundo do mar gerou uma turbulência inesperada. Ele afundava e guinava sem nenhuma lógica aparente; seus ouvidos estalavam, e seu estômago ficou pressionado contra as costelas.
Finalmente ele parou ao lado de Percy, que estava de pé na beira de um abismo. — E aí? — cumprimentou ele. Jason podia ouvi-lo perfeitamente, apesar de não saber como. — O que está acontecendo? Em seu casulo de ventus, sua voz soava como se ele estivesse falando através de um aspirador de pó. Percy apontou para o vazio. — Espere só. Três segundos depois, um facho de luz verde varreu a escuridão como um refletor, depois desapareceu. — Tem alguma coisa lá embaixo — disse Percy. — Instigando esta tempestade. — Ele se virou e avaliou o furacão de Jason. — Belo traje. Você tem como mantê-lo se mergulharmos mais fundo? — Não tenho ideia de como estou fazendo isso — disse Jason. — Ok. Bem, tente não desmaiar. — Cale a boca, Jackson. Percy sorriu. — Vamos ver o que tem lá embaixo. Eles afundaram tanto que Jason não conseguia ver nada além de Percy nadando ao seu lado sob a luz fraca de suas espadas de ouro e bronze. De vez em quando, o holofote verde se projetava para cima. Percy nadava direto em sua direção. O ventus de Jason crepitava e rugia em seu esforço para se libertar. O cheiro de ozônio o estava deixando tonto, mas ele manteve seu casulo de ar intacto. Por fim, a escuridão a sua volta diminuiu. Faixas brancas de luminosidade suave, como grupos de águas-vivas, flutuavam diante de seus olhos. Conforme se aproximava mais do fundo do mar, ele percebeu que as faixas eram campos reluzentes de algas que cercavam as ruínas de um palácio. Montes de lodo cobriam os pátios vazios com piso de abalone. Colunas gregas cheias de cracas adentravam as sombras. No centro da construção erguia-se uma fortificação maior que a Estação Grand Central, com paredes incrustadas de pérolas e a cobertura dourada da cúpula quebrada e aberta como um ovo. — Atlântida? — perguntou Jason. — Ela é um mito — afirmou Percy. — Hum… Mas nós não lidamos com mitos? — Não, estou dizendo que é um mito inventado. Tipo, não é um verdadeiro mito real. — Dá para perceber por que Annabeth é o cérebro desta missão. — Cale a boca, Grace. Eles entraram flutuando pela abertura na cúpula e penetraram na escuridão.
— Este lugar me é familiar. — A voz de Percy ficou tensa. — Quase como se eu já tivesse estado aqui… O holofote verde piscou diretamente abaixo deles, cegando Jason. Ele despencou como uma pedra, caindo sobre o chão liso de mármore. Quando sua visão clareou, ele viu que os dois não estavam sozinhos. À sua frente havia uma mulher de seis metros de altura em um vestido verde ondulante, preso na cintura por um cinto de abalone. Sua pele era de um branco luminoso como os campos de alga. Seu cabelo balançava e reluzia como tentáculos de águas-vivas. O rosto dela era belo, mas sobrenatural: olhos brilhantes demais, traços delicados demais, sorriso frio demais, como se ela tivesse estudado o sorriso dos humanos mas não dominasse bem essa arte. Suas mãos repousavam sobre um disco de metal verde polido, de cerca de um metro e oitenta de diâmetro, apoiado sobre um tripé de bronze. Aquilo lembrou a Jason um tambor de aço que ele uma vez tinha visto um artista de rua tocar no Embarcadero, em São Francisco. A mulher girou o disco de metal como se fosse um volante. Um facho de luz verde se projetou para o alto, agitando a água e abalando as paredes do palácio antigo. Pedaços do teto abobadado se soltaram e desabaram em câmera lenta. — Você está provocando a tempestade — disse Jason. — Estou mesmo. A voz da mulher era melodiosa e ao mesmo tempo tinha uma ressonância estranha, como se ultrapassasse o alcance da audição humana. Jason sentiu uma pressão entre os olhos. Parecia que seus seios da face iam explodir. — Está bem, eu vou começar — disse Percy. — Quem é você, e o que você quer? A mulher virou-se para ele. — Ora, sou sua irmã, Perseu Jackson. E queria conhecê-lo antes de você morrer.
XXVI
JASON
JASON TINHA DUAS OPÇÕES: LUTAR ou conversar. Normalmente, ao se deparar com uma mulher assustadora de seis metros de altura e cabelo de água-viva, ele teria optado por lutar. Mas hesitou quando ela chamou Percy de irmão. — Percy, você conhece essa… moça? Percy balançou a cabeça em negativa. — Bem, você não se parece com minha mãe, por isso imagino que sejamos parentes pelo lado divino. Você é filha de Poseidon, senhorita…? A mulher pálida passou as unhas no disco de metal, produzindo um som agudo que parecia o de uma baleia sendo torturada. — Ninguém me conhece. — Ela suspirou. — Por que eu deveria supor que meu próprio irmão me reconheceria? Eu sou Cimopoleia! Percy e Jason se entreolharam. — Então… — disse Percy. — Vamos chamá-la de Leia. E você seria, hum, uma nereida? Uma deusa menor? — Menor? — Ele quer dizer que você não tem idade para beber! — disparou Jason. — Porque obviamente é muito jovem e bonita! Percy olhou rapidamente para ele: Mandou bem. A deusa voltou toda a sua atenção para Jason. Ela traçou sua silhueta na água com o dedo indicador. Ele sentiu o espírito do ar capturado se agitando a sua volta, como se estivessem lhe fazendo cócegas. — Jason Grace — disse a deusa. — Filho de Júpiter. — É. Sou amigo de Percy. Leia semicerrou os olhos. — Então é verdade… Estamos em um momento de amizades estranhas e inimigos inesperados. Os romanos nunca me cultuaram. Para eles, eu era um medo sem nome, um sinal da fúria de Netuno. Eles nunca veneraram Cimopoleia, a deusa das tempestades marinhas violentas! Ela girou o disco. Outro raio de luz verde piscou para o alto, agitando a água e provocando um estrondo nas ruínas. — Ah, sim — disse Percy. — Os romanos não são bons em navegação. Eles tinham, tipo, um barco a remo. Que eu afundei. Por falar em tempestades violentas, você está fazendo um trabalho de primeira lá em cima. — Obrigada — disse Leia.
— O problema é que nosso navio está preso nela, e meio que está sendo feito em pedaços. Tenho certeza de que não era sua intenção… — Ah, era sim. — Entendo. — Percy fez uma careta. — Bem, isso é muito chato. Imagino, então, que você não vai parar, nem que a gente peça com jeitinho? — Não — concordou a deusa. — Agora mesmo o navio está quase afundando. Estou impressionada que tenha aguentado tanto tempo. Um belo trabalho de construção. Voaram fagulhas dos braços de Jason para dentro do furacão. Ele pensou em Piper e nos outros tentando desesperadamente manter o navio inteiro. Ao descer até ali, Percy e ele os tinham deixado indefesos. Eles precisavam agir rápido. Além disso, o ar de Jason estava ficando saturado. Ele não sabia se era possível esgotar um ventus respirando-o, mas, se ele ia ter que lutar, era melhor encarar Leia antes de ficar sem oxigênio. O problema era que… combater uma deusa em seu próprio território não ia ser fácil. E mesmo se conseguissem vencê-la, não havia garantia de que a tempestade terminaria. — Então… Leia — disse ele. — O que poderíamos fazer para você mudar de ideia e liberar nosso barco? Leia deu aquele sorriso sobrenatural e assustador. — Filho de Júpiter, você sabe onde está? Jason ficou tentado a responder: embaixo d’água. — Você está falando destas ruínas? Um palácio antigo? — Isso mesmo — disse Leia. — O palácio original de Poseidon. Percy estalou os dedos. — Foi por isso que eu o reconheci. O palácio novo do nosso pai no Atlântico é parecido com este. — Não tenho como saber — disse Leia. — Nunca sou convidada para ver meus pais. Só posso andar pelas ruínas de seus antigos domínios. Eles acham minha presença… incômoda. Ela tornou a girar o disco. Toda a parede dos fundos da construção desmoronou, levantando no interior da câmara uma nuvem de lodo e algas. Felizmente, o ventus agiu como um ventilador, soprando os destroços para longe do rosto de Jason. — Você, incômoda? — perguntou Jason. — Não sou bem-vinda na corte do meu pai — disse a deusa. — Ele limita meus poderes. Essa tempestade lá em cima? Eu não me divirto assim há séculos, e isso é apenas uma pequena amostra do que posso fazer! — Uma pequena amostra já é muita coisa — disse Percy. — Enfim, e quanto à pergunta de Jason sobre você mudar de ideia…
— Meu pai chegou até a me casar para se livrar de mim — continuou Leia. — Sem minha permissão, ele me ofereceu como troféu para Briareu, um centímano… Uma recompensa por seu apoio na guerra contra Cronos, éons atrás. Percy abriu um sorriso. — Ei, eu conheço Briareu. Ele é meu amigo! Eu o libertei de Alcatraz. — É, eu sei. — Os olhos de Leia brilharam friamente. — Eu odeio meu marido. Não fiquei nada satisfeita em tê-lo de volta. — Ah. Então… Briareu está por aqui? — perguntou Percy, esperançoso. O riso de Leia lembrou o silvo dos golfinhos. — Ele está no Monte Olimpo, em Nova York, reforçando as defesas dos deuses. Não que isso vá fazer diferença. O que estou dizendo, meu caro irmão, é que Poseidon nunca me tratou com justiça. Gosto de vir aqui, ao velho palácio de meu pai, porque muito me agrada contemplar sua obra em ruínas. Um dia, em breve, seu novo palácio vai ficar parecido com este, e então todos os mares vão viver em eterna fúria. Percy olhou para Jason. — Essa é a parte em que ela nos diz que está trabalhando para Gaia. — É — concordou Jason. — E que a Mãe Terra prometeu a ela um ótimo acordo depois que os deuses forem destruídos e blá-blá-blá. — Ele se virou para Leia. — Você sabe que Gaia não mantém suas promessas, certo? Ela está apenas usando você, assim como está usando os gigantes. — Estou tocada com sua preocupação — disse Leia. — Já os deuses do Olimpo nunca me usaram, não é? Percy estendeu as mãos. — Pelo menos os olimpianos estão tentando. Depois da última guerra contra os titãs, eles passaram a dar mais atenção aos outros deuses. Muitos deles agora têm chalés no Acampamento Meio-Sangue: Hécate, Hades, Hebe, Hipnos… ah, e provavelmente alguns outros que não começam com H. Fazemos oferendas a eles em todas as refeições, estandartes legais, além de reconhecimento especial na programação de verão… — E eu recebi oferendas assim? — perguntou a deusa. — Bem… não. Não sabíamos que você existia. Mas… — Então poupe suas palavras, irmão. — O cabelo de tentáculos de água-viva de Leia se aproximava de Percy, como se estivesse ansioso para paralisar uma nova presa. — Ouvi falar muito sobre o grande Percy Jackson. Os gigantes estão muito obcecados por capturar você. Devo admitir que não entendo o porquê de tanta preocupação. — Obrigado, irmãzinha. Mas, se você vai tentar me matar, tenho que avisar que já tentaram isso antes. Enfrentei várias deusas recentemente: Nice, Akhlys,
até a própria Nix. Em comparação a elas, você não está me assustando. Além disso, você ri como um golfinho. As narinas delicadas de Leia se dilataram. Jason pegou a espada. — Ah, eu não vou matar você — disse Leia. — Minha parte no acordo foi apenas distraí-lo. Mas tem alguém aqui que quer muito matar você. Acima deles, na borda da cúpula quebrada, surgiu uma forma escura, uma figura ainda mais alta que Cimopoleia. — O filho de Netuno — ribombou uma voz grave. O gigante desceu flutuando. Nuvens de um fluido escuro e viscoso, possivelmente veneno, saíam em espiral de sua pele azul. Seu peitoral verde era moldado de forma a parecer um conjunto de bocas abertas e famintas. Ele trazia nas mãos as armas de um reciário: um tridente e uma rede com pesos. Jason nunca tinha visto aquele gigante, mas já tinha ouvido as histórias. — Polibotes — disse ele. — O anti-Poseidon. O gigante sacudiu seus dreadlocks. Uma dezena de serpentes verde-limão, com uma coroa de pele em torno da cabeça, se soltou e saiu nadando. Basiliscos. — Isso mesmo, filho de Roma — disse o gigante. — Mas, se me der licença, meu assunto mais urgente é com Percy Jackson. Eu o segui por todo o Tártaro. Agora, aqui, nas ruínas de seu pai, pretendo destruí-lo de uma vez por todas.
XXVII
JASON
JASON ODIAVA BASILISCOS. As criaturinhas desprezíveis adoravam se esconder sob os templos de Nova Roma. Na época em que Jason era centurião, sua coorte sempre ficava com a tarefa nada popular de eliminar seus ninhos. Um basilisco não parecia grande coisa — era apenas uma cobra do tamanho de um braço, com olhos amarelos e uma coroa de pele branca —, mas se movia rápido e podia matar qualquer coisa que tocasse. Jason nunca tinha enfrentado mais que dois de uma vez. Agora havia uma dúzia nadando em torno das pernas do gigante. A única coisa boa: embaixo d’água, basiliscos não conseguiriam cuspir fogo, mas isso não os tornava nem um pouco menos mortíferos. Duas das serpentes se lançaram sobre Percy. Ele as cortou ao meio. As outras dez giravam em torno dele, mas fora do alcance de sua espada. Ziguezagueavam de um lado para outro em um padrão hipnótico, à procura de uma brecha. Uma mordida, um toque, seria o suficiente. — Ei! — gritou Jason. — Não vão me dar um pouco de atenção? As cobras o ignoraram. O mesmo fez o gigante, que havia se afastado e agora assistia a tudo com um sorriso presunçoso, aparentemente satisfeito por seus animais de estimação estarem prestes a fazer a matança. — Cimopoleia — Jason fez um grande esforço para pronunciar corretamente o nome dela —, você tem que parar com isso. Ela o encarou com seus olhos brancos e reluzentes. — Por que eu faria isso? A Mãe Terra me prometeu poderes ilimitados. Você pode fazer uma oferta melhor? Uma oferta melhor… Ele percebeu uma abertura… um espaço para negociar. Mas o que ele tinha que uma deusa das tempestades poderia querer? Os basiliscos fecharam o círculo. Percy os afastou com correntes de água, mas eles apenas continuaram girando ao seu redor. — Ei, basiliscos! — gritou Jason. Nenhuma reação. Ele podia atacar, romper o círculo e ajudar, mas, mesmo juntos, ele e Percy não teriam nenhuma condição de enfrentar dez basiliscos ao mesmo tempo. Ele precisava de uma ideia melhor. Jason olhou para cima. Uma tempestade furiosa trovejava na superfície, mas eles estavam centenas de metros abaixo. Ele não ia conseguir invocar raios
estando no fundo do mar, ia? E mesmo que conseguisse, a água conduzia eletricidade um pouco bem demais. Ele poderia acabar fritando Percy. Mas Jason não conseguiu pensar em nenhuma opção melhor, então ergueu sua espada. Imediatamente a lâmina brilhou vermelha como brasa. Uma nuvem de luz amarela difusa desceu ondulante até as profundezas, como se alguém tivesse derramado neon líquido na água. A luz acertou a espada de Jason para então se dividir em dez raios diferentes, acertando os basiliscos. Os olhos dos basiliscos escureceram. Suas coroas de pele se desintegraram. Todas as dez serpentes viraram de barriga para cima e passaram a boiar na água, mortas. — Da próxima vez, olhem para mim quando eu estiver falando com vocês. O sorriso de Polibotes azedou. — Você está assim tão ansioso para morrer, romano? Percy levantou a espada e se lançou sobre o gigante, mas Polibotes moveu a mão pela água e deixou um arco de veneno negro oleoso. Percy avançou antes que Jason pudesse gritar Cara, o que você está fazendo? Ele deixou Contracorrente cair, ofegou e agarrou a garganta. O gigante arremessou sua rede com pesos, e o garoto desabou no chão, completamente preso, enquanto o veneno ia se adensando ao seu redor. — Solte-o! — A voz de Jason saiu aguda por causa do pânico. O gigante riu. — Não se preocupe, filho de Júpiter. Seu amigo vai demorar muito tempo para morrer. Depois de todo o trabalho que ele me deu, eu jamais o mataria depressa. Nuvens tóxicas se expandiram em torno do gigante, enchendo as ruínas como fumaça densa de charuto. Jason saltou para trás depressa. Não foi rápido o suficiente, mas seu ventus se revelou um filtro útil. Enquanto ele era envolvido pelo veneno, o furacão em miniatura girou mais rápido e repeliu as nuvens. Cimopoleia torceu o nariz e afastou a escuridão com um aceno, mas, fora isso, ela parecia não se afetar. Percy se contorcia dentro da rede, e seu rosto estava ficando verde. Jason correu para ajudá-lo, mas o gigante o deteve com seu tridente enorme. — Ah, não posso deixar que você acabe com minha diversão — repreendeu Polibotes. — O veneno vai matá-lo, mas primeiro vem a paralisia e horas de dor excruciante. Quero que ele tenha a experiência completa! Ele pode assistir enquanto destruo você, Jason Grace! Polibotes avançou lentamente, dando a Jason bastante tempo para contemplar a torre de três andares de armadura e músculos que seguia em sua direção. Ele se esquivou do tridente e, tomando impulso para a frente com a ajuda do ventus, enfiou a espada na perna reptiliana do gigante. Polibotes soltou um urro e cambaleou; icor dourado jorrava de seu ferimento. — Leia! — gritou Jason. — É isso mesmo o que você quer?
A deusa das tempestades parecia muito entediada, girando preguiçosamente seu disco de metal. — Poder ilimitado? Por que não? — Mas vai ser divertido? — perguntou Jason. — Então você destrói nosso navio. Acaba com toda a faixa litorânea do mundo. Depois que Gaia destruir a civilização humana, quem vai restar para temê-la? Você vai continuar desconhecida. Polibotes se virou. — Você é uma desgraça, filho de Júpiter. Vou destruí-lo! Jason tentou invocar mais raios. Nada aconteceu. Se um dia ele encontrasse seu pai, teria que solicitar um aumento em sua cota diária de raios. Ele conseguiu desviar das pontas do tridente novamente, mas o gigante usou a haste para acertá-lo no peito. Jason cambaleou para trás, espantado e dolorido. Polibotes avançou para matá-lo. Quando o tridente ia perfurá-lo, o ventus de Jason agiu por conta própria: girou em espiral de lado e o lançou do outro lado do pátio, a dez metros de distância. Obrigado, parceiro, pensou Jason. Devo a você uns purificadores de ar. Ele não soube dizer se o ventus gostou daquela ideia ou não. — Na verdade, Jason Grace — disse Leia, examinando as unhas —, agora que você falou nisso, eu gosto mesmo de ser temida por mortais. Não sou temida o suficiente. — Eu posso ajudar você com isso! Jason desviou de outro golpe do tridente. Ele transformou seu gládio em uma lança e espetou Polibotes no olho. — ARGH! O gigante cambaleou. Percy se contorcia na rede, mas seus movimentos estavam ficando mais lentos. Jason precisava se apressar. Tinha que levar Percy para a enfermaria do navio, e se a tempestade continuasse com aquela força acima deles, não haveria nenhuma enfermaria para onde levá-lo. Ele correu para o lado de Leia. — Você sabe que os deuses dependem dos mortais. Quanto mais cultuamos vocês, mais poderosos vocês ficam. — Como posso saber? Eu nunca fui cultuada! Ela ignorou Polibotes, que agora corria desabalado em torno dela, tentando arrancar Jason de seu redemoinho de vento. Jason fazia o possível para manter a deusa entre eles. — Eu posso mudar isso — prometeu ele. — Eu mesmo vou providenciar um santuário para você na Colina dos Templos em Nova Roma. O seu primeiro
santuário romano! Também vou erguer um no Acampamento Meio-Sangue, na costa do Estreito de Long Island. Imagine, ser cultuada… — E temida. — … e temida tanto por gregos quanto por romanos. Você vai ser famosa! — PARE DE FALAR! Polibotes golpeou com o tridente como se fosse um taco de beisebol. Jason se agachou; Leia, não. O gigante a acertou com tanta força nas costelas que fios de seu cabelo de água-viva se soltaram e saíram boiando pela água envenenada. Os olhos de Polibotes se arregalaram. — Desculpe, Cimopoleia. Você não devia ter ficado no caminho! — NO CAMINHO? — A deusa se aprumou. — Eu estou no caminho? — Você o ouviu — disse Jason. — Você não passa de um instrumento para os gigantes. Eles vão abandoná-la assim que conseguirem destruir os mortais. Aí, não haverá mais semideuses, nem templos, nem medo, nem respeito. — MENTIRAS! — Polibotes tentou acertá-lo, mas Jason se escondeu atrás do vestido da deusa. — Cimopoleia, quando Gaia reinar, você vai poder comandar tempestades com toda a fúria que quiser! — Haverá mortais para aterrorizar? — perguntou Leia. — Bem… não. — Navios para destruir? Semideuses para se curvarem de medo? — Hum… — Me ajude — pediu Jason. — Juntos, uma deusa e um semideus podem matar um gigante. — Não! — De repente, Polibotes pareceu ficar muito nervoso. — Não, isso é uma péssima ideia. Gaia ficará muito aborrecida! — Se Gaia despertar — disse Jason. — A poderosa Cimopoleia pode nos ajudar a impedir que isso aconteça. Aí, todos os semideuses vão honrá-la muito. — Eles vão ficar aterrorizados? — Demais! Além de botar seu nome na programação de verão. Um estandarte personalizado. Um chalé no Acampamento Meio-Sangue. Dois santuários. E ainda incluo um action figure seu. — Não! — protestou Polibotes. — Direitos comerciais, não! Cimopoleia virou-se para o gigante. — Infelizmente, esse acordo é melhor do que o oferecido por Gaia. — Isso é inaceitável! — berrou o gigante. — Você não pode confiar nesse romano desprezível! — Se eu não cumprir minha promessa — disse Jason —, Leia pode me matar quando quiser. Mas com Gaia ela não tem garantia nenhuma. — Ótimo argumento — concordou Leia. Enquanto Polibotes se esforçava para encontrar uma resposta, Jason avançou e enfiou sua lança na barriga do gigante.
Leia tirou seu disco de bronze do pedestal. — Diga adeus, Polibotes. Ela arremessou o disco no pescoço do gigante. A borda do disco, por acaso, era afiada. Polibotes achou difícil dizer adeus, já que não tinha mais cabeça.
XXVIII
JASON
— VENENO É UM VÍCIO FEIO. — A um gesto de Cimopoleia, as nuvens turvas se dissiparam. — Veneno de segunda mão pode matar uma pessoa, sabia? Jason também não gostava de veneno de primeira, mas resolveu não mencionar isso. Ele cortou a rede para libertar Percy e o apoiou contra a parede do templo, envolvendo-o no casulo de ar do ventus. O oxigênio estava ficando rarefeito, mas Jason tinha a esperança de que isso ajudasse a expelir o veneno dos pulmões dele. Pareceu funcionar: Percy se dobrou para a frente e começou a ter ânsias de vômito. — Ugh, obrigado. Jason suspirou de alívio. — Você me deixou preocupado, cara. Percy piscou repetidas vezes, os olhos ainda fora de foco. — Ainda estou um pouquinho confuso. Mas você… você prometeu fazer um action figure da Cimopoleia? A deusa assomou sobre eles. — Ele prometeu, sim. E eu espero que cumpra. — Eu vou cumprir — disse Jason. — Quando ganharmos esta guerra, vou garantir que todos os deuses sejam reconhecidos. — Ele pôs a mão no ombro de Percy. — Meu amigo aqui começou esse processo no verão passado. Ele fez os olimpianos prometerem dar mais atenção a vocês. Leia fez uma expressão de escárnio. — Sabemos quanto vale a promessa de um olimpiano. — E é por isso que eu vou garantir que nenhum dos deuses seja esquecido, nos dois acampamentos. Talvez eles ganhem templos, chalés ou pelo menos santuários… — Ou cards colecionáveis — sugeriu Leia. — Claro. — Jason sorriu. — Vou servir de ligação entre os dois acampamentos até que isso esteja resolvido. Percy soltou um assovio. — Você está falando de dezenas de deuses. — Centenas — corrigiu Leia. — Então, bem… — disse Jason. — Pode demorar um pouco. Mas você vai ser a primeira da lista, Cimopoleia… a deusa das tempestades que decapitou um gigante e salvou nossa missão.
Leia acariciou seu cabelo de água-viva. — Está bem assim. — Ela olhou para Percy. — Apesar de eu sentir muito por não vê-lo morrer. — Ouço muito esse comentário — disse Percy. — Agora, e em relação a nosso navio…? — Ainda está inteiro — confirmou a deusa. — Não em grande forma, mas deve conseguir chegar a Delos. — Obrigado — disse Jason. — É — falou Percy. — E na verdade Briareu, seu marido, é um sujeito legal. Você devia dar uma chance a ele. A deusa apanhou seu disco de bronze. — Não abuse da sorte, irmão. Briareu tem cinquenta caras, e todas são feias. Tem cem mãos, e mesmo assim não faz nada direito em casa. — Tudo bem — cedeu Percy. — Não vou abusar da sorte. Leia virou o disco, revelando correias do outro lado, como em um escudo. Ela o jogou sobre o ombro, estilo Capitão América. — Vou acompanhar seu progresso. Polibotes não estava se vangloriando quando alertou que seu sangue vai despertar a Mãe Terra. Os gigantes estão muito confiantes nisso. — Meu sangue, especificamente? — perguntou Percy. O sorriso de Leia ficou ainda mais assustador que o normal. — Eu não sou um oráculo, mas ouvi o que o vidente Fineu contou a você em Portland. Há um sacrifício pela frente que talvez você não tenha a coragem de fazê-lo, e isso vai lhe custar o mundo. Você ainda precisa enfrentar seu defeito fatal, meu irmão. Olhe ao redor. Toda a obra de deuses e homens um dia acaba em ruínas. Não seria mais fácil fugir para as profundezas com aquela sua namorada? Percy se apoiou no ombro de Jason e se levantou. — Juno me ofereceu uma escolha como essa quando eu encontrei o Acampamento Júpiter. Vou dar a você a mesma resposta: eu não fujo quando meus amigos precisam de mim. Leia levantou as mãos para o ar. — E esse é o seu defeito, não conseguir se afastar. Vou me retirar para as profundezas e assistir ao desenrolar desta batalha. As forças do oceano também estão em guerra, sabia? Sua amiga Hazel Levesque causou uma impressão e tanto nas sereias e nos tritões, e também em seus mentores, Afros e Bitos. — Os sujeitos homem-peixe — murmurou Percy. — Eles não quiseram me conhecer. — Agora mesmo eles estão lutando uma guerra por sua causa — disse Leia. — Tentando manter os aliados de Gaia longe de Long Island. Se vão sobreviver ou não… isso ainda não sabemos. E em relação a você, Jason Grace, seu
caminho não será mais fácil do que o dele. Você será enganado. Vai sofrer uma perda insuportável. Jason se segurou para não soltar raios. Não sabia se o coração de Percy aguentaria o choque. — Leia, você disse que não é um oráculo, mas deveria trabalhar com isso. Você é com certeza deprimente o bastante. A deusa soltou sua risada de golfinho. — Você me diverte, filho de Júpiter. Espero que viva para derrotar Gaia. — Obrigado — disse ele. — Alguma dica para derrotar uma deusa que não pode ser derrotada? Cimopoleia inclinou a cabeça. — Ah, mas você sabe a resposta. Você é um filho do céu, tem tempestades no sangue. Um deus primordial já foi derrotado antes. Você sabe de quem estou falando. As entranhas de Jason começaram a se revirar mais rápido que o ventus. — Urano, o primeiro deus do céu. Mas isso significa… — Sim. — Os traços sobrenaturais de Leia assumiram uma expressão que quase lembrava simpatia. — Vamos torcer para que não chegue a isso. Se Gaia realmente despertar… bem, sua tarefa não vai ser fácil. Mas, se vocês vencerem, lembre-se de sua promessa, pontifex. Jason levou um momento para processar as palavras dela. — Eu não sou um sacerdote. — Não? — Os olhos de Leia brilharam. — Mudando de assunto: seu criado ventus diz que deseja ser libertado. Como ele o ajudou, espera que você o solte quando chegarem à superfície. Ele promete não incomodá-lo uma terceira vez. — Uma terceira vez? Leia fez uma pausa, como se estivesse escutando. — Ele diz que se juntou à tempestade lá em cima para se vingar, mas que, se soubesse quanto você ficou forte desde o Grand Canyon, nunca teria se aproximado do seu navio. — O Grand Canyon… — Jason se lembrou do dia na passarela Skywalk, quando um de seus colegas de turma idiotas se revelou ser um espírito do vento. — Dylan? Você está de brincadeira comigo? Eu estou respirando o Dylan? — Está — disse Leia. — Parece que esse é o nome dele. Jason sentiu um calafrio. — Vou libertá-lo assim que chegarmos à superfície, sem problemas. — Adeus, então — disse a deusa. — E que as Parcas sorriam para vocês… isto é, se elas sobreviverem.
* * *
Eles precisavam sair dali. Jason estava ficando sem ar (ar de Dylan… eca), e todos no Argo II deviam estar preocupados com eles. Mas Percy ainda estava zonzo por causa do veneno, então os dois se sentaram na borda da cúpula dourada em ruínas por alguns minutos para que ele recuperasse o fôlego… ou a água, ou o que quer que um filho de Poseidon recuperasse no fundo do oceano. — Obrigado, cara — disse Percy. — Você salvou minha vida. — Ei, é isso que os amigos fazem. — Mas, hum, o cara de Júpiter salvar o de Poseidon no fundo do oceano… será que podemos manter esse detalhe entre nós? Senão eu nunca vou parar de ouvir falar nisso. Jason sorriu. — Fechado. Como está se sentindo? — Melhor. Eu… eu tenho que admitir que quando estava sufocando com o veneno, pensei em Akhlys, a deusa da miséria no Tártaro. Eu quase a destruí com veneno. — Ele sentiu um calafrio. — Eu me senti bem, mas de um jeito ruim. Se Annabeth não tivesse me impedido… — Mas ela impediu — disse Jason. — Isso é outra coisa que os amigos têm que fazer uns pelos outros. — É… O problema é que, enquanto eu estava sufocando, não parava de pensar: isso é o troco por Akhlys. As Parcas estão me deixando morrer da mesma maneira que eu tentei matar aquela deusa. E… honestamente, parte de mim sentiu que eu merecia. Por isso não tentei controlar o veneno do gigante e afastá-lo de mim. Isso deve parecer loucura. Jason se lembrou de Ítaca, quando entrou em desespero por causa da visita do espírito de sua mãe. — Não, acho que eu entendo. Percy observou seu rosto. Quando Jason parou de falar, Percy mudou de assunto: — O que Leia quis dizer sobre derrotar Gaia? Você mencionou Urano… Jason olhou para o lodo que se acumulava em torno das colunas do velho palácio em ruínas. — O deus do céu… os titãs o derrotaram chamando-o à terra. Eles o tiraram de seu território, o emboscaram, o prenderam e o cortaram em pedaços. Parecia que o enjoo de Percy estava voltando. — Como faremos isso com Gaia? Jason lembrou-se de um verso da profecia: Em tempestade ou fogo, o mundo terá acabado. Ele agora tinha uma ideia do que aquilo significava… mas se estivesse certo, Percy não poderia ajudar. Na verdade, ele poderia, sem querer, tornar as coisas ainda piores.
Eu não fujo quando meus amigos precisam de mim, dissera Percy. E esse é o seu defeito, alertara Leia. Não conseguir se afastar. Era dia vinte e sete de julho. Em cinco dias, Jason ia descobrir se tinha razão. — Vamos a Delos primeiro — disse ele. — Apolo e Ártemis podem ter algum conselho para nós. Percy assentiu, apesar de não parecer satisfeito com essa resposta. — Por que Leia chamou você de Pontiac? O riso de Jason literalmente limpou o ar. — Pontifex. Significa sacerdote. — Ah. — Percy franziu a testa. — Ainda parece uma marca de carro. O novo Pontifex XLS. Você vai ter que usar um colarinho branco e abençoar as pessoas? — Não. Os romanos tinham um pontifex maximus, que supervisionava todos os sacrifícios apropriados e coisas assim, para garantir que nenhum dos deuses ficasse com raiva. O que eu me ofereci para fazer… acho que parece o trabalho de um pontifex. — Então você estava falando sério? — perguntou Percy. — Vai mesmo tentar construir templos para todos os deuses menores? — Vou. Na verdade, nunca havia pensado nisso antes, mas gosto da ideia de ser a ligação entre os acampamentos; supondo, você sabe, que estejamos vivos depois da semana que vem e que os dois acampamentos ainda existam. O que você fez ano passado no Olimpo, recusando a imortalidade e em vez disso pedindo aos deuses que fossem mais legais… aquilo foi muito nobre, cara. Percy resmungou. — Acredite, às vezes eu me arrependo dessa escolha. Ah, você quer recusar nossa oferta? Tudo bem! ZAP! Perca a memória! Vá para o Tártaro! — Você fez o que um herói deveria fazer. Eu o admiro por isso. O mínimo que posso fazer, se sobrevivermos, é dar continuidade a esse trabalho, garantir que todos os deuses tenham algum reconhecimento. Se os deuses se entenderem melhor, talvez possamos impedir que mais guerras aconteçam. Quem sabe? — Isso com toda a certeza seria bom — concordou Percy. — Sabe, você parece diferente… um diferente bom. Seu ferimento ainda dói? — Meu ferimento… Jason ficara tão ocupado com o gigante e a deusa que tinha se esquecido do ferimento em sua barriga, apesar de apenas uma hora antes estar morrendo na enfermaria do navio. Ele levantou a camisa e tirou os curativos. Nenhuma fumaça. Nenhum sangramento. Nenhuma cicatriz. Nenhuma dor. — Meu ferimento… desapareceu — disse ele, surpreso. — Eu me sinto completamente normal. Mas o que aconteceu?
— Você o derrotou, cara! — Percy riu. — Você encontrou sua própria cura. Jason refletiu sobre isso. Devia ser verdade. Talvez deixar a dor de lado para ajudar os amigos fosse o que faltava. Ou talvez sua decisão de cultuar os deuses nos dois acampamentos o tivesse curado, mostrando a ele um caminho nítido para o futuro. Romano ou grego… a diferença não importava. Como ele dissera aos fantasmas em Ítaca, sua família só havia aumentado. Agora Jason encontrara seu lugar nela. Ele ia manter sua promessa à deusa das tempestades. E, graças a isso, a espada de Michael Varus não significava nada. Morra como um romano. Não. Se ele tivesse que morrer, morreria como filho de Júpiter, um filho dos deuses — o sangue do Olimpo. Mas ele não iria se deixar ser sacrificado… pelo menos, não sem lutar. — Vamos. — Jason deu um tapinha nas costas do amigo. — Vamos ver como está nosso barco.
XXIX
NICO
SE TIVESSE QUE ESCOLHER ENTRE a morte e o mercado Zippy Mart de Buford, Nico ficaria indeciso. Na Terra dos Mortos ele pelo menos sabia como transitar. E a comida por lá era mais fresca. — Ainda não entendi — resmungou o treinador Hedge, andando pelo corredor principal do mercado. — Eles batizaram uma cidade inteira com o nome da mesa do Leo? — Acho que a cidade veio primeiro, treinador — opinou Nico. — Ah. — O treinador pegou da prateleira uma caixa de donuts se desfazendo em farelos. — Deve ser. Estes donuts parecem ter uns cem anos, no mínimo. Que saudade daquelas tais farturas de Portugal. Nico sentia dor nos braços só de pensar em Portugal. As marcas das garras de lobisomem ainda riscavam seu bíceps, inchadas e vermelhas. A atendente da loja lhe perguntou se ele tinha entrado em uma briga com um tigre. Compraram um kit de primeiros socorros, um bloco de papel (para o treinador Hedge escrever mais mensagens em aviõezinhos de papel para a esposa), alguns biscoitos industrializados e refrigerante (já que a mesa da tenda mágica de Reyna só fornecia alimentos saudáveis e água fresca) e alguns itens de camping para o treinador Hedge montar aquelas suas armadilhas inúteis, mas incrivelmente complicadas. Nico tinha esperança de encontrar roupas novas para comprar. Haviam deixado San Juan dois dias antes, e ele estava cansado de andar por aí com a camisa florida da ISLA DEL ENCANTORICO, ainda mais com o treinador Hedge vestindo uma igual. Infelizmente, porém, o Zippy Mart só tinha camisetas com a bandeira da Confederação americana ou frases bregas como KEEP CALM E SIGA O CAIPIRA. Nico achou melhor continuar com as araras e palmeiras. Os três voltaram para o acampamento por uma estrada de pista dupla sob o sol abrasador. Aquela parte da Carolina do Sul parecia formada principalmente por campos cobertos de mato pontuados por postes e árvores cobertas de trepadeiras kudzu. O centro da cidade era uma coleção de barracões de metal portáteis (seis ou sete, provavelmente o mesmo número de habitantes de Buford inteira). Nico não era muito fã do sol, mas dessa vez o calor foi bem-vindo, ajudandoo a se sentir mais substancial, ancorado no mundo mortal. A cada salto ficava mais difícil voltar das sombras. Mesmo em plena luz do dia, sua mão atravessava
objetos sólidos. Seu cinto e sua espada não paravam de cair no chão, sem motivo aparente. Uma vez, quando não estava prestando muita atenção ao caminho, tinha chegado a atravessar uma árvore. Ele se lembrou do que Jason lhe dissera no palácio de Noto: Talvez seja hora de você parar de se esconder nas sombras. Bem que eu queria, pensou ele. Pela primeira vez na vida, Nico tinha começado a temer a escuridão, porque podia se fundir a ela permanentemente. Nico e Hedge não tiveram dificuldades em encontrar o caminho de volta para o acampamento: a Atena Partenos era o ponto de referência mais alto em um raio de quilômetros. Sob sua nova rede de camuflagem, a estátua reluzia com um brilho prateado, como um fantasma de doze metros exageradamente ofuscante. Pelo visto a Atena Partenos queria que eles visitassem um lugar com caráter educativo, pois tinha aterrissado bem ao lado de um marco histórico em que se lia MASSACRE DE BUFORD, em um acostamento de cascalho no cruzamento do Nada com o Lugar Nenhum. A barraca de Reyna estava armada em um bosque a cerca de trinta metros da estrada. Havia um monumento retangular formado por centenas de pedras empilhadas na forma de um túmulo enorme. A lápide era um obelisco gigante, e espalhado em volta havia coroas esmaecidas e buquês de flores de plástico pisoteadas, o que tornava o lugar ainda mais triste. Aurum e Argentum estavam na mata brincando de correr atrás de uma das bolas de borracha do treinador. Desde que tinham sido consertados pelas amazonas, os dois viviam alegres e cheios de energia — ao contrário de sua dona. Reyna estava sentada de pernas cruzadas na entrada da barraca, olhando fixamente para o obelisco funerário. Mal tinha aberto a boca desde a fuga de San Juan, dois dias antes. Nesses dois dias, eles não tinham encontrado monstros, o que preocupava Nico. Eles não sabiam o que havia acontecido com Hylla nem com Thalia, nem com o gigante Órion. Nico não gostava das Caçadoras de Ártemis. A tragédia as acompanhava aonde fossem, tão fielmente quanto seus cães e aves de caça. A irmã de Nico, Bianca, morrera depois de se juntar às Caçadoras. Depois disso, Thalia Grace se tornara a líder, e ela começara a recrutar ainda mais garotas para sua causa. Isso o irritava, pois era como se a morte de Bianca pudesse ser esquecida. Como se ela pudesse ser substituída. No Barrachina, ao acordar e encontrar o bilhete das Caçadoras informando sobre o sequestro de Reyna, Nico havia destruído o pátio do restaurante, de tanta raiva. Não queria que as Caçadoras levassem embora mais uma pessoa importante na vida dele. Felizmente, ele havia resgatado Reyna, mas não gostava de vê-la assim cabisbaixa e taciturna. Toda vez que tentava perguntar a ela sobre o incidente na
rua San José — sobre os fantasmas na sacada, todos olhando para ela, sussurrando acusações —, Reyna se fechava e o afastava. Nico sabia algumas coisas sobre fantasmas. Deixá-los entrar em sua cabeça era perigoso. Ele queria ajudar Reyna, mas como ele próprio seguia a estratégia de lidar sozinho com os problemas, rejeitando qualquer um que tentasse se aproximar, não podia criticá-la por agir da mesma forma. Reyna ergueu os olhos quando os dois se aproximaram. — Eu descobri. — Que lugar histórico é este? — perguntou Hedge. — Que bom, porque eu já estava ficando maluco. — A Batalha de Waxhaws — disse ela. — Ah, sim… — O treinador assentiu com um ar grave. — Foi um massacre extremamente cruel. Nico tentou detectar a presença de espíritos inquietos na área, mas não sentiu nada. Algo incomum para um lugar que tinha servido de campo de batalha. — Tem certeza? — Em 1780 — explicou Reyna. — Na Guerra de Independência dos Estados Unidos. A maioria dos líderes coloniais eram semideuses gregos. Os generais britânicos eram semideuses romanos. — Porque na época a Inglaterra era uma espécie de Roma — arriscou Nico. — Um império em seu auge. Reyna pegou um buquê amassado do chão. — Acho que sei por que viemos parar aqui. É minha culpa. — Ah, que isso… — brincou Hedge. — O Zippy Mart de Buford não é culpa de ninguém. Essas coisas acontecem. Reyna mexia distraidamente nas flores de plástico desbotadas. — Durante a Guerra de Independência, quatrocentos americanos foram surpreendidos aqui pela cavalaria britânica. As tropas coloniais tentaram se render, mas os britânicos queriam sangue. Massacraram os americanos mesmo depois que eles já tinham baixado as armas. Só uns poucos sobreviveram. Nico talvez devesse ficar chocado. Mas depois de tantas viagens pelo Mundo Inferior, ouvindo tantas histórias de maldade e mortes, um massacre durante uma guerra não parecia uma grande notícia. — Reyna, por que isso seria culpa sua? — O general britânico era Banastre Tarleton. — Já ouvi falar dele — disse Hedge com uma nota de repulsa na voz. — Sujeito maluco. Eles o chamavam de Benny Açougueiro. — Isso… — Reyna inspirou com força, trêmula. — Ele era filho de Belona. — Ah — disse Nico. Ele olhou para o túmulo enorme. Ainda o incomodava o fato de não conseguir detectar nenhum espírito. Centenas de soldados massacrados naquele lugar…
aquilo devia transmitir algum tipo de vibração de morte. Ele se sentou ao lado de Reyna e resolveu arriscar: — Então você acha que fomos atraídos até aqui porque você tem algum tipo de ligação com os fantasmas. Como o que aconteceu em San Juan? Ela permaneceu em silêncio por alguns segundos, girando o buquê de plástico na mão. — Não quero falar sobre San Juan. — Pois deveria. — Nico se sentiu um estranho no próprio corpo. Por que ele estava estimulando Reyna a se abrir? Não era do seu estilo nem da sua conta. Mas mesmo assim ele continuou: — O principal a se ter em mente quando pensamos em fantasmas é que a maioria deles perdeu a voz. Em Asfódelos, milhões de espíritos perambulam sem rumo, tentando se lembrar de quem eram. Sabe por que eles acabam assim? Porque nunca lutaram pelo que acreditavam em vida. Nunca expressaram suas opiniões, por isso nunca foram ouvidos. Nossa voz é nossa identidade. Se não a usamos… — Ele deu de ombros. — Já estamos a meio caminho de Asfódelos. Reyna franziu a testa. — Era para ser uma conversa animadora? O treinador Hedge limpou a garganta. — Isso está ficando psicológico demais para mim. Vou escrever umas cartas. E, pegando seu bloco, ele seguiu para o bosque. Nos dois últimos dias ou mais, ele andava escrevendo bastante; e, aparentemente, não só para Mellie. O treinador não revelava detalhes, mas tinha dado a entender que estava recorrendo a seus contatos para obter ajuda na missão. Pelo que Nico sabia, ele podia estar escrevendo até para Jackie Chan. Nico abriu a sacola de compras. Pegou um pacote de biscoitos recheados e ofereceu um a Reyna. Ela torceu o nariz. — Esse biscoito está com cara de que passou do prazo de validade no tempo dos dinossauros. — Pode ser. Mas eu ando com um apetite enorme. Estou achando qualquer comida gostosa… Menos sementes de romã, que eu já não aguento mais. Reyna pegou um biscoito e deu uma mordida. — Os fantasmas de San Juan… eram meus ancestrais. Nico esperou. A brisa agitou a rede de camuflagem que cobria a Atena Partenos. — A família Ramírez-Arellano é muito antiga — continuou Reyna. — Não sei a história toda. Meus ancestrais viviam na Espanha na época em que era uma província romana. Meu tatara-alguma-coisa-avô foi um colonizador que veio para Porto Rico com Ponce de León.
— Um dos fantasmas que vi na varanda usava uma armadura de colonizador — lembrou Nico. — Era ele. — Então… sua família inteira descende de Belona? Eu achava que você e Hylla fossem filhas dela, não herdeiras. Nico percebeu tarde demais que não deveria ter mencionado Hylla. Uma expressão de desespero cruzou o rosto de Reyna, mas ela logo conseguiu escondê-la. — Nós duas somos filhas de Belona. Somos as primeiras verdadeiras filhas de Belona na família Ramírez-Arellano. Mas Belona sempre favoreceu nosso clã. Milênios atrás, ela decretou que teríamos papéis fundamentais em muitas batalhas. — Como você está tendo agora — disse Nico. Reyna limpou alguns farelos do queixo. — Talvez. Alguns de meus ancestrais foram heróis. Outros, vilões. Você viu o fantasma com os tiros no peito? Nico assentiu. — Um pirata? — O mais famoso na história de Porto Rico. Ele era conhecido como o pirata Cofresí, mas seu sobrenome era Ramírez-Arellano. Para construir nossa casa, a villa da família, foi usada parte do tesouro que ele enterrou. Por um instante, Nico sentiu como se fosse novamente criança. Quase exclamou: Que máximo! Antes mesmo de se interessar por Mitomagia, Nico já era obcecado por piratas. Isso provavelmente havia contribuído para que ele ficasse tão fascinado por Percy, que era filho do deus do mar. — E os outros fantasmas? — perguntou ele. Reyna deu mais uma mordida no biscoito. — O cara de uniforme da Marinha… ele é meu tio-bisavô da Segunda Guerra Mundial, o primeiro latino a se tornar comandante de um submarino. Você entende o quadro geral: vários guerreiros; Belona foi nossa deusa padroeira por gerações. — Mas ela nunca teve filhos semideuses na família… não antes de vocês. — A deusa… Belona se apaixonou por meu pai, Julian, que era soldado no Iraque. Ele era… — A voz de Reyna vacilou. Ela jogou fora o buquê de flores de plástico. — Eu não consigo. Não consigo falar sobre ele. Uma nuvem passou no céu, cobrindo o bosque de sombras. Nico não queria forçá-la. Que direito ele tinha? Ele deixou de lado os biscoitos… e percebeu que as pontas de seus dedos estavam virando fumaça. A luz do sol retornou. Suas mãos voltaram a ser sólidas, mas Nico sentiu uma agulhada nos nervos. Como se tivesse sido puxado no exato momento em que ia cair da beira de um terraço muito alto.
Nossa voz é nossa identidade, ele tinha dito a Reyna. Se não a usamos, já estamos a meio caminho de Asfódelos. Ele odiava quando seu próprio conselho se aplicava a si mesmo. — Meu pai certa vez me deu um presente — disse Nico. — Um zumbi. Reyna o encarou. — O quê? — Jules-Albert. Ele é francês. — Um… um zumbi francês? — Hades não é o melhor dos pais, mas às vezes ele tem esses momentos em que cisma de querer se aproximar de mim. Acho que a intenção era usar o zumbi como uma oferenda de paz. Ele disse que Jules-Albert podia ser meu chofer. — Um zumbi francês como chofer — comentou Reyna, o canto da boca se retorcendo em ironia. Nico se deu conta de como aquilo soava ridículo. Ele nunca havia contado a ninguém sobre Jules-Albert, nem mesmo a Hazel. Mas mesmo assim ele continuou: — Hades achava que eu deveria, você sabe, tentar agir como um adolescente moderno. Fazer amigos. Conhecer o século XXI. Ele entendia vagamente que pais mortais levam os filhos de carro a muitos lugares. Como não podia fazer isso, a solução que encontrou foi me arranjar um zumbi. — Para levar você ao shopping. Ou a uma lanchonete drive-thru. — Acho que sim. — Nico sentia que seus nervos começavam a se acalmar. — Porque não há nada que ajude você a fazer amigos mais rápido que um cadáver em decomposição com sotaque francês. Reyna riu. — Desculpe… eu não deveria estar rindo disso. — Tudo bem. A questão é que… eu também não gosto de falar sobre o meu pai. Mas às vezes — ao dizer isso, ele a olhava nos olhos — é preciso. Reyna ficou séria. — Não conheci meu pai em seus melhores dias. Hylla disse que ele era mais carinhoso quando ela era muito pequena, antes de eu nascer. Ele era um bom soldado… corajoso, disciplinado, sabia manter a cabeça fria durante as batalhas. Era bonito e podia ser muito charmoso. Belona o abençoou, como fez com tantos de meus ancestrais, mas isso não era suficiente para meu pai. Ele queria se casar com ela. No meio das árvores, o treinador murmurava coisas para si mesmo enquanto escrevia. Três aviõezinhos de papel já subiam em espiral para o céu, levados pela brisa para só os deuses sabiam onde. — Meu pai se dedicou completamente a Belona — prosseguiu Reyna. — Uma coisa é respeitar o poder da guerra. Outra é se apaixonar por isso. Não sei
como ele conseguiu, mas conquistou o coração da deusa. Minha irmã nasceu pouco antes de ele ir para o Iraque para seu último período em serviço. Ele se reformou com honras e voltou para casa como um herói. Se… se tivesse conseguido se adaptar à vida civil, acho que teria ficado tudo bem. — Mas ele não conseguiu — concluiu Nico. — Não. Pouco depois de voltar, ele teve um último encontro com Belona… foi nessa… hã… ocasião que eu fui concebida. Belona deu a ele um vislumbre do futuro. Explicou por que nossa família era tão importante para ela. Disse que o legado de Roma nunca se extinguiria enquanto houvesse alguém de nossa linhagem para defender nossa terra natal. Isso tudo… Acho que a intenção dela era oferecer consolo, mas meu pai ficou obcecado. — Muitas vezes é difícil superar a guerra. Ao dizer isso, Nico estava se lembrando de Pietro, um vizinho seu na época em que morava na Itália, quando criança. Pietro tinha voltado inteiro da campanha africana de Mussolini, mas, depois de bombardear civis etíopes com gás de mostarda, sua mente nunca mais fora a mesma. Apesar do calor, Reyna puxou seu manto para se cobrir. — Parte do problema foi o estresse pós-traumático. Ele não conseguia parar de pensar na guerra. Depois, foi a dor constante que ele sentia por conta de uma bomba que tinha explodido na beira de uma estrada e deixado estilhaços no ombro e no peito do meu pai. Mas era mais que isso. Com o passar dos anos, enquanto eu crescia, ele… ele mudou. Nico não disse nada. Nunca ninguém havia conversado com ele assim tão abertamente, à exceção, talvez, de Hazel. Ele sentiu como se estivesse vendo um bando de aves pousar em um campo: um movimento mais brusco poderia assustá-las. — Ele ficou paranoico — continuou Reyna. — Achou que as palavras de Belona eram um alerta de que nossa família seria exterminada e que o legado de Roma seria extinto. Via inimigos em toda a parte. Colecionava armas. Transformou nossa casa em uma fortaleza. À noite, trancava a mim e a Hylla nos nossos quartos. Se fugíssemos, ele gritava, quebrava móveis… Bem, aterrorizava nossa vida. Às vezes chegava a pensar que nós éramos os inimigos. Ele se convenceu de que o estávamos espionando, tentando sabotá-lo. Foi quando os fantasmas começaram a aparecer. Acho que eles sempre estiveram lá, mas, com a agitação do meu pai, começaram a se manifestar. Os fantasmas sussurravam coisas ruins no ouvido dele, alimentando suas suspeitas. Um dia, por fim… não sei dizer exatamente quando… percebi que ele tinha deixado de ser meu pai. Tinha se transformado em um dos fantasmas. Nico sentiu um bloco de gelo se formar em seu peito. — Um quadro de mania — concluiu ele. — Já vi isso acontecer. Um humano que vai se degenerando até que não é mais humano. Só restam suas piores
qualidades. Sua loucura… Pela expressão de Reyna, estava claro que a explicação de Nico não ajudava em nada. — O que quer que fosse — disse Reyna —, ficou impossível continuar morando com ele. Hylla e eu fugíamos de casa sempre que podíamos, mas acabávamos… voltando… e enfrentando a raiva dele. Não sabíamos mais o que fazer. Ele era a única família que tínhamos. Na última vez que voltamos, ele estava tão furioso que literalmente brilhava. Não conseguia mais tocar as coisas fisicamente, mas conseguia movê-las… como um poltergeist, algo assim. Ele arrancou as lajotas do piso. Rasgou o sofá. E no fim arremessou uma cadeira que acertou Hylla. Minha irmã desabou no chão. Ela só ficou inconsciente, mas achei que tivesse morrido. Hylla tinha passado tantos anos me protegendo… Eu perdi o controle naquele momento. Peguei a arma mais próxima que encontrei: uma herança de família, o sabre do pirata Cofresí. Eu… eu não sabia que era feito de ouro imperial. Corri na direção do espírito do meu pai e… — Você o vaporizou — completou Nico. Reyna tinha os olhos marejados. — Eu matei meu próprio pai. — Não, Reyna, não. Aquele não era seu pai. Era um fantasma. Pior ainda: uma mania. Você estava protegendo sua irmã. Ela girou o anel de prata no dedo. — Você não entende. Patricídio é o pior crime que um romano pode cometer. É imperdoável. — Você não matou seu pai. Ele já estava morto — insistiu Nico. — Você derrotou um fantasma! — Não faz diferença! — Reyna começou a chorar. — Se as pessoas descobrirem isso no Acampamento Júpiter… — Você será executada — disse uma terceira voz. Na margem do bosque havia um legionário romano de armadura completa, empunhando um pilum. Cabelos castanhos fartos caíam sobre seus olhos. O nariz obviamente tinha sido quebrado pelo menos uma vez, o que tornava seu sorriso ainda mais sinistro. — Obrigado por sua confissão, ex-pretora. Você facilitou muito o meu trabalho.
XXX
NICO
O TREINADOR HEDGE ESCOLHEU AQUELE exato momento para surgir de repente na clareira agitando um aviãozinho de papel e gritando: — Boas notícias, pessoal! Ele congelou quando viu o romano. — Ah… deixa pra lá. Então rapidamente amassou o aviãozinho e o comeu. Reyna e Nico se levantaram. Aurum e Argentum correram para o lado dela e rosnaram para o estranho. Nico não entendia como aquele cara tinha chegado tão perto sem que nenhum deles percebesse. — Bryce Lawrence — disse Reyna. — O mais novo cão de caça de Octavian. O romano inclinou a cabeça. Tinha olhos verdes, mas não da cor do mar, como os de Percy… eram mais como o verde do lodo que se acumula no fundo de um lago. — O áugure tem muitos cães de caça — disse Bryce. — Eu sou apenas o que teve a sorte de encontrar vocês. Seu amigo graecus aqui. — Ele apontou com o queixo para Nico. — Foi fácil segui-lo. Ele carrega o mau cheiro do Mundo Inferior. Nico desembainhou a espada. — Você conhece o Mundo Inferior? Posso providenciar uma visita se quiser. Bryce riu. Seus dentes da frente eram de dois tons diferentes de amarelo. — Acha que pode me assustar? Sou descendente de Orco, o deus dos juramentos quebrados e da punição eterna. Já ouvi de perto os gritos que ecoam nos Campos de Punição. São música para meus ouvidos. Logo vou acrescentar ao coral mais uma alma condenada. — Ele sorriu para Reyna. — Patricídio, hein? Octavian vai adorar essa notícia. Você está presa por múltiplas violações da lei romana. — Sua presença aqui é contra a lei romana — disse Reyna. — Os romanos não saem em missão sozinhos. É necessário um líder com posto de centurião ou mais alto. Você está in probatio. E mesmo esse posto já é demais para você. Não tem o direito de me prender. Bryce deu de ombros. — Em tempos de guerra, algumas regras precisam ser flexíveis. Mas não se preocupe. Como recompensa por levá-la a julgamento, me tornarei membro
efetivo da legião. Imagino que serei também promovido a centurião. Não tenho dúvidas de que haverá vagas depois da batalha que se aproxima. Alguns oficiais não vão sobreviver, ainda mais se escolherem o lado errado. O treinador ergueu o taco. — Não conheço a etiqueta romana, mas posso arrebentar esse garoto agora? — Um fauno — disse Bryce. — Interessante. Eu soube que os gregos realmente confiavam em seus homens-bode. Hedge baliu. — Eu sou um sátiro. E pode acreditar que vou enfiar este bastão na sua cabeça, seu pivete. O treinador avançou, mas assim que seu pé tocou o monumento, ouviu-se um estrondo e as pedras começaram a se mexer, como se fervilhassem. Vários guerreiros esqueléticos irromperam do cemitério, spartoi vestindo os restos esfarrapados de casacas vermelhas, o antigo uniforme britânico. Hedge tentou fugir, mas os primeiros dois esqueletos o seguraram pelos braços e o levantaram do chão. O treinador deixou o taco cair e ficou chutando o ar com os cascos. — Ei, me soltem, seus cabeça de osso idiotas! — berrava ele. Nico viu, paralisado, mais soldados britânicos jorrarem para fora do túmulo, cinco, dez, vinte, multiplicando-se tão depressa que Reyna e seus cães de metal foram cercados antes que o menino pudesse sequer pensar em levantar a espada. Como ele podia não ter detectado que sob seus pés havia tantos mortos? — Eu já ia esquecendo: na verdade, não estou sozinho nesta missão. Como podem ver, tenho apoio. Estes soldados britânicos prometeram misericórdia às tropas coloniais. Mas depois as chacinaram. Pessoalmente, gosto de um bom massacre, mas como eles quebraram o juramento, seus espíritos foram amaldiçoados, portanto estarão para sempre sob o poder de Orco. O que significa que estão também sob o meu controle. — Ele apontou para Reyna. — Peguem a garota. Os spartoi avançaram. Aurum e Argentum derrubaram os primeiros, mas foram rapidamente dominados e forçados ao chão. Mãos esqueléticas cobriamlhes o focinho, apertando com força. Os britânicos agarraram Reyna pelos braços. Para mortos-vivos, aquelas criaturas eram surpreendentemente rápidas. Nico finalmente despertou do transe. Ele atacou os spartoi, mas sua espada os atravessava inutilmente. Tentou transmitir a ordem de se dissolverem, mas os esqueletos agiram como se ele não existisse. — Qual o problema, filho de Hades? — perguntou Bryce, fingindo piedade. — Perdendo o dom? Nico tentou abrir caminho entre os esqueletos, mas eram numerosos demais. Era como se Bryce, Reyna e o treinador Hedge estivessem do outro lado de um muro de metal.
— Nico, fuja daqui! — ordenou Reyna. — Pegue a estátua e vá. — Isso, boa ideia! — concordou Bryce. — É claro, você sabe que seu próximo salto nas sombras será o último. Sabe que não tem força para sobreviver a mais um. Mas, por favor, leve a Atena Partenos. Nico baixou o olhar. Ele ainda segurava a espada estígia, mas suas mãos estavam escuras e transparentes como vidro fumê. Mesmo sob a luz direta do sol, ele estava se dissolvendo. — Pare com isso! — gritou ele. — Ora, eu não estou fazendo nada — disse Bryce. — Mas estou curioso para ver o que vai acontecer. Se você levar a estátua, vai desaparecer com ela para sempre, mergulhar no esquecimento. Se não levá-la… bem, tenho ordens de entregar Reyna viva para ser julgada por traição. Quanto a você, ou ao fauno, não recebi nenhuma ordem parecida. — Sátiro! — berrou o treinador, dando um chute na virilha ossuda de um esqueleto. Aparentemente, o golpe doeu mais em Hedge do que no soldado morto. — Ai! Britânicos mortos idiotas! Bryce cutucou a barriga do treinador com a ponta do pilum, dizendo: — Quero ver o nível de tolerância à dor deste aqui. Já testei todo tipo de animal. Cheguei a matar meu próprio centurião, certa vez. Nunca experimentei em um fauno… perdão, um sátiro. Vocês reencarnam, não é mesmo? Quanto de dor vocês aguentam antes de virarem um canteiro de margaridas? A raiva de Nico tornou-se fria e sombria como sua espada. Ele já havia sido transformado em algumas plantas, e não tinha gostado nada da experiência. Nico odiava gente como Bryce Lawrence, que provocava dor por pura diversão. — Deixe-o em paz — alertou Nico. Bryce ergueu uma sobrancelha. — Senão… o quê? Gostaria muito que você usasse seus poderes do Mundo Inferior, Nico. Eu adoraria ver. Estou com a ligeira impressão de que qualquer esforço grande vai fazer você desaparecer para sempre. Vá em frente. Reyna tentava avançar. — Bryce, deixe-os. Se você me quer como prisioneira, tudo bem. Vou de boa vontade e encaro o tribunal idiota de Octavian. — Bela proposta. — Bryce virou a lança, deixando a ponta pairar a alguns centímetros dos olhos de Reyna. — Você não sabe mesmo o que Octavian planejou, sabe? Ele anda ocupado usando sua influência, gastando o dinheiro da legião. Reyna cerrou os punhos. — Octavian não tem o direito de… — Ele tem o direito do poder — retrucou Bryce. — Você abriu mão de sua autoridade quando fugiu para as terras antigas. No dia primeiro de agosto, seus amigos gregos do Acampamento Meio-Sangue vão descobrir como Octavian é
um inimigo poderoso. Tive acesso aos projetos dele para algumas máquinas de guerra… Até eu fiquei impressionado. Nico sentiu como se seus ossos estivessem virando hélio, como daquela vez em que o deus Favônio o transformara em vento. Então os olhos dele encontraram os de Reyna. Nico sentiu a força dela preenchê-lo, uma onda de coragem e vitalidade que o fez se sentir substancial de novo, ancorado ao mundo mortal. Mesmo cercada pelos mortos e encarando a ameaça de execução, Reyna Ramírez-Arellano tinha um enorme reservatório de coragem a transmitir. — Nico — disse ela —, faça o que você tem que fazer. Eu lhe dou cobertura. Bryce deu uma risadinha. Estava obviamente se divertindo. — Ah, Reyna. Você dá cobertura a ele? Vai ser tão divertido arrastá-la até um tribunal, forçá-la a confessar que matou o próprio pai. Espero que eles a executem à moda antiga: que a joguem em um saco de pano com um cão raivoso, costurem você lá dentro e atirem o saco em um rio. Sempre quis ver isso. Mal posso esperar para que todos saibam do seu segredinho. Para que todos saibam do seu segredinho. A ponta do pilum riscou o rosto de Reyna, deixando uma linha de sangue. E foi então que a fúria de Nico explodiu.
XXXI
NICO
MAIS TARDE, CONTARAM A ELE o que tinha acontecido. Nico só se lembrava de gritar. Segundo Reyna, o ar em volta dele congelou. O chão enegreceu. Com um grito medonho, ele lançou uma onda de dor e raiva que varreu a todos na clareira. Reyna e o treinador vivenciaram a jornada de Nico pelo Tártaro, sua captura pelos gigantes, os dias que ele ficara dentro do jarro de bronze. Sentiram a angústia de Nico nos dias passados no Argo II e seu encontro com Cupido nas ruínas de Salona. Ouviram o desafio não verbal que ele dirigia a Bryce Lawrence, em alto e bom som: Você quer segredos? Então tome. Os spartoi se desintegraram, desfazendo-se em cinzas. As pedras do monumento funerário ficaram brancas, cobertas de gelo. Bryan Lawrence cambaleou, as mãos na cabeça, o nariz sangrando. Nico marchou na direção dele. Ao alcançá-lo, pegou o cordão de probatio do romano e o arrancou do pescoço dele. — Você não é digno disso — disse Nico com raiva. A terra se abriu aos pés de Bryce, e ele afundou até a cintura. — Pare! Bryce tentou se segurar na terra e nos buquês de plástico, mas seu corpo continuava afundando. — Você fez um juramento à legião. — No frio, a respiração de Nico saía em forma de vapor. — Você violou seus votos. Causou dor. Matou o próprio centurião. — Eu… eu não o matei! Eu… — Você deveria ter morrido por seus crimes — prosseguiu Nico. — Essa era a pena. Mas não, você foi exilado. Você deveria ter ficado lá, longe. Seu pai, Orco, pode não aprovar a quebra de juramentos, mas meu pai com certeza não aprova aqueles que escapam de sua devida punição. — Por favor! Aquela expressão não fazia sentido para Nico. Não havia piedade no Mundo Inferior. Apenas justiça. — Você já está morto — disse Nico. — É um fantasma sem língua, sem memória. Não vai revelar nenhum segredo. — Não! — O corpo de Bryce ficou escuro e enfumaçado. Ele afundou na terra até o peito. — Não, eu sou Bryce Lawrence! Eu estou vivo!
— Quem é você? — perguntou Nico. O som seguinte que saiu da boca de Bryce foi um sussurro indefinido. Seu rosto perdeu a definição. Ele podia ser qualquer um; apenas mais um espírito sem nome entre milhões. — Desapareça — ordenou Nico. O espírito se dissipou. A terra se fechou. Nico olhou para trás e viu que os amigos estavam a salvo. Reyna e Hedge não tiravam os olhos dele, horrorizados. O rosto de Reyna sangrava. Aurum e Argentum giravam em círculos, como se seus cérebros mecânicos tivessem entrado em curto-circuito. Nico desmaiou.
* * *
Os sonhos não faziam sentido algum, o que era quase um alívio. Um bando de corvos voava em círculos no céu escuro. Depois as aves se transformavam em cavalos que galopavam na praia em meio à arrebentação das ondas. Ele viu Bianca sentada no pavilhão do refeitório do Acampamento MeioSangue com as Caçadoras de Ártemis, sorrindo e se divertindo com seu novo grupo de amigas. Então Bianca se transformava em Hazel, que dava um beijo no rosto do irmão e dizia: — Quero que você seja uma exceção. Ele viu a harpia Ella com o cabelo vermelho emaranhado, as penas vermelhas e os olhos que pareciam café torrado. Estava empoleirada no sofá da sala da Casa Grande. Ao lado dela estava a cabeça empalhada mágica de Seymour. Ella balançava para a frente e para trás, dando Cheetos para o leopardo. — Queijo não é bom para harpias — resmungava ela. Depois seu rosto se retorcia, e ela recitava uma das linhas de profecia que havia memorizado: — A queda do sol, o último verso. — Ela dava mais Cheetos para Seymour. — Queijo é bom para cabeças de leopardo. E Seymour concordava com um rosnado. Ella então se transformava em uma ninfa das nuvens de cabelo negro e de gravidez avançada, retorcendo-se de dor em um dos beliches do acampamento. Clarisse La Rue, sentada ao lado dela, passava um pano úmido fresco na testa da ninfa. — Você vai ficar bem, Mellie — dizia Clarisse, apesar do tom de preocupação na voz. — Não, não está nada bem! — gemia Mellie. — Gaia está despertando! Outra cena. Nico com Hades em Berkeley Hills no dia em que o pai o levara
pela primeira vez ao Acampamento Júpiter. — Vá até eles — ordenava o deus. — Apresente-se como filho de Plutão. É importante que você atue como um elo. — Por quê? — perguntava Nico. Mas Hades se dissolvia no ar. Nico se via outra vez no Tártaro, diante de Akhlys, a deusa da miséria. Pelo rosto dela escorria sangue. De seus olhos brotavam lágrimas, que caíam no escudo de Hércules em seu colo. — Filho de Hades, o que mais eu poderia fazer por você? Você é perfeito! Tanto pesar e sofrimento! Nico arfou. Então abriu os olhos de uma vez. Estava estirado de costas, fitando a luz do sol que jorrava sobre os galhos das árvores. — Graças aos deuses. Reyna se debruçou sobre ele e tocou sua testa com a mão fria. Não havia mais vestígios do corte no rosto dela. O treinador Hedge estava ao lado de Reyna com uma expressão séria. Para infelicidade de Nico, dali de baixo ele tinha uma vista completa do interior das narinas do sátiro. — Ótimo — disse Hedge. — Só mais algumas aplicações. Ele então colocou sobre o nariz de Nico uma grande atadura quadrada coberta com uma gosma marrom. — O que é…? Urgh. A gosma fedia a adubo misturado com lascas de cedro, suco de uva e um leve toque de fertilizante. Nico não tinha forças para tirar aquilo do rosto. Seus sentidos voltaram a funcionar outra vez. Ele percebeu que se encontrava deitado sobre um saco de dormir fora da barraca. Estava só de cueca e com o corpo coberto de curativos marrons. A lama quase seca fazia seus braços, pernas e peito coçarem. — Você está… está tentando me plantar? — murmurou ele. — É medicina do esporte com um pouco de magia da natureza — explicou o treinador. — Uma espécie de hobby. Nico tentou se concentrar no rosto de Reyna. — Você aprovou isso? Ela parecia prestes a desmaiar de exaustão, mas conseguiu abrir um sorriso. — O treinador Hedge trouxe você de volta, e foi por pouco. Poção de unicórnio, ambrosia, néctar… não podíamos usar nada disso. Você estava praticamente desaparecendo. — Desaparecendo…? — Não se preocupe com isso agora, garoto. — Hedge aproximou um canudinho da boca de Nico. — Beba um pouco de Gatorade.
— Não… não quero… — Você precisa beber um pouco — insistiu o treinador. Nico tomou uns goles. Ficou surpreso ao ver como estava com sede. — O que aconteceu comigo? — perguntou o menino. — E com Bryce… e aqueles esqueletos…? Reyna e o treinador trocaram um olhar constrangido. — Temos boas e más notícias — disse Reyna. — Mas primeiro coma alguma coisa. Você precisa recuperar as forças antes de ouvir as más.
XXXII
NICO
— TRÊS DIAS? Nico não sabia se tinha ouvido direito nas primeiras doze vezes. — Não podíamos mover você — disse Reyna. — Quer dizer… literalmente, não tinha como, pois você praticamente não possuía substância. Se não fosse pelo treinador Hedge… — Não foi nada de mais — garantiu o treinador. — Uma vez, durante um jogo decisivo de futebol americano, tive que fazer uma tala para a perna do quarterback apenas com galhos de árvore e fita adesiva. Apesar do tom casual, o treinador exibia olheiras profundas. Suas faces estavam encovadas. Ele parecia tão mal quanto Nico. Nico não conseguia acreditar que tinha ficado tanto tempo inconsciente. Ele contou aos amigos sobre os sonhos estranhos que tivera: os murmúrios da harpia Ella, a visão da ninfa Mellie (o que deixou o treinador preocupado). Para Nico parecia que aquelas visões tinham durado apenas segundos. Segundo Reyna, era a tarde de trinta de julho. Ele tinha passado dias em uma espécie de coma. — Os romanos vão atacar o Acampamento Meio-Sangue depois de amanhã. — Nico bebeu mais Gatorade, que desceu bem e gelado, mas sem sabor. Suas papilas gustativas pareciam ter desaparecido para sempre no mundo das sombras. — Temos que correr. Eu preciso me preparar. — Não. — Reyna pressionou de leve o braço dele, produzindo um craquelado nos curativos. — Mais uma viagem nas sombras e você morre. Ele cerrou os dentes. — Se eu morrer, morri e pronto. Temos que levar a estátua para o Acampamento Meio-Sangue. — Ei, garoto — disse o treinador. — Admiro sua dedicação, mas não vai adiantar nada se você nos levar para a escuridão eterna com a Atena Partenos. Nesse ponto Bryce Lawrence estava certo. À menção de Bryce, os cães metálicos de Reyna levantaram as orelhas e rosnaram. Reyna lançou um olhar cheio de angústia para o dólmen, como se mais espíritos indesejáveis pudessem emergir das pedras. Nico respirou fundo, o cheiro do remédio caseiro de Hedge preencheu suas narinas. — Reyna, eu… eu agi sem pensar. O que fiz com Bryce…
— Você o destruiu — disse Reyna. — Transformou-o em um fantasma. E, sim, foi como o que aconteceu com meu pai. — Não era minha intenção assustar você — disse Nico, amargurado. — Eu não queria… estragar mais uma amizade. Me desculpe. Reyna observou o rosto dele. — Nico, tenho que admitir que durante o primeiro dia em que você ficou inconsciente, eu não sabia o que pensar nem sentir. O que você fez foi difícil de ver… difícil de processar. O treinador Hedge mascava um graveto. — Sou forçado a concordar com ela nesse ponto, garoto. Uma coisa é acertar alguém na cabeça com um taco de beisebol. Mas transformar aquele ser detestável em fantasma? Foi bem sinistro. Nico achou que fosse sentir raiva, gritar com eles por tentarem julgá-lo. Era isso o que ele normalmente fazia. Mas sua raiva não se concretizava. Ele ainda estava furioso com Bryce Lawrence e Gaia e os gigantes. Queria encontrar Octavian e estrangulá-lo com o próprio cinto do áugure. Mas não estava com raiva de Reyna nem do treinador. — Por que vocês me trouxeram de volta? — perguntou ele. — Vocês sabiam que eu não poderia ajudá-los mais. Podiam ter encontrado outro jeito de seguir em frente com a estátua. Mas desperdiçaram três dias cuidando de mim. Por quê? O treinador Hedge bufou. — Você faz parte da equipe, seu idiota. Não vamos abandonar você. — É mais que isso. — Reyna pôs a mão sobre a de Nico. — Enquanto você dormia, eu pensei muito. Aquilo que lhe contei sobre meu pai… Nunca tinha contado a ninguém. Acho que eu sabia que você era a pessoa certa com quem me abrir. Você aliviou o meu fardo. Eu confio em você, Nico. Ele a encarou, desconcertado. — Como pode confiar em mim? Vocês dois sentiram minha raiva, viram meus piores sentimentos… — Ei, garoto — disse o treinador Hedge com um tom de voz mais suave. — Todo mundo sente raiva. Até um fofo como eu. Reyna abriu um meio sorriso e apertou a mão de Nico. — Ele tem razão, Nico. Você não é o único que libera escuridão de vez em quando. Eu lhe contei o que aconteceu com meu pai, e você me apoiou. Você revelou suas experiências mais dolorosas; como poderíamos não lhe dar apoio? Somos seus amigos. Nico não sabia o que dizer. Eles tinham visto seus segredos mais profundos. Sabiam quem ele era, o que ele era. Mas pareciam não se importar. Não… na verdade, importavam-se ainda mais com ele.
Aqueles dois não o julgavam. Estavam preocupados. Nada daquilo fazia sentido para Nico. — Mas, Bryce, eu… — Nico não conseguiu continuar. — Você fez o que tinha que ser feito. Eu agora sei disso — disse Reyna. — Mas prometa uma coisa: se pudermos evitar, nada de transformar pessoas em fantasmas. — É — disse o treinador. — A menos que você me deixe bater nelas primeiro. Além disso, temos boas notícias também. Reyna assentiu. — Não vimos nenhum sinal de outros romanos, o que nos leva a concluir que Bryce não avisou a mais ninguém onde estávamos. Também nenhum sinal de Órion. Vamos torcer para que isso signifique que as Caçadoras deram um jeito nele. — E quanto a Hylla? — perguntou Nico. — E Thalia? Reyna franziu os lábios. — Nenhuma notícia. Mas preciso acreditar que ainda estão vivas. — Você não contou a ele a melhor notícia — disse o treinador, ansioso. Reyna franziu a testa. — Talvez porque seja difícil demais de acreditar. O treinador Hedge acha que encontrou outro jeito de transportar a estátua. Ele passou os últimos três dias falando nisso. Mas até agora não vimos nem sinal do… — Ei, vai acontecer! — O treinador sorriu para Nico. — Você se lembra daquele aviãozinho de papel que eu recebi antes de o Desprezível-Mor Lawrence aparecer? Era uma mensagem de um dos contatos de Mellie no palácio de Éolo. Tem uma harpia chamada Nuggets; ela e Mellie são amigas há muito tempo. Enfim… ela conhece um cara que conhece um cara que conhece um cavalo que conhece um bode que conhece outro cavalo… — Treinador — reclamou Reyna —, desse jeito ele vai se arrepender de ter saído do coma. — Está bem. — O sátiro bufou de irritação. — Resumindo: tive que mexer vários pauzinhos. Consegui avisar aos espíritos do vento legais que precisávamos de ajuda. Sabe a carta que eu comi? Era a confirmação de que a cavalaria está a caminho. Eles disseram que precisavam de algum tempo para se organizar, mas logo ele deve estar chegando… na verdade, a qualquer minuto. — Quem é ele? — perguntou Nico. — Que cavalaria? Reyna se levantou de repente. Ao olhar para o norte, ficou de queixo caído. — Aquela cavalaria… Nico acompanhou seu olhar. Viu um bando de aves no horizonte… aves grandes. À medida que elas se aproximavam, Nico percebeu que eram cavalos com asas, pelo menos meia dúzia deles, em formação em V. Nenhum cavaleiro os
montava. Na frente voava um garanhão enorme, de pelo dourado e plumagem multicolorida como a de uma águia. Sua envergadura era duas vezes maior que a dos outros. — Pégasos — disse Nico. — E muitos. O suficiente para carregarem a estátua. O treinador riu de prazer. — E não só pégasos quaisquer, garoto. Você vai ter uma grande surpresa. — O garanhão na frente… — Reyna balançava a cabeça, sem acreditar. — Aquele é o Pégaso, o senhor imortal dos cavalos.
XXXIII
LEO
TÍPICO. Quando Leo finalmente terminou suas modificações, uma grande deusa das tempestades surgiu e arrancou as alças de vela de seu navio. Depois de seu encontro com Cimopo-sei-lá-o-quê, o Argo II se arrastava pelo Egeu. Danificado demais para voar e lento demais para escapar de monstros, eles enfrentavam serpentes-marinhas famintas de hora em hora e atraíam cardumes de peixes curiosos. Em certo momento, ficaram encalhados em uma rocha, e Percy e Jason tiveram que descer e empurrar. O som resfolegante do motor deixava Leo com vontade de chorar. Após três longos dias, quando conseguiu botar o navio em condições minimamente decentes de funcionamento, eles atracaram na ilha de Mykonos, o que provavelmente significava que era hora de serem feitos em pedaços outra vez. Percy e Annabeth desembarcaram para explorar a cidade, enquanto Leo ficou no tombadilho, ajustando o painel de controle. Estava tão envolvido com a fiação que não percebeu a volta dos dois até Percy falar: — Oi, cara. Gelato. Seu dia melhorou na hora. Sem tempestades ou ataques de monstros com que se preocupar, a tripulação se sentou no convés e tomou sorvete. Bem, menos Frank, que tinha intolerância à lactose. Ele ganhou uma maçã. O dia estava quente, e ventava. O mar agitado reluzia, mas Leo havia consertado os estabilizadores, o que fez com que Hazel não ficasse tão enjoada. À esquerda de onde o navio estava ancorado ficava a cidade de Mykonos, um conjunto de construções de estuque branco com telhados, janelas e portas azuis. — Vimos pelicanos andando pela cidade — contou Percy. — Tipo entrando nas lojas, parando nos bares… Hazel franziu a testa. — Monstros disfarçados? — Não — disse Annabeth, rindo. — Pelicanos normais. Eles são as mascotes da cidade, ou algo assim. E ela tem uma parte italiana. Por isso o sorvete é tão bom. — A Europa é uma bagunça. — Leo balançou a cabeça. — Primeiro vamos a Roma atrás de praças espanholas. Depois vamos à Grécia e compramos sorvete italiano. Mas ele não podia discutir com o gelato. Ele comeu as duas bolas de chocolate e tentou imaginar que ele e os amigos estavam só relaxando, de férias. O que o
fez desejar que Calipso estivesse ao seu lado, o que o fez desejar que a guerra tivesse acabado e que todos eles estivessem vivos… o que o deixou triste. Era dia trinta de julho. Menos de quarenta e oito horas para o Dia G, quando Gaia, a Princesa da Lama e da Imundície, ia despertar em toda a sua glória de cara suja. O estranho era que, quanto mais se aproximavam de primeiro de agosto, mais ânimo seus amigos tinham. Ou talvez ânimo não fosse a palavra certa. Eles pareciam estar se preparando para o último ato, conscientes de que os dois dias seguintes poderiam consagrá-los ou destruí-los. Não fazia sentido ficar se lamuriando quando se estava diante da morte iminente. O fim do mundo fazia com que o sorvete tivesse um gosto muito melhor. Claro, o resto da tripulação não tinha descido até os estábulos com Leo e conversado com Nice, a deusa da vitória, nos três dias anteriores… Piper soltou seu potinho de sorvete. — Então, a ilha de Delos fica do outro lado da baía. A morada de Ártemis e Apolo. Quem vai lá? — Eu — disse Leo imediatamente. Todo mundo olhou para ele. — O que foi? — perguntou ele. — Eu sou diplomático e tal. Frank e Hazel se ofereceram para ir comigo. — Nós nos oferecemos? — Frank baixou a maçã comida pela metade. — Quer dizer… claro que sim. Os olhos dourados de Hazel brilharam sob a luz do sol. — Leo, você teve algum sonho sobre isso ou algo assim? — Tive — respondeu Leo, depressa. — Bem… não. Não exatamente. Mas… gente, vocês precisam confiar em mim nessa. Eu preciso falar com Apolo e Ártemis. Tenho uma ideia e preciso discuti-la com eles. Annabeth franziu a testa, como se fosse protestar, mas Jason tomou a palavra. — Se Leo tem uma ideia — disse ele —, precisamos confiar nele. Leo se sentia culpado em relação a isso, especialmente considerando qual era a ideia, mas ele esboçou um sorriso. — Valeu, cara. Percy deu de ombros. — Tudo bem. Mas tenho um conselho: quando encontrar Apolo, não mencione haicais. Hazel franziu as sobrancelhas. — Por que não? Ele não é o deus da poesia? — Confie em mim. — Entendido. — Leo ficou de pé. — E, gente, se houver uma loja de lembranças em Delos, com certeza vou trazer para vocês bonequinhos de Apolo e Ártemis!
* * *
Apolo não parecia estar no clima para haicais. E também não vendia bonequinhos. Frank se transformara em uma águia gigante para voar até Delos, mas Leo pegara uma carona com Hazel e Arion. Nada contra Frank, mas depois do fiasco em Forte Sumter, Leo desistira de montar águias gigantes. Ele tinha um índice de falha de cem por cento. Eles encontraram a ilha deserta, talvez porque o mar estivesse agitado demais para barcos turísticos. As colinas varridas pelos ventos eram áridas, exceto por rochas, grama e flores silvestres, e, é claro, vários templos em ruínas. Os destroços deviam ser impressionantes, mas, depois de Olímpia, Leo já ultrapassara sua cota de ruínas antigas. Ele tinha enjoado de colunas de mármore branco. Queria voltar para os Estados Unidos, onde os prédios mais antigos eram as escolas públicas e o seu bom e velho McDonald’s. Eles desceram uma avenida margeada por leões de pedra brancos, com as cabeças tão erodidas pelo tempo que quase não era possível ver mais traços. — É assustador — disse Hazel. — Está sentindo algum fantasma? — perguntou Frank. Ela balançou a cabeça. — A ausência de fantasmas é assustadora. Na Antiguidade, Delos era um local sagrado. Nenhum mortal podia nascer ou morrer aqui. Não há nenhum espírito mortal em toda esta ilha. — Por mim tudo bem — disse Leo. — Então quer dizer que ninguém tem permissão de nos matar aqui? — Não foi isso que eu disse. — Hazel parou no alto de um monte. — Olhem. Lá embaixo. Abaixo deles, um anfiteatro havia sido escavado na encosta. Pequenos arbustos brotavam entre as fileiras de assentos de pedra, parecendo um show para espinheiros. No centro, o deus Apolo estava sentado em um bloco de pedra no palco, debruçado sobre um uquelele, no qual dedilhava uma música triste. Bom, Leo supôs que fosse Apolo. O sujeito parecia ter dezessete anos, com cabelo louro cacheado e um bronzeado perfeito. Ele usava calça jeans rasgada, camiseta preta e um paletó de linho branco com lapelas cintilantes de strass, como se estivesse tentando criar um visual híbrido de Elvis, Ramones e Beach Boys. Leo não via o uquelele como um instrumento triste. (Patético, com certeza. Mas não triste.) Entretanto, a melodia que o deus tocava era tão melancólica que mexeu com os sentimentos dele. Havia uma garota de uns treze anos usando legging preta e túnica prateada sentada na primeira fila. O cabelo preto estava preso em um rabo de cavalo. Ela
estava entalhando um pedaço comprido de madeira… fazendo um arco. — Aqueles ali são os deuses? — perguntou Frank. — Mas eles não parecem gêmeos. — Ora, pense bem — disse Hazel. — Se você é um deus, pode ter a aparência que quiser. Se tivesse um irmão gêmeo… — Eu ia escolher me parecer com qualquer coisa menos meu irmão — concordou Frank. — Então qual é o plano? — Não atirem! — gritou Leo. Parecia um bom começo diante de dois deuses arqueiros. Ele ergueu os braços e se aproximou do palco. Nenhum dos deuses pareceu surpreso ao vê-los. Apolo deu um suspiro e voltou a tocar seu uquelele. Quando eles chegaram à primeira fila, Ártemis resmungou: — Aí estão vocês. Estávamos começando a ficar preocupados. Isso fez Leo relaxar um pouco. Ele estava prestes a se apresentar, explicar que vieram em paz, contar algumas piadas e oferecer balas de menta. — Então vocês estavam nos esperando — disse Leo. — Dá para perceber pelo nível de empolgação. Apolo tocou uma melodia que parecia a versão fúnebre de “Camptown Races”. — Estávamos esperando ser encontrados, perturbados e atormentados. Só não sabíamos por quem. Vocês não podem nos deixar sofrer em paz? — Você sabe que não, irmão — interveio Ártemis. — Eles precisam de nossa ajuda em sua missão, mesmo que suas chances sejam quase nulas. — Vocês dois são muito encorajadores — disse Leo. — Mas, afinal, por que estão escondidos aqui? Vocês não deviam… sei lá, estar combatendo gigantes ou algo assim? Os olhos pálidos de Ártemis fizeram Leo se sentir como um veado prestes a ser devorado. — Delos é nossa terra natal — disse a deusa. — Aqui não somos afetados pelo cisma greco-romano. Acredite em mim, Leo Valdez, se eu pudesse, estaria com minhas Caçadoras, enfrentando nosso velho inimigo Órion. Infelizmente, se eu sair desta ilha, ficarei incapacitada pela dor. Tudo o que posso fazer é assistir, impotente, enquanto Órion massacra minhas companheiras. Muitas deram a vida para proteger seus amigos e aquela maldita estátua de Atena. Hazel soltou um gritinho. — Está falando de Nico? Ele está bem? — Bem? — Apolo começou a chorar em cima de seu uquelele. — Nenhum de nós está bem, menina! Gaia está despertando! Ártemis olhou de relance para Apolo.
— Hazel Levesque, seu irmão ainda está vivo. Ele é valente, assim como você. Eu gostaria de poder dizer o mesmo do meu irmão. — Você está errada a meu respeito! — gemeu Apolo. — Eu fui enganado por Gaia e aquele garoto romano horrível! Frank pigarreou. — Hum, senhor Apolo, você está falando de Octavian? — Não diga o nome dele! — Apolo tocou um acorde menor. — Ah, Frank Zhang, queria que você fosse meu filho. Eu ouvi suas preces, sabia? Todas aquelas semanas em que você queria ser reclamado. Mas, infelizmente, Marte fica com todos os bons. Eu fico com… aquela criatura como meu descendente. Ele encheu minha cabeça de elogios… Falou dos grandes templos que ia erguer em minha honra. Ártemis fungou. — Você é bajulado com muita facilidade, irmão. — Porque eu tenho muitas qualidades maravilhosas para louvar! Octavian disse que iria tornar os romanos poderosos novamente. E eu só concordei! E dei a ele minha bênção. — Pelo que me lembro — disse Ártemis —, ele também prometeu fazer de você o deus mais importante, acima até de Zeus. — Como eu poderia recusar uma oferta dessas? Zeus tem um bronzeado perfeito? Ele sabe tocar uquelele? Acho que não! Mas nunca imaginei que Octavian fosse começar uma guerra! Gaia devia estar turvando meus pensamentos, sussurrando mentiras em meu ouvido. Leo se lembrou do sujeito maluco dos ventos, Éolo, que se tornou homicida após ouvir a voz de Gaia. — Então resolva isso! — disse Leo. — Diga a Octavian para parar. Ou, você sabe, atire uma de suas flechas nele. Isso também serviria. — Não posso! — lamentou Apolo. — Veja! O uquelele se transformou em um arco. Ele o apontou para o céu e disparou. A flecha dourada subiu cerca de sessenta metros, depois virou fumaça. — Para usar meu arco, eu teria que sair de Delos — lamentou Apolo. — Mas eu ficaria incapacitado, ou Zeus iria me matar. Meu pai jamais gostou de mim. Ele não confia em mim há milênios! — Bem — disse Ártemis —, para ser justa, teve aquela vez em que você conspirou com Hera para derrubá-lo. — Isso foi um mal-entendido! — E você matou alguns dos ciclopes de Zeus. — Tive um bom motivo! De qualquer forma, agora Zeus me culpa por tudo: as armações de Octavian, a queda de Delfos… — Espere aí. — Hazel fez um sinal pedindo tempo. — A queda de Delfos?
O arco de Apolo se transformou outra vez no uquelele. Ele tocou um acorde dramático. — Quando o problema entre as personalidades grega e romana começou, eu fiquei muito confuso, e Gaia se aproveitou disso! Ela despertou meu velho inimigo, Píton, a grande serpente, para retomar o Oráculo de Delfos. Aquela criatura horrenda está lá agora habitando as cavernas antigas, bloqueando a magia da profecia. E eu estou preso aqui, por isso nem posso enfrentá-lo. — Que droga — disse Leo, apesar de, em segredo, achar que a ausência de profecias talvez fosse uma coisa boa. Sua lista de tarefas já estava bem grande. — Uma droga mesmo! — Apolo suspirou. — Zeus já estava com raiva de mim por indicar aquela garota nova, Rachel Dare, como meu oráculo. Meu pai achou que, ao fazer isso, eu antecipei a guerra com Gaia, pois, assim que dei a Rachel minha bênção, ela anunciou a Profecia dos Sete. Mas as profecias não funcionam assim! Meu pai só precisava de um bode expiatório. Então, é claro que ele escolheu o deus mais bonito, mais talentoso e, com certeza, mais incrível. Ártemis fingiu que ia vomitar. — Ah, não venha com essa, irmã! — exclamou Apolo. — Você também está enrascada! — Só porque eu contrariei os desejos de Zeus e mantive contato com minhas Caçadoras — disse Ártemis. — Mas sempre posso convencer papai a me perdoar. Ele nunca conseguiu ficar com raiva de mim por muito tempo. É com você que estou preocupada. — Eu também estou preocupado comigo! — concordou Apolo. — Precisamos fazer alguma coisa. Não temos como matar Octavian. Humm. Talvez devêssemos matar estes semideuses. — Ei, Cara da Música, calma aí. — Leo conteve a vontade de se esconder atrás de Frank e gritar: Quero ver você enfrentar este canadense grandão aqui! — Estamos do seu lado, lembra? Por que você iria nos matar? — Talvez faça com que eu me sinta melhor! — exclamou Apolo. — Preciso fazer alguma coisa! — Você podia nos ajudar — disse Leo rapidamente. — Então, temos um plano… Ele lhes contou que Hera havia orientado que fossem a Delos e obtivessem os ingredientes da cura do médico que Nice revelara. — A cura do médico? — Apolo se levantou e destruiu o uquelele nas pedras. — É esse o seu plano? Leo levantou as mãos. — Ei, hum, normalmente sou totalmente a favor de destruir uqueleles, mas é que… — Eu não posso ajudar! — exclamou Apolo. — Se eu contasse a vocês o segredo da cura do médico, Zeus jamais me perdoaria!
— Você já está com problemas — observou Leo. — Não pode ficar pior do que já está. Apolo olhou para ele. — Se soubesse do que meu pai é capaz, mortal, você não faria essa pergunta. Seria mais simples se eu apenas matasse todos vocês. Talvez isso agrade a Zeus… — Irmão… — chamou Ártemis. Os gêmeos se encararam e tiveram uma discussão silenciosa. Aparentemente, Ártemis venceu. Apolo soltou um grande suspiro e chutou o uquelele quebrado para o outro lado do palco. Ártemis se levantou. — Hazel Levesque, Frank Zhang, venham comigo. Há coisas que vocês devem saber sobre a Décima Segunda Legião. Quanto a você, Leo Valdez… — A deusa mirou os olhos prateados e frios nele. — Apolo vai ouvi-lo. Veja se vocês conseguem chegar a um acordo. Meu irmão gosta de uma boa negociação. Frank e Hazel olharam para ele como quem diz Por favor, não morra. Depois, subiram os degraus do anfiteatro atrás de Ártemis e desceram pelo outro lado do monte. — E então, Leo Valdez? — Apolo cruzou os braços. Seus olhos tinham um brilho dourado. — Vamos negociar. O que tem a oferecer que poderia me convencer a ajudá-lo em vez de matá-lo?
XXXIV
LEO
— NEGOCIAR. — OS DEDOS DE LEO se contorciam. — Sim. Claro. As mãos dele começaram a trabalhar antes que sua mente soubesse o que estava fazendo. Ele começou a tirar coisas dos bolsos de seu cinto de ferramentas mágico: fios de cobre, parafusos, um funil de latão. Ele estava guardando pedaços e peças de máquinas havia vários meses, porque nunca sabia do que poderia precisar. E quanto mais tempo usava o cinto, mais intuitivo ele se tornava. Ele enfiava a mão em um bolso e a coisa certa simplesmente aparecia. — Então a situação é esta — disse Leo, enquanto suas mãos torciam os fios. — Zeus está furioso com você, certo? Se nos ajudar a derrotar Gaia, você pode voltar a ficar bem com ele. Apolo torceu o nariz. — Imagino que isso seja possível. Mas seria mais fácil destruir você. — E que tipo de balada isso daria? — As mãos de Leo trabalhavam loucamente, prendendo alavancas, fixando o funil de latão em um velho eixo de engrenagem. — Você é o deus da música, não é? Você ouviria uma canção chamada “Apolo mata um semideus baixinho”? Eu, não. Mas “Apolo derrota a Mãe Terra e salva todo o universo”… isso parece um primeiro lugar garantido no top dez da Billboard! Apolo olhou para o vazio, como se visualizasse seu nome em um letreiro luminoso. — O que você quer, exatamente? E o que eu ganho com isso? — A primeira coisa de que preciso é um conselho. — Leo passou alguns fios pela abertura do funil. — Quero saber se meu plano vai funcionar. Leo explicou o que tinha em mente. O garoto estava remoendo aquela ideia havia dias, desde que Jason voltara do fundo do mar e ele começou a conversar com Nice. Cimopoleia dissera a Jason: Um deus primordial já foi derrotado antes. Você sabe de quem estou falando. As conversas de Leo com Nice o ajudaram a fazer alguns ajustes no plano, mas ele ainda queria uma segunda opinião de outro deus. Pois, assim que Leo se comprometesse, não haveria volta. Ele tinha esperança de que Apolo apenas risse e lhe dissesse para esquecer tudo aquilo. Em vez disso, o deus assentiu, pensativo.
— Este conselho é de graça: você pode derrotar Gaia como me descreveu, mais ou menos como fizeram com Urano éons atrás. Entretanto, qualquer mortal que estiver por perto será completamente… — A voz de Apolo vacilou. — O que é isso? Leo olhou para o instrumento que tinha em mãos. Fileiras de fios de cobre, como vários jogos de cordas de uma guitarra, se cruzavam no interior do funil. Conjuntos de captadores eram controlados por botões no exterior da estrutura, que estava presa a uma placa de metal com várias manivelas. — Ah, isso…? A mente de Leo trabalhava alucinadamente. O objeto em suas mãos parecia uma caixa de música misturada com um gramofone antigo, mas o que era aquilo? Algo para negociar. Ártemis lhe dissera para chegar a um acordo com Apolo. Leo lembrou-se de uma história da qual as crianças do chalé 11 costumavam se gabar: como o pai deles, Hermes, escapara do castigo por roubar as vacas sagradas de Apolo. Quando Hermes foi pego, ele fez um instrumento musical — a primeira lira — e o ofereceu a Apolo, que o perdoou imediatamente. Poucos dias antes, Piper mencionara ter visto em Pilos a caverna onde Hermes tinha escondido aquelas vacas. Isso deve ter ficado no subconsciente de Leo. Sem querer, ele havia construído um instrumento musical, coisa que lhe causou certa surpresa, já que ele não sabia nada de música. — Hum, bem — disse Leo. — Este é simplesmente o instrumento mais maravilhoso de todos os tempos! — Como funciona? — perguntou o deus. Boa pergunta, pensou Leo. Ele girou as manivelas, torcendo para que aquilo não explodisse na sua cara. Soaram algumas notas. Metálicas, mas quentes. Leo manipulou as alavancas e as engrenagens. Ele reconheceu a canção, a mesma melodia melancólica sobre recordações e saudades que Calipso cantou para ele em Ogígia. Mas, através das cordas no funil de latão, a canção soava ainda mais triste, como uma máquina com o coração partido, como Festus soaria se pudesse cantar. Leo esqueceu que Apolo estava ali. Tocou a canção até o final. Quando terminou, seus olhos lacrimejavam. Ele quase sentia o cheiro de pão saído do forno na cozinha de Calipso; o gosto do único beijo que ela lhe dera. Apolo olhava impressionado para o instrumento. — Eu preciso dele. Como se chama? O que você quer por ele? Leo sentiu um desejo súbito de esconder o instrumento e guardá-lo para si. Mas engoliu sua melancolia. Tinha uma tarefa a cumprir… Calipso… Calipso precisava que ele tivesse sucesso.
— Este é o Valdezinator, é claro! — Ele estufou o peito. — Ele funciona, hum, traduzindo seus sentimentos em música enquanto você manipula os controles. Mas, na verdade, ele é feito para ser usado por mim, um filho de Hefesto. Não sei se você conseguiria… — Eu sou o deus da música! — exclamou Apolo. — É claro que posso aprender a tocar o Valdezinator. Eu preciso! É meu dever! — Então, Cara da Música, vamos começar a negociar — disse Leo. — Eu lhe dou isso se você me entregar a cura do médico. — Ah… — Apolo mordeu o lábio divino. — Bem, na verdade eu não tenho a cura do médico. — Achei que você fosse o deus da medicina. — Sou, mas sou o deus de muitas coisas! Poesia, música, o Oráculo de Delfos… — Ele começou a chorar, cobrindo a boca com o punho. — Desculpe, eu estou bem, estou bem. Como estava dizendo, tenho muitas áreas de influência. E, claro, além disso, tenho todo esse trabalho de “deus do sol” que herdei de Hélios. A questão é que sou mais um clínico geral. Para a cura do médico, você precisa ver um especialista, o único que já conseguiu curar com sucesso a morte: meu filho, Asclépio, o deus da cura. Leo ficou arrasado. A última coisa de que precisavam era mais uma missão para procurar mais um deus que provavelmente iria exigir camisetas em sua homenagem ou um Valdezinator. — É uma pena, Apolo. Eu esperava que pudéssemos fazer negócio. Leo girou as alavancas em seu Valdezinator, produzindo uma melodia suave ainda mais triste. — Pare! — gemeu Apolo. — É bonito demais. Vou lhe dizer como encontrar Asclépio. Ele está muito, muito perto! — Como vamos garantir que ele vai nos ajudar? Nós só temos dois dias antes que Gaia desperte. — Ele vai ajudar! — prometeu Apolo. — Meu filho adora ajudar. Basta apelar para ele em meu nome. Você vai encontrá-lo em seu velho templo em Epidauro. — Qual é a pegadinha? — Ah… bem, nada. Exceto, é claro, que ele está sob vigilância. — Quem está vigiando? — Não sei! — Apolo estendeu as mãos, desesperado. — Só sei que Zeus está mantendo Asclépio preso para que ele não saia pelo mundo ressuscitando as pessoas. Na primeira vez em que Asclépio despertou os mortos… bem, ele causou um grande tumulto. É uma história longa. Mas tenho certeza de que você pode convencê-lo a ajudar. — Isso não me parece um bom negócio — disse Leo. — E sobre o último ingrediente, a maldição de Delos. O que é isso?
Apolo olhou com cobiça para o Valdezinator. Leo temeu que o deus simplesmente o tomasse dele, e como ele o impediria? Atacar o deus do sol com fogo provavelmente não iria adiantar muita coisa. — Eu posso lhe dar o último ingrediente — disse Apolo. — Aí você terá tudo de que precisa para que Asclépio prepare a poção. Leo tocou mais um verso. — Não sei. Trocar esse belo Valdezinator por uma maldição de Delos… — Na verdade, não é uma maldição! Veja… — Apolo correu até as flores silvestres mais próximas e colheu uma amarela da fenda entre as pedras. — Isto é a maldição de Delos. Leo olhou atentamente para a flor. — Uma margarida amaldiçoada? Apolo deu um suspiro exasperado. — É só um apelido. Quando minha mãe, Leto, estava prestes a dar à luz Ártemis e a mim, Hera estava com raiva, porque Zeus a havia traído novamente. Então ela foi a todo pedaço de terra do planeta e fez os espíritos da natureza de todos os lugares prometerem expulsar minha mãe, para que ela não pudesse dar à luz em lugar algum. — Isso é a cara da Hera. — Pois é. Enfim, Hera obteve promessas de todos os lugares enraizados na terra, menos de Delos, porque na época Delos era uma ilha flutuante. Os espíritos da natureza daqui receberam minha mãe. Ela deu à luz minha irmã e a mim, e a ilha ficou tão feliz por ser nosso novo lar sagrado que se cobriu com essas florzinhas amarelas. As flores são uma bênção, porque somos maravilhosos. Mas também simbolizam uma maldição, pois, depois que nascemos, Delos se enraizou e não pôde mais flutuar pelos mares. É por isso que margaridas amarelas são consideradas a maldição de Delos. — Então eu podia simplesmente ter colhido uma margarida e ido embora? — Não, não! Para a poção que você tem em mente, a flor tem que ser colhida por mim ou minha irmã. Então, o que me diz, semideus? Instruções para encontrar Asclépio e seu último ingrediente mágico em troca desse novo instrumento musical. Negócio fechado? Leo odiou a ideia de entregar um Valdezinator em perfeito estado em troca de uma florzinha, mas não via outra opção. — Cara da Música, é difícil barganhar com você. Eles fizeram a troca. — Excelente! — Apolo mexeu nas manivelas do Valdezinator, produzindo um som que lembrava o motor de um carro. — Humm… talvez seja necessário um pouco de prática, mas vou aprender! Agora, vamos achar seus amigos. Quanto antes vocês partirem, melhor!
* * *
Hazel e Frank aguardavam nas docas de Delos. Ártemis não estava com eles. Quando Leo se virou para se despedir de Apolo, viu que o deus também tinha desaparecido. — Caramba — resmungou Leo. — Ele estava mesmo ansioso para praticar com o Valdezinator. — Com o quê? — perguntou Hazel. Leo contou a eles sobre seu novo hobby como inventor genial de funis musicais. Frank coçou a cabeça. — E, em troca, você ganhou uma margarida? — É o ingrediente final para curar a morte, Zhang. É uma supermargarida! E vocês dois? Descobriram alguma coisa com Ártemis? — Infelizmente, sim. — Hazel olhou para o mar, onde o Argo II balançava ancorado. — Ártemis sabe muito sobre armas de guerra. Ela nos contou que Octavian encomendou algumas… surpresas para o Acampamento Meio-Sangue. Ele usou a maior parte do tesouro da legião para comprar onagros construídos por ciclopes. — Ah, não, onagros, não! — exclamou Leo. — Por falar nisso, o que é um onagro? Frank franziu a testa. — Você constrói máquinas. Como pode não saber o que é um onagro? É simplesmente a maior e mais letal catapulta já usada pelo exército romano. — Legal — disse Leo. — Mas onagro é um nome idiota. Eles deveriam tê-las chamado de Valdezpultas. Hazel revirou os olhos. — Leo, isso é sério. Se Ártemis estiver certa, seis dessas máquinas vão chegar a Long Island amanhã à noite. É isso o que Octavian está esperando. Ao amanhecer do dia primeiro de agosto, ele vai ter poder de fogo suficiente para destruir o Acampamento Meio-Sangue sem uma única baixa romana. Octavian acha que isso fará dele um herói. Frank murmurou um palavrão em latim. — Só que ele também convocou tantos monstros “aliados” que a legião está completamente cercada por centauros selvagens, bandos de cinocéfalos com cabeças de cachorro e sabe-se lá o que mais. Assim que a legião destruir o Acampamento Meio-Sangue, os monstros vão se voltar contra Octavian e destruir a legião. — E aí Gaia desperta — concluiu Leo. — E coisas ruins acontecem. Engrenagens giravam na cabeça do garoto à medida que novas informações se encaixavam no lugar.
— Tudo bem… isso só torna meu plano ainda mais importante. Assim que conseguirmos essa cura do médico, vou precisar da ajuda de vocês. Frank olhou apreensivo para a margarida amarela amaldiçoada. — Que tipo de ajuda? Leo contou o plano a eles. Quanto mais falava, mais chocados eles pareciam, mas, quando terminou, nenhum dos dois lhe disse que ele estava louco. Uma lágrima cintilava no rosto de Hazel. — Tem que ser assim — disse Leo. — Nice confirmou. Apolo confirmou. Os outros nunca iriam aceitar, mas vocês… vocês são romanos. Foi por isso que eu quis que viessem a Delos comigo. Vocês têm toda essa coisa de sacrifício… de cumprir com seu dever, de ficar entre a cruz e a adaga. Frank fungou. — Acho que você quis dizer entre a cruz e a espada. — Tanto faz — disse Leo. — Vocês sabem que tem que ser essa a resposta. — Leo… — A voz de Frank ficou embargada. Até Leo quis chorar como um Valdezinator, mas manteve a calma. — Ô grandão, estou contando com você. Lembra-se do que me contou sobre aquela conversa com Marte? Seu pai disse que você ia ter que agir, certo? Você teria que tomar a decisão que ninguém mais estaria disposto a tomar. — Ou a guerra vai descambar — lembrou Frank. — Mas mesmo assim… — E Hazel — disse Leo. — Grande Hazel da Névoa Mágica… preciso que você me dê cobertura. Você é a única que pode fazer isso. Meu bisavô Sammy viu como você era especial. Ele me abençoou quando eu era bebê, porque acho que de alguma forma ele sabia que você ia voltar e me ajudar. Tudo pelo que passamos, mi amiga, nos conduziu a isso. — Ah, Leo… Então suas lágrimas começaram a jorrar. Ela o abraçou apertado, o que foi carinhoso até Frank começar a chorar e abraçar os dois. E aí foi meio estranho. — Está bem, está bem… — Leo se livrou deles com delicadeza. — Então, estamos de acordo? — Odiei esse plano — disse Frank. — Achei horrível. — Pensem em como eu me sinto — disse Leo. — Mas vocês sabem que é nossa melhor chance. Nenhum dos dois discordou. Leo meio que desejava que o tivessem contrariado. — Vamos voltar para o navio — disse ele. — Temos que encontrar um deus da cura.
XXXV
LEO
LEO IMEDIATAMENTE VIU A ENTRADA secreta. — Ah, isso é lindo. Ele manobrou o navio de forma a pairar acima das ruínas de Epidauro. O Argo II não estava em boas condições para voar, mas Leo conseguira fazêlo subir após uma única noite de trabalho. Com o mundo terminando na manhã seguinte, ele estava extremamente motivado. O garoto tinha consertado os remos. Injetara água do Rio Estige na parafuseta. Dera à figura de proa, Festus, sua bebida favorita: óleo de motor com molho de pimenta. Até Buford, a Mesa Maravilhosa, havia aparecido chacoalhando pelos andares inferiores com seu mini-Hedge holográfico gritando “PAGUE TRINTA FLEXÕES!” para inspirar o motor. Finalmente, eles pairavam acima dos destroços do antigo templo do deus da cura, Asclépio, onde tinham esperança de conseguir a cura do médico e talvez ambrosia, néctar e salgadinhos, porque os estoques de Leo estavam acabando. Ao lado dele no tombadilho, Percy observava, apoiado na amurada. — Parece que temos mais ruínas — observou. Seu rosto ainda estava meio esverdeado devido ao veneno, mas pelo menos ele estava vomitando com menos frequência. Somando ele e o enjoo de Hazel, tinha sido impossível encontrar um banheiro vazio nos últimos dias. Annabeth apontou para a estrutura em forma de disco cerca de cinquenta metros a bombordo. — Ali. Leo sorriu. — Exatamente. Viram? A arquiteta sabe o que está fazendo. O restante da tripulação se reuniu ao redor deles. — Nós estamos olhando para o quê? — perguntou Frank. — Ah, señor Zhang — disse Leo. — Você não fala sempre: “Leo, você é o único gênio de verdade entre os semideuses”? — Tenho quase certeza de que nunca disse isso. — Bem, quer dizer que há outros gênios de verdade! Porque um deles deve ter feito aquela obra de arte. — É um círculo de pedra — disse Frank. — Provavelmente a fundação de um santuário antigo. Piper balançou a cabeça.
— Não, é mais que isso. Veja os sulcos e as ranhuras esculpidos em torno da borda. — Parecem os dentes de uma engrenagem — sugeriu Jason. — E aqueles anéis concêntricos. — Hazel apontou para o centro da estrutura, onde rochas curvadas formavam uma espécie de alvo. — Esse padrão me lembra o pingente de Pasifae: o símbolo do Labirinto. — Hum. — Leo franziu a testa. — Bem, eu não tinha pensado nisso. Mas pense como um mecânico. Frank, Hazel… onde vimos círculos concêntricos como esses antes? — No laboratório sob Roma — disse Frank. — A fechadura de Arquimedes — lembrou Hazel. — Tinha anéis dentro de anéis. Percy escarneceu: — Estão me dizendo que aquilo é uma fechadura de pedra maciça? Tem uns quinze metros de diâmetro. — Leo pode estar certo — disse Annabeth. — Na Antiguidade, o templo de Asclépio era como o hospital da Grécia. Todo mundo vinha aqui em busca do melhor tratamento. Na superfície, tinha o tamanho de uma cidade, mas supostamente as coisas realmente aconteciam no subsolo. Era lá que os sumos sacerdotes tinham seu CTI, um complexo supermágico acessível apenas por uma passagem secreta. Percy coçou a orelha. — Então se aquela coisa redonda enorme é a tranca, como arranjamos a chave? — Você está atrasado, Aquaman — disse Leo. — Ei, não me chame de Aquaman. Isso é ainda pior que garoto da água. Leo se virou para Jason e Piper. — Vocês dois se lembram da garra de Arquimedes que eu disse que estava construindo? Jason ergueu uma sobrancelha. — Achei que você estivesse brincando. — Ah, meu amigo. Eu nunca brinco quando o assunto são garras gigantes! — Leo esfregou as mãos em antecipação. — É hora de pescar prêmios!
* * *
Em comparação com as outras modificações que Leo tinha feito no navio, a garra mecânica fora moleza. Originalmente, Arquimedes a projetara para lançar navios inimigos para fora da água. Mas Leo tinha encontrado outro uso para ela.
Ele abriu a portinhola de acesso à parte dianteira do casco e estendeu a garra mecânica, guiada pelo monitor no painel de controle e por Jason, que voava lá fora gritando instruções. — Esquerda! — exclamou Jason. — Um pouco mais… Aí! Tudo bem, pode descer. Continue. Você está indo bem. Usando o trackpad e um controle, Leo abriu a garra. Os dedos se posicionaram em torno dos sulcos da estrutura circular de pedra. Ele conferiu os estabilizadores aéreos e as imagens no monitor. — Tudo bem, amiguinho. — Leo deu um tapinha na esfera de Arquimedes instalada no timão. — Agora é a sua vez. Ele ativou a esfera. A garra começou a girar como um saca-rolha. O mecanismo rodou o círculo externo de pedra, que rangeu e fez um estrondo, mas felizmente não se quebrou. Em seguida, a garra o soltou, agarrou o segundo círculo e o girou no sentido oposto. Piper, que estava ao lado dele junto do monitor, o beijou no rosto. — Está funcionando. Leo, você é incrível. Leo sorriu. Estava prestes a fazer um comentário sobre como ele era mesmo incrível quando se lembrou do plano que tinha combinado com Hazel e Frank e do fato de que podia nunca mais tornar a ver Piper depois do dia seguinte. A piada meio que morreu em sua garganta. — É, bem… obrigado, Miss Universo. Abaixo deles, o último anel de pedra girou e parou com um chiado pneumático retumbante. A base de quinze metros de diâmetro afundou, transformando-se em uma escada em espiral. Hazel soltou o ar dos pulmões. — Leo, mesmo daqui de cima, estou sentindo coisas ruins no fim dessa escada. Alguma coisa grande e perigosa. Tem certeza de que não quer que eu vá antes? — Obrigado, Hazel, mas vamos ficar bem. — Ele deu um tapinha nas costas dela. — Eu, Piper e Jason… nós três somos profissionais com coisas grandes e perigosas. Frank estendeu o frasco de menta pilosiana. — Não quebre. Leo assentiu com seriedade. — Ok, não quebrar o frasco de veneno mortal. Cara, ainda bem que você avisou. Nunca teria passado pela minha cabeça. — Cale a boca, Valdez. — Frank lhe deu um abraço de urso. — E cuidado. — Minhas costelas — gemeu Leo. — Desculpe.
Annabeth e Percy lhes desejaram boa sorte. Em seguida, Percy pediu licença para ir vomitar. Jason invocou os ventos e levou Piper e Leo para pousar lá embaixo.
* * *
A escada em espiral descia cerca de vinte metros para então se abrir em uma câmara tão grande quanto o bunker 9, ou seja: enorme. As lajotas polidas nas paredes e no chão refletiam a luz da espada de Jason tão bem que Leo não precisou acender uma chama. Fileiras de bancos de pedra compridos enchiam toda a câmara, lembrando a Leo uma dessas igrejas imensas que sempre anunciavam lá em Houston. Do outro lado do salão, onde deveria ficar o altar, havia uma estátua de três metros de puro alabastro, uma jovem de túnica branca e sorriso sereno no rosto. A figura tinha uma serpente dourada enrolada no braço e segurava uma taça, com a cabeça do réptil apoiada na borda como se o animal fosse beber. — Grande e perigosa — comentou Jason. Piper olhou em volta. — Aqui devia ser a área de pernoite. — Sua voz ecoou um pouco alto demais para o gosto de Leo. — Os pacientes dormiam aqui. O deus Asclépio mandava um sonho para eles, dizendo qual cura deveriam pedir. — Como sabe disso? — perguntou Leo. — Annabeth contou a você? Piper pareceu ofendida. — Eu sei das coisas. Aquela estátua é de Hígia, a deusa da boa saúde. É daí que vem a palavra higiene. Jason observou a estátua com desconfiança. — E essa cobra e a taça? — Hum, não tenho certeza — admitiu Piper. — Mas antigamente este lugar, o Asclepeion, era também uma escola de medicina. Todos os melhores doutoressacerdotes eram treinados aqui. Eles deviam cultuar tanto Asclépio quanto Hígia. Leo teve vontade de dizer: Tudo bem, o tour foi ótimo. Agora vamos embora. O silêncio, as lajotas brancas cintilantes, o sorriso assustador no rosto de Hígia… tudo lhe dava vontade de cair fora dali o mais rápido possível. Mas Jason e Piper seguiram pelo corredor principal na direção da estátua, então Leo achou melhor ir atrás deles. Havia revistas velhas jogadas nos bancos: O melhor para crianças, outono, 20 AEC; A semana na tevê Hefesto: A nova gravidez de Afrodite; A — A revista de Asclépio: Dez dicas simples para tirar o máximo de suas sangrias! — É uma sala de espera — murmurou Leo. — Odeio salas de espera.
Em alguns pontos, havia pilhas de poeira e ossos espalhados pelo chão, o que não revelava coisas animadoras sobre o tempo de espera. — Olhem lá. — Jason apontou. — Aqueles avisos estavam ali quando chegamos? E aquela porta? Leo achava que não. Na parede à direita da estátua havia dois painéis eletrônicos. O de cima dizia:
O MÉDICO ESTÁ: PRESO.
O painel abaixo dizia:
ATENDENDO AGORA A SENHA: 0000000
Jason apertou os olhos. — Não consigo ler a essa distância. O médico está… — Preso — completou Leo. — Apolo me avisou que Asclépio estava sendo mantido sob vigilância. Zeus não queria que ele revelasse seus segredos médicos ou algo assim. — Aposto vinte e um pacotes de jujuba que a estátua é a guardiã — disse Piper. — Nem vou entrar nessa aposta. — Leo olhou para a pilha de poeira mais próxima. — Bem… acho melhor pegarmos um número.
* * *
A estátua gigante tinha outros planos. Quando os três chegaram a um metro e meio de distância, ela virou a cabeça e olhou para eles. Sua expressão permaneceu congelada. A boca não se mexeu. Mas uma voz vinda de algum ponto acima dos três ecoou por todo o salão. — Vocês têm hora marcada? Piper não perdeu tempo: — Oi, Hígia! Apolo nos mandou. Precisamos ver Asclépio. A estátua de alabastro desceu de sua plataforma. Talvez ela fosse mecânica, mas Leo não conseguia ouvir nenhuma parte móvel. Para ter certeza, teria que tocá-la, e ele não queria chegar tão perto.
— Entendo. — A estátua não parava de sorrir, apesar do tom aborrecido. — Podem me emprestar a carteirinha do plano de saúde? — Ah, bem, não trouxemos, mas… — Não estão com a carteirinha do plano? — A estátua balançou a cabeça. Um suspiro exasperado ecoou pela câmara. — Imagino que vocês também não tenham se preparado para a consulta. Lavaram bem as mãos? — Hum… sim? — disse Piper. Leo olhou para as próprias mãos, que, como sempre, estavam sujas de graxa e fuligem. Ele as escondeu às costas. — Estão usando roupa de baixo limpa? — perguntou a estátua. — Ei, moça — disse Leo. — Isso está ficando muito invasivo. — É necessário usar roupa de baixo limpa para ir ao consultório médico — repreendeu Hígia. — Infelizmente, vocês são um risco para a saúde. Vão ter que ser higienizados antes de entrarem. A serpente dourada se desenrolou e desceu de seu braço, recuou a cabeça e sibilou, exibindo presas que pareciam sabres. — Ah, sabe — disse Jason —, ser higienizado por serpentes gigantes não está incluído em nosso plano de saúde. Droga. — Ah, isso não tem importância — assegurou-lhes Hígia. — A higienização é um serviço para a comunidade. É gratuito! A serpente deu o bote. Leo tinha muita prática em se esquivar de monstros mecânicos, o que foi útil, porque a serpente era rápida e passou a centímetros de sua cabeça. Ele rolou e se levantou com as mãos em chamas. Quando a cobra atacou, ele as lançou na direção de seus olhos, fazendo-a desviar para a esquerda e bater com força em um banco. Piper e Jason estavam cuidando de Hígia. Eles cortaram os joelhos da estátua com suas lâminas, derrubando-a como uma árvore de Natal de alabastro. A cabeça dela bateu em um banco. Seu cálice virou, derramando ácido por todo o chão. Jason e Piper se aproximaram para matá-la, mas, antes que pudessem golpeá-la, as pernas de Hígia se uniram novamente, como se tivessem ímãs. A deusa se levantou, ainda sorrindo. — É inaceitável — disse ela. — O médico só vai vê-los quando estiverem devidamente higienizados. Ela jogou o conteúdo de sua taça na direção de Piper, que saltou para o lado enquanto mais ácido caía nos bancos próximos, dissolvendo a rocha em uma nuvem sibilante de fumaça. Nesse meio-tempo, a cobra recobrou os sentidos. Seus olhos de metal derretido se consertaram de alguma maneira. Sua cabeça se desamassou e recuperou a inabalável forma, como um capô de carro.
Ela atacou Leo, que se abaixou e tentou agarrá-la pelo pescoço. Foi como tentar segurar uma lixa a sessenta quilômetros por hora. A serpente passou direto, e sua pele áspera de metal deixou as mãos de Leo raladas e sangrando. O contato rápido, porém, foi suficiente para Leo perceber algumas coisas. A cobra era uma máquina. Ele sentiu seu funcionamento, e se a estátua de Hígia funcionasse de forma parecida, talvez houvesse uma chance… Do outro lado da câmara, Jason levantou voo e arrancou a cabeça da deusa. Mas, infelizmente, a cabeça voou direto de volta para seu lugar. — Inaceitável — disse Hígia, calmamente. — Decapitação não faz parte de um estilo de vida saudável. — Jason, vem pra cá! — berrou Leo. — Piper, preciso que você ganhe tempo para nós! Piper olhou para ele como quem diz Falar é fácil. — Hígia! — gritou ela. — Eu tenho plano de saúde! Isso chamou a atenção da estátua. Até a cobra dourada se virou para ela, como se plano de saúde fosse alguma espécie de roedor saboroso. — Plano de saúde? — disse a estátua com avidez. — Qual? — Hum… Raio Azul — respondeu Piper. — Estou com a carteirinha bem aqui. Só um segundo. Ela fez uma cena fingindo revistar os bolsos. A cobra rastejou para mais perto a fim de acompanhar. Jason correu para o lado de Leo, arfando. — Qual é o plano? — Não podemos destruir essas coisas — contou Leo. — Elas foram projetadas para se curarem. São imunes a praticamente qualquer tipo de dano. — Ótimo. Então…? — Você se lembra do videogame velho de Quíron? — perguntou Leo. Os olhos de Jason se arregalaram. — Leo, isso aqui não é o Mario Party 6. — Mas é o mesmo princípio. — Modo idiota? Leo sorriu. — Preciso que você e Piper distraiam as duas. Vou reprogramar a cobra, depois a grandalhona. — Hígia. — Que seja. Pronto? — Não. Leo e Jason correram na direção da cobra. Hígia estava cobrindo Piper de perguntas sobre o plano de saúde. — A mensalidade está em dia? Ainda está em carência? Quem é sua divindade de contato de emergência?
Enquanto Piper respondia de improviso, Leo pulou sobre as costas da serpente. Dessa vez, ele sabia o que estava procurando, e por um instante a serpente nem pareceu notá-lo. Leo abriu um painel perto da cabeça da cobra. Ele se segurava com as pernas, tentando ignorar a dor e o sangue grudento nas mãos enquanto refazia a fiação da serpente. Jason estava por perto, pronto para atacar, mas a cobra parecia hipnotizada pelos problemas de Piper com a cobertura do plano Raio Azul. — Então, a enfermeira que me atendeu disse que eu tinha que ligar para a central de atendimento. E que os medicamentos não estavam cobertos pelo meu plano! E que… A cobra se moveu bruscamente quando Leo conectou os dois últimos fios. O garoto então saltou das costas dela, e a serpente dourada começou a tremer sem parar. Hígia voltou o olhar para eles. — O que vocês fizeram? Minha cobra precisa de cuidados médicos! — Ela tem plano de saúde? — perguntou Piper. — O QUÊ? A estátua voltou sua atenção para Piper, e Leo saltou. Jason invocou uma rajada de vento, que carregou Leo até os ombros da estátua, como um menininho na corcunda do pai. Leo abriu a parte de trás da cabeça de Hígia enquanto ela andava sem rumo pela câmara derramando ácido. — Saia daí! — berrou ela. — Isso não é higiênico. — Ei! — berrou Jason, voando em círculos ao redor dela. — Eu tenho algumas perguntas sobre as minhas carências! — O quê!? — exclamou a estátua. — Hígia! — gritou Piper. — Preciso de um recibo para o imposto de renda! — Não, por favor! Leo encontrou o chip de controle da estátua. Apertou alguns botões e puxou alguns fios, tentando fingir que Hígia fosse um console da Nintendo, só que grande e perigoso. Ele reconectou os circuitos, e Hígia começou a girar, gritando e agitando os braços. Leo pulou para longe dela, evitando um banho de ácido. Todos os semideuses recuaram enquanto Hígia e sua cobra pareciam ter um ataque epilético. — O que você fez? — perguntou Piper. — Modo idiota — explicou Leo. — Como? — Lá no acampamento — explicou Jason —, Quíron tinha um jogo antigo na sala de recreação. Leo e eu jogávamos de vez em quando. Você compete contra, tipo, adversários controlados pelo computador. Era bem tosco… — E tinha três níveis de dificuldade — cortou Leo. — Fácil, médio e difícil.
— Eu já joguei videogames — disse Piper. — Então o que você fez? — Bem, eu me cansei do jogo. — Leo deu de ombros. — Então inventei um quarto nível de dificuldade: o modo idiota. Ele faz os adversários agirem de maneira tão estúpida que fica engraçado. Eles sempre escolhem exatamente a coisa errada a fazer. Piper olhava para a estátua e a cobra. Ambas se contorciam e começavam a soltar fumaça. — Tem certeza de que botou as duas em modo idiota? — Vamos descobrir em um minuto. — E se você botou em dificuldade extra? — Vamos descobrir isso também. A cobra parou de se contorcer, se enroscou e olhou ao redor, como se estivesse muito confusa. Hígia congelou. Uma nuvem de fumaça saiu de sua orelha direita. Ela olhou para Leo. — Você deve morrer! Olá! Você deve morrer! Ela levantou a taça e derramou ácido no próprio rosto. Depois se virou e andou até dar de cara com a parede mais próxima. A serpente deu o bote e bateu com a cabeça várias vezes no chão. — Tudo bem — disse Jason. — Acho que conseguimos o modo idiota. — Olá! Morram! Hígia se afastou da parede e bateu com a cara de novo. — Vamos embora. Leo correu na direção da porta de metal perto da plataforma. Ele segurou a maçaneta. Ainda estava trancada, mas Leo sentiu os mecanismos em seu interior, fios correndo pelo portal, conectados com… Ele olhou para os dois painéis que piscavam acima da porta. — Jason, me dê uma ajudinha. Outra rajada de vento o ergueu no ar. Leo começou a trabalhar com seus alicates, reprogramando os painéis até o do alto se acender com a mensagem:
O MÉDICO ESTÁ: NA PISTA PRA NEGÓCIO.
O painel de baixo dizia:
ATENDENDO AGORA A SENHA: AS GATAS SE AMARRAM NO LEO!
A porta de metal se abriu, e Leo desceu até o chão. — Viu, a espera não foi das piores! — Leo sorriu para os amigos. — O doutor vai nos atender agora.
XXXVI
LEO
NO FIM DO CORREDOR HAVIA uma porta de nogueira com uma placa de bronze:
ASCLÉPIO Médico, dentista, enfermeiro, veterinário, paramédico, deus, cirurgião, pai de santo, milagreiro, curandeiro, Ph.D, LTDA., MBA, DVD, MP3, RSVP, VIP, BPKCT.
A lista devia continuar, mas, àquela altura, o cérebro de Leo tinha explodido. Piper bateu à porta. — Dr. Asclépio? A porta se abriu de repente. O homem que surgiu tinha um sorriso simpático, rugas ao redor dos olhos, cabelo curto e grisalho e barba bem-aparada. Usava jaleco branco por cima de um terno escuro e tinha um estetoscópio pendurado no pescoço — o estereótipo de um médico, exceto por uma coisa: Asclépio segurava um cajado negro polido com uma píton de verdade enrolada nele. Leo não gostou de ver outra cobra. A píton o encarou com seus olhos amarelos pálidos, e Leo teve a sensação de que ela não estava programada no modo idiota. — Olá! — disse Asclépio. — Doutor. — O sorriso de Piper era tão caloroso que teria derretido um Boreada. — Nós ficaríamos tão gratos por sua ajuda. Precisamos da cura do médico. Leo nem era seu alvo, mas o charme de Piper o atingiu de maneira irresistível. Ele teria feito qualquer coisa para ajudá-la a conseguir aquela cura. Teria feito faculdade de medicina, conseguido doze diplomas de doutorado e comprado uma grande píton verde em uma vara. Asclépio pôs a mão no peito. — Ah, minha querida, será um prazer. O sorriso de Piper vacilou. — O senhor vai nos ajudar? Quer dizer, é claro que vai. — Venham! Venham! — Asclépio os convidou a entrar em seu consultório. O sujeito era tão simpático que Leo achou que sua sala estaria cheia de instrumentos de tortura, mas parecia… bem, um consultório médico: uma grande
escrivaninha de madeira, estantes cheias de livros de medicina e alguns daqueles modelos de órgãos de plástico com os quais Leo adorava brincar quando criança. Ele se lembrou de quando arranjou problemas uma vez por ter transformado um rim e alguns ossos da perna em um monstro-rim e assustado a enfermeira. Naquela época, a vida era mais simples. Asclépio sentou-se na grande poltrona de médico e apoiou o cajado e a cobra na mesa. — Por favor, sentem-se! Jason e Piper sentaram-se nas duas cadeiras em frente à mesa. Leo teve que permanecer de pé, o que não foi nenhum problema. Ele não queria ficar cara a cara com a cobra. — Bem. — Asclépio se recostou. — Mal posso dizer a vocês como é bom conversar com pacientes de verdade. Nos últimos milênios, a papelada ficou fora de controle. Depressa, depressa, depressa. Preencha os formulários. Resolva a burocracia. Sem falar na vigia de alabastro gigante que mata todo mundo na sala de espera. Isso tira toda a graça da medicina! — É — disse Leo. — Hígia é meio deprimente. Asclépio sorriu. — A verdadeira Hígia não é assim, garanto a vocês. Minha filha é muito simpática. De qualquer modo, você fez bem ao reprogramar a estátua. Tem mãos de cirurgião. Jason sentiu um calafrio. — Leo com um bisturi? Não dê ideias. O deus médico riu. — Bem, o que posso fazer por vocês? — Ele chegou a cadeira para a frente e olhou atentamente para Jason. — Hum… ferimento de espada de ouro imperial, mas cicatrizou bem. Nada de câncer nem problemas cardíacos. Fique atento a essa mancha no seu pé esquerdo, mas tenho certeza de que é benigna. Jason ficou pasmo. — Como o senhor… — Ah, é claro! — disse Asclépio. — Você é um pouco míope! Fácil de resolver. Ele abriu a gaveta e pegou um bloco de receituário e um estojo de óculos. O deus rabiscou alguma coisa no bloco, depois entregou os óculos e uma folha de papel para Jason. — Fique com os óculos e guarde a receita para futura referência, mas estas lentes devem funcionar. Experimente. — Espere — disse Leo. — Jason é míope? Jason abriu o estojo. — Eu… ultimamente tenho tido um pouco de dificuldade para ver as coisas a certa distância — admitiu ele. — Achei que fosse só cansaço. — Ele
experimentou os óculos, que tinham uma armação fina de ouro imperial. — Uau. É. Muito melhor. Piper sorriu. — Ficou com cara de sério. — Não sei, cara — disse Leo. — Eu ia preferir lentes de contato… daquelas laranja e brilhantes com pupilas de gato. Seria muito legal. — Os óculos ficaram ótimos — disse Jason. — Obrigado, Dr. Asclépio, mas não foi por isso que viemos. — Não? — Asclépio juntou as mãos, apenas tocando as pontas dos dedos. — Bem, vamos ver, então… — Ele se virou para Piper. — Você parece bem, minha querida. Quebrou o braço quando tinha seis anos. Queda de cavalo? Piper ficou boquiaberta. — Como você pode saber uma coisa dessas? — Vegetariana — continuou ele. — Nenhum problema, apenas se lembre de continuar a consumir ferro e proteínas suficientes. Humm… Uma pequena fraqueza no ombro esquerdo. Suponho que tenha sido atingida por algo pesado, há cerca de um mês, talvez? — Um saco de areia, em Roma — disse Piper. — Isso é impressionante. — Se incomodar, alterne compressas frias e quentes — aconselhou Asclépio. — E você… Ele se virou para Leo. — Minha nossa. — A expressão do médico ficou séria. O brilho amistoso desapareceu de seus olhos. — Ah, estou vendo… A expressão nos olhos do doutor dizia Eu sinto muito mesmo. O coração de Leo ficou pesado como concreto. Se ele nutria alguma esperança de evitar o que estava por vir, desapareceu naquele instante. — O quê? — Os óculos novos de Jason brilharam. — Qual o problema com Leo? — Ei, doutor. — Ele lançou para o médico um olhar de esqueça. Com sorte, eles já tinham o conceito de sigilo médico na Grécia Antiga. — Nós viemos em busca da cura do médico. O senhor pode nos ajudar? Tenho um pouco de menta pilosiana aqui e uma margarida amarela muito bonita. Ele pôs os ingredientes na mesa, com cuidado para evitar a boca da serpente. — Espere — disse Piper. — Tem algum problema com Leo ou não? Asclépio pigarreou. — Eu… Não importa. Esqueçam que eu disse qualquer coisa. Bem, vocês querem a cura do médico. Piper fechou a cara. — Mas… — Gente, sério — disse Leo. — Tirando o fato de que Gaia vai destruir o mundo amanhã, eu estou bem. Vamos nos concentrar.
Eles não pareceram muito convencidos, mas Asclépio simplesmente seguiu com a conversa: — Esta margarida foi colhida por meu pai, Apolo? — Foi — disse Leo. — Ele mandou beijos e abraços. Asclépio pegou a flor e a cheirou. — Espero que meu pai saia bem dessa guerra. Zeus pode ser… bastante injusto. Agora, o único ingrediente que está faltando são os batimentos do deus acorrentado. — Está comigo — disse Piper. — Pelo menos eu posso invocar os makhai. — Excelente. Só um instante, querida. — Ele olhou para sua serpente. — Espeto, está pronto? Leo segurou o riso. — O nome da sua cobra é Espeto? Espeto olhou para ele de modo sinistro; então sibilou e abriu uma coroa de espinhos em torno do pescoço, como um basilisco. O riso de Leo morreu em sua garganta. — Foi mal — disse ele. — Claro que seu nome é Espeto. — Ele é um pouco mal-humorado — disse Asclépio. — As pessoas vivem confundindo o meu cajado com o de Hermes, que obviamente tem duas cobras. Há séculos as pessoas consideram o cajado de Hermes o símbolo da medicina, quando, é claro, deveria ser o meu cajado. Espeto se sente ofendido. George e Martha ficam com toda a atenção. Enfim… Asclépio pôs a margarida e o veneno diante de Espeto. — Menta pilosiana, morte certa. A maldição de Delos, enraizando o que não pode ser enraizado. Agora o ingrediente final, os batimentos do deus acorrentado, caos, violência e medo da mortalidade. — Ele se virou para Piper. — Querida, pode invocar os makhai. Piper fechou os olhos. Um turbilhão de vento invadiu a sala. Vozes raivosas gritavam. Leo sentiu uma vontade estranha de acertar Espeto com um martelo. Queria estrangular o bom doutor com as próprias mãos. Então a cobra abriu a boca e engoliu o vento furioso. Seu pescoço inflou como um balão quando os espíritos da batalha passaram por sua garganta. Depois Espeto engoliu a margarida e o frasco de menta pilosiana, de sobremesa. — O veneno não vai fazer mal a ele? — perguntou Jason. — Não, não — garantiu Asclépio. — Esperem só para ver. No momento seguinte, a cobra Espeto regurgitou um frasco: um tubo de vidro do tamanho do dedo de Leo. Em seu interior brilhava um líquido vermelhoescuro. — A cura do médico. — Asclépio pegou o frasco e o virou para a luz. Sua expressão ficou séria, depois confusa. — Esperem… por que eu concordei em
fazer isso? Piper pôs a mão na mesa com a palma virada para cima. — Porque nós precisamos disso para salvar o mundo. É muito importante. O senhor é o único que pode nos ajudar. O charme era tão poderoso que até Espeto, a cobra, ficou mais calmo. Ele se enroscou em torno do cajado e pegou no sono. A expressão de Asclépio se tranquilizou, como se ele estivesse relaxando em uma banheira de água quente. — É claro — disse o deus. — Tinha esquecido. Mas vocês devem tomar cuidado. Hades odeia quando eu trago pessoas dos mortos. Na última vez que dei essa poção a uma pessoa, o senhor do Mundo Inferior reclamou com Zeus, e eu fui morto por um raio. BUM! Leo ficou perplexo. — Você está muito bem para um morto. — Ah, eu melhorei. Isso foi parte do acordo. Sabe, quando Zeus me matou, meu pai, Apolo, ficou muito aborrecido. Ele não podia descarregar sua raiva diretamente em Zeus; afinal, o rei dos deuses era poderoso demais. Então, em vez disso, Apolo resolveu se vingar nos criadores dos raios. Ele matou alguns dos ciclopes anciãos. Por causa disso, Zeus castigou Apolo… severamente. No fim, para trazer a paz, Zeus concordou em me tornar o deus da cura, com a condição de que eu não trouxesse mais ninguém de volta à vida. — Nesse momento, os olhos de Asclépio se encheram de desconfiança. — E aqui estou eu… dando a cura a vocês. — O senhor está disposto a abrir uma exceção, pois sabe quanto isso é importante — disse Piper. — É… — Com relutância, Asclépio entregou o frasco a Piper. — De qualquer modo, a poção deve ser usada o mais rápido possível após a morte. Pode ser injetada ou derramada na boca. E só há o suficiente para uma pessoa. — Ele olhou diretamente para Leo. — Vocês entenderam? — Sim — prometeu Piper. — Tem certeza de que o senhor não quer vir com a gente, Asclépio? Sua guardiã está incapacitada. O senhor seria de grande ajuda a bordo do Argo II. Asclépio sorriu com saudade. — O Argo… Na época em que eu era um semideus, viajei no navio original, sabiam? Ah, ser novamente um aventureiro sem preocupações! — Sim… — murmurou Jason. — Sem preocupações. — Mas, infelizmente, não posso. Zeus já vai ficar com muita raiva de mim por ajudar vocês. Além disso, minha guardiã logo vai se reprogramar sozinha. Vocês devem partir. — Asclépio se levantou. — Desejo tudo de bom para vocês, semideuses. E se tornarem a ver meu pai, por favor… peçam desculpas a ele por mim.
Leo não entendeu o que o médico queria dizer com aquilo, mas eles foram embora. Quando passaram pela sala de espera, a estátua de Hígia estava sentada em um banco, derramando ácido no rosto e cantando “Brilha, brilha, estrelinha” enquanto a cobra dourada mordia seu pé. A cena pacífica quase foi suficiente para deixar Leo animado.
* * *
Quando voltaram ao Argo II, eles se reuniram no refeitório e contaram tudo para os outros. — Não gostei do jeito como Asclépio olhou para Leo… — disse Jason. — Ah, ele só percebeu a dor que eu sinto no coração. — Leo tentou sorrir. — Estou morrendo de saudade de Calipso. — Isso é tão lindo — disse Piper. — Mas não sei se é bem isso. Percy olhou com uma expressão séria para o frasco vermelho reluzente que estava sobre a mesa, bem no meio. — Qualquer um de nós pode morrer, certo? Então vamos precisar manter essa poção sempre à mão. — Isso supondo que apenas um de nós morra — observou Jason. — Só tem uma dose. Hazel e Frank olharam para Leo. Ele lançou para os dois um olhar que dizia Parem com isso. Os outros não viam o quadro completo: Em tempestade ou fogo, o mundo terá acabado… Jason ou Leo. Em Olímpia, Nice tinha avisado que um dos quatro semideuses que estavam lá iria morrer: Percy, Hazel, Frank ou Leo. Só um nome estava nessas duas listas: Leo. E para que o plano dele funcionasse, o garoto não poderia ter ninguém por perto quando apertasse o gatilho. Seus amigos nunca aceitariam sua decisão. Iam discutir. Iam tentar salvá-lo. Iam insistir em procurar outra maneira. Mas Leo estava convencido de que dessa vez não havia outra maneira. Era como Annabeth sempre dizia: lutar contra uma profecia nunca funcionava. Só criava mais problemas. Ele tinha que garantir que aquela guerra terminaria, de uma vez por todas. — Temos que manter nossas opções em aberto — sugeriu Piper. — Precisamos, tipo, designar uma pessoa para levar a poção, alguém que possa reagir rapidamente e curar quem quer que seja morto. — Boa ideia, Miss Universo — mentiu Leo. — Eu escolho você. Piper piscou.
— Mas… Annabeth é mais sábia. Hazel pode chegar mais rápido em Arion. Frank pode se transformar em animais… — Mas você tem o coração. — Annabeth apertou a mão da amiga. — Leo tem razão. Quando chegar a hora, você vai saber o que fazer. — É — concordou Jason. — Tenho a sensação de que você é a melhor escolha, Pipes. Você vai estar lá com a gente no fim, aconteça o que acontecer, tempestade ou fogo. Leo pegou o frasco. — Todo mundo de acordo? Ninguém se opôs. Leo olhou nos olhos de Hazel. Você sabe o que precisa fazer. Ele puxou um pedaço de camurça de seu cinto de ferramentas e fez um grande teatro para embrulhar a cura do médico. Depois, entregou o embrulho para Piper. — Então, tudo bem — disse ele. — Próxima parada: Atenas. Preparem-se para encarar alguns gigantes. — É… — murmurou Frank. — Tenho certeza de que vou dormir bem. Depois que as pessoas deixaram a mesa, Jason e Piper tentaram dar uma prensa em Leo. Queriam conversar sobre o que tinha acontecido no consultório do deus, mas Leo se esquivou. — Tenho que trabalhar no motor — disse ele, o que era verdade. Quando chegou à sala das máquinas, com apenas Buford, a Mesa Maravilhosa, como companhia, Leo respirou fundo. Levou a mão ao cinto de ferramentas e pegou o verdadeiro frasco com a cura do médico, não a versão truque-da-Névoa que entregara a Piper. Buford soprou vapor sobre ele. — Ei, cara, eu tive que fazer isso — defendeu-se Leo. Buford ativou o Hedge holográfico: “VISTA ALGUMA COISA!” — Olhe, esse é o único jeito. Do contrário, todos nós vamos morrer. Buford emitiu um ruído agudo e melancólico, depois foi chacoalhando para um canto, emburrado. Leo olhou para o motor. Ele tinha gastado muito tempo construindo-o. Havia dedicado meses de suor, dor e solidão. Agora o Argo II se aproximava de seu destino final. A vida inteira de Leo, a infância com Tía Callida, a morte da mãe no incêndio do armazém, seus anos como filho adotivo, os meses no Acampamento Meio-Sangue com Jason e Piper… Tudo isso culminaria na manhã seguinte em uma única batalha final. Ele abriu o painel de serviço. A voz de Festus crepitou pelo sistema de comunicação. — É, parceiro — concordou Leo. — Está na hora. Mais estalidos.
— Eu sei. Juntos até o fim? Festus emitiu um ruído agudo, concordando. Leo conferiu o antigo astrolábio de bronze, que agora estava com o cristal de Ogígia encaixado. Só podia torcer para que funcionasse. — Vou voltar para você, Calipso — murmurou Leo. — Eu jurei pelo Rio Estige. Ele acionou um botão e ligou o sistema de navegação on-line. Ajustou o timer para vinte e quatro horas. Por fim, abriu a saída de ventilação do motor e empurrou lá dentro o frasco com a cura do médico. O frasco desapareceu nas entranhas do navio com um tump definitivo. — Agora é tarde demais para voltar atrás — disse Leo. Ele se encolheu no chão e fechou os olhos, determinado a aproveitar o ruído familiar do motor pela última vez.
XXXVII
REYNA
— VOLTE! Reyna não gostava de dar ordens a Pégaso, o senhor dos cavalos alados, mas gostava menos ainda de ser derrubada do céu. Quando se aproximavam do Acampamento Meio-Sangue, antes das primeiras horas do dia primeiro de agosto, ela avistou seis onagros romanos. Mesmo no escuro, o revestimento em ouro imperial dos mecanismos reluzia. Os enormes braços de lançamento se vergavam para trás como mastros de navio adernando em uma tempestade. Equipes de artilheiros corriam em torno dos onagros, carregando-os e conferindo a torção das cordas. — O que são essas coisas? — perguntou Nico, aos gritos. Ele voava uns seis metros à esquerda dela, no pégaso negro Blackjack. — Armas de cerco — respondeu Reyna. — Se avançarmos mais, podem nos derrubar do céu. — Desta altura? À direita dela, montado em Guido, o treinador Hedge gritou: — São onagros, garoto! Essas coisas acertam mais alto que um chute do Bruce Lee! — Lorde Pégaso — disse Reyna, botando a mão no pescoço do garanhão —, precisamos de um lugar seguro para aterrissar. Pégaso deve ter entendido, pois fez uma curva para a esquerda. Os outros cavalos alados foram atrás dele: Blackjack, Guido e os seis que levavam a Atena Partenos, pendurada por cabos. Enquanto davam a volta na extremidade oeste do acampamento, Reyna pôde observar o cenário completo. A legião estava posicionada na base das colinas a leste, pronta para atacar ao amanhecer. Os onagros ficavam na retaguarda, em um semicírculo espaçado, com intervalos de trezentos metros entre um e outro. A julgar pelo tamanho das armas, Reyna calculou que Octavian tinha poder de fogo suficiente para destruir todos os seres vivos do vale. Mas isso era apenas parte da ameaça. Havia centenas de forças auxiliares acampadas ao longo dos flancos da legião. Embora fosse difícil enxergar no escuro, Reyna identificou pelo menos uma tribo de centauros selvagens e um exército de cinocéfalos, os homens com cabeça de cachorro que séculos antes tinham feito uma trégua instável com a legião. Os romanos estavam em grande inferioridade numérica, cercados por um mar de aliados não confiáveis.
— Ali. — Nico apontou na direção do Estreito de Long Island, onde as luzes de um iate grande brilhavam a uns quinhentos metros da costa. — Podíamos pousar no convés daquele iate. Os gregos controlam o mar. Reyna duvidava que os gregos seriam minimamente mais amistosos que os romanos, mas pelo visto Pégaso gostou da ideia, pois desviou na direção das águas escuras do estreito. A embarcação tinha cem pés de comprimento, linhas elegantes e portas de cor escura. Na proa, em letras vermelhas, estava pintado o nome MI AMOR. No tombadilho havia um heliporto grande o suficiente para a Atena Partenos. Reyna não viu ninguém a bordo. O iate devia ser um mero barco mortal, ancorado apenas para a noite, mas se fosse uma armadilha… — É nossa melhor opção — disse Nico. — Os cavalos estão cansados. Precisamos descer. Ela assentiu com relutância. — Vamos lá. Pégaso aterrissou no convés de proa com Guido e Blackjack. Os outros seis cavalos baixaram a Atena Partenos cuidadosamente no heliporto, depois pousaram ao redor da estátua. Com os cabos e arreios, pareciam cavalinhos de carrossel. Reyna desmontou. Tal qual fizera dois dias antes, ao conhecer Pégaso, ajoelhou-se diante do cavalo. — Obrigada, ó grandioso. Pégaso abriu as asas e inclinou a cabeça. Mesmo naquele momento, depois de percorrer metade da costa leste americana nas asas de Pégaso, Reyna mal podia acreditar que o cavalo imortal lhe havia permitido montá-lo. Reyna sempre o imaginara completamente branco, com asas como as de uma pomba, mas Pégaso tinha pelagem castanha com pintas douradas e vermelhas em torno do focinho. Hedge dizia que as pintas eram marcas de nascença, dos pontos em que o cavalo emergira do sangue e do icor de sua mãe decapitada, Medusa. As asas de Pégaso eram das cores de asas de águia (dourado, branco, marrom e ferrugem), o que o deixava muito mais belo e imponente do que se fosse apenas branco. Ele tinha a cor de todos os cavalos, representando toda a sua linhagem. O poderoso Pégaso relinchou. Hedge foi até eles para traduzir. — Pégaso diz que precisa partir antes de a batalha começar. Sabe, a força vital dele conecta todos os pégasos, então se ele for ferido, todos os cavalos alados sentem sua dor. É por isso que ele não sai muito. Ele é imortal, mas seus descendentes não. E Pégaso não quer que eles sofram por sua causa. Ele ordenou
aos outros cavalos que ficassem conosco para nos ajudar a completar nossa missão. — Eu entendo — disse Reyna. — Obrigada. Pégaso relinchou. Hedge arregalou os olhos. Ele engoliu um soluço, depois pegou um lenço na mochila e secou os olhos. — Treinador? — Nico franziu a testa, preocupado. — O que Pégaso disse? — Ele disse que não foi por causa da minha mensagem que veio nos ajudar. — Hedge se virou para Reyna. — Foi por sua causa. Ele sente o que todos os outros cavalos alados sentem e acompanhou sua amizade com Cipião. Pégaso disse que nunca ficou tão emocionado com a compaixão de um semideus por um cavalo alado. Ele dá a você o título de Amiga dos Cavalos. É uma grande honra. Os olhos de Reyna lacrimejaram. Ela inclinou a cabeça. — Obrigada, lorde Pégaso. Pégaso bateu com as patas no convés. Os outros cavalos alados relincharam em saudação. Então Pégaso se elevou aos céus e subiu em uma espiral noite adentro. Hedge ficou olhando para as nuvens, pasmo. — Pégaso não aparecia fazia séculos. — Ele deu tapinhas nas costas de Reyna. — Muito bem, romana. Reyna não achava que merecesse crédito por fazer Cipião passar por tanto sofrimento, mas reprimiu o sentimento de culpa. — Nico, é melhor verificarmos o navio — disse ela. — Se houver alguém a bordo… — Você está atrasada. — Ele acariciou o focinho de Blackjack. — Sinto a presença de dois mortais dormindo na cabine principal. Mais ninguém. Não sou nenhum filho de Hipnos, mas mandei para eles alguns sonhos profundos. Deve ser suficiente para que acordem só depois de amanhecer. Reyna tentava não encará-lo. Nos últimos dias, ele tinha ficado muito mais forte. A magia da natureza de Hedge o trouxera de volta da quase morte. Ela já tinha visto Nico realizar coisas impressionantes, mas manipular sonhos… Será que ele sempre fora capaz de fazer isso? O treinador Hedge esfregou as mãos com ansiedade. — Então, quando podemos ir para terra firme? Minha esposa está esperando! Reyna observou o horizonte. Uma trirreme grega patrulhava as águas junto à costa, aparentemente alheia à chegada deles. Nenhum alarme soava. Nenhum sinal de movimento ao longo da praia. Ela captou o vislumbre de um rastro d’água prateado ao luar, uns quinhentos metros a oeste. Uma lancha preta acelerava na direção deles, com todas as luzes apagadas. Reyna torceu para que fosse um mortal. Quando a lancha se
aproximou, Reyna apertou com força o cabo da espada. Na proa da lancha brilhava a forma de uma coroa de louros com as letras SPQR. — A legião mandou um comitê de boas-vindas — comentou Reyna. Nico acompanhou o olhar dela. — Achei que os romanos não tivessem marinha. — Não tínhamos — disse ela. — Pelo visto, Octavian andou bem mais ocupado do que eu pensava. — Então vamos atacar! — exclamou Hedge. — Porque ninguém vai ficar no meu caminho agora que estou tão perto. Reyna contou três pessoas na lancha. Os dois atrás usavam elmos, mas ela reconheceu o rosto triangular e os ombros fortes do líder: Michael Kahale. — Vamos tentar negociar — decidiu Reyna. — Aquele ali é um dos braços direitos de Octavian, mas é um bom legionário. Talvez eu consiga me entender com ele. O vento jogou o cabelo preto de Nico sobre seu rosto. — Mas se não conseguir… A lancha reduziu e parou de costado. Michael gritou de lá: — Reyna, tenho ordens de prendê-la e confiscar a estátua. Vou subir a bordo com mais dois centuriões. Espero que não seja necessário derramar sangue. Reyna tentava controlar as pernas trêmulas. — Suba, Michael! — Ela então se virou para Nico e Hedge. — Se eu não conseguir, estejam preparados. Michael Kahale não vai ser uma luta fácil.
* * *
Michael não estava vestido para combate. Usava apenas a camiseta roxa do acampamento, calça jeans e tênis de corrida. Não portava nenhuma arma visível, o que, no entanto, não tranquilizava Reyna nem um pouco. Seus braços eram grossos como cabos de suspensão, sua expressão acolhedora como um muro. A tatuagem de pomba em seu antebraço parecia mais uma ave de rapina. Com um brilho sombrio no olhar, ele avaliou a cena: a Atena Partenos presa com cabos aos pégasos, Nico empunhando a espada estígia, o treinador Hedge com o taco de beisebol. Os centuriões que acompanhavam Michael eram Leila, da Quarta Coorte, e Dakota, da Quinta. Escolhas estranhas… Leila, filha de Ceres, não era conhecida por sua agressividade. Normalmente era bem equilibrada. E Dakota… Reyna não podia acreditar que o filho de Baco, o oficial mais simpático e de boa índole da legião, pudesse ficar do lado de Octavian. — Reyna Ramírez-Arellano — disse Michael, como se estivesse lendo uma lista de nomes. — Ex-pretora.
— Eu sou pretora — corrigiu-o Reyna. — A menos que eu tenha sido destituída por votação unânime no Senado. É esse o caso? Michael deu um suspiro profundo. Não parecia muito feliz com a tarefa. — Tenho ordens de prendê-la e levá-la a julgamento. — Sob a autoridade de quem? — Você sabe de quem… — Sob quais acusações? — Escute, Reyna… — Michael passou a mão na testa, como se assim pudesse eliminar a dor de cabeça. — Eu também não gosto nada disso. Mas tenho ordens a cumprir. — Ordens ilegais. — É tarde demais para discutir. Octavian assumiu a liderança em uma situação emergencial. Ele tem o apoio da legião. — Isso é verdade? — Ao perguntar isso, Reyna olhou acusadoramente para Dakota e Leila. Leila não conseguia olhá-la nos olhos. Dakota piscava como se estivesse tentando transmitir uma mensagem, mas, sendo ele quem era, ficava difícil saber: poderia estar apenas tremendo por excesso de açúcar de tanto beber Tang. — Estamos em guerra — disse Michael. — Temos que nos manter unidos. Dakota e Leila não foram os mais entusiasmados em se aliar. Octavian deu a eles esta última chance de provarem seu apoio. Se me ajudarem a levar você… de preferência viva, mas morta se necessário… não perderão o posto e terão provado sua lealdade. — Lealdade a Octavian — observou Reyna. — Não à legião. Michael estendeu as mãos como quem se resigna; mãos quase do tamanho de luvas de beisebol. — Você não pode culpar os oficiais por apoiarem Octavian. Ele tem um plano, um bom plano. Ao amanhecer, aqueles onagros vão destruir o acampamento grego sem nenhuma baixa romana. Os deuses serão curados. Nico interveio: — Vocês vão eliminar metade dos semideuses do mundo, metade do legado dos deuses, para curá-los? Vão destruir o Olimpo antes mesmo de Gaia despertar. E ela está despertando, centurião. Michael franziu a testa. — Embaixador de Plutão, filho de Hades… seja lá qual for seu nome, você foi considerado um espião inimigo. Tenho ordens de levá-lo para ser executado. — Se conseguir — disse Nico friamente. Aquela conversa era tão absurda que quase chegava a ser engraçada. Nico tinha vários anos, trinta centímetros e vinte e cinco quilos a menos. Mas Michael não fez um movimento sequer. As veias em seu pescoço pulsavam. Dakota pigarreou.
— Hã… Reyna… venha conosco em paz. Por favor. Podemos resolver isso. Definitivamente ele estava piscando para ela. — Tudo bem, chega de conversa — disse o treinador Hedge, olhando para Michael Kahale de cima a baixo. — Podem deixar comigo que eu acabo com esse palhaço. Já enfrentei maiores. Ao ouvir isso, Michael deu um sorriso de desdém. — Você é um fauno corajoso, mas… — Sátiro! O treinador Hedge avançou sobre o centurião, baixando o taco de beisebol com toda a força. Michael simplesmente tomou o taco da mão dele e o quebrou com o joelho. Depois empurrou o treinador para trás, mas Reyna percebeu que ele não estava tentando machucá-lo. — Chega! — rosnou Hedge. — Agora você me deixou furioso de verdade! — Treinador — alertou Reyna —, Michael é muito forte. Você teria que ser um ogro ou um… De algum ponto lá embaixo na água, uma voz gritou: — Kahale! Por que tanta demora? Michael levou um susto. — Octavian? — Claro que sou eu! — berrou a voz do meio da escuridão. — Cansei de esperar que você cumprisse minhas ordens! Vou subir a bordo. Todo mundo, dos dois lados, largue as armas! Michael franziu a testa. — Hã… senhor? Todo mundo? Até nós? — Você não resolve nenhum problema nem com a espada nem com os punhos, seu grande idiota! Deixe esse lixo graecus comigo! Michael ficou desconfiado, mas fez um gesto para Leila e Dakota, que puseram suas espadas no piso do convés. Reyna olhou para Nico. Obviamente, havia alguma coisa errada. Ela não conseguia pensar em nenhum motivo para Octavian ir até ali e se colocar em risco. Ele com certeza não mandaria que os próprios oficiais largassem as armas. Mas os instintos de Reyna lhe diziam para continuar com o jogo. Ela largou a espada. Nico fez o mesmo. — Estão todos desarmados, senhor — avisou Michael. — Ótimo! — berrou Octavian. Uma silhueta escura surgiu na escada, mas era grande demais para ser Octavian. Uma forma menor com asas planava no ar atrás dele — uma harpia? Quando Reyna percebeu o que estava acontecendo, o ciclope já tinha atravessado o convés em apenas dois passos largos. Ele deu um tapa na cabeça de Michael Kahale, que caiu como um saco cheio de pedras. Dakota e Leila recuaram, alarmados.
A harpia voou até o teto da cabine do convés. Sob a luz do luar, suas penas pareciam da cor de sangue coagulado. — Forte — disse Ella, alisando as penas. — O namorado de Ella é mais forte que os romanos. — Amigos! — falou Tyson, o ciclope, com sua voz grave. Ele levantou Reyna em um braço e Nico no outro. — Viemos salvar vocês. Um viva para nós!
XXXVIII
REYNA
REYNA NUNCA TINHA FICADO TÃO feliz em ver um ciclope; pelo menos até Tyson botá-los no chão e partir para cima de Leila e Dakota. — Romanos maus! — Tyson, espere! — disse Reyna. — Não os machuque! Tyson franziu a testa, confuso. Ele era pequeno para um ciclope; uma criança, na verdade: pouco mais de dois metros de altura, cabelo castanho emaranhado e coberto de crostas de sal da água do mar. Seu único olho era grande e da cor de melado. Ele usava apenas sunga e uma blusa de pijama de flanela, como se não conseguisse decidir se ia nadar ou dormir. Exalava um cheiro forte de manteiga de amendoim. — Eles não são maus? — perguntou Tyson. — Não — disse Reyna. — Estavam apenas cumprindo ordens más. Acho que eles estão arrependidos. Não estão, Dakota? Dakota levantou os braços tão rápido que mais parecia o Super-Homem prestes a levantar voo. — Reyna, eu estava tentando avisar você! Leila e eu tínhamos combinado de surpreender Michael ajudando vocês a derrotá-lo. — Isso mesmo! — Leila quase caiu de costas da amurada. — Mas o ciclope se adiantou e fez isso antes! — Até parece! — zombou o treinador Hedge. Tyson espirrou. — Desculpe. Pelo de bode. Tenho alergia. Nós confiamos em romanos? — Eu confio — disse Reyna. — Dakota, Leila, vocês entendem qual é a nossa missão? Leila assentiu. — Vocês querem devolver a Atena Partenos aos gregos como uma oferta de paz. Por favor, nos deixe ajudar. — É. — Dakota assentiu vigorosamente. — A legião não está nem de perto tão unida quanto Michael afirmou. Não confiamos em todas as forças auxiliares que Octavian reuniu. Nico deu um riso amargo. — É um pouco tarde para ter dúvidas. Vocês estão cercados. Assim que o Acampamento Meio-Sangue cair, esses aliados vão se voltar contra vocês. — Então o que faremos? — perguntou Dakota. — Temos no máximo uma hora antes do nascer do sol.
— Cinco horas e cinquenta e dois minutos — disse Ella, ainda pousada no teto da cabine do convés. — É o horário em que o sol vai nascer no dia primeiro de agosto na costa leste. Horários para meteorologia naval. Uma hora e doze minutos é mais que uma hora. Dakota lançou um olhar atravessado para a harpia. — Eu acato a correção. O treinador Hedge olhou para Tyson. — Corremos algum risco ao entrarmos no Acampamento Meio-Sangue? Mellie está bem? Tyson coçou o queixo, pensativo. — Está bem roliça. — Mas ela está bem? — insistiu Hedge. — Ainda não deu à luz? — O parto ocorre no fim do terceiro trimestre — aconselhou Ella. — Página quarenta e três do Guia da mãe de primeira viagem para… — Eu preciso chegar lá! Hedge parecia prestes a pular do iate e ir nadando. Reyna pôs a mão em seu ombro. — Treinador, vamos levar você até sua esposa, mas vamos fazer isso direito. Tyson, como você e Ella chegaram aqui? — Arco-Íris! — Vocês… vocês pegaram um arco-íris? — Meu amigo cavalo-peixe. — Um cavalo-marinho — corrigiu Nico. — Entendo. — Reyna pensou por um instante. — Você e Ella podem levar o treinador para o acampamento em segurança? — Claro! — disse Tyson. — Com certeza! — Ótimo. Treinador, vá encontrar sua esposa. Diga aos campistas que devo levar a Atena Partenos à Colina Meio-Sangue ao amanhecer. É um presente de Roma para a Grécia, para encerrar nossas desavenças. Se eles puderem não atirar em mim nem me derrubar do céu, eu agradeço. — Pode deixar — disse Hedge. — Mas e a legião romana? — Isso é um problema — disse Leila com ar sério. — Aqueles onagros vão derrubar vocês. — Vamos precisar distraí-los — decidiu Reyna. — Algo que atrase o ataque ao Acampamento Meio-Sangue e, de preferência, deixe essas armas fora de combate. Dakota e Leila, suas coortes vão seguir vocês? — E-eu acho que sim… — gaguejou Dakota. — Mas se pedirmos a eles que cometam traição… — Não é traição — disse Leila. — Não quando estamos agindo sob ordens diretas de nossa pretora. E Reyna ainda é pretora. Reyna se virou para Nico.
— Preciso que você vá com Dakota e Leila. Enquanto eles estiverem criando problemas entre as fileiras, tentando retardar o ataque, você tem que dar um jeito de sabotar aqueles onagros. O sorriso de Nico foi tão sombrio que fez Reyna sentir alívio por ele estar do lado dela. — Vai ser um prazer. Vamos ganhar tempo para você entregar a Atena Partenos. — Hã… — Dakota parecia desconfortável. — Digamos que você consiga entregar esse presente aos gregos; o que vai impedir Octavian de destruir a Atena Partenos depois que a estátua tiver sido entregue? Ele tem muito poder de fogo, mesmo sem os onagros. Reyna olhou para o rosto de marfim de Atena sob o véu da rede de camuflagem. — Quando a estátua for devolvida aos gregos… acho que vai ser difícil destruí-la. Ela tem muita magia. Só decidiu não usar seu poder ainda. Leila se abaixou devagar e pegou sua espada, sem tirar os olhos da Atena Partenos. — Vou confiar na sua palavra. E quanto a Michael, o que fazemos com ele? Reyna olhou para o semideus havaiano, uma montanha roncando. — Coloque-o na lancha em que vocês vieram. Não o machuque nem o amarre. Sinto que, no fundo, Michael está do lado certo. Só teve o azar de ser apadrinhado pela pessoa errada. Nico embainhou sua espada negra. — Tem certeza disso, Reyna? Não quero deixar você sozinha. Blackjack relinchou e lambeu o rosto de Nico. — Argh! Tudo bem, me desculpe. — Nico limpou a baba do cavalo. — Reyna não está sozinha. Ela tem uma tropa de pégasos excelentes. Reyna não teve como não sorrir. — Vou ficar bem. Com sorte, em breve vamos todos nos reencontrar, a tempo de lutar lado a lado contra as forças de Gaia. Tomem cuidado, e Ave Romae! Dakota e Leila repetiram a saudação. Tyson franziu sua única sobrancelha. — Que ave é essa? — Significa Avante, romanos. — Reyna apertou carinhosamente o braço do ciclope. — Mas também Avante, gregos, sem dúvida. — As palavras soaram estranhas em sua boca. Ela encarou Nico. Queria abraçá-lo, mas não sabia se ele receberia bem o gesto. Ela estendeu a mão. — Foi uma honra sair em missão com você, filho de Hades. Nico apertou-lhe a mão com força.
— Você é a semideusa mais corajosa que eu já conheci, Reyna. Eu… A voz do menino falhou, talvez por ele perceber que tinha um grande público assistindo. — Não vou decepcioná-la. Vejo você na Colina Meio-Sangue. O céu começava a clarear no leste quando o grupo se dispersou. Logo Reyna estava no convés do Mi Amor sozinha… exceto pelos oito pégasos e uma estátua de doze metros de altura. Ela tentou acalmar os nervos. Não podia fazer nada até que Nico, Dakota e Leila tivessem tempo de desestabilizar os planos de ataque da legião, mas odiava ficar parada esperando. Logo além da linha escura das montanhas, seus companheiros da Décima Segunda Legião se preparavam para um ataque desnecessário. Se Reyna tivesse ficado com eles, poderia tê-los guiado melhor. Poderia ter impedido a ascensão de Octavian. Talvez o gigante Órion tivesse razão: ela havia falhado como pretora. Reyna se lembrou dos fantasmas nas sacadas de sua casa em San Juan, todos apontando para ela, sussurrando acusações: Assassina. Traidora. Lembrou-se da sensação do sabre de ouro na mão quando acertou o espectro do pai, o rosto dele contorcendo-se em uma expressão de ultraje e traição. Você é uma Ramírez-Arellano!, seu pai sempre repetia. Nunca abandone seu posto. Nunca baixe a guarda. E, acima de tudo, nunca traia os seus! Ao ajudar os gregos, Reyna tinha feito tudo isso. O que se esperava de um romano era que destruísse os inimigos. Mas, em vez disso, Reyna se juntara a eles. Deixara sua legião nas mãos de um louco. O que sua mãe diria? Belona, a deusa da guerra… Blackjack deve ter sentido sua agitação, pois foi até Reyna e esfregou o focinho nela. Ela o acariciou. — Não tenho nenhuma guloseima para você, garoto. Ele bateu a cabeça contra o corpo dela carinhosamente. Nico dissera a Reyna que Blackjack normalmente era a montaria de Percy, mas ele parecia amigável com todo mundo. Tinha levado o filho de Hades sem protestar. E agora estava confortando uma romana. Ela abraçou o poderoso pescoço do cavalo com os dois braços. A pelagem de Blackjack tinha o mesmo cheiro que a de Cipião, um misto de grama recémcortada e pão quente. Ela deixou escapar um soluço que estava preso em sua garganta fazia algum tempo. Como pretora, Reyna não podia demonstrar fraqueza nem medo na frente de seus companheiros de luta. Tinha que permanecer forte. Mas, aparentemente, o cavalo não se importava. Ele relinchou baixinho. Reyna não falava cavalês, mas achou que ele queria dizer: Está tudo bem. Você agiu bem. Ela olhou para as estrelas, já desbotando no céu.
— Mãe — disse ela —, não tenho rezado o suficiente para você. Nunca a conheci. Nunca pedi sua ajuda. Mas, por favor… me dê forças hoje para fazer o que é certo. Justo nesse momento, um ponto de luz brilhou no horizonte, algo vindo do outro lado do estreito, aproximando-se depressa como se fosse outra lancha. Por um prolongado momento, Reyna pensou que fosse um sinal de Belona. A forma escura se aproximava. A esperança de Reyna foi se transformando em medo. Ela esperou e esperou, paralisada pela incredulidade, enquanto a figura se revelava um grande homem correndo em sua direção pela superfície da água. A primeira flecha acertou Blackjack no flanco. Ele caiu com um guincho de dor. Reyna gritou, mas, antes que pudesse sequer se mexer, uma segunda flecha se cravou no piso bem entre seus pés. Preso ao cabo havia um pequeno display de LED brilhante, do tamanho de um relógio de pulso, marcando uma contagem regressiva começando em 5:00. 4:59. 4:58.
XXXIX
REYNA
— EU NO SEU LUGAR NÃO me mexeria, pretora! Órion estava de pé na superfície da água, quinze metros a estibordo. Em seu arco, uma flecha pronta para ser disparada. Reyna percebeu, através de seu olhar cheio de raiva e pesar, as novas cicatrizes que o gigante trazia. As Caçadoras o haviam deixado com marcas cinza e rosa nos braços e no rosto, de forma que ele parecia um pêssego amassado em processo de putrefação. Seu olho mecânico esquerdo estava escurecido. O cabelo tinha sido totalmente queimado, sobrando apenas algumas mechas esfiapadas. Seu nariz estava inchado e vermelho, consequência da corda de arco que Nico tinha feito arrebentar na cara do gigante. Tudo isso deu a Reyna uma pontada malévola de satisfação. Infelizmente, porém, o gigante continuava com seu sorriso presunçoso. Aos pés de Reyna, o cronômetro na flecha marcava 4:42. — Flechas explosivas são muito sensíveis — disse Órion. — Depois que se cravam em um lugar, até o menor movimento pode detoná-las. Eu não ia querer que você perdesse os últimos quatro minutos da sua vida. Os sentidos de Reyna se aguçaram. Os pégasos, nervosos, batiam os cascos no piso do convés em torno da Atena Partenos. Começava a amanhecer. O vento que soprava da margem trazia um leve aroma de morangos. Deitado ao lado dela no convés, Blackjack tremia e respirava com dificuldade — ainda vivo, mas gravemente ferido. O coração de Reyna batia tão forte que ela teve medo de seus tímpanos estourarem. Para manter Blackjack vivo, transmitiu sua força a ele. Ela não ia deixá-lo morrer. Reyna queria gritar insultos para o gigante, mas suas primeiras palavras foram surpreendentemente calmas: — O que aconteceu com minha irmã? O branco dos dentes de Órion reluziu em seu rosto arruinado. — Eu adoraria dizer que ela está morta. Adoraria ver a dor no seu rosto. Infelizmente, pelo que sei, sua irmã ainda está viva. Assim como Thalia Grace e aquelas Caçadoras irritantes. Elas me surpreenderam, tenho que admitir. Fui forçado a fugir para o mar. Passei os últimos dias ferido e sentindo dor, curandome lentamente e construindo um arco novo. Mas não se preocupe, pretora. Você vai morrer primeiro. Sua preciosa estátua será queimada em uma grande fogueira. Depois que Gaia despertar, quando o mundo mortal estiver em ruínas,
vou encontrar sua irmã. Vou dizer a ela que você morreu sofrendo. E depois vou matá-la. — Ele sorriu. — Então está tudo certo! 4:04. Hylla estava viva. Thalia e as Caçadoras ainda continuavam por aí, em algum lugar. Mas nada disso importaria se a missão de Reyna falhasse. O sol nascia no último dia do mundo… Blackjack começou a respirar com mais dificuldade. Reyna reuniu sua coragem. O cavalo alado precisava dela. Lorde Pégaso a nomeara Amiga dos Cavalos, e ela não iria decepcioná-lo. Por enquanto ela não podia pensar no mundo inteiro. Tinha que se concentrar no que precisava de atenção imediata. 3:54. — Então. — Ela encarava Órion com furor no olhar. — Você está ferido e feio, mas não morto. Acho que isso significa que vou precisar da ajuda de um deus para matar você. Órion deu uma risadinha. — Infelizmente, os romanos nunca foram muito bons em invocar deuses para ajudá-los. Acho que eles não têm muita consideração por vocês. Reyna ficou tentada em concordar. Ela havia rezado para a mãe… e fora abençoada com a chegada de um gigante homicida. Um apoio daqueles. Mas… Reyna riu. — Ah, Órion. O sorriso do gigante vacilou. — Você tem um senso de humor estranho, garota. Do que está rindo? — Belona respondeu sim a minha oração. Ela não luta minhas batalhas por mim. Não me garante uma vitória fácil. Ela me dá oportunidades de provar meu valor; me dá inimigos fortes e aliados em potencial. O olho esquerdo de Órion cintilou. — Quanta baboseira. Você e sua estátua grega preciosa estão prestes a ser destruídas por uma coluna de fogo. Nenhum aliado pode ajudá-la. Sua mãe a abandonou, assim como você abandonou sua legião. — Mas ela não fez isso — disse Reyna. — Belona não era apenas uma deusa da guerra. Ela não era como sua forma grega, Ênio, uma mera incorporação da carnificina. O templo de Belona era o lugar onde os romanos recebiam os embaixadores estrangeiros. Guerras eram declaradas lá, mas também se negociavam tratados de paz. Paz duradoura com base na força. 3:01. Reyna sacou a adaga. — Belona me deu a chance de fazer a paz com os gregos e aumentar a força de Roma. Eu aceitei a missão. Se eu morrer, vou morrer defendendo essa causa.
Por isso digo que minha mãe está comigo hoje. A força dela se somará à minha. Atire sua flecha, Órion. Não vai fazer diferença. Quando eu arremessar esta adaga e perfurar seu coração, você vai morrer. Órion estava de pé sobre as ondas, imóvel, seu rosto uma máscara de concentração. Seu olho bom brilhou cor de âmbar. — Você está blefando — gritou ele. — Já matei centenas como você: garotas brincando de guerra, fingindo que estão à altura dos gigantes! Não vou lhe proporcionar uma morte rápida, pretora. Vou vê-la queimar, tal como as Caçadoras me queimaram. 2:31. Blackjack arquejava, batendo as patas no chão. O céu começava a ficar corde-rosa. Um vento mais forte arrancou a rede de camuflagem da Atena Partenos, fazendo o tecido prateado voar, tremulando, para longe. A estátua brilhou às primeiras luzes do dia, e Reyna imaginou como a deusa ficaria linda na colina que se erguia acima do acampamento grego. Isso precisa acontecer, pensou ela, torcendo para que os pégasos sentissem o que ela pretendia fazer. Vocês têm que completar a jornada sem mim. Reyna fez uma reverência para a Atena Partenos. — Senhora, foi uma honra escoltá-la. Órion escarneceu: — Agora resolveu conversar com estátuas inimigas? Esqueça. Você não tem nem dois minutos de vida. — Ah, mas eu não vivo de acordo com os seus horários, gigante — disse Reyna. — Um romano não espera pela morte. Um romano vai ao encontro dela e a recebe segundo os próprios termos. Ela arremessou a adaga. Acertou em cheio: bem no meio do peito do gigante. Órion gritou em agonia. Que belo último som a se ouvir. Ela puxou para a frente do corpo o manto que vestia e se jogou em cima da flecha explosiva, determinada a proteger Blackjack e os outros pégasos e, com sorte, proteger também os mortais que dormiam no convés inferior. Reyna não tinha ideia se seu corpo seria suficiente para conter a explosão ou se o manto abafaria as chamas, mas aquela era sua melhor chance de salvar seus amigos e a missão. Ela se retesou inteira, esperando morrer. Sentiu a pressão quando a flecha detonou… mas não foi o que ela esperava. A explosão fez apenas um leve pop contra suas costelas, como um balão de aniversário cheio demais. Seu manto ficou desconfortavelmente quente. Nenhuma chama escapou de sob seu corpo. Por que ela ainda estava viva? Levante-se, ordenou uma voz em sua cabeça. Em transe, Reyna obedeceu. Ondas de fumaça escapavam de seu manto. Ela percebeu algo diferente: o tecido roxo brilhava como se a trama tivesse
filamentos de ouro imperial. Aos pés de Reyna, parte do chão tinha sido reduzida a um círculo de carvão, mas o manto não estava nem chamuscado. Aceite meu aegis, Reyna Ramírez-Arellano, disse a voz. Pois hoje você provou ser uma verdadeira heroína do Olimpo. Reyna olhava atônita para a Atena Partenos, que brilhava envolvida por uma leve aura. O aegis… Reyna lembrava, de seus anos de estudo, que o termo aegis não se aplicava apenas ao escudo de Atena. Significava também a capa da estátua. Segundo a lenda, Atena às vezes cortava pedaços de seu enorme manto e os jogava sobre as estátuas de seus templos ou sobre algum herói que ela escolhesse proteger. O manto de Reyna, que a garota usava fazia anos, de repente tinha mudado. O tecido havia absorvido a explosão. Ela tentou dizer alguma coisa, agradecer à deusa, mas a voz não saía. A aura de luz da estátua se extinguiu. O ruído nos ouvidos de Reyna desapareceu. Ela percebeu que Órion ainda gritava de dor, cambaleando pela superfície da água. — Você errou! — Ele arrancou a adaga do peito e a atirou nas ondas. — Ainda estou vivo! Ele armou o arco e disparou, mas a cena se desenrolou como que em câmera lenta. Reyna puxou o manto para a frente do corpo. A flecha se despedaçou contra o tecido. Ela então correu na direção da amurada e saltou sobre o gigante. Era uma distância impossível de se transpor com um salto, mas Reyna sentia uma onda de poder percorrer suas pernas, como se pegasse emprestada a força de sua mãe, Belona — recompensa por toda a força que Reyna emprestara aos outros ao longo dos anos. Reyna apoiou-se no arco do gigante e o usou para dar impulso, saltando como uma ginasta. Foi parar nas costas de Órion. Ela o agarrou pela cintura com as pernas, depois torceu o manto em uma espécie de corda e a enrolou no pescoço do gigante com toda a sua força. Ele instintivamente largou o arco. Órion tentou agarrar-se ao tecido cintilante do manto, mas, ao tocá-lo, seus dedos soltaram fumaça e criaram bolhas. Uma fumaça de odor acre e pungente começou a subir de seu pescoço. Reyna apertou com mais força. — Isto é por Phoebe — rosnou ela no ouvido do gigante. — Por Kinzie. Por todas as que você matou. Você vai morrer pelas mãos de uma garota. Órion se debatia e lutava, mas a força de vontade de Reyna era inabalável. O poder de Atena impregnava seu manto. Belona a abençoava com força e determinação. Não apenas uma — duas deusas poderosas a ajudavam, mas era Reyna quem tinha que terminar de matá-lo. E ela assim o fez.
O gigante caiu de joelhos e afundou na água. Reyna não o soltou até ele parar de se debater e seu corpo dissolver na espuma do mar. O olho mecânico desapareceu sob as ondas. O arco começou a afundar. Reyna deixou que a arma dele sumisse na água. Não estava interessada em espólios de guerra, não tinha nenhum desejo de deixar qualquer parte do gigante sobreviver. Assim como a mania de seu pai e todos os outros fantasmas cheios de raiva que preenchiam seu passado, Órion não tinha nada para ensinar a ela. Ele merecia ser esquecido. Além do mais, estava amanhecendo. Reyna voltou nadando para o iate.
XL
REYNA
NÃO HAVIA TEMPO PARA COMEMORAR a vitória sobre Órion. O focinho de Blackjack espumava. Suas pernas agitavam-se em espasmos. Do ferimento em seu flanco escorria sangue. Reyna recorreu à bolsa de suprimentos que ganhara de Phoebe. Primeiro usou um unguento curativo para limpar o ferimento e depois derramou poção de unicórnio sobre a lâmina do canivete de prata. — Por favor, por favor — murmurava ela para si mesma. Na verdade, Reyna não tinha ideia do que estava fazendo, mas limpou a ferida da melhor maneira possível e segurou firme o cabo da flecha. Se a ponta fosse farpada e ela a arrancasse, acabaria machucando Blackjack ainda mais. Mas, se estivesse envenenada, não podia deixá-la ali. A garota também não podia empurrá-la para fazê-la sair do outro lado, pois estava cravada bem no meio do corpo do cavalo. Reyna teria que optar pelo menor dos males. — Isso vai doer, meu amigo — disse ela a Blackjack. Ele bufou, como se quisesse dizer Conte uma novidade. Usando a adaga, ela fez um talho de cada lado da ferida. E arrancou a flecha. Blackjack emitiu um grito agudo, mas a flecha saiu sem problemas. A ponta não era farpada. Podia estar envenenada, mas não tinha como ela saber. Um problema de cada vez. Reyna passou um pouco mais de unguento sobre o ferimento e fez um curativo. Então pressionou o local por alguns segundos, contando baixinho. Ao que parecia, o sangramento estava diminuindo. Ela então derramou poção de unicórnio na boca de Blackjack. Reyna perdeu a noção do tempo. A pulsação do cavalo ficava cada vez mais estável e firme. Seus olhos já não revelavam dor. Sua respiração se acalmou. Quando Reyna se levantou, tremia de medo e exaustão, mas Blackjack ainda estava vivo. — Você vai ficar bem — prometeu ela. — Vou conseguir ajuda no Acampamento Meio-Sangue. Blackjack fez um ruído incompreensível. Reyna podia jurar que ele tinha tentado dizer donuts. Ela só podia estar começando a delirar. Finalmente percebeu como o céu já havia clareado. A Atena Partenos brilhava ao sol. Guido e os outros cavalos alados batiam com os cascos no convés, impacientes. — A batalha…
Reyna se virou na direção da praia, mas não viu nenhum sinal de combate. Uma trirreme grega balançava na água preguiçosamente na maré da manhã. As colinas exibiam um verde de aparente tranquilidade. Por um instante ela pensou que os romanos tivessem desistido de atacar. Talvez Octavian tivesse caído em si. Talvez Nico e os outros tivessem dissuadido a legião. Então um brilho laranja iluminou os cumes das colinas. Inúmeros rastros de fogo subiram aos céus. Pareciam dedos em chamas. Os onagros tinham disparado sua primeira carga.
XLI
PIPER
PIPER NÃO SE SURPREENDEU COM a chegada dos homens-cobra. Tinha passado a semana inteira pensando naquela vez em que encontrara o bandido Círon, no Argo II. Haviam acabado de escapar de uma tartaruga gigante quando ela fez a besteira de dizer: “Estamos protegidos.” No mesmo instante, uma flecha acertou o mastro principal, a poucos centímetros de seu nariz. Piper havia tirado disso uma lição valiosa: nunca ache que está segura e nunca, nunca tente as Parcas anunciando que você acha que está seguro. E foi por isso que, quando o navio atracou na Baía de Pireu, perto de Atenas, Piper resistiu a uma grande vontade de dar um suspiro de alívio. Claro, eles tinham finalmente alcançado seu destino. Em algum lugar próximo dali — depois dos vários navios de cruzeiro, depois das colinas pontilhadas de casas e prédios —, eles encontrariam a Acrópole. De um jeito ou de outro, a jornada dos sete terminaria aquele dia. Mas isso não significava que ela podia relaxar. A qualquer instante, uma surpresa terrível podia surgir do nada. E a surpresa foram três sujeitos com rabo de cobra em vez de pernas. Piper estava de vigia enquanto os outros se preparavam para o combate — conferindo armas e armaduras, carregando balistas e catapultas — quando avistou os homens-cobra se aproximando pelas docas, rastejando entre multidões de turistas mortais que os ignoravam solenemente. — Hã… Annabeth? — chamou Piper. Annabeth e Percy foram até ela. — Ah, que ótimo — disse Percy. — Dracaenae. Annabeth apertou os olhos. — Acho que não. Pelo menos são diferentes das que eu já vi. As dracaenae têm dois rabos de cobra no lugar das pernas. Esses caras só têm um. — Verdade — disse Percy. — E a parte de cima do corpo deles também parece mais humana. Não é toda escamosa e verde e tal. E aí, vamos recebê-los na base da conversa ou da luta? Piper preferia optar pela luta. Só conseguia pensar na história que contara a Jason sobre o caçador cherokee que tinha virado cobra por quebrar seu tabu. Aqueles três ali deviam ter comido muita carne de esquilo. Estranhamente, o que vinha à frente do trio lembrou a Piper seu pai quando deixara a barba crescer para seu papel em Rei de Esparta. O homem-cobra
vinha com a cabeça bem erguida. Tinha o rosto moreno e cinzelado, os olhos negros como basalto, o cabelo preto cacheado brilhando de gel. Seu tronco era bem musculoso, coberto só por uma clâmide grega — um manto de lã branca que se usava transpassado, preso apenas no ombro. Da cintura para baixo, o estranho tinha um corpo gigante de serpente, com uns dois metros e meio de cauda, que ondulava atrás dele enquanto ele se movia. Em uma das mãos ele carregava um cajado com uma cintilante joia verde no topo. Na outra, trazia uma travessa coberta com uma redoma de prata, como um prato a ser servido em um jantar grã-fino. Os dois sujeitos atrás dele pareciam ser guardas. Usavam peitorais de bronze e elmos elaborados, com uma crista de crina de cavalo no topo. A lança que cada um portava tinha uma pedra verde na ponta; o escudo oval tinha gravada uma grande letra K grega, capa. Eles pararam a alguns metros do Argo II. O líder da comitiva olhou para cima e observou os semideuses. Sua expressão era intensa, mas inescrutável. Ele podia tanto estar com raiva quanto preocupado, ou mesmo precisando desesperadamente ir ao banheiro. — Permissão para subir a bordo. A voz rouca do estranho lembrou a Piper uma navalha sendo passada em um amolador, como na barbearia de seu avô em Oklahoma. — Quem é você? — perguntou ela. Ele fixou os olhos negros nela. — Eu sou Cécrope, o primeiro e eterno rei de Atenas. Gostaria de lhes dar as boas-vindas a minha cidade. — Ele ergueu a travessa coberta. — Trouxe bolo. Piper olhou de soslaio para os amigos. — Uma armadilha? — Provavelmente — disse Annabeth. — Pelo menos ele trouxe a sobremesa. — Percy sorriu para os homenscobra. — Bem-vindos a bordo!
* * *
Cécrope concordou em deixar seus guardas no convés superior com Buford, a mesa, que os mandou deitar no chão e pagar vinte flexões. Os guardas pareceram encarar aquilo como um desafio. Enquanto isso, o rei de Atenas foi conduzido ao refeitório para um encontro de apresentações. — Sente-se, por favor — convidou Jason. Cécrope torceu o nariz. — O povo serpente não senta. — Então continue de pé, por favor — disse Leo.
Ele partiu o bolo e comeu um pedaço antes que Piper tivesse a chance de alertá-lo: poderia estar envenenado, ou não ser comestível para mortais, ou só ruim mesmo. — Uau! — Ele sorriu. — O povo serpente sabe mesmo fazer um bolo. Tem um gostinho de laranja, com um toque de mel. Só precisava de um pouco de leite. — O povo serpente não bebe leite — disse Cécrope. — Somos répteis com intolerância à lactose. — Eu também! — disse Frank. — Quer dizer, tenho intolerância à lactose. Embora eu possa ser um réptil às vezes… — Enfim — interrompeu Hazel. — Rei Cécrope, o que o traz aqui? Como sabia de nossa chegada? — Sei de tudo o que acontece em Atenas — disse Cécrope. — Sou o fundador da cidade, fui o primeiro rei, nascido desta terra. Fui eu quem julguei a disputa entre Atena e Poseidon, eu que escolhi Atena como patrona da cidade. — Sem ressentimentos — murmurou Percy. Annabeth deu uma cotovelada nele. — Já ouvi falar de você, Cécrope. Você foi o primeiro a oferecer sacrifícios a Atena. Construiu para ela o primeiro santuário na Acrópole. — Exato. — A resposta de Cécrope soou amarga, como se ele estivesse arrependido da decisão. — Meu povo eram os atenienses originais, os gemini. — Gêmeos? Tipo o signo do zodíaco? — perguntou Percy. — Eu sou de Leão. — Não, seu idiota — disse Leo. — Não é nada disso. — Vocês dois querem parar com isso? — brigou Hazel. — Acho que ele está querendo dizer gemini como duplo, metade homem, metade cobra. É esse o nome do povo dele. Ele é um geminus, no singular. — Sim… — Cécrope se inclinou para longe de Hazel como se de algum modo ela o tivesse ofendido. — Milênios atrás, fomos expulsos para o subterrâneo pelos humanos de duas pernas, mas eu conheço os caminhos da cidade melhor do que ninguém. Vim alertá-los. Se tentarem se aproximar da Acrópole pela superfície, vocês serão destruídos. — Quer dizer… por você? — perguntou Jason, interrompendo sua degustação do bolo. — Pelos exércitos de Porfírion — disse o rei cobra. — Em volta de toda a Acrópole há grandes armas de cerco… onagros. — Mais onagros? — protestou Frank. — Eles estavam em liquidação ou o quê? — Os ciclopes — deduziu Hazel. — Eles estão fornecendo onagros tanto para Octavian quanto para os gigantes. — Como se precisássemos de mais provas de que Octavian está do lado errado — resmungou Percy. — E essa não é a única ameaça — continuou Cécrope. — O ar está cheio de
espíritos da tempestade e grifos. Todos os caminhos para a Acrópole estão sendo patrulhados pelos Nascidos da Terra. Frank tamborilou os dedos na cúpula que protegia o bolo. — Então o que faremos? Vamos desistir? Não viemos até aqui para isso. — Eu lhes ofereço uma alternativa — disse Cécrope. — A passagem subterrânea até a Acrópole. Por Atena, pelos deuses, ajudarei vocês. Piper sentiu um arrepio na nuca. Ela se lembrou do que a giganta Peribeia lhe dissera em sonho: que os semideuses encontrariam amigos e inimigos em Atenas. Talvez a giganta estivesse falando de Cécrope e seu povo serpente. Mas alguma coisa na voz dele não agradava a Piper, aquele tom de navalha no amolador, como se ele estivesse se preparando para fazer um corte profundo. — Mas…? — perguntou ela. Cécrope virou seus insondáveis olhos negros para ela. — Só um grupo pequeno de semideuses, não mais que três, pode passar despercebido pelos gigantes. Do contrário, eles detectariam a presença de vocês pelo cheiro. Mas nossas passagens subterrâneas podem levá-los direto às ruínas da Acrópole. Lá, vocês poderão neutralizar em segredo as armas de cerco para permitir que o restante da sua tripulação se aproxime. Com sorte, podem pegar os gigantes de surpresa. Assim têm a chance de impedir a cerimônia. — Cerimônia? — perguntou Leo. — Ah… tipo para despertar Gaia. — Já começou, agora mesmo — avisou Cécrope. — Não estão sentindo a terra trepidar? Os gemini são a melhor chance de vocês. Piper notou avidez na voz dele. Quase fome. Percy olhou para os outros ao redor da mesa. — Alguma objeção? — Só algumas — disse Jason. — Estamos às portas do inimigo. E você está nos pedindo para nos dividir. Não é assim que as pessoas acabam morrendo nos filmes de terror? — Além do mais — acrescentou Percy —, Gaia quer que cheguemos ao Partenon. Quer que nosso sangue molhe as pedras e todo esse lixo psicopata. Não estaríamos indo direto para as mãos dela? Os olhos de Annabeth encontraram os de Piper. Em silêncio, ela fez uma pergunta: O que está achando disso tudo? Piper não estava acostumada com aquilo, com Annabeth olhando para ela em busca de conselhos. Desde Esparta elas haviam aprendido que juntas podiam enfrentar problemas de dois modos diferentes. Annabeth via as coisas de forma lógica, o movimento tático, enquanto Piper tinha reações instintivas que eram tudo menos lógicas. Juntas, ou elas resolviam os problemas duas vezes mais rápido, ou confundiam uma à outra completamente. A oferta de Cécrope fazia sentido. Ou pelo menos parecia a opção menos suicida. Mas Piper tinha certeza de que o rei cobra estava ocultando suas
verdadeiras intenções. Ela só não sabia como provar isso… Então se lembrou de algo que seu pai lhe dissera anos antes: Seu nome é Piper porque seu avô Tom achou que você teria uma voz poderosa. Você ia aprender todas as canções cherokee, até mesmo a canção da cobra. Um mito de uma cultura totalmente diferente, mas lá estava ela, encarando o rei do povo serpente. Ela começou a cantar “Summertime”, uma das músicas preferidas do pai. Cécrope ficou olhando para ela em deslumbramento. Até começou a balançar o corpo. No início, a garota sentiu vergonha de estar cantando na frente de todos os seus amigos e de um homem-cobra. Seu pai sempre dissera que Piper tinha uma voz boa, mas ela não gostava de chamar atenção. Não gostava nem de cantar em grupo, em volta da fogueira no acampamento. Agora sua voz era a única a soar no refeitório. Todos ouviam, atônitos. Quando ela terminou a primeira estrofe, todos ficaram alguns segundos em silêncio. — Pipes — disse Jason. — Eu não sabia. — Isso foi lindo — concordou Leo. — Talvez não… você sabe, lindo como Calipso, mas mesmo assim… Piper encarava o rei cobra. — Quais são suas verdadeiras intenções? — Enganar vocês — respondeu ele, em transe, ainda balançando o corpo. — Queremos levá-los para os túneis e destruí-los. — Por quê? — perguntou Piper. — A Mãe Terra nos prometeu grandes recompensas. Se derramarmos o sangue de vocês sob o Partenon, será suficiente para completar o despertar de Gaia. — Mas você serve a Atena — insistiu Piper. — Você fundou a cidade. Cécrope sibilou baixinho: — E, em troca, a deusa me abandonou. Atena me substituiu por um rei de duas pernas, um humano. Levou minhas filhas à loucura; elas pularam para a morte dos penhascos da Acrópole. Os atenienses originais, os gemini, foram expulsos para os subterrâneos e esquecidos. Atena, a deusa da sabedoria, nos deu as costas, mas a sabedoria também vem da terra. Somos, fundamentalmente, filhos de Gaia. A Mãe Terra nos prometeu um lugar ao sol no mundo da superfície. — Gaia está mentindo — disse Piper. — Ela pretende destruir o mundo da superfície, e não dá-lo a ninguém. Cécrope mostrou as presas. — Então não vamos ficar pior do que estávamos sob o domínio dos traiçoeiros deuses!
Ele ergueu o cajado, mas Piper começou outra estrofe de “Summertime”. Os braços do rei cobra amoleceram; seus olhos ficaram vidrados. Depois de mais alguns versos, Piper arriscou mais uma pergunta: — As defesas dos gigantes, a passagem subterrânea até a Acrópole… Até que ponto é verdade o que você nos contou? — É tudo verdade — respondeu Cécrope. — A Acrópole está, sim, fortemente defendida, como descrevi. Qualquer aproximação pela superfície seria impossível. — Então você poderia nos guiar por seus túneis — disse Piper. — Isso também é verdade? Cécrope franziu a testa. — Sim… — E se você mandasse seu povo não nos atacar — prosseguiu ela —, eles obedeceriam? — Sim, mas… — Cécrope estremeceu. — Sim, eles obedeceriam. Mas só três de vocês poderiam ir sem atrair a atenção dos gigantes. Uma sombra cobriu os olhos de Annabeth. — Piper, tentar isso seria loucura. Ele vai nos matar na primeira oportunidade. — É — concordou o rei cobra. — Só a música dessa garota me controla. Eu a odeio. Por favor, cante mais. Piper cantou mais um verso para ele. Leo entrou na dança: pegou duas colheres e começou a batucar na mesa até levar um tapa de Hazel no braço. — Eu devo ir — disse Hazel. — Se é no subterrâneo. — Nunca — disse Cécrope. — Uma filha do Mundo Inferior? Meu povo se revoltaria com a sua presença. Nem a melhor música encantada pelo charme seria suficiente para impedi-los de exterminar vocês. Hazel engoliu em seco. — Talvez seja melhor eu ficar por aqui mesmo. — Eu e Percy — sugeriu Annabeth. — Hum… — Percy ergueu a mão. — Vou levantar o assunto aqui de novo. Isso é exatamente o que Gaia quer, nós dois, nosso sangue molhando as pedras et cetera e tal. — Eu sei. — Annabeth exibia uma expressão grave no rosto. — Mas é a escolha mais lógica. Os santuários mais antigos da Acrópole são dedicados a Poseidon e Atena. Cécrope, isso não ocultaria nossa aproximação? — Sim — admitiu o rei cobra. — Seria difícil identificar o… o cheiro de vocês. As ruínas sempre irradiam o poder desses dois deuses. — E eu — disse Piper ao terminar a música. — Vocês vão precisar de mim para manter nosso amigo aqui na linha. Jason apertou a mão dela.
— Ainda não suporto a ideia de nos dividirmos. — Mas é nossa melhor chance — disse Frank. — Eles três entram lá escondidos, neutralizam os onagros e criam uma distração. Aí a gente chega voando e disparando o fogo das balistas. — Isso — disse Cécrope. — Esse plano pode funcionar. Se eu não matar vocês primeiro. — Tive uma ideia — disse Annabeth. — Frank, Hazel, Leo… vamos conversar. Piper, pode neutralizar musicalmente nosso amigo aqui? Piper começou outra música: “Happy Trails”, uma canção boba que seu pai cantava para ela antigamente, sempre que voltavam de Oklahoma para Los Angeles. Annabeth, Leo, Frank e Hazel saíram para discutir estratégias. — Muito bem. — Percy se levantou e estendeu a mão a Jason. — Então nos vemos de novo na Acrópole, cara. É a minha vez de matar alguns gigantes.
XLII
PIPER
O PAI DE PIPER DIZIA que passar pelo aeroporto não contava como visitar uma cidade. Piper tinha a mesma opinião em relação aos esgotos. Do porto até a Acrópole, ela não viu nada de Atenas além de túneis escuros e pútridos. Nas docas, os homens-cobra os fizeram descer por um bueiro de ferro, que os levou direto para o covil subterrâneo dos gemini. Ali embaixo fedia a peixe podre, mofo e pele de cobra. Naquela atmosfera, era difícil cantar músicas leves como “Summertime”, que falava sobre verão e plantações de algodão e uma vida tranquila, mas Piper continuava. Se parasse por mais que um ou dois minutos, Cécrope e seus guardas começavam a sibilar e a distribuir olhares raivosos. — Não gosto deste lugar — murmurou Annabeth. — Estes túneis me lembram a vez em que fiquei nos subterrâneos de Roma. Cécrope soltou uma risada sibilante. — Nossos domínios são muito mais antigos. Muito, muito mais. Annabeth segurou a mão de Percy, o que deixou Piper triste e desanimada. Como ela queria que Jason estivesse ali ao seu lado. Droga, até Leo serviria… embora talvez ela preferisse não segurar a mão dele: elas tendiam a pegar fogo quando ele ficava nervoso. A voz de Piper ecoava pelos túneis. À medida que avançavam, mais homenscobra se juntavam para ouvi-la. Logo estavam sendo seguidos por uma procissão, dezenas de gemini rastejando e se balançando ao ritmo da música. A previsão de seu avô tinha se cumprido. Piper havia aprendido a canção da cobra — que por um acaso era uma composição de George Gershwin de 1935. Até então, Piper tinha até conseguido impedir que o rei cobra mordesse, como na velha história cherokee. Só havia um problema com aquela lenda: o guerreiro que aprendeu a música das cobras teve que sacrificar a esposa em troca do poder. Piper não queria sacrificar ninguém. O frasco com a cura do médico continuava embrulhado no tecido, guardado em um bolso de seu cinto. Ela não havia tido tempo de conversar com Jason e Leo antes de partir. Só lhe restava torcer para que todos se reencontrassem no topo da colina antes que algum deles precisasse da cura. Se um dos dois morresse e ela não conseguisse alcançá-los… Apenas continue cantando, disse a si mesma.
Eles atravessaram câmaras de pedra talhadas rusticamente e repletas de ossos. Subiram elevações tão íngremes e escorregadias que mal conseguiam se manter de pé. Em determinado momento, passaram por uma caverna quente do tamanho de uma quadra poliesportiva que estava cheia de ovos de serpente, cobertos por uma camada de filamentos prateados que pareciam uma versão gosmenta daqueles enfeites compridos de árvore de Natal. Cada vez mais homens-cobra se juntavam à procissão. O barulho que faziam ao se movimentarem rastejando era como um exército de homens enormes arrastando os pés — só que com uma lixa na sola dos sapatos. Piper se perguntou quantos gemini viviam ali embaixo. Centenas, talvez milhares. Tinha a impressão de estar ouvindo as batidas do próprio coração ecoando pelos corredores, e o som ficava cada vez mais alto à medida que eles avançavam. Então se deu conta de que o persistente tum-tum estava por toda a volta, ressoando através das rochas e do ar. Eis que eu desperto. Uma voz de mulher, tão nítida quanto Piper cantando. — Opa, isso não é bom — disse Annabeth, parando de repente. — Como o Tártaro — disse Percy com tensão na voz. — Lembra? A batida do coração… Quando ele apareceu… — Pare — disse Annabeth. — Por favor. — Desculpe. À luz de sua espada, o rosto de Percy parecia um vaga-lume gigante, um brilho turvo e momentâneo no escuro. Gaia fez-se ouvir novamente, desta vez mais alto: Finalmente. A voz de Piper vacilou no meio da música. Ela foi tomada pelo medo, da mesma forma que tinha acontecido no templo espartano. Mas agora os deuses Fobos e Deimos eram seus velhos amigos. Ela deixou o medo queimar em seu interior como combustível, tornando sua voz ainda mais forte. Ela cantava para o povo serpente, para proteger seus amigos. Por que não também para Gaia? Por fim, alcançaram o topo de uma subida íngreme, onde o caminho terminava em uma cortina de gosma verde. Cécrope virou-se para os semideuses. — A Acrópole fica depois desta camuflagem. Fiquem aqui. Vou ver se o caminho está livre. — Espere. — Piper virou-se para dirigir-se à multidão de gemini. — Há apenas morte na superfície. É melhor para vocês que fiquem aqui nos túneis. Voltem; rápido. Esqueçam que nos viram. Protejam-se. O medo em sua voz foi canalizado perfeitamente pelo charme. O povo serpente, até os guardas, deu meia-volta e, rastejando, desapareceu na escuridão, deixando ali apenas o rei.
— Cécrope, você está planejando nos trair assim que passar por essa gosma, não? — disse Piper. — Sim — confirmou ele. — Vou alertar os gigantes. Eles vão destruí-los. — Então ele acrescentou, em um sussurro agressivo: — Por que eu disse isso a vocês? — Escute a pulsação de Gaia — insistiu Piper. — Você está sentindo a fúria da Mãe Terra, não está? Cécrope hesitou. A ponta de seu cajado emitiu um brilho suave. — Sim. Ela está com raiva. — Ela vai destruir tudo — continuou Piper. — Vai reduzir a Acrópole a uma cratera fumegante. Atenas, sua cidade, será totalmente arrasada, assim como o seu povo. Você acredita em mim, não acredita? — Eu… sim, acredito. — Por mais ódio que você sinta dos humanos, dos semideuses, de Atena, nós somos a única chance de deter Gaia. Então você não vai nos trair. Para seu próprio bem e o de seu povo, você vai dar uma busca no território para garantir que o caminho está livre. Não vai contar nada aos gigantes. E depois vai voltar. — É isso… o que vou fazer. E então Cécrope cruzou a membrana de gosma e desapareceu. Annabeth balançava a cabeça, impressionada. — Piper, isso foi incrível. — Vamos ver se dá certo. Piper sentou-se no chão de pedra fria. Bem que ela podia descansar enquanto tinha a chance. Os outros se agacharam ao lado dela. Percy lhe passou um cantil de água. Até tomar o primeiro gole, Piper não tinha se dado conta de como sua garganta estava seca. — Obrigada. — Você acha que o charme vai durar? — Não sei — admitiu ela. — Se Cécrope voltar daqui a dois minutos com um exército de gigantes, é porque não deu certo. A pulsação de Gaia ecoava através do chão. Estranhamente, isso lembrava a Piper o mar, o estrondo das ondas quebrando nos penhascos de Santa Monica. O que seu pai estaria fazendo naquele momento? Na Califórnia, devia ser madrugada àquela hora. Talvez ele estivesse dormindo, ou sendo entrevistado em um programa de tevê. Piper gostaria que ele estivesse em seu local preferido: a varanda da sala, contemplando a lua sobre o Pacífico, curtindo um pouco de tranquilidade. Ela queria imaginá-lo feliz e satisfeito naquele momento… caso eles falhassem na missão. Ela pensou nos amigos do chalé de Afrodite, no Acampamento Meio-Sangue. Pensou nos primos em Oklahoma — o que era estranho, já que nunca tinha
passado muito tempo com eles. Nem os conhecia direito; agora se arrependia disso. Desejou ter aproveitado mais a vida, apreciado mais as coisas. Piper sempre seria grata por sua família a bordo do Argo II, mas tinha muitos outros amigos e parentes que desejava poder ver uma última vez. — Vocês pensam nas suas famílias? — perguntou ela. Era uma pergunta boba, ainda mais na iminência de uma batalha. Piper deveria estar concentrada na missão, não distraindo os amigos. Mas eles não a condenaram. Percy ficou com o olhar perdido. Seu lábio inferior começou a tremer. — Minha mãe… Eu… eu nunca mais sequer a vi desde que Hera me sequestrou. Telefonei para ela do Alasca. Pedi ao treinador Hedge que enviasse a ela algumas cartas minhas. Eu… — A emoção transbordava em sua voz. — Minha mãe é tudo o que eu tenho. Ela e meu padrasto, Paul. — E Tyson — lembrou-o Annabeth. — E Grover. E… — Sim, claro — disse Percy. — Obrigado. Agora me sinto bem melhor. Piper provavelmente não deveria ter rido, mas estava nervosa e melancólica demais para se conter. — E você, Annabeth? — Meu pai… minha madrasta e meus meios-irmãos. — Ela virou distraidamente a espada de osso de drakon que tinha no colo. — Depois de tudo que passei no último ano, parece bobagem ficar ressentida com eles por tanto tempo. E a família do meu pai… Fazia anos que eu não pensava neles. Tenho um tio e um primo em Boston. Percy fez uma expressão de choque. — Logo você, aí com o seu boné dos Yankees? Você tem família no território dos Red Sox? Annabeth esboçou um sorriso. — Eu nunca encontro essa parte da família. Meu pai e meu tio não se dão bem. Alguma rixa antiga. Não sei. As pessoas se afastam por coisas estúpidas. Piper concordou. Seria bom ter os poderes curativos de Asclépio. Seria bom poder olhar para as pessoas e ver o que as estava machucando, depois receitar umas poções e remédios e assim fazer com que tudo ficasse melhor. Mas devia haver uma razão para Zeus manter Asclépio preso ali naquele templo subterrâneo. Algumas dores não devem ser eliminadas com tanta facilidade. É necessário lidar com elas, até abraçá-las. Sem a agonia dos últimos meses, Piper nunca teria encontrado suas melhores amigas, Hazel e Annabeth. Nunca teria descoberto a própria coragem. Certamente não teria coragem de cantar para o povo serpente no subsolo de Atenas. Na entrada do túnel, a membrana verde se abriu.
Piper pegou rapidamente a espada e a ergueu, preparada para uma enxurrada de monstros. Mas Cécrope surgiu sozinho. — Tudo certo — disse ele. — Mas andem rápido. A cerimônia está quase no fim.
* * *
Passar por uma cortina de catarro foi quase tão divertido quanto Piper tinha imaginado. Ela saiu do outro lado sentindo como se tivesse acabado de despencar da narina de um gigante. Felizmente, não ficou nenhuma gosma grudada no corpo, mas mesmo assim ela sentia arrepios de nojo. Os três se viram em um poço fresco e úmido que parecia ser o nível subterrâneo de um templo. Por toda a volta estendia-se um solo irregular que terminava em escuridão. Logo acima de suas cabeças havia uma abertura retangular que dava para o céu. Piper via o alto de paredes e o topo de colunas, mas nenhum monstro… ainda. A membrana de camuflagem tinha se fechado atrás deles e se fundido ao chão. Piper examinou a área: parecia rocha sólida. Eles não poderiam voltar por onde tinham chegado. Annabeth passou a mão por algumas marcas no chão, linhas no formato de um pé de galinha irregular, do tamanho de uma pessoa. A área era protuberante e branca, como uma cicatriz na pedra. — É aqui — disse ela. — Percy, estas são as marcas do tridente de Poseidon. Percy tocou as ranhuras, hesitante. — Ele devia estar usando um tridente tamanho GG. — Foi aqui que ele atingiu a terra — continuou Annabeth. — Onde ele fez surgir uma nascente de água salgada quando disputou com minha mãe para ser patrono de Atenas. — Então foi aqui que começou a rivalidade — concluiu Percy. — Foi. Percy puxou Annabeth para si e a beijou… Um beijo tão demorado que Piper ficou bem constrangida, embora não tenha dito nada. Ela se lembrou da velha regra do chalé de Afrodite: para ser reconhecida como filha da deusa do amor, era preciso partir o coração de alguém. Piper havia decidido, fazia muito tempo, mudar essa regra. Percy e Annabeth eram um exemplo perfeito do motivo: era preciso tornar completo o coração de alguém. Esse era um teste muito melhor. Quando Percy se afastou, Annabeth parecia um peixe tentando desesperadamente respirar. — A rivalidade termina aqui — disse Percy. — Eu amo você, Sabidinha.
Annabeth deu um leve suspiro, como se alguma coisa dentro de seu peito tivesse derretido. Percy olhou para Piper. — Desculpe, eu tive que fazer isso. Piper sorriu. — Como uma filha de Afrodite poderia não aprovar? Você é um ótimo namorado. Annabeth soltou outro suspiro. — Hã… enfim… Estamos embaixo do Erecteion. É um templo tanto para Atena quanto para Poseidon. O Partenon deve ficar em uma diagonal a sudeste daqui. Vamos ter que dar a volta discretamente e neutralizar o maior número possível de armas de cerco, para abrir uma brecha por onde o Argo II possa se aproximar. — Estamos em plena luz do dia — disse Piper. — Como vamos passar despercebidos? Annabeth observou o céu. — Foi por isso que eu, Frank e Hazel montamos um plano. Tomara que… Ah. Vejam. Uma abelha zumbiu acima deles. Depois, dezenas mais fizeram coro. Elas enxamearam em torno de uma coluna, depois ficaram voando acima da abertura do poço. — Pessoal, digam oi para Frank — disse Annabeth. Piper acenou. A nuvem de abelhas foi embora voando. — Como é que isso funciona? — perguntou Percy. — Tipo… uma abelha é um dedo? Outras duas abelhas são os olhos? — Não sei — admitiu Annabeth. — Mas ele é nosso mensageiro. Assim que Frank avisar Hazel, ela vai… — Ahh! — gritou Percy. Annabeth cobriu a boca com a mão. O que foi bem esquisito, porque de repente todos eles tinham se transformado em enormes Nascidos da Terra de seis braços. — A Névoa de Hazel — lembrou Piper, em um tom de voz sério, grave. Ao olhar para baixo, ela percebeu que também tinha agora um belo corpo de Neandertal: barriga cabeluda, tanguinha, pernas atarracadas e pés enormes. Se ela se concentrasse, conseguia ver seus braços normais, mas, quando os movimentava, via-os tremeluzindo como miragens, separando-se em três pares diferentes de musculosos braços de Nascidos da Terra. Percy fez uma careta, que ficou ainda pior em seu recém-adquirido rosto feioso. — Uau, Annabeth… Ainda bem que a gente se beijou antes de você se transformar.
— Puxa, muito obrigada. Bom, temos que ir. Vou dar a volta no sentido horário. Piper, você vai no sentido contrário. Percy, você vai pelo meio… — Esperem — disse Percy. — Estamos indo direto para a armadilha do derramamento de sangue sobre a qual fomos alertados, e vocês querem se dividir ainda mais? — Assim vamos cobrir uma área maior — argumentou Annabeth. — Precisamos correr. Esses cânticos… Piper não tinha percebido até aquele momento, mas então ela ouviu: um som monótono agourento a distância, como cem empilhadeiras em ponto morto. Ela olhou para o chão e percebeu fragmentos de cascalho vibrando e se movendo na mesma direção, como se estivessem sendo atraídos para o Partenon. — Certo — disse Piper. — Encontro vocês no trono do gigante.
* * *
No início foi fácil. Havia monstros por toda parte, centenas de ogros, Nascidos da Terra e ciclopes circulando em meio às ruínas, mas a maioria deles estava reunida no Partenon, assistindo à cerimônia em andamento. Piper seguia pelas bordas dos penhascos da Acrópole sem ser perturbada. Havia três Nascidos da Terra tomando sol sobre as rochas perto do primeiro onagro. Piper foi para perto deles e sorriu. — Olá. Antes que eles emitissem qualquer som, ela os matou com a espada. Os três derreteram em montes de escória. Piper então cortou a corda da mola do onagro para neutralizar a arma, depois seguiu em frente. Agora Piper tinha um objetivo. Causar o maior estrago possível antes que descobrissem a sabotagem. Ela desviou de uma patrulha de ciclopes. O segundo onagro estava cercado por um grupo de ogros lestrigões, mas Piper conseguiu se aproximar da arma sem levantar suspeitas. Ela derramou um frasco de fogo grego no cesto. Com sorte, assim que tentassem carregar a catapulta, a máquina explodiria na cara deles. Seguiu em frente. Havia grifos empoleirados na colunata de um templo antigo. Um grupo de empousai tinha ido para a sombra de uma arcada e parecia estar cochilando, o cabelo flamejante bruxuleando, tênue, as pernas de metal brilhando. Com sorte, se tivessem que lutar, o calor do sol as deixaria lentas. Sempre que podia, Piper matava monstros isolados, mas passava direto por grupos maiores. Enquanto isso, a multidão no Partenon aumentava. Os cânticos ficavam mais altos. Piper não conseguia ver o que estava acontecendo no interior das ruínas, só as cabeças de vinte ou trinta gigantes de pé em um círculo,
murmurando e balançando o corpo — talvez uma versão monstro de músicas gospel. Ela sabotou uma terceira arma de cerco cortando as cordas de torção, o que provavelmente daria ao Argo II caminho livre para se aproximar pelo norte. Piper torcia para que Frank estivesse atento ao progresso dela. Quanto tempo o navio levaria para chegar? De repente, a cantilena parou. Um BUM ecoou pela encosta. No Partenon, os gigantes urraram em triunfo. Por toda a volta de Piper chegavam monstros, indo na direção do som. Aquilo não podia ser boa coisa. Piper se enfiou no meio de um grupo de Nascidos da Terra de cheiro azedo. Subiu os degraus de entrada do templo, depois escalou alguns andaimes de metal para enxergar sobre as cabeças dos gigantes e ciclopes. A cena nas ruínas quase a fez dar um grito. Diante do trono de Porfírion, dezenas de gigantes de pé formavam um círculo espaçado, gritando e brandindo suas armas, enquanto dois deles desfilavam em volta da roda, suas presas à mostra. A princesa Peribeia segurava Annabeth pelo pescoço como se a menina fosse um gato feroz. O gigante Encélado tinha Percy preso em sua enorme mão fechada. Annabeth e Percy lutavam inutilmente. Seus captores os exibiram para a horda vibrante de monstros, depois se viraram para encarar o rei Porfírion, que estava sentado em seu trono improvisado, os olhos brancos reluzindo de maldade. — Bem na hora! — exclamou o rei dos gigantes. — O sangue do Olimpo, para despertar a Mãe Terra!
XLIII
PIPER
PIPER VIA HORRORIZADA O REI dos gigantes se levantar. De pé, sua altura era quase a mesma das colunas do templo. O rosto dele era exatamente como Piper se lembrava: pele verde como bile, um sorriso perverso e o cabelo cor de alga marinha trançado com espadas e machados tomados de semideuses mortos. Elevando-se acima de seus prisioneiros, ele os observava se debaterem. — Eles chegaram exatamente como você previu, Encélado! Parabéns! O velho inimigo de Piper fez uma reverência; e os ossos trançados chacoalharam em seus dreadlocks. — Foi simples, meu rei. Os padrões de chamas em sua armadura reluziam. Sua lança queimava, tomada por labaredas arroxeadas. Ele só precisava de uma das mãos para segurar seu prisioneiro. Apesar de todo o poder de Percy Jackson, apesar de tudo a que ele havia sobrevivido, no fim, o filho de Poseidon estava impotente diante da força bruta do gigante… e da inevitabilidade da profecia. — Eu sabia que esses dois iam liderar o ataque — prosseguiu Encélado. — Entendo como eles pensam. Atena e Poseidon… Eles eram iguaizinhos a estes garotos! Os dois vieram para cá querendo reclamar para si esta cidade. Sua arrogância foi sua ruína! Em meio aos gritos da multidão, Piper mal conseguia ouvir os próprios pensamentos, mas ela repetiu mentalmente as palavras de Encélado: esses dois iam liderar o ataque. Seu coração acelerou. Os gigantes esperavam por Percy e Annabeth. Não esperavam por ela. Pela primeira vez, ser Piper McLean, a filha de Afrodite, aquela que ninguém levava a sério, podia lhe dar alguma vantagem. Annabeth tentou falar, mas a giganta Peribeia a sacudiu pelo pescoço. — Cale a boca! Nem ouse usar sua lábia contra mim! A princesa sacou uma faca tão comprida quanto a espada de Piper. — Deixe-me fazer as honras, pai! — Espere, filha. — O rei recuou. — O sacrifício deve ser feito corretamente. Toas, algoz das Parcas, aproxime-se! O gigante cinza e enrugado surgiu arrastando os pés, segurando um cutelo exageradamente grande. Ele fixou os olhos leitosos em Annabeth. Percy gritou. Do outro lado da Acrópole, a centenas de metros de distância, um gêiser de água jorrou para o céu.
O rei Porfírion riu. — Vai ter que fazer melhor que isso, filho de Poseidon. A terra aqui é poderosa demais. Nem seu pai seria capaz de invocar mais que uma nascente. Mas não se preocupe. O único líquido necessário hoje é seu sangue! Piper corria os olhos pelo céu desesperadamente. Onde estava o Argo II? Toas se ajoelhou e, reverentemente, tocou a terra com lâmina de seu cutelo. — Mãe Gaia… — A voz dele era incrivelmente grave, abalando as ruínas, fazendo os andaimes de metal ressoarem sob os pés de Piper. — Em tempos ancestrais, o sangue se misturou com seu solo para criar vida. Agora, deixe que o sangue desses semideuses retribua o favor. Vamos garantir seu despertar. Nós a saudamos como nossa senhora eterna! Sem pensar, Piper saltou do andaime. Passou por cima das cabeças dos ciclopes e ogros, aterrissou no pátio do templo e abriu caminho até o círculo dos gigantes. Quando Toas se levantou com o cutelo, Piper atacou com sua espada, decepando a mão de Toas na altura do pulso. O gigante velho uivou. O cutelo e a mão decepada caíram no chão aos pés de Piper. Ela sentiu seu disfarce de Névoa se esgotar até sua imagem voltar ao normal: uma garota no meio de um exército de gigantes. Sua espada dentada parecia um palito de dente comparada com as armas enormes deles. — O QUE É ISSO? — urrou Porfírion. — Como essa criatura fraca e inútil ousa nos interromper? Piper seguiu seu instinto. Atacou.
* * *
As vantagens de Piper: ser pequena, rápida e completamente louca. Ela sacou a adaga Katoptris e a lançou em Encélado, torcendo para não acertar Percy por acidente. Então se jogou para o lado sem testemunhar se o acertara ou não, mas, a julgar pelo grito de dor do gigante, ela tinha mirado bem. Vários gigantes correram ao mesmo tempo na direção dela. Piper escapou entre as pernas deles, deixando que eles batessem suas cabeças. Ela passou ziguezagueando pela multidão, enfiando a espada em pés de dragão sempre que surgia a oportunidade, gritando “FUJAM! FUJAM DAQUI!”, para semear a discórdia. — NÃO! DETENHAM-NA! — gritou Porfírion. — MATEM-NA! Uma lança quase a empalou. Piper se esquivou e continuou a correr. É igual à captura da bandeira, disse para si mesma. Só que todos da equipe adversária têm dez metros de altura. Uma espada enorme cortou seu caminho. Em comparação a seu treinamento com Hazel, o golpe foi ridiculamente lento. Piper saltou a lâmina e correu em
zigue-zague na direção de Annabeth, que ainda se contorcia e esperneava na mão de Peribeia. Piper precisava salvar a amiga. Infelizmente, porém, a giganta previu seu plano. — Acho que não, semideusa! — berrou Peribeia. — Esta aqui vai sangrar! A giganta levantou sua faca. Piper gritou com o charme: — ERRE! Ao mesmo tempo, Annabeth encolheu as pernas para se tornar um alvo menor. A faca de Peribeia passou por baixo das pernas da filha de Atena e acertou a própria mão da giganta. — AAAAIIII! Peribeia soltou Annabeth… viva, mas não intacta. A lâmina abriu um corte feio na parte de trás de sua coxa. Quando a menina rolou para longe, seu sangue molhou a terra. O sangue do Olimpo, pensou Piper, horrorizada. Mas ela não podia fazer nada em relação a isso. Precisava ajudar Annabeth. Piper atacou Peribeia. Sua espada dentada de repente ficou fria como gelo em suas mãos. Surpresa, a giganta olhou para baixo quando a arma do Boreada penetrou em sua barriga. Seu peitoral se cobriu de gelo. Piper arrancou a espada. A giganta caiu para trás, congelada e soltando vapor branco da ferida, e atingiu o chão com um baque surdo. — Minha filha! O rei Porfírion apontou sua lança e atacou. Mas Percy tinha outras ideias. Encélado o havia soltado… provavelmente porque estava ocupado demais cambaleando sem rumo com a adaga de Piper enfiada na testa, cheio de icor escorrendo dos olhos. Percy estava desarmado. Sua espada talvez tivesse sido confiscada ou perdida na luta, mas ele não deixou que isso o detivesse. Enquanto o rei gigante corria na direção de Piper, Percy segurou a ponta da lança de Porfírion, empurrou-a para baixo e a fincou no chão. O próprio impulso do gigante o levantou do chão em uma manobra involuntária de salto com vara, e ele deu uma cambalhota e caiu de costas. Enquanto isso, Annabeth se arrastava pelo templo. Piper correu até ela e ficou junto à amiga golpeando com a espada de um lado para outro a fim de manter os gigantes afastados. Um vapor azul e frio envolvia sua espada agora. — Quem quer virar o próximo picolé? — gritou ela, canalizando sua raiva no charme. — Quem quer voltar para o Tártaro?
Fez efeito. Os gigantes ficaram agitados e confusos, olhando para o corpo congelado de Peribeia. E por que Piper não iria intimidá-los? Afrodite era a olimpiana mais antiga, nascida do mar e do sangue de Urano. Era mais velha que Poseidon e Atena, até mesmo que Zeus. E Piper era sua filha. Mais que isso, ela era uma McLean. Seu pai tinha vindo de baixo e agora era conhecido no mundo inteiro. Os McLean não recuavam. Como todos os cherokee, eles sabiam resistir ao sofrimento, sabiam como manter o orgulho e, quando necessário, sabiam lutar. E aquela era hora de lutar. A quinze metros dali, Percy se debruçou sobre o rei gigante, tentando arrancar uma espada das tranças de seu cabelo. Mas Porfírion não estava tão zonzo quanto parecia. — Tolos! Porfírion deu um tapa com as costas da mão em Percy como se ele fosse uma mosca irritante. O filho de Poseidon bateu contra uma coluna com um crec assustador. Porfírion ficou de pé. — Esses semideuses não podem nos matar! Eles não têm a ajuda dos deuses. Lembrem-se de quem vocês são! Os gigantes fecharam o cerco. Havia uma dúzia de lanças apontadas para o peito de Piper. Annabeth se levantou com dificuldade e pegou a faca de Peribeia, mas mal conseguia se manter de pé, muito menos lutar. Cada gota de seu sangue que pingava no chão borbulhava, passando de vermelho para dourado. Percy tentou se levantar, mas estava obviamente atordoado. Não conseguiria se defender. A única opção de Piper era manter os gigantes concentrados nela própria. — Vamos lá, então! — gritou. — Eu mesma vou destruir todos vocês, se for preciso! Um cheiro metálico de tempestade preencheu o ar. Todos os pelos nos braços de Piper se arrepiaram. — A questão é que… — disse uma voz vinda de cima — você não precisa. O coração de Piper quase saltou do peito. Jason estava parado em cima da colunata mais próxima, a espada brilhando dourada ao sol. Frank estava ao seu lado, com o arco pronto. Hazel viera montada em Arion, que empinava e relinchava em desafio. Com uma explosão ensurdecedora, um raio branco calcinante caiu do céu, direto através do corpo de Jason, quando ele saltou envolto em sua luz sobre o rei dos gigantes.
XLIV
PIPER
DURANTE OS TRÊS MINUTOS SEGUINTES, a vida foi maravilhosa. Aconteceu tanta coisa ao mesmo tempo que só um semideus hiperativo e com déficit de atenção poderia acompanhar. Jason caiu sobre o rei Porfírion com tanta força que o gigante desabou de joelhos, atingido pelo raio e golpeado no pescoço por um gládio de ouro. Frank disparou uma saraivada de flechas, obrigando os gigantes próximos de Percy a recuar. O Argo II assomava sobre as ruínas, e todas as balistas e catapultas disparavam simultaneamente. Leo devia ter programado as armas com precisão cirúrgica, pois em torno de todo o Partenon erguia-se uma parede de fogo grego crepitante. Embora o fogo não alcançasse o interior do templo, em um segundo a maioria dos monstros menores em volta da construção foi incinerada. A voz de Leo ribombou pelo alto-falante: — RENDAM-SE! VOCÊS ESTÃO CERCADOS POR UMA MÁQUINA DE GUERRA FALANTE MUITO SINISTRA! O gigante Encélado gritou, revoltado: — Valdez! — E AÍ, ENCHILADAS? — rugiu em resposta a voz de Leo. — BELA ADAGA AÍ NA SUA TESTA. — ARGH! — O gigante arrancou a Katoptris da cabeça. — Monstros, destruam aquele navio! As forças remanescentes fizeram o possível. Um bando de grifos levantou voo para atacar. Festus, a figura de proa, cuspiu fogo e os derrubou do céu, carbonizando-os. Alguns Nascidos da Terra arremessaram uma rajada de pedras, mas uma dezena de esferas de Arquimedes foi lançada das laterais do casco, interceptando as pedras e explodindo-as. — VISTA ALGUMA COISA! — ordenou Buford. Hazel esporeou Arion e saltou da colunata, mergulhando na batalha. A queda de doze metros teria quebrado as patas de qualquer outro cavalo, mas Arion tocou o solo já em movimento. Hazel ia de gigante em gigante, golpeando-os com a lâmina de sua spatha. Um pouco atrasados, Cécrope e seu povo serpente resolveram entrar na luta. Em quatro ou cinco pontos em torno das ruínas, o chão se transformou em gosma verde, e dali surgiram gemini armados, liderados pelo próprio Cécrope. — Matem os semideuses! — sibilou ele. — Matem os trapaceiros!
Antes que muitos guerreiros pudessem obedecer, Hazel apontou sua espada para o túnel mais próximo. O chão tremeu. Todas as membranas gosmentas estouraram e os túneis desmoronaram, expelindo nuvens de fumaça. Cécrope olhou ao redor para seu exército, agora reduzido a seis homens-cobra. — RASTEJAR EM RETIRADA! — ordenou Cécrope. As flechas de Frank detiveram a tentativa de fuga. A giganta Peribeia tinha descongelado em uma velocidade alarmante. Ela tentou agarrar Annabeth, mas, mesmo com a perna machucada, a garota conseguia se defender. E com a própria faca da giganta, ela a atacou, e deu início a uma brincadeira de pique mortal em volta do trono. Percy estava de pé outra vez, com Contracorrente de novo nas mãos. Ainda parecia zonzo. Seu nariz sangrava. Mas ele parecia estar conseguindo se virar contra o velho gigante Toas, que de algum modo tinha recuperado a mão e encontrado seu cutelo. Piper e Jason estavam de costas um para o outro, enfrentando todo gigante que ousasse se aproximar. Por um instante ela se sentiu em êxtase. Eles estavam vencendo! Mas logo o elemento surpresa se foi. Os gigantes se recuperaram da confusão. Frank ficou sem flechas, então se transformou em um rinoceronte e caiu dentro da batalha, mas assim que derrubava os gigantes, eles se levantavam de novo. Seus ferimentos pareciam estar se curando mais rápido. Peribeia estava se aproximando de Annabeth. Hazel foi derrubada de sua cela a cem quilômetros por hora. Jason invocou outro raio, mas, dessa vez, Porfírion simplesmente o desviou com a ponta de sua lança. Os gigantes eram maiores, mais fortes e mais numerosos. Não havia como matá-los sem a ajuda dos deuses. E eles não pareciam estar se cansando. Os seis semideuses foram forçados a formar um círculo defensivo. Outra rajada de rochas dos Nascidos da Terra acertou o Argo II. Dessa vez, Leo não conseguiu reagir rápido o suficiente. Fileiras de remos foram destruídas. O navio estremeceu e adernou no céu. Então Encélado jogou sua lança flamejante, que perfurou o casco do navio e explodiu em seu interior; labaredas saíram pelas aberturas dos remos. Uma nuvem negra densa e sinistra subiu do convés. O Argo II começou a cair. — Leo! — gritou Jason. Porfírion riu. — Vocês, semideuses, não aprenderam nada. Não há deuses para ajudá-los. Nós só precisamos de mais uma coisa para tornar nossa vitória completa. O rei dos gigantes sorriu com expectativa. Ele parecia estar olhando para Percy Jackson. Piper olhou para ele. O nariz de Percy ainda estava sangrando. Ele parecia não ter notado que um fio de sangue tinha escorrido por seu rosto e chegado à
ponta de seu queixo. — Percy, cuidado… — tentou dizer Piper, mas pela primeira vez sua voz falhou. Uma única gota de sangue pingou do queixo de Percy e tocou o chão entre seus pés, onde fervilhou como água em uma frigideira. O sangue do Olimpo banhou as pedras antigas. A Acrópole gemeu e estremeceu com o despertar da Mãe Terra.
XLV
NICO
A MENOS DE DEZ QUILÔMETROS do acampamento havia um 4x4 preto, estacionado na praia. Eles prenderam o barco em uma marina particular. Nico ajudou Dakota e Leila a puxarem Michael Kahale para a terra. O grandalhão continuava semiconsciente, balbuciando ordens e incentivos para um time imaginário de futebol americano, ao que pareceu a Nico: “Vermelho doze. Direita trinta e um. Manda um snap!” E então ele caía na gargalhada. — Vamos deixá-lo aqui — disse Leila. — Só não o amarre. Coitado… — E o carro? — perguntou Dakota. — As chaves estão no porta-luvas, mas… hã… você sabe dirigir? Leila franziu a testa. — Achei que você soubesse dirigir. Você já não tem dezessete anos? — Eu nunca aprendi! — exclamou Dakota. — Estava ocupado. — Podem deixar comigo — garantiu Nico. Os dois olharam para ele. — Mas você tem, tipo, catorze anos — disse Leila. Nico gostava de ver como os romanos ficavam nervosos perto dele, mesmo sendo mais velhos, maiores e mais experientes em batalha. — Eu não disse que ia me arriscar ao volante. Ele se ajoelhou e pôs a mão no chão. Sentiu os túmulos mais próximos, os ossos de humanos enterrados e espalhados por ali, mergulhados no esquecimento. Então procurou mais fundo, estendendo seus sentidos até o Mundo Inferior. — Jules-Albert. Vamos dar uma volta. O chão se abriu. Um zumbi em um traje esfarrapado de motorista do século XIX arrastou-se até a superfície. Leila deu um passo para trás. Dakota gritou como uma criancinha. — Mas o que é isso, cara? — protestou Dakota. — É o meu motorista — explicou Nico. — Jules-Albert terminou em primeiro na corrida Paris-Rouen de 1895, mas não pôde receber o prêmio por causa do alimentador automático do seu carro a vapor. Leila olhava para ele interrogativamente. — Do que é que você está falando? — Ele é uma alma inquieta, sempre à procura de mais uma chance de dirigir — disse Nico. — Tem sido meu motorista fiel nos últimos anos. — Então você tem um chofer zumbi — disse Leila, incrédula.
— Eu vou na frente. Nico sentou-se no banco do carona. Os romanos entraram atrás, relutantes. Jules-Albert tinha uma grande qualidade: era imune a emoções. Podia passar o dia inteiro preso no engarrafamento que não perdia a paciência. Era imune à fúria do trânsito. Podia até dirigir na direção de um grupo de centauros selvagens e passar pelo meio deles sem ficar nervoso. Os centauros eram diferentes de tudo que Nico já vira. Tinham traseiro de baio, peito e braços peludos cobertos de tatuagens e chifres de touro na testa. Nico duvidava muito que eles conseguissem se misturar com os humanos com a mesma facilidade que Quíron. Havia pelo menos duzentos deles treinando incansavelmente com espadas e lanças, ou assando carcaças de animais sobre fogueiras (centauros carnívoros… Nico teve um calafrio só de pensar). O acampamento deles ficava do outro lado da estradinha rural que serpenteava em volta do perímetro sudeste do Acampamento Meio-Sangue. O 4x4 foi abrindo caminho, buzinando quando necessário. De vez em quando um centauro olhava pela janela do motorista, via o zumbi e recuava em choque. — Pela armadura de Plutão — murmurou Dakota. — Chegaram ainda mais centauros ontem à noite. — Não os olhe nos olhos — alertou Leila. — Eles encaram isso como um desafio para um duelo mortal. Nico manteve o olhar fixo à frente enquanto o 4x4 avançava. Seu coração batia forte, mas ele não estava com medo. Estava com raiva. Octavian havia cercado o Acampamento Meio-Sangue de monstros. Claro, os sentimentos de Nico em relação ao acampamento grego eram bem conflitantes. Sim, ele tinha se sentido rejeitado ali, deslocado, indesejado e ignorado… mas agora que o local estava à beira da destruição, Nico percebia quanto significava para ele. Aquele era o último lar onde ele e Bianca tinham vivido juntos, o único lugar onde haviam se sentido seguros, mesmo que apenas temporariamente. Fizeram uma curva na estrada. Nico cerrou os punhos: mais monstros… centenas mais. Homens com cabeça de cachorro circulavam em matilhas, seus machados de guerra reluzindo à luz das fogueiras dos acampamentos. Mais além, via-se uma tribo de homens de duas cabeças vestidos em trapos e cobertores, como mendigos, e armados com uma coleção variada de fundas, porretes e canos de metal. — Octavian é um idiota — disse Nico entre dentes. — Ele acha que pode controlar essas criaturas? — E elas não param de chegar — comentou Leila. — Antes que a gente se dê conta… Bem, veja.
A legião estava em formação de combate na base da Colina Meio-Sangue, as cinco coortes em perfeita ordem, seus estandartes resplandecentes e imponentes. Águias gigantes sobrevoavam-nas em círculos. As armas de cerco, seis onagros dourados do tamanho de casas, estavam posicionadas na retaguarda em um semicírculo espaçado, três em cada flanco. Mas, mesmo com toda essa disciplina impressionante, a Décima Segunda Legião parecia pateticamente pequena, uma mancha de valentia semidivina em um mar de monstros vorazes. Naquele momento, Nico desejou ainda ter consigo o cetro de Diocleciano, mas dificilmente uma legião de guerreiros mortos conseguiria causar sequer um arranhão naquele exército. Nem o Argo II teria muito poder contra aquele tipo de força. — Preciso neutralizar os onagros — disse Nico. — Não temos muito tempo. — Você não vai conseguir chegar nem perto — avisou Leila. — Mesmo se convencermos a Quarta e a Quinta inteiras a nos seguir, as outras coortes vão tentar nos deter. E aquelas armas de cerco são operadas pelos seguidores mais leais de Octavian. — Não vamos nos aproximar pela força — concordou Nico. — Mas sozinho eu posso conseguir. Dakota, Leila… Jules-Albert vai levar vocês até as linhas da legião. Vão, conversem com suas tropas e convençam-nas a seguir sua liderança. Vou precisar de uma distração. Dakota franziu a testa. — Tudo bem, mas não vou ferir nenhum de meus camaradas legionários. — Ninguém está lhe pedindo isso — resmungou Nico. — Mas, se não impedirmos esta guerra, a legião inteira vai ser destruída. Você disse que as tribos de monstros se ofendem com qualquer coisa? — É — disse Dakota. — Tipo, você faz qualquer comentário para esses caras de duas cabeças sobre como eles cheiram e… Ah. — Ele sorriu. — Se começarmos uma briga… acidentalmente, é claro… — Conto com vocês — disse Nico. Leila franziu a testa. — Mas como você vai… — Eu vou pegar um atalho — disse ele. E desapareceu nas sombras.
* * *
Nico achou que estava preparado. Mas não. Mesmo depois de três dias e das maravilhosas propriedades curativas da lama gosmenta marrom do treinador Hedge, Nico começou a se dissolver no
momento em que mergulhou nas sombras. Seus braços e suas pernas se vaporizaram. O frio penetrou seu peito. Vozes de espíritos sussurraram em seus ouvidos: Ajude-nos. Lembre-se de nós. Junte-se a nós. Ele não havia percebido quanto tinha dependido de Reyna até ali. Sem a força dela, Nico se sentia tão fraco quanto um bezerrinho recém-nascido, cambaleando perigosamente, prestes a cair a cada passo. Não, disse ele a si mesmo. Eu sou Nico di Angelo, filho de Hades. Eu controlo as sombras, e não elas que me controlam. Ele voltou ao mundo mortal tropegamente, no alto da Colina Meio-Sangue. Caiu de joelhos, agarrando-se ao pinheiro de Thalia para se apoiar. O Velocino de Ouro não estava mais nos galhos. O dragão guardião havia desaparecido. Talvez tivessem sido levados para um lugar mais seguro, agora que a batalha era iminente. Nico não sabia. Mas, olhando para as forças romanas em posição de combate próximo ao vale, seu ânimo vacilou. O onagro mais próximo estava cem metros colina abaixo, em uma trincheira protegida com arame farpado, guardado por uma dúzia de semideuses. Estava carregado, pronto para disparar. Um projétil do tamanho de um Honda Civic, revestido por flocos de ouro que cintilavam, repousava no enorme cesto de lançamento. Com uma certeza fria, Nico entendeu o que Octavian estava tramando. O projétil era uma mistura de carga incendiária com ouro imperial. Mesmo em pequenas quantidades, o ouro imperial era incrivelmente volátil. Exposto a muito calor ou pressão, explodiria com um impacto devastador e, é claro, era mortal tanto para monstros quanto para semideuses. Se aquele onagro acertasse o Acampamento Meio-Sangue, tudo na zona de impacto seria aniquilado — vaporizado pelo calor ou desintegrado pelos estilhaços. E os romanos tinham seis onagros, todos abastecidos com farta munição. — Isso é maligno — disse Nico. Ele tentou pensar. Estava amanhecendo. Não tinha a menor condição de neutralizar todas as seis armas antes que o ataque começasse, mesmo que encontrasse forças para viajar nas sombras tantas vezes assim. Se conseguisse mais uma vez, já seria um milagre. Ele viu a tenda do comando romano, atrás da legião, mais à esquerda. Octavian devia estar lá, tomando seu café da manhã a uma distância segura da luta. Ele não liderava suas tropas em combate. Aquele ser desprezível desejava destruir o acampamento de longe, esperar que a poeira baixasse para só então marchar sobre a área derrotada sem resistência. Nico sentiu um aperto na garganta, de tanto ódio que sentiu. Ele se concentrou na tenda, visualizando o salto que teria que dar. Se conseguisse assassinar Octavian, quem sabe não resolveria o problema? A ordem para o ataque talvez
nunca viesse a ser dada. Ele estava prestes a entrar em ação quando uma voz às suas costas chamou: — Nico? Ele se virou de imediato, a espada instantaneamente na mão, quase decapitando Will Solace. — Abaixe isso! — sussurrou Will. — O que você está fazendo aqui? Surpreso, Nico ficou sem palavras. Will e dois outros campistas estavam agachados no mato, com binóculos pendurados no pescoço e facas na cintura. Usavam calça jeans e camiseta pretas, o rosto pintado de graxa como tropas de elite. — Eu? — perguntou Nico. — O que vocês estão fazendo aí? Querem morrer? Will fez cara feia. — Ei, estamos espionando o inimigo. Tomamos precauções. — Ah, é, se vestiram de preto em pleno nascer do sol. Pintaram o rosto, mas não cobriram essa cabeleira loura. Chamariam menos atenção se estivessem agitando uma bandeira amarela. As orelhas de Will ficaram vermelhas. — Lou Ellen nos envolveu em um pouco de Névoa também. — Oi. — A garota ao lado dele agitou os dedos em saudação. Parecia um pouco envergonhada. — Nico, não é? Ouvi falar muito de você. E este é Cecil, do chalé de Hermes. Nico se ajoelhou ao lado deles. — O treinador Hedge conseguiu chegar ao acampamento? Lou Ellen deu uma risadinha nervosa. — Já não era sem tempo, né? Will deu uma cotovelada nela. — Sim. Hedge está bem. Ele chegou bem a tempo para o nascimento do bebê. — O bebê! — Nico sorriu, o que fez com que os músculos de seu rosto doessem. Não estava acostumado a fazer essa expressão. — Mellie e a criança estão bem? — Estão. Um menininho sátiro muito fofinho. — Will deu de ombros. — Mas fui eu que fiz o parto. Você já fez um parto alguma vez? — Hum… não. — Eu precisava espairecer. Foi por isso que me ofereci para esta missão. Pelos deuses do Olimpo, minhas mãos estão tremendo até agora. Olhe só! Will pegou a mão dele. Nico sentiu uma corrente elétrica percorrer sua coluna e tirou a mão rápido. — Aham — respondeu ele secamente. — Bom, não temos tempo para ficar de conversinha. Os romanos vão atacar ao amanhecer, e eu preciso…
— A gente sabe — disse Will. — Mas, se você pretende viajar nas sombras até aquela tenda, pode esquecer. Nico o olhou com hostilidade. — O quê? Ele esperava que Will ficasse assustado ou desviasse o olhar. Era o que a maioria das pessoas fazia. Mas os olhos azuis de Will permaneceram fixos nos dele, irritantemente determinados. — O treinador Hedge me contou tudo sobre as suas viagens nas sombras. Você não pode fazer isso de novo. — Acabei de fazer isso de novo, Solace. E estou ótimo. — Não, não está. Eu sou um curandeiro. Senti a escuridão nas suas mãos no mesmo instante em que toquei em você. Mesmo que conseguisse chegar àquela tenda, você não estaria em condições de lutar. Só que você não conseguiria chegar lá. Mais um mergulho e você não volta. Você não vai viajar nas sombras. Ordens médicas. — O acampamento está prestes a ser destruído… — E nós vamos deter os romanos — disse Will. — Mas vamos fazer isso do nosso jeito. Lou Ellen vai usar a Névoa. Vamos dar um jeito de andar por aí discretamente e provocar o máximo de dano possível a esses onagros. Sem viagem nas sombras. — Mas… — Não. Lou Ellen e Cecil viravam a cabeça de um lado para outro como se estivessem assistindo a uma partida de tênis muito intensa. Nico deu um suspiro de exasperação. Ele odiava trabalhar em grupo. As pessoas só sabiam tolher seu estilo, deixando-o desconfortável. E Will Solace… Nico reconsiderou a opinião que fazia do filho de Apolo. Ele sempre achara Will um cara tranquilo e despreocupado, mas, aparentemente, o garoto sabia ser teimoso e irritante também. Nico olhou lá para baixo, para o Acampamento Meio-Sangue, onde o restante dos gregos se preparava para a guerra. Mais além das tropas e das balistas, o lago de canoagem reluzia em um tom rosado às primeiras luzes do amanhecer. Nico se lembrou de quando chegara ao Acampamento Meio-Sangue pela primeira vez, aterrissando bem no carro do sol de Apolo, que tinha virado um ônibus escolar flamejante. Ele se lembrou de Apolo, sorridente e bronzeado e todo descolado com seus óculos escuros. Ao vê-lo, Thalia tinha comentado: Uau, fiquei até com calor! Ele é o deus-sol, retrucara Percy. Não é disso que estou falando.
Por que Nico estava pensando isso naquele momento? A lembrança aleatória o deixou nervoso. Ele tinha chegado ao Acampamento Meio-Sangue graças a Apolo. Agora, no que provavelmente seria seu último dia no acampamento, estava preso a um filho de Apolo. — Que seja — disse Nico. — Mas temos que correr. E eu digo o que vamos fazer. — Tudo bem — concordou Will. — Desde que você não me peça para fazer mais partos de bebês sátiros, vamos nos dar muito bem.
XLVI
NICO
ALCANÇARAM O PRIMEIRO ONAGRO JUSTO quando o caos irrompeu na legião. Gritos se ergueram da Quinta Coorte, na extremidade final das fileiras. Legionários debandavam e largavam seus pila. Uma dúzia de centauros avançava correndo através da formação de romanos, gritando e brandindo suas clavas. Uma horda de homens de duas cabeças os seguiu, batendo em tampas de lata de lixo de metal. — O que está acontecendo lá embaixo? — perguntou Lou Ellen. — É a nossa chance — disse Nico. — Vamos. Todos os guardas tinham se amontoado do lado direito do onagro, tentando ver o que acontecia lá embaixo, o que deu a Nico e aos outros caminho livre pela esquerda. Eles passaram despercebidos a pouco mais de um metro do romano mais próximo. Pelo visto, a magia da Névoa de Lou Ellen estava mesmo funcionando. Eles saltaram a trincheira de arame farpado para alcançar o onagro. — Trouxe um pouco de fogo grego — sussurrou Cecil. — Não — disse Nico. — Se provocarmos um estrago muito óbvio, nunca vamos chegar aos outros a tempo. Você consegue recalibrar a mira? Tipo, fazer esta máquina mirar na direção da trajetória dos outros onagros? Cecil abriu um sorriso malicioso. — Ah, gostei dessa sua linha de raciocínio. Saiba que eles me mandaram porque estragar as coisas é minha especialidade. E lá foi ele iniciar os trabalhos. Nico e os outros ficaram vigiando. Enquanto isso, a Quinta Coorte se digladiava com os homens de duas cabeças. A Quarta chegou para ajudar; as outras três coortes ficaram em suas posições, mas os oficiais estavam com dificuldades para manter a ordem. — Tudo bem — anunciou Cecil. — Vamos em frente. Eles seguiram pela encosta até outro onagro. Dessa vez, a Névoa não funcionou tão bem. Um dos homens que protegiam o onagro gritou: — Ei! — Deixem comigo — disse Will. Ele saiu correndo (a distração mais idiota que Nico podia imaginar), e seis guardas foram em seu encalço.
Os outros romanos partiram para cima de Nico, mas Lou Ellen surgiu da Névoa, gritando: — Ei, pensem rápido! Ela jogou para o alto uma bola branca do tamanho de uma maçã, que o romano no centro do grupo pegou instintivamente. Uma explosão se seguiu, fazendo subir no ar uma esfera de seis metros de poeira. Quando a poeira baixou, todos os seis romanos tinham virado leitõezinhos rosados a guinchar. — Muito bom — disse Nico. Lou Ellen corou. — Bem, era a única bola de porco que eu tinha. Por isso, não peçam bis. — E, hã… — Cecil apontou. — É melhor alguém ajudar Will. Mesmo com as pesadas armaduras que vestiam, os romanos começavam a se aproximar de Will. Nico xingou e saiu correndo atrás deles. Se pudesse evitar, ele preferia não matar mais semideuses. E, felizmente, isso não foi necessário. Ele derrubou o romano retardatário, e os outros se viraram. Nico saltou no meio do grupo, chutando-os na virilha, batendo no rosto de todos com a lateral da espada e amassando seus elmos com o cabo. Em dez segundos, todos os romanos estavam no chão gemendo, atordoados. Will deu um soquinho no ombro de Nico. — Obrigado pela ajuda. Seis de uma vez não é nada mau. — Nada mau? — Nico olhou com raiva para ele. — Da próxima vez vou deixar pegarem você, Solace. — Ah, eles nunca iam conseguir me pegar. Cecil acenou para eles do onagro, avisando que tinha terminado. Todos seguiram na direção da terceira máquina de cerco. Nas fileiras da legião, o caos continuava reinando, mas os oficiais começavam a retomar o controle. A Quarta e a Quinta Coortes se reagruparam enquanto a Segunda e a Terceira atuavam como tropa de choque, empurrando centauros, cinocéfalos e homens de duas cabeças de volta para os respectivos acampamentos. A Primeira Coorte permaneceu perto do onagro — perto demais para o gosto de Nico —, mas todos pareciam estar prestando atenção em dois oficiais que desfilavam diante deles gritando ordens. Nico esperava que eles conseguissem chegar sem ser vistos à terceira máquina de cerco. Com mais um onagro sabotado, talvez eles tivessem uma chance. Infelizmente, porém, os guardas os avistaram a vinte metros de distância. Um deles gritou: — Ali! Lou Ellen xingou. — Eles agora estão esperando um ataque. A Névoa não funciona bem contra inimigos alertas. Vamos fugir?
— Não — disse Nico. — Vamos dar a eles o que estão esperando. Ele estendeu as mãos. O chão em frente aos romanos pareceu explodir, e cinco esqueletos irromperam, arrastando-se para fora da terra. Cecil e Lou Ellen avançaram, para ajudar no ataque. Nico tentou ir também, mas teria caído de cara no chão se Will não o tivesse segurado. — Seu idiota. — Will passou um braço em torno dele para ajudá-lo a se firmar. — Eu avisei para você não usar mais magia do Mundo Inferior. — Eu estou bem. — Cale a boca. Que bem o quê. Will tirou do bolso um pacote de chiclete. Nico queria se soltar; odiava contato físico. Mas Will era muito mais forte do que parecia. Nico se viu sustentado por ele, confiando em seu apoio. — Tome — disse Will. — Você quer que eu masque chiclete? — É medicinal. Deve manter você vivo e alerta por mais algumas horas. Nico enfiou um chiclete na boca. — Tem gosto de piche e terra. — Pare de reclamar. — Ei. — Cecil se aproximou mancando; parecia ter distendido um músculo. — Vocês dois meio que perderam a luta. Lou Ellen chegou em seguida, sorrindo. Atrás deles, todos os guardas romanos estavam presos em uma mistura bizarra de cordas e ossos. — Obrigada pelos esqueletos — disse ela. — Grande truque. — Que ele não vai fazer outra vez — disse Will. Nico percebeu que ainda estava apoiado em Will. Ele se afastou e se manteve de pé sozinho. — Eu vou fazer o que for necessário. Will revirou os olhos. — Tudo bem, Garoto da Morte. Se você quer se matar… — Não me chame de Garoto da Morte! Lou Ellen limpou a garganta. — Ei, pessoal… — LARGUEM AS ARMAS! Nico se virou. A luta próxima ao terceiro onagro não tinha passado despercebida. Toda a Primeira Coorte avançava sobre eles, lanças em punho e escudos em posição. Octavian marchava à frente, com um manto roxo sobre a armadura, joias de ouro imperial reluzindo no pescoço e nos braços e, na cabeça, uma coroa de louros, como se já tivesse vencido a batalha. Ao lado dele estava o porta-estandarte da legião, Jacob, levando a águia dourada, e seis imensos
cinocéfalos, arreganhando os caninos, suas espadas emitindo um brilho vermelho. — Ora, ora — disse Octavian —, sabotadores graeci. — Ele se virou para seus guerreiros com cabeça de cachorro. — Acabem com eles.
XLVII
NICO
NICO NÃO SABIA SE QUERIA socar a si mesmo ou Will Solace. Se não tivesse se distraído discutindo bobagens com o filho de Apolo, nunca teria permitido que o inimigo chegasse tão perto. Quando os homens com cabeça de cachorro avançaram, Nico ergueu a espada. Ele duvidava que ainda lhe restasse alguma força para vencer, mas antes que pudesse atacá-los, Will soltou um assovio muito alto. Todos os seis homens-cão largaram as armas, levaram as mãos às orelhas e caíram em agonia. — Cara. — Cecil abriu a boca para reduzir a pressão nos ouvidos. — Que barulho do Hades! Da próxima vez, avise. — É ainda pior para os cachorros. — Will deu de ombros. — Um dos meus poucos talentos musicais. Um assovio ultrassônico horrível. Nico não reclamou. Ele avançava com dificuldade entre os homens-cão, cravando neles sua espada. Os monstros se dissolviam em sombras. Os romanos, entre eles Octavian, estavam sem ação, assombrados com o que viam. — Minha… minha guarda de elite! — Octavian olhou ao redor em busca de compreensão, de piedade. — Vocês viram o que ele fez com a minha guarda de elite? — Alguns cães precisam ser sacrificados. — Nico deu um passo à frente. — Como você. Por um belo momento, toda a Primeira Coorte hesitou. Mas então eles voltaram a si e ergueram seus pila. — Vocês serão destruídos! — ameaçou Octavian, em um grito estridente. — Vocês, graeci, ficam aí se infiltrando pelo acampamento, sabotando nossas armas, matando nossos homens… — As armas que vocês estavam prestes a disparar contra nós, você quer dizer — corrigiu Cecil. — E os homens que estavam prestes a queimar nosso acampamento — completou Lou Ellen. — Típico dos gregos! — berrou Octavian. — Tentando distorcer as coisas! Pois saibam que não vai funcionar! — Ele apontou para os legionários mais próximos. — Você, você, você e você. Verifiquem todos os onagros. Vejam se estão todos em boas condições. Quero que sejam disparados assim que possível. Vão!
Os quatro romanos saíram correndo. Nico tentou manter a expressão inalterada. Por favor, não verifiquem a trajetória de tiro, pensou. Nico só torcia para que Cecil tivesse feito tudo direito. Uma coisa era sabotar uma arma grande; outra era sabotar de maneira tão sutil que só percebessem quando já fosse tarde demais. Mas se alguém tinha essa habilidade, esse alguém seria um filho de Hermes, o deus das trapaças. Octavian marchou até Nico. Para seu crédito, o áugure não parecia estar com medo, embora portasse apenas uma adaga. Ele parou tão perto que Nico podia ver as veias injetadas em seus olhos pálidos e vidrados. Seu rosto estava abatido. Seu cabelo era da cor de macarrão cozido demais. Nico sabia que Octavian era um legado — um descendente de Apolo com muitas gerações de distância do deus. Agora ele não conseguia evitar pensar que Octavian parecia uma versão diluída e doentia de Will Solace, como uma foto que tivesse sido copiada vezes demais. Octavian não tinha nada do que quer que tornava um filho de Apolo especial. — Então me diga, filho de Plutão — sibilou o áugure —, por que está ajudando os gregos? O que eles já fizeram algum dia por você? Nico estava louco de vontade de enfiar a espada no peito de Octavian. Vinha sonhando com isso desde que Bryan Lawrence os atacara na Carolina do Sul. Mas, agora que estavam cara a cara, Nico hesitava. Ele não tinha dúvida de que podia matar Octavian antes que a Primeira Coorte interviesse. E não se importava em morrer por conta de seus atos. Valeria a pena. Mas depois do fim que Bryce tivera, a ideia de matar outro semideus a sangue-frio, mesmo Octavian, não lhe caía bem. Além do mais, não lhe parecia certo condenar Cecil, Lou Ellen e Will a morrer com ele. Não parece certo?, perguntava-se outra parte dele. Desde quando eu me preocupo com o que é certo? — Estou ajudando os gregos e os romanos — disse Nico. Octavian riu. — Não tente me enrolar. O que ofereceram a você? Um lugar no acampamento deles? Pois saiba que não vão cumprir o acordo. — Eu não quero um lugar no acampamento deles — respondeu Nico com raiva. — Nem no de vocês. Quando esta guerra terminar, vou deixar os dois acampamentos para sempre. Will Solace fez um som como se tivesse levado um soco. — Por que você faria isso? Nico franziu a testa. — Não é da sua conta, mas eu não pertenço a nenhum desses lugares. Isso é óbvio. Ninguém me quer. Sou filho de…
— Ah, por favor. — Will deixou transparecer uma raiva que não lhe era usual. — Ninguém no Acampamento Meio-Sangue nunca afastou você. Você tem amigos, ou pelo menos há quem gostaria de ser seu amigo. Você é que se afastou. Se tirasse a cabeça dessa sua nuvem de ressentimento pelo menos uma vez na vida… — Basta! — interrompeu Octavian. — Di Angelo, cubro qualquer oferta que os gregos possam fazer. Sempre achei que você daria um aliado poderoso. Vejo crueldade em você e gosto disso. Posso garantir seu lugar em Nova Roma. Basta que você saia do caminho e deixe os romanos vencerem. O deus Apolo me mostrou o futuro… — Não! — Will Solace empurrou Nico para o lado e avançou, ficando cara a cara com Octavian. — Eu sou filho de Apolo, seu perdedor anêmico. Meu pai não mostrou o futuro a ninguém, porque o poder da profecia não está funcionando. Mas isto… — Ele fez um gesto amplo, indicando a legião reunida, as hordas de exércitos monstruosos espalhadas pela encosta. — Isto não é o que Apolo desejaria! Octavian franziu os lábios. — É mentira. O deus me disse pessoalmente que eu seria lembrado como o salvador de Roma. Vou conduzir a legião à vitória, e vou começar… Nico sentiu o som antes mesmo de ouvi-lo: tum-tum-tum, reverberando pela terra, como as engrenagens gigantes de uma ponte móvel. Todos os onagros dispararam simultaneamente, e seis cometas dourados subiram aos céus. — … destruindo os gregos! — concluiu Octavian, em uma exclamação de alegria. — Os dias do Acampamento Meio-Sangue estão contados!
* * *
Nico não conseguia pensar em nada mais bonito que um projétil fora de curso. As cargas das três máquinas sabotadas fizeram um desvio para o lado ao serem lançadas, subindo em um arco na direção das cargas disparadas pelos outros três onagros. As bolas de fogo não colidiram diretamente. Nem precisavam. Assim que os mísseis se aproximaram uns dos outros, todas as seis ogivas detonaram em pleno ar, abrindo uma abóbada de ouro e fogo que queimou o oxigênio do céu. O calor atingiu com força o rosto de Nico. A grama soltou um chiado. As copas das árvores fumegaram. Mas, quando os fogos de artifício se apagaram, nenhum dano sério resultara da explosão. Octavian foi o primeiro a reagir. Batendo os pés no chão, ele gritou: — NÃO, NÃO, NÃO! RECARREGAR!
Ninguém na Primeira Coorte se mexeu. Nico ouviu o som de botas à direita. A Quinta Coorte estava em marcha acelerada na direção deles, liderada por Dakota. Mais abaixo na encosta, o restante da legião tentava entrar em formação, mas a Segunda, a Terceira e a Quarta Coortes estavam agora cercadas por um mar de monstros em péssimo humor. As forças auxiliares não pareciam satisfeitas com as explosões ocorridas no céu. Sem dúvida esperavam que o Acampamento Meio-Sangue se incendiasse para que pudessem ter semideuses carbonizados para o café da manhã. — Octavian! — chamou Dakota. — Temos novas ordens. O olho esquerdo de Octavian se contraía tão violentamente que parecia prestes a explodir. — Ordens? De quem? Não de mim! — De Reyna — disse Dakota, alto o suficiente para que todos na Primeira Coorte ouvissem. — Ela ordenou uma retirada. — Reyna? — Octavian riu, embora parecesse que ninguém tinha entendido a piada. — A fora da lei que eu mandei você prender? A ex-pretora que conspirou para trair o próprio povo com esse graecus? — Ele enfiou o dedo no peito de Nico. — Está obedecendo a ordens dela? A Quinta Coorte assumiu posição de combate atrás de Octavian, encarando desconfortavelmente seus companheiros da Primeira. Dakota cruzou os braços; determinado, disse: — Reyna é a pretora até que o Senado vote o contrário. — Estamos em guerra! — berrou Octavian. — Eu os trouxe à iminência da vitória definitiva, e vocês querem desistir? Primeira Coorte: prenda o centurião Dakota e qualquer um que concorde com ele. Quinta Coorte: lembrem-se do juramento que fizeram a Roma e à legião. Vocês obedecerão a mim! Will Solace interveio: — Não faça isso, Octavian. Não obrigue seu povo a escolher. Esta é sua última chance. — Minha última chance? — Octavian sorriu, a loucura brilhando em seus olhos. — Eu vou SALVAR ROMA! Agora, romanos, sigam minhas ordens! Prendam Dakota. Prendam essa escória graeca. E recarreguem os onagros! Nico não sabia o que os romanos teriam feito se tivessem sido deixados para decidir segundo a própria consciência. Mas ele não contara com os gregos. Naquele momento, todo o exército do Acampamento Meio-Sangue surgiu no topo da Colina Meio-Sangue. Clarisse La Rue vinha à frente, em uma biga vermelha puxada por cavalos de metal. Cem semideuses a seguiam, com duas vezes esse número de sátiros e espíritos da natureza, liderados por Grover
Underwood. Tyson avançava pesadamente, ao lado de outros seis ciclopes. Quíron vinha no modo garanhão branco completo, o arco a postos. Era uma visão impressionante, mas Nico só conseguia pensar: Não. Agora, não. Clarisse gritou: — Romanos, vocês investiram contra nosso Acampamento! Retirem-se, ou serão destruídos! Octavian virou-se para suas tropas. — Viram? Era tudo um plano! Eles nos dividiram para poder lançar um ataque-surpresa. Legião, cuneum formate! ATACAR!
XLVIII
NICO
NICO QUERIA GRITAR EI, VOCÊS! Parem já com isso! Tipo JÁ! Mas ele sabia que não ia adiantar nada. Depois de semanas de espera, agonia e raiva acumulada, gregos e romanos queriam sangue. Tentar impedir a batalha naquele momento seria como tentar impedir uma inundação depois do rompimento de uma represa. E então Will Solace salvou o dia. Ele botou os dedos na boca e deu um assovio ainda mais horrível que o último. Vários gregos largaram suas espadas. Uma onda varreu as fileiras romanas como se toda a Primeira Coorte estivesse tremendo. — NÃO SEJAM IDIOTAS! — gritou Will. — VEJAM! Ele apontou para o norte, e Nico abriu um sorriso de orelha a orelha. Porque, afinal, existia algo mais bonito que um projétil fora de curso: a Atena Partenos reluzindo ao amanhecer, em pleno ar, suspensa pelos cabrestos de seis cavalos alados. Águias romanas voavam em círculos acima dela, mas não atacaram. Algumas até chegaram a se aproximar, segurar os cabos e ajudar a carregar a estátua. Nico ficou preocupado por não ver Blackjack, mas lá estava Reyna RamírezArellano, montada em Guido, a espada erguida bem alto. Seu manto roxo cintilava de um modo estranho à luz do sol. Sob o olhar fixo e atônito dos dois exércitos, a estátua de doze metros de altura, toda em ouro e marfim, se aproximava para aterrissar. — SEMIDEUSES GREGOS! — A voz de Reyna ribombou como se fosse projetada pela própria estátua, como se a Atena Partenos tivesse se transformado em um grande alto-falante, daqueles usados em shows. — Eis sua estátua mais sagrada, a Atena Partenos, que foi levada injustamente pelos romanos. Eu a devolvo a vocês agora, como um gesto de paz! A estátua pousou no topo da colina, a cerca de cinco metros do pinheiro de Thalia. Imediatamente, uma luz dourada começou a irradiar pelo chão, descendo pelo vale do Acampamento Meio-Sangue e alcançando as fileiras romanas. Nico sentiu o calor penetrando seus ossos, uma sensação reconfortante e de paz como ele não sentia desde… nem se lembrava. Uma voz dentro dele parecia sussurrar: Você não está sozinho. Você faz parte da família olimpiana. Os deuses não o abandonaram. — Romanos! — continuou Reyna. — Faço isto pelo bem da legião, pelo bem de Roma. Precisamos nos unir a nossos irmãos gregos!
— Escutem o que ela diz! — bradou Nico, adiantando-se. Ele não sabia por que tinha falado aquilo. Por que o ouviriam? Ele não tinha crédito com nenhum dos dois lados. Era o pior orador, o pior embaixador de todos. Mas, mesmo assim, Nico foi avançando entre as linhas de combate, a espada negra na mão. — Reyna arriscou a vida por todos vocês! Trouxemos essa estátua do outro lado do mundo, um grego e um romano trabalhando juntos, porque precisamos unir forças. Gaia está despertando. Se não nos unirmos… VOCÊS MORRERÃO. A voz abalou a terra. A sensação de paz e segurança que invadira Nico desapareceu no mesmo instante. Um vento varreu a encosta da colina. O próprio solo se tornou fluido e grudento, e a grama começou a se agarrar às botas de Nico. UM GESTO INÚTIL. Nico sentiu como se estivesse pisando na garganta da deusa — como se toda a extensão de Long Island ressonasse com as cordas vocais dela. MAS VOCÊS PODEM MORRER JUNTOS, SE ISSO OS CONSOLA. — Não… — Octavian recuou, cambaleando. — Não, não… Ele entrou em pânico e saiu correndo, abrindo caminho entre as próprias tropas. — CERRAR FILEIRAS! — gritou Reyna. Gregos e romanos se juntaram e ficaram ombro a ombro enquanto, em toda a volta deles, a terra tremia. As tropas auxiliares de Octavian avançaram e cercaram os semideuses. Os dois acampamentos reunidos eram um ponto minúsculo em um mar de monstros. A resistência final seria ali na Colina Meio-Sangue, tendo na Atena Partenos o ponto de mobilização das tropas. Mesmo ali, no entanto, eles estavam em território inimigo. Porque Gaia era a terra, e a terra tinha despertado.
XLIX
JASON
JASON TINHA OUVIDO FALAR SOBRE a vida de uma pessoa passar diante de seus olhos. Mas ele não imaginou que seria daquele jeito. De pé com os amigos em um círculo defensivo, cercado por gigantes, depois olhando para algo impossível no céu… Jason viu a si mesmo, muito claramente, cinquenta anos no futuro. Ele estava sentado em uma cadeira de balanço no pórtico de uma casa no litoral da Califórnia. Piper servia limonada. O cabelo dela era grisalho. Rugas profundas marcavam os cantos de seus olhos, mas ela ainda estava bonita como sempre. Com os netos sentados aos seus pés, Jason tentava explicar a eles o que tinha acontecido naquele dia em Atenas. Não, é sério, dizia ele. Éramos só seis semideuses no chão, e mais um em um navio em chamas acima da Acrópole. Estávamos cercados por gigantes de dez metros de altura prestes a nos matar. Aí o céu se abriu, e os deuses desceram! Vovô, diziam as crianças, você é muito mentiroso. Não estou mentindo!, protestava ele. Os deuses do Olimpo desceram dos céus em suas bigas ao som de clarins e com espadas em chamas. E seu bisavô, o rei dos deuses, liderava o ataque, com uma lança de eletricidade pura crepitando na mão! Seus netos riam dele. E Piper olhava para ele e ria, como quem dizia Será que você acreditaria se não tivesse estado lá? Mas Jason estava lá. Ele olhou para o alto quando as nuvens se abriram acima da Acrópole, e quase duvidou dos óculos de grau que Asclépio tinha dado a ele. Em vez de céus azuis, ele viu um espaço negro pontilhado de estrelas, com os palácios do Monte Olimpo brilhando prateados e dourados ao fundo. E um exército de deuses desceu lá do alto. Era muita coisa para processar. E provavelmente foi melhor para sua saúde não ver tudo. Só mais tarde Jason conseguiria se lembrar de detalhes isolados. Havia Júpiter em tamanho gigante — não, aquele era Zeus, sua forma original — entrando na batalha com uma biga dourada e um raio do tamanho de um poste crepitando na mão. Quatro cavalos feitos de vento puxavam a biga, todos mudando da forma equina para a humana a todo momento, tentando escapar. Por uma fração de segundo, um deles assumiu a imagem sombria de Bóreas. Outro usava a coroa de fogo e vapor de Noto. Um terceiro exibia o sorriso
presunçoso e preguiçoso de Zéfiro. Zeus tinha amarrado e selado os quatro deuses do vento. No fundo do Argo II, as portas de vidro do porão se abriram. A deusa Nice saiu de lá, livre de sua rede de bronze. Ela abriu as asas douradas e voou para o lado de Zeus, assumindo seu lugar de direito como condutora de sua biga. — MINHA MENTE ESTÁ CURADA! — gritou ela. — VITÓRIA AOS DEUSES! Hera vinha à esquerda de Zeus. Sua biga era puxada por pavões enormes com uma plumagem multicolorida tão brilhante que deixou Jason tonto. Ares gritava de alegria enquanto descia estrondosamente montado em um cavalo que cuspia fogo. Sua lança brilhava, vermelha. No último segundo, antes que os deuses chegassem ao Partenon, eles desapareceram, como se tivessem saltado pelo hiperespaço. As bigas sumiram. De repente, Jason e seus amigos viram-se cercados pelos olimpianos, agora em tamanho humano, pequenos perto dos gigantes, mas reluzindo de poder. Jason gritou e atacou Porfírion. Seus amigos se juntaram à carnificina. A luta tomou todo o Partenon e se espalhou pela Acrópole. Pelo canto do olho, Jason viu Annabeth lutando contra Encélado. Ao lado dela havia uma mulher de cabelo preto comprido e armadura dourada sobre uma túnica branca. A deusa enfiou a lança no gigante, depois ergueu o escudo com a assustadora imagem em bronze de Medusa. Juntas, Atena e Annabeth fizeram Encélado recuar até o andaime de metal mais próximo, que então desmoronou sobre ele. Do outro lado do templo, Frank Zhang e o deus Ares se lançaram contra uma falange inteira de gigantes, Ares com a lança e o escudo, Frank (na forma de um elefante africano) com a tromba e as patas. O deus da guerra ria, golpeava e estripava como uma criança destruindo piñatas. Hazel corria pelo campo de batalha montada em Arion, desaparecendo na Névoa sempre que um gigante se aproximava, para em seguida reaparecer atrás dele e golpeá-lo nas costas. A deusa Hécate seguia em seu rastro, ateando fogo a seus inimigos com duas tochas flamejantes. Jason não viu Hades, mas sempre que um gigante caía, o chão se abria e o engolia por inteiro. Percy combatia os gigantes gêmeos, Oto e Efialtes, tendo a seu lado um homem barbado com um tridente e uma camisa havaiana berrante. Os gigantes gêmeos cambalearam. O tridente de Poseidon se transformou em uma mangueira de incêndio, e, com um jato ultrapoderoso na forma de cavalos selvagens, o deus lançou os gigantes para fora do Partenon. Piper talvez fosse a mais impressionante. Ela duelava com a giganta Peribeia, espada contra espada. Apesar de sua adversária ser cinco vezes maior, Piper parecia estar se saindo bem. A deusa Afrodite flutuava em torno delas em uma
pequena nuvem branca, jogando pétalas de rosa nos olhos da giganta e dizendo palavras de estímulo para Piper: — Ótimo, querida. Isso, muito bem. Acerte-a de novo! Sempre que Peribeia tentava atacar, pombas surgiam do nada e acertavam a cara da giganta. Quanto a Leo, ele corria pelo convés do Argo II disparando balistas, jogando martelos na cabeça dos gigantes e incinerando suas túnicas. Atrás dele, ao timão, um sujeito barbado e musculoso de macacão de mecânico mexia nos controles, tentando furiosamente evitar que o barco caísse. A imagem mais estranha era o velho gigante Toas, que estava sendo surrado até a morte por três velhas com maças de latão, as Parcas, armadas para a guerra. Jason achou que não havia nada no mundo mais assustador do que uma gangue de vovós armadas com porretes. Ele percebeu todas essas coisas e mais uma dezena de outros confrontos em andamento, mas a maior parte de sua atenção estava concentrada no inimigo à sua frente, Porfírion, o rei dos gigantes, e no deus que lutava ao seu lado, Zeus. Meu pai, pensou Jason, sem conseguir acreditar. Porfírion não deu a ele muita oportunidade de saborear o momento. O gigante usou sua lança em um turbilhão de estocadas, giros e cortes. Ficar vivo era o máximo que Jason podia fazer. Mesmo assim… a presença de Zeus era tranquilizadoramente familiar. Apesar de Jason nunca ter conhecido pessoalmente o pai, ele se lembrou de todos os seus momentos mais felizes: seu piquenique de aniversário com Piper em Roma; o dia em que Lupa lhe mostrara o Acampamento Júpiter pela primeira vez; as brincadeiras de esconde-esconde com Thalia na casa deles, quando era pequeno; uma tarde na praia quando sua mãe o pegara, o beijara e lhe mostrara uma tempestade que se aproximava. Nunca tema uma tempestade, Jason. É seu pai dizendo que o ama. Zeus tinha cheiro de chuva e vento fresco. Ele fazia o ar queimar de energia. De perto, seu raio parecia uma vara de bronze de um metro afiada nas duas pontas, com lâminas de energia se projetando dos dois lados de maneira a formar uma lança de eletricidade branca. Com um golpe, ele bloqueou o caminho do gigante, e Porfírion caiu em seu trono improvisado, que desmoronou sob seu peso. — Não há trono para você — disse Zeus com raiva. — Nem aqui, nem nunca. — Você não pode nos impedir! — gritou o gigante. — Já está feito! A Mãe Terra despertou! Em resposta, Zeus explodiu o trono. O rei dos gigantes voou de costas para fora do templo, e Jason correu até ele, com o pai logo atrás. Eles encurralaram Porfírion na beira da colina, com a Atenas moderna inteira abaixo deles. O raio tinha derretido todas as armas no cabelo do gigante. Bronze
celestial derretido escorria por seus dreadlocks como caramelo. Sua pele soltava fumaça e estava cheia de bolhas. Porfírion rosnou de raiva e ergueu sua lança. — Sua causa está perdida, Zeus. Mesmo se me derrotar, a Mãe Terra vai simplesmente me trazer de volta outra vez! — Então talvez — disse Zeus — você não deva morrer nos braços de Gaia. Jason, meu filho… Jason nunca tinha se sentido tão bem, tão reconhecido, como ao ouvir o pai dizer seu nome. Foi como no inverno anterior, no Acampamento Meio-Sangue, quando suas lembranças finalmente voltaram. Por fim, Jason entendeu outro nível de sua existência, uma parte de sua identidade que antes estivera nublada. Agora ele não tinha dúvida: era filho de Júpiter, o deus do céu. Ele era o filho de seu pai. Jason avançou. Porfírion golpeava alucinadamente com a lança, mas Jason a cortou ao meio com seu gládio. Então cravou a espada no peitoral do gigante, depois invocou os ventos e lançou Porfírion no precipício. Enquanto o gigante caía gritando, Zeus apontou seu raio. Um arco de puro calor branco desintegrou Porfírion em pleno ar. Suas cinzas desceram lentamente em uma nuvem delicada que cobriu de poeira o topo das oliveiras na encosta da Acrópole. Zeus virou-se para Jason. Seu raio se apagou, e ele prendeu a vara de bronze celestial no cinto. Os olhos do deus eram cinza e tempestuosos. Seu cabelo e sua barba grisalhos pareciam nuvens. Jason achou estranho que o senhor do universo, o rei do Olimpo, fosse apenas alguns centímetros mais alto que ele. — Meu filho. — Zeus segurou o ombro de Jason. — Há tanta coisa que eu gostaria de dizer a você. O deus respirou fundo, fazendo o ar crepitar e os óculos de Jason embaçarem. — Infelizmente, como rei dos deuses, não posso demonstrar favoritismos. Quando nos unirmos aos outros olimpianos, não vou poder elogiá-lo tanto quanto eu gostaria, nem lhe dar o crédito que você merece. — Eu não quero elogios — disse Jason, com a voz trêmula. — Só um pouco de tempo juntos já seria bom. Quer dizer, eu nem conheço você. O olhar de Zeus estava tão distante quanto a camada de ozônio. — Estou sempre com você, Jason. Acompanhei seu progresso com orgulho, mas nunca vai ser possível sermos… — Ele fez um gesto como se estivesse tentando pegar a palavra certa no ar. Próximos. Normais. Verdadeiros pai e filho. — Desde seu nascimento você foi destinado a ser de Hera, para apaziguar sua ira. Até seu nome, Jason, foi escolha dela. Você não pediu por isso. Eu não queria isso. Mas quando eu o entreguei a ela… não tinha ideia do homem que você iria se tornar. Você foi formado por sua jornada, que o tornou bom e grandioso. O
que quer que aconteça quando voltarmos ao Partenon, saiba que eu não considero você responsável. Você provou ser um verdadeiro herói. As emoções de Jason estavam uma confusão em seu peito. — O que quer dizer com… o que quer que aconteça? — O pior ainda está por vir — avisou Zeus. — E alguém deve levar a culpa pelo que aconteceu. Venha.
L
JASON
NÃO SOBROU NADA DOS GIGANTES além de pilhas de pó, algumas lanças e um punhado de dreadlocks em chamas. O Argo II ainda estava no ar, mas por pouco, atracado no topo do Partenon. Quase todos os remos tinham sido arrancados ou estavam emaranhados. Saía fumaça de várias rachaduras no casco. As velas estavam pontilhadas de furos em chamas. Leo tinha um aspecto quase tão ruim quanto o barco. Ele estava no meio do templo junto dos outros membros da tripulação, o rosto coberto de fuligem e as roupas flamejando. Os deuses se dispersaram em um semicírculo quando Zeus se aproximou. Nenhum deles parecia muito satisfeito com a vitória. Apolo e Ártemis estavam juntos à sombra de uma coluna, como se estivessem tentando se esconder. Hera e Poseidon discutiam intensamente com uma deusa que vestia uma túnica verde e dourada, talvez Deméter. Nice tentou botar uma coroa de louros na cabeça de Hécate, mas a deusa da magia a afastou. Hermes se aproximou discretamente de Atena, tentando passar o braço em torno dela, mas Atena virou o escudo Aegis na direção dele, e Hermes se afastou, aborrecido. O único olimpiano que parecia de bom humor era Ares, que ria e fingia cortar um inimigo enquanto Frank escutava, com expressão educada mas constrangida. — Irmãos — começou Zeus —, estamos curados graças ao trabalho destes semideuses. A Atena Partenos, que antigamente ficava neste templo, agora está no Acampamento Meio-Sangue. Ela uniu nossa descendência e, com isso, nossos aspectos. — Senhor Zeus — disse Piper tomando a palavra. — Reyna está bem? E Nico e o treinador Hedge? Jason quase não podia acreditar que Piper estivesse preocupada com Reyna, mas ficou satisfeito com isso. Zeus franziu as sobrancelhas cor de nuvem. — Eles foram bem-sucedidos em sua missão. E, até o momento, estão vivos. Se estão bem ou não… — Ainda há trabalho a ser feito — interrompeu a rainha Hera. Ela abriu os braços como se quisesse um abraço coletivo. — Mas, meus heróis… vocês triunfaram sobre os gigantes, como eu sabia que fariam. Meu plano foi lindamente bem-sucedido.
Zeus virou-se para a esposa. Um trovão abalou a Acrópole. — Hera, não ouse ficar com o crédito! Você causou pelo menos tantos problemas quanto resolveu! A rainha dos céus ficou lívida. — Meu marido, certamente você agora vê… que esse era o único modo. — Nunca há apenas um modo! — berrou Zeus. — É por isso que há três Parcas, não uma. Correto? Junto aos destroços do trono do rei dos gigantes, as três velhas assentiram em silêncio. Jason percebeu que os outros deuses preferiram ficar bem longe das Parcas e de suas reluzentes maças de latão. — Por favor, meu marido. — Hera tentou sorrir, mas estava tão nitidamente amedrontada que Jason quase sentiu pena dela. — Eu só fiz o que… — Silêncio! — interrompeu-a Zeus. — Você desobedeceu às minhas ordens. Mesmo assim… reconheço que teve boas intenções. O valor destes sete heróis provou que você não agiu de forma completamente ignorante. Hera pareceu querer discutir, mas manteve a boca fechada. — Apolo, entretanto… — Zeus olhou para as sombras onde estavam os gêmeos. — Meu filho, venha cá. Apolo avançou bem devagar, como se estivesse caminhando para a forca. Chegava a ser enervante quanto ele parecia um semideus adolescente: cerca de dezessete anos, usando calça jeans e camiseta do Acampamento Meio-Sangue, com um arco no ombro e uma espada presa no cinto. Com o cabelo louro despenteado e os olhos azuis, podia ser irmão de Jason tanto pelo lado mortal quanto pelo divino. Jason se perguntou se o deus tinha assumido aquela forma para não chamar atenção ou para inspirar piedade no pai. O medo no rosto de Apolo com certeza parecia real, e também muito humano. As três Parcas cercaram o deus, as mãos enrugadas erguidas. — Você me desafiou duas vezes — disse Zeus. Apolo umedeceu os lábios. — Meu… meu senhor… — Você não cumpriu com seus deveres. Você sucumbiu à lisonja e à vaidade. Você encorajou seu filho, Octavian, a seguir um caminho perigoso, e revelou prematuramente uma profecia que ainda pode destruir a todos. — Mas… — Basta! — interrompeu Zeus. — Depois conversaremos sobre sua punição. Por enquanto, você vai esperar no Olimpo. Zeus agitou a mão. Apolo se transformou em uma nuvem de purpurina. As Parcas giraram em torno dele para então se dissolverem no ar, e o redemoinho de purpurina subiu para o céu.
— O que vai acontecer com Apolo? — perguntou Jason. Os deuses olharam para ele, mas Jason não ligou. Depois de conhecer Zeus pessoalmente, ele sentia certa simpatia por Apolo. — Não é da sua conta — disse Zeus. — Temos outros problemas com que nos preocupar. Um silêncio insuportável se abateu sobre o Partenon. Não parecia certo simplesmente deixar o assunto para depois. Jason não via a razão de apenas Apolo ser castigado. Alguém deve levar a culpa, dissera Zeus. Mas por quê? — Pai — disse Jason —, eu jurei cultuar todos os deuses. Prometi a Cimopoleia que, quando esta guerra terminasse, nenhum deus ficaria sem um templo nos acampamentos. Zeus franziu a testa. — Está bem. Mas… Cimo quem? Poseidon pigarreou, cobrindo a boca com a mão. — Ela é uma das minhas. — O que estou dizendo — continuou Jason — é que culpar uns aos outros não vai resolver nada. Foi assim que começou a rixa entre gregos e romanos. O ar ficou perigosamente ionizado. O couro cabeludo de Jason formigou. Ele percebeu que estava se arriscando a sofrer a ira do pai. Podia ser transformado em purpurina ou jogado para longe da Acrópole. Ele conhecera Zeus havia cinco minutos e tinha causado uma boa impressão. Agora estava jogando isso fora. Um bom romano ficaria calado. Jason continuou: — Apolo não foi o problema. Castigá-lo pelo despertar de Gaia é… — ele queria dizer burrice, mas se segurou — não seria sábio. — Não seria sábio… — A voz de Zeus era quase um sussurro. — Diante de todos os deuses, você diz que eu não sou sábio. Os amigos de Jason observavam, totalmente alertas. Percy parecia pronto para interferir e se juntar a ele. Então Ártemis saiu das sombras: — Pai, esse herói lutou muito e por muito tempo pela nossa causa. Seus nervos estão abalados. Devemos levar isso em conta. Jason ia protestar, mas Ártemis o impediu com um olhar. A expressão dela mandava uma mensagem tão clara que era como se estivesse falando com ele mentalmente. Obrigada, semideus. Mas não abuse. Vou conversar com Zeus quando ele estiver mais calmo. — E sem dúvida, pai — prosseguiu a deusa —, como o senhor observou, devemos nos ater a nossos problemas mais urgentes.
— Gaia — reforçou Annabeth, nitidamente ansiosa para mudar de assunto. — Ela despertou, não foi? Zeus virou-se para ela. Em volta de Jason, as moléculas do ar pararam de vibrar. Seu crânio parecia ter acabado de sair do micro-ondas. — Isso mesmo — disse Zeus. — O sangue do Olimpo foi derramado. Ela está totalmente consciente. — Ah, qual é! — reclamou Percy. — Eu sangro um pouquinho pelo nariz e acordo a terra inteira? Isso não é justo! Atena pôs Aegis no ombro. — Reclamar de injustiça é como culpar alguém, Percy Jackson: não faz bem a ninguém. — Ela lançou um olhar de aprovação para Jason. — Agora vocês têm que se apressar. Gaia está se preparando para destruir seu acampamento. Poseidon se apoiou em seu tridente. — Desta vez, Atena tem razão. — Desta vez? — protestou Atena. — Por que Gaia voltaria ao acampamento? — perguntou Leo. — Percy sangrou aqui. — Cara — disse Percy —, primeiro de tudo, você ouviu Atena: não culpe meu nariz. Segundo: Gaia é a terra. Ela pode aparecer onde quiser. Além do mais, ela nos contou que ia fazer isso. Disse que a primeira coisa em sua lista era destruir nosso acampamento. A pergunta é: como vamos impedi-la? Frank olhou para Zeus. — Hã… senhor, Sua Majestade, vocês não podem simplesmente ir lá com a gente? Vocês têm as bigas e os poderes mágicos e tudo o mais. — Isso! — disse Hazel. — Nós derrotamos os gigantes juntos em dois segundos. Vamos todos até lá… — Não — disse Zeus, secamente. — Não? — perguntou Jason. — Mas, pai… Os olhos de Zeus cintilaram de poder, e Jason percebeu que tinha levado o pai ao limite naquele dia… e talvez pelos séculos seguintes. — Esse é o problema com as profecias — resmungou Zeus. — Quando Apolo permitiu que a Profecia dos Sete fosse pronunciada, e quando Hera tomou a decisão de interpretar suas palavras, as Parcas teceram o futuro de uma maneira que ele tinha apenas determinado número de resultados, determinado número de soluções. Vocês sete, os semideuses, estão destinados a derrotar Gaia. Nós, deuses, não podemos. — Não entendo — disse Piper. — Qual é o sentido em vocês serem deuses se precisam contar com a ajuda de simples mortais para fazerem o que querem? Todos os deuses trocaram olhares sombrios. Entretanto, Afrodite riu com carinho e beijou a filha.
— Piper, querida, você não acha que nós nos fazemos essa pergunta há milhares de anos? Mas é isso o que nos une, o que nos torna eternos. Precisamos de vocês, mortais, tanto quanto vocês precisam de nós. Por mais irritante que isso seja, é a verdade. Frank se remexia, desconfortável, como se sentisse falta de ser um elefante. — Então como podemos chegar ao Acampamento Meio-Sangue a tempo de salvá-lo? Levamos meses para vir até a Grécia. — Os ventos — disse Jason. — Pai, você pode fazer com que os ventos mandem nosso navio de volta? Zeus fechou a cara. — Eu podia mandá-los de volta a Long Island com um tapa. — Hã… isso foi uma piada, uma ameaça ou…? — Não — disse Zeus. — Estou falando bem literalmente. Eu podia dar um tapa em seu barco e mandá-lo de volta para o Acampamento Meio-Sangue, mas a força envolvida nisso… Perto do trono em ruínas do gigante, o deus desgrenhado com macacão de mecânico balançou a cabeça. — O meu menino Leo construiu um bom navio, mas o Argo II não vai suportar tamanha força. Vai se desfazer assim que chegar, talvez antes. Leo ajeitou seu cinto de ferramentas. — O Argo II aguenta. Ele só precisa ficar inteiro até chegarmos em casa. Depois, podemos abandonar o navio. — É perigoso — alertou Hefesto. — Talvez até fatal. A deusa Nice girava uma coroa de louros no dedo. — A vitória é sempre arriscada. E muitas vezes exige um sacrifício. Leo Valdez e eu já discutimos isso. Ela olhou diretamente para Leo. Jason não gostou nada daquilo. Ele se lembrou da expressão grave de Asclépio quando o médico examinou Leo. Minha nossa. Ah, estou vendo… Jason sabia o que eles precisavam fazer para derrotar Gaia. Conhecia os riscos. Mas ele queria correr esses riscos sozinho, não jogá-los sobre Leo. Piper está com a cura do médico, disse ele a si mesmo. Ela vai cuidar de nós dois. — Leo, do que Nice está falando? — perguntou Annabeth. Leo fez pouco caso da pergunta com um aceno. — O de sempre. Vitória. Sacrifício. Blá-blá-blá. Não importa. Nós podemos fazer isso, gente. Nós temos que fazer isso. Jason foi tomado por um medo súbito. Zeus estava certo sobre uma coisa: o pior ainda estava por vir.
Quando tiver que escolher, dissera Noto, o Vento Sul, entre tempestade ou fogo, não entre em pânico. Jason tomou a decisão: — Leo tem razão. Todos a bordo para uma última viagem.
LI
JASON
UMA DESPEDIDA CALOROSA ERA PEDIR demais. A última visão que Jason teve do pai foi Zeus com trinta metros de altura segurando o Argo II pela proa. Ele gritou: SEGUREM FIRME! Então jogou o barco para o alto e bateu nele no ar como um jogador de vôlei dando um saque. Se Jason não estivesse preso ao mastro com um dos cintos de segurança de vinte pontos de Leo, teria se desintegrado. Do jeito que foi, seu estômago tentou ficar para trás, na Grécia, e todo o ar foi sugado de seus pulmões. O céu ficou negro. O navio chacoalhava e rangia. Rachaduras se espalharam pelo convés como se Jason estivesse sobre gelo fino, e, com um estrondo sônico, o Argo II saiu em alta velocidade das nuvens. — Jason! — gritou Leo. — Depressa! Mesmo sentindo os dedos como se fossem plástico derretido, ele conseguiu soltar as correias. Leo estava preso ao painel de controle, tentando desesperadamente estabilizar o navio enquanto eles mergulhavam em queda livre. As velas estavam em chamas. Festus crepitava em alarme. Uma catapulta se soltou e subiu no ar. A força centrífuga arremessou os escudos presos às amuradas como se fossem frisbees de metal. Rachaduras maiores se abriram no convés enquanto Jason cambaleava na direção do porão, usando os ventos para se manter de pé. Se ele não conseguisse chegar até os outros… Então a portinhola se abriu. Frank e Hazel saíram com dificuldade por ali, puxando a corda que eles tinham amarrado no mastro. Piper, Annabeth e Percy surgiram logo depois, todos parecendo desorientados. — Vão! — berrou Leo. — Vão, vão, vão! Pela primeira vez, o tom de Leo estava mortalmente sério. Eles haviam discutido o plano de evacuação, mas aquele tapa para o outro lado do mundo tinha deixado a mente de Jason lenta. A julgar pela expressão dos outros, eles não estavam em condições muito melhores. Buford os salvou. A mesa veio chacoalhando pelo convés com seu Hedge holográfico gritando: — VAMOS! MEXAM-SE! PAREM COM ISSO! Então o tampo da mesa se abriu em hélices de helicóptero, e Buford alçou voo.
Frank mudou de forma. Em vez de um semideus atordoado, ele agora era um dragão cinza atordoado. Hazel subiu em suas costas. Frank agarrou Percy e Annabeth com as patas da frente, depois abriu as asas e saiu voando. Jason segurou Piper pela cintura, pronto para levantar voo, mas cometeu o erro de olhar para baixo. O que viu foi um caleidoscópio giratório de céu, terra, céu, terra. O chão estava ficando terrivelmente próximo. — Leo, você não vai conseguir! — gritou Jason. — Venha com a gente. — Não! Saiam daqui! — Leo! — pediu Piper. — Por favor… — Poupe o charme, Pipes! Eu já disse que tenho um plano. Agora sumam! Jason deu uma última olhada no navio que se desfazia. O Argo II tinha sido a casa deles por muito tempo. Agora o estavam abandonando para sempre, e deixando um amigo para trás. Jason odiava aquilo, mas viu a determinação nos olhos de Leo. Tal como no encontro com seu pai, Zeus, não havia tempo para uma despedida adequada. Jason domou os ventos, e ele e Piper se lançaram aos céus.
* * *
A situação lá no chão não era menos caótica. Enquanto caíam, Jason viu um enorme exército de monstros espalhado pelos montes — cinocéfalos, homens de duas cabeças, centauros selvagens, ogros e outros cujos nomes ele nem sabia —, cercando dois pequenos grupos de semideuses. No alto da Colina Meio-Sangue, a principal força do Acampamento Meio-Sangue estava reunida aos pés da Atena Partenos junto com a Primeira e a Quinta Coortes, agrupadas em torno da águia dourada da legião. As outras três coortes romanas estavam em formação defensiva a centenas de metros de distância e pareciam estar recebendo a pior parte do ataque. Águias gigantes rodearam Jason, piando com urgência, como se aguardassem ordens. Frank, o dragão cinza, e seus passageiros voavam ao seu lado. — Hazel! — gritou Jason. — Aquelas três coortes estão com sérios problemas! Se elas não conseguirem se juntar ao restante dos semideuses… — Estou vendo! — disse Hazel. — Vamos lá, Frank! O dragão Frank deu uma guinada para a esquerda, com Annabeth gritando em uma de suas garras: — Vamos pegá-los! E Percy, na outra garra, berrando: — Eu odeio voar! Piper e Jason seguiram bruscamente para a direita, rumo ao topo da Colina Meio-Sangue.
Jason se animou quando viu Nico di Angelo na linha de frente ao lado dos gregos, abrindo caminho com sua espada em meio a uma multidão de homens de duas cabeças. A poucos metros dele, Reyna, com a espada em punho, estava montada em um novo pégaso. Ela gritava ordens para a legião, e os romanos lhe obedeciam sem questionar, como se ela nunca tivesse se afastado deles. Jason não viu Octavian em lugar algum. Ótimo. Ele também não viu nenhuma colossal deusa da terra devastando o mundo. Melhor ainda. Talvez Gaia tivesse despertado, dado uma olhada no mundo moderno e resolvido voltar a dormir. Jason desejou que eles pudessem ter tal sorte, mas duvidava disso. Quando ele e Piper pousaram na colina, com as espadas desembainhadas, os gregos e romanos deram vivas. — Já estava na hora! — gritou Reyna. — Que bom que você conseguiu se juntar a nós! Surpreso, Jason percebeu que ela se dirigia a Piper, não a ele. Piper sorriu. — Tivemos que matar uns gigantes! — Excelente! — Reyna devolveu o sorriso. — Agora pode se servir de alguns bárbaros. — Ora, obrigada! As duas partiram para a batalha lado a lado. Nico cumprimentou Jason com um aceno de cabeça como se eles tivessem se visto apenas cinco minutos antes, depois voltou a transformar homens de duas cabeças em cadáveres sem cabeça. — Chegaram bem na hora. Onde está o navio? Jason apontou. O Argo II despencou pelo céu em uma bola de fogo; pedaços dos mastros, do casco e armamentos caíam em chamas. Jason não sabia como mesmo o Leo à prova de fogo poderia sobreviver àquilo, mas ele precisava ter esperança. — Pelos deuses — disse Nico. — Está todo mundo bem? — Leo… — A emoção era perceptível na voz de Jason. — Ele disse que tinha um plano. O cometa desapareceu atrás das montanhas. Jason esperou, com apreensão, o som de uma explosão, mas não ouviu nada em meio ao clamor da batalha. Nico o encarou. — Ele vai ficar bem. — Com certeza. — Mas por via das dúvidas… Por Leo. — Por Leo — concordou Jason. E eles se lançaram juntos no meio da batalha. A raiva de Jason deu a ele forças renovadas. Os gregos e romanos aos poucos forçavam os inimigos a recuar. Centauros selvagens caíam. Homens com cabeça
de lobo uivavam ao serem golpeados com espadas e transformados em pó. Mais monstros continuavam a aparecer: karpoi, espíritos dos grãos, que subiam da grama em turbilhão, grifos que mergulhavam do céu e formas humanoides de barro que lembravam a Jason bonecos de massa de modelar malvados. — São fantasmas com carapaças de terra! — alertou Nico. — Não deixem que acertem vocês! Obviamente, Gaia tinha guardado alguns truques na manga. Em determinado momento, Will Solace, líder do chalé de Apolo, correu até Nico e disse alguma coisa em seu ouvido. Em meio aos gritos e ao ruído das espadas, Jason não conseguiu distinguir as palavras. — Preciso ir! — disse Nico. Ele não entendeu direito, mas assentiu, e Will e Nico foram correndo para o meio do confronto. No momento seguinte, Jason se viu cercado por um grupo de filhos de Hermes que apareceram ali sem nenhum motivo aparente. Connor Stoll sorriu. — E aí, Grace? — Tudo bem — disse Jason. — E você? Connor se esquivou da clava de um ogro e enfiou a espada em um espírito dos grãos, que explodiu em uma nuvem de trigo. — É, não posso reclamar. Um dia como outro qualquer. — Eiaculare flammas! — berrou Reyna. Uma saraivada de flechas incendiárias traçou um arco acima da parede de escudos da legião e destruiu um pelotão de ogros. As fileiras romanas avançaram, empalaram centauros e passaram por cima de ogros feridos com suas botas com ponta de bronze. De algum ponto na base da colina, Jason ouviu Frank berrar em latim: — Repellere equites! Um enorme bando de centauros disparou em pânico enquanto os soldados das outras três coortes da legião avançavam em formação perfeita, suas lanças reluzindo com sangue de monstros. Frank marchava à frente deles. No flanco esquerdo, montada em Arion, Hazel estava radiante de orgulho. — Ave, pretor Zhang! — saudou Reyna. — Ave, pretora Ramírez-Arellano! — disse Frank. — Vamos lá. Legião, FORMAÇÃO ÚNICA! Os romanos deram vivas, e as cinco coortes se uniram em uma máquina mortífera maciça. Frank apontou a espada para a frente, e, do estandarte da águia dourada, raios dourados se lançaram sobre o inimigo, fritando várias centenas de monstros. — Legião, cuneum formate! — gritou Reyna. — Avançar!
Jason ouviu mais gritos de comemoração a sua direita quando Percy e Annabeth se juntaram às forças do Acampamento Meio-Sangue. — Gregos! — gritou Percy. — Vamos… hã… matar uns monstros aí! Eles gritaram como loucos e atacaram. Jason sorriu. Ele adorava os gregos. Eles não tinham nenhuma organização, mas compensavam com entusiasmo. Jason estava com um bom pressentimento em relação àquela batalha, exceto por duas grandes perguntas: onde estava Leo? E onde estava Gaia? Infelizmente, a segunda resposta veio primeiro. Sob seus pés, a terra começou a ondular como se a Colina Meio-Sangue tivesse se transformado em um colchão de água gigante. Semideuses tombaram. Ogros escorregaram. Centauros caíram de cara na grama. DESPERTA, trovejou uma voz em torno deles. A cem metros de distância, no topo de um monte, a grama e a terra se ergueram em um redemoinho como se fosse a broca de uma furadeira gigante. A coluna de terra ficou mais espessa e se transformou em uma figura feminina de seis metros de altura usando um vestido de folhas de grama, com pele branca como quartzo e cabelo castanho emaranhado como raízes de árvore. — Tolinhos. — Gaia, a Mãe Terra, abriu seus olhos verdes. — A magia fraca dessa estátua não pode me deter. Enquanto ela dizia isso, Jason entendeu por que Gaia não tinha aparecido até então. A Atena Partenos estava protegendo os semideuses, contendo a ira da terra, mas nem o poder de Atena podia durar tanto contra uma deusa primordial. Um medo tão palpável quanto uma frente fria passou por todos os semideuses. — Mantenham-se firmes! — gritou Piper com o charme. — Gregos e romanos: juntos, nós podemos vencê-la! Gaia riu. Ela abriu os braços, e a terra foi atraída em sua direção: árvores se inclinando, o leito de rocha rangendo, o solo se movendo em ondas. Jason se elevou com o vento, mas, a sua volta, monstros e semideuses começaram a afundar na terra. Um dos onagros de Octavian tombou e desapareceu na encosta da colina. — A terra inteira é meu corpo — trovejou Gaia. — Como podem lutar contra a deusa da… TUUUUMP! Com um reluzir de bronze, Gaia foi varrida da encosta, arrancada dali pelas garras de um dragão de metal de cinquenta toneladas. Festus, renascido, subiu aos céus com as asas reluzentes, cuspindo fogo em triunfo. Enquanto subia, a pessoa montada em suas costas ficava cada vez menor e mais difícil de identificar, mas o sorriso de Leo era inconfundível. — Pipes! Jason! — gritou ele, olhando para baixo. — Vocês não vêm? A batalha é aqui em cima!
LII
JASON
ASSIM QUE GAIA DECOLOU, O chão se solidificou. Semideuses pararam de afundar, apesar de muitos ainda estarem enterrados até a cintura. Infelizmente, os monstros pareciam se desenterrar mais depressa. Eles atacaram os exércitos gregos e romanos, tirando vantagem da desorganização dos semideuses. Jason abraçou Piper pela cintura. Ele estava prestes a levantar voo quando Percy gritou: — Espere! Frank pode nos levar lá para cima! Podemos… — Não, cara — disse Jason. — Eles precisam de você aqui. Ainda tem monstros para serem derrotados. Além disso, a profecia… — Ele tem razão. — Frank segurou o braço de Percy. — Você precisa deixar que eles façam isso, Percy. É como a missão de Annabeth em Roma. Ou a de Hazel nas Portas da Morte. Temos que confiar neles. Percy obviamente não gostou, mas, naquele instante, uma onda de monstros avançou sobre as forças gregas. — Ei! Estamos com problemas aqui! — gritou Annabeth. Percy correu para ajudá-la. Frank e Hazel se viraram para Jason e ergueram os braços fazendo a saudação romana, depois foram reagrupar a legião. Jason e Piper subiram em espiral com o vento. — Eu tenho a cura — murmurou Piper como um mantra. — Vai ficar tudo bem. Eu tenho a cura. Jason percebeu que de algum modo ela tinha perdido a espada, mas ele duvidava que isso fosse fazer alguma diferença. Contra Gaia, uma espada não era nada. Tudo agora se resumia a fogo e tempestade… e um terceiro poder, o charme de Piper, que os manteria juntos. No inverno anterior, Piper tinha tornado o poder de Gaia mais lento na Casa dos Lobos, ajudando a libertar Hera de uma cela feita de terra. Agora ela teria uma tarefa ainda maior. Enquanto subiam, Jason reuniu o vento e as nuvens ao seu redor. O céu respondeu com uma velocidade espantosa. Logo eles estavam no olho de um redemoinho de tempestade. Raios queimavam seus olhos. Trovões faziam seus pés vibrarem. Bem acima deles, Festus lutava com a deusa da terra. Gaia ficava se desintegrando, tentando voltar para o chão, mas os ventos a mantinham no ar. Festus lançava chamas sobre ela, o que parecia forçá-la a continuar na forma
sólida. Enquanto isso, das costas do dragão, Leo também lançava chamas sobre a deusa e a cobria de insultos: — Sujismunda! Cara de lama! ESSA É PELA MINHA MÃE, ESPERANZA VALDEZ! Leo estava totalmente envolto em chamas. A chuva que caía no ar tempestuoso apenas fervilhava e evaporava em volta dele. Jason foi direto na direção deles. Gaia se transformou em areia branca e fina, mas Jason invocou um esquadrão de venti que rodopiou em volta dela, prendendo-a em um casulo de vento. Gaia reagiu. Quando não estava se desintegrando, atacava com explosões de pedra e terra das quais Jason mal conseguia se defender. Controlar a tempestade, conter Gaia e manter a si mesmo e a Piper no ar… Jason nunca tinha feito nada tão difícil assim. Ele se sentia coberto de pesos de chumbo, tentando nadar apenas com as pernas enquanto segurava um carro na cabeça. Mas ele precisava manter Gaia longe da terra. Esse era o segredo sobre o qual Leia tinha dado uma pista quando eles conversaram no fundo do mar. Muito tempo atrás, Urano, o deus do céu, foi enganado por Gaia e os titãs para descer à terra, onde o prenderam ao chão para que não pudesse escapar. Só assim — Urano com seus poderes enfraquecidos por estar distante de seu território — eles conseguiram matá-lo. Agora, Jason, Leo e Piper tinham que inverter essa situação. Precisavam manter Gaia longe de sua fonte de poder, a terra, e enfraquecê-la até que ela pudesse ser derrotada. Eles subiram juntos. Festus rangeu e estalou com o esforço, mas continuou a ganhar altitude. Jason ainda não entendia como Leo tinha conseguido refazer o dragão. Então se lembrou de todas as horas que Leo passara trabalhando dentro do casco do navio nas últimas semanas. O garoto devia estar planejando aquilo havia muito tempo, construindo um corpo novo para Festus usando a própria estrutura do navio. No fundo, ele devia saber que o Argo II ia acabar sendo destruído. Um navio se transformando em dragão… Jason achou aquilo tão impressionante quanto aquela vez em Quebec em que o dragão se transformara em mala. Entretanto, tinha acontecido, e Jason ficou animado ao ver seu velho amigo novamente em ação. — VOCÊS NÃO PODEM ME DERROTAR! — Gaia se desfez em areia, só para ser atingida por mais chamas. Seu corpo derreteu em um bloco de vidro, se estilhaçou e depois voltou a tomar forma humana. — EU SOU ETERNA! — Eternamente chata! — berrou Leo, e fez com que Festus fosse ainda mais alto.
Jason e Piper subiram com eles. — Me leve para mais perto — pediu Piper, ansiosa. — Preciso estar perto dela. — Piper, as chamas e os estilhaços… — Eu sei. Jason se aproximou até chegarem ao lado de Gaia. Os ventos envolviam a deusa, mantendo-a sólida, mas era tudo o que Jason podia fazer para conter as explosões de areia e solo. Os olhos dela eram de um verde profundo, como se toda a natureza tivesse sido condensada em algumas poças de matéria orgânica. — CRIANÇAS TOLAS! Terremotos e deslizamentos de terra em miniatura contorciam o rosto de Gaia. — Você está tão cansada — disse Piper para a deusa, sua voz irradiando bondade e compaixão. — Eras de sofrimento e decepção pesam sobre você. — QUIETA! O poder da raiva de Gaia era tão grande que Jason perdeu momentaneamente o controle do vento. Ele teria mergulhado em queda livre se não fosse por Festus, que segurou ambos — ele e Piper — com sua outra pata enorme. Surpreendentemente, Piper não perdeu a concentração. — Milênios de tristeza — continuou ela. — Seu marido, Urano, era violento. Seus netos, os deuses, expulsaram seus filhos amados, os titãs. Seus outros filhos, os ciclopes e os centímanos, foram jogados no Tártaro. Você está cansada de tanta tristeza. — MENTIRAS! Gaia se desfez em um furacão de terra e grama, mas sua essência parecia se agitar mais lentamente. Se eles subissem mais, o ar ficaria rarefeito demais para respirar. Jason ficaria muito fraco para controlá-lo. A fala de Piper sobre exaustão também o afetava, minando sua força, fazendo com que sentisse o corpo pesado. — O que você quer — continuou Piper —, mais que a vitória, mais que vingança… você quer descansar. Você está tão abatida, tão absurdamente cansada dos mortais e imortais ingratos… — EU… NÃO FALE POR MIM… VOCÊ NÃO PODE… — Você só quer uma coisa — disse Piper em tom tranquilizador, sua voz ressonando pelos ossos de Jason. — Uma palavra. Você quer permissão para fechar os olhos e esquecer todos os seus problemas. Você… quer… DORMIR. Gaia se solidificou em forma humana. Sua cabeça pendia, seus olhos estavam fechados e seu corpo pendia inerte nas garras de Festus. Infelizmente, Jason começou a apagar também. O vento estava diminuindo. A tempestade se dissipou. Pontos escuros dançavam na visão dele.
— Leo! — Piper não estava conseguindo respirar. — Só temos alguns segundos. — O charme não vai… — Eu sei! — Leo parecia feito de fogo. Chamas queimavam sob sua pele, iluminando seu crânio. Festus fumegava e brilhava, suas garras queimando através da camisa de Jason. — Não posso segurar o fogo por muito mais tempo. Eu vou vaporizá-la. Não se preocupem. Vocês dois precisam ir embora. — Não! — gritou Jason. — Temos que ficar com você. Piper tem a cura. Leo, você não pode… — Ei. — Leo sorriu, o que em meio às chamas dava nervoso, pois seus dentes pareciam feitos de prata derretida. — Eu disse a vocês que tinha um plano. Quando vão confiar em mim? E por falar nisso… eu amo vocês. A pata de Festus se abriu, e Piper e Jason caíram. Jason não teve forças para impedir. Ele se agarrou a Piper enquanto ela gritava o nome de Leo, e eles mergulharam em direção à terra. Festus se transformou em uma bola de fogo indistinta no céu, um segundo sol, cada vez menor e mais quente. Então Jason viu pelo canto do olho um cometa flamejante subir do solo com um som agudo, como um grito. Pouco antes de Jason apagar, o cometa interceptou a bola de fogo acima deles. A explosão deixou o céu inteiro dourado.
LIII
NICO
NICO JÁ HAVIA PRESENCIADO MUITAS formas de morte. Achava que mais nada poderia surpreendê-lo. Mas estava enganado. No meio da batalha, Will Solace correu até ele e disse uma palavra em seu ouvido: — Octavian. Toda a sua atenção se voltou para isso. Ele havia hesitado quando tivera a chance de matar Octavian, mas nunca ia deixar aquele sujeitinho desprezível escapar impune. — Onde ele está? — Venha — disse Will. — Depressa. Nico se virou para Jason, que lutava ao seu lado, e avisou: — Preciso ir! Então ele se embrenhou no caos, seguindo Will. Passaram por Tyson e seus ciclopes, que berravam “Cachorro mau! Cachorro mau!” enquanto golpeavam as cabeças dos cinocéfalos. Grover Underwood e um grupo de sátiros dançavam ao redor com suas flautas de Pã, tocando harmonias tão dissonantes que os fantasmas com carapaças de terra se despedaçavam. Travis Stoll passou correndo, discutindo com o irmão: — Como assim nós instalamos as minas terrestres na colina errada? Nico e Will tinham descido metade da encosta quando o chão começou a tremer. Como todo mundo, monstros ou semideuses, eles ficaram paralisados de choque. Diante de seus olhos, uma coluna de terra explodiu em um turbilhão no alto da colina seguinte, e Gaia se ergueu em toda a sua glória. Então algo grande e de bronze cruzou o céu. TUUUUMP! O dragão de bronze Festus apanhou a Mãe Terra e saiu voando com ela. — Mas o que… como…? — balbuciou Nico. — Não sei — disse Will. — Mas, quanto a isso, não há muito o que a gente possa fazer. Temos outros problemas. Will correu na direção do onagro mais próximo. Quando chegaram mais perto, Nico viu Octavian reajustando furiosamente os controles de mira da máquina. O braço de lançamento já estava posicionado com uma carga completa de ouro imperial e explosivos. O áugure corria de um lado para outro,
tropeçando em engrenagens e estacas de fixação, se enrolando com as cordas. De vez em quando olhava para Festus, lá no alto. — Octavian! — gritou Nico. O áugure se virou, depois recuou acuado contra a grande esfera de munição. Seu belo manto roxo prendeu na corda do gatilho, mas Octavian não percebeu. Da carga escapavam fios de fumaça, que contornavam sinuosamente seu corpo, como se atraídos pelas joias de ouro imperial que ele usava nos braços e no pescoço e pela coroa de louros de ouro que ornava seu cabelo. — Ah, entendi! — O riso de Octavian foi seco e consideravelmente insano. — Tentando roubar minha glória, hein? Não, não, filho de Plutão. Eu sou o salvador de Roma, como me foi prometido! Will levantou as mãos como se tentasse aplacá-lo. — Octavian, afaste-se desse onagro. É perigoso. — Claro que é! Vou derrotar Gaia com esta máquina! Pelo canto do olho, Nico viu Jason Grace disparar rumo ao céu com Piper nos braços, voando direto na direção de Festus. Nuvens de tempestade se acumulavam em volta do filho de Júpiter, girando e formando um furacão. Um trovão ribombou. — Está vendo!? — exclamou Octavian. Agora o ouro em seu corpo definitivamente soltava fumaça, atraído pela carga da catapulta como se ela fosse um ímã gigante. — Os deuses aprovam meus atos! — É Jason que está criando esta tempestade — disse Nico. — Se você disparar o onagro, vai matá-lo, e a Piper, e… — Ótimo! — gritou Octavian. — Eles são traidores mesmo! Todos traidores! — Por favor, me escute — tentou Will novamente. — Apolo não desejaria isso. Além do mais, seu manto está… — Você não sabe de nada, graecus! — Octavian levou a mão à alavanca de disparo. — Preciso agir antes que eles subam ainda mais. Só um onagro assim pode acertar esse tiro. Eu vou, sozinho, fazer… — Centurião — chamou uma voz atrás dele. Era Michael Kahale, que surgira de trás da máquina de cerco. Ele exibia na testa um enorme galo vermelho, resultado do golpe de Tyson que o havia deixado inconsciente. Michael cambaleava. Mas, sabe-se lá como, tinha conseguido vir desde a praia até ali, e no caminho ainda arranjara uma espada e um escudo. — Michael! — exclamou Octavian, em um gritinho de alegria. — Excelente! Proteja-me enquanto eu disparo este onagro. Depois vamos juntos matar esses graeci! Michael Kahale observou a cena à sua frente: o manto de Octavian emaranhado nas cordas de torção do onagro, suas joias soltando fumaça devido à proximidade com a munição de ouro imperial. Ele olhou para o dragão, agora
bem alto no céu, cercado por anéis de nuvens de tempestade — como os círculos de um alvo de arco e flecha. Então fechou a cara para Nico. Nico ergueu a espada. Era óbvio que Michael Kahale alertaria Octavian para que se afastasse do onagro. Era óbvio que atacaria. — Tem certeza, Octavian? — perguntou o filho de Vênus. — Tenho! — Certeza absoluta? — Sim, seu idiota! Serei lembrado como o salvador de Roma. Agora mantenha esses garotos longe enquanto eu destruo Gaia. — Octavian, não — implorou Will. — Não podemos permitir que você… — Will — interveio Nico —, não podemos impedi-lo. Will Solace olhou para ele sem acreditar, mas Nico se lembrou das palavras que ouvira do pai na Capela dos Ossos: Algumas mortes não podem ser evitadas. Os olhos de Octavian brilhavam. — Isso mesmo, filho de Plutão. Você não tem condições de me impedir! Esse é o meu destino! Kahale, fique de guarda! — Como quiser. — Michael se colocou em frente à máquina, entre Octavian e os dois semideuses gregos. — Centurião, faça o que deve fazer. Octavian se virou para fazer o disparo. — Um amigo fiel até o fim. Nico estava entre a cruz e a espada. Se o tiro do onagro seguisse a mira original… se acertasse o dragão Festus, Nico seria cúmplice da morte ou do ferimento dos próprios amigos… Mas ele ficou onde estava. Decidiu, pela primeira vez, confiar na sabedoria do pai. Algumas mortes não devem ser evitadas. — Adeus, Gaia! — gritou Octavian. — Adeus, Jason Grace, seu traidor! Octavian cortou o cabo de liberação do braço lançador com sua adaga de áugure. E desapareceu. O braço da catapulta se projetou para o alto mais rápido do que os olhos de Nico conseguiam acompanhar, lançando Octavian com a munição. O grito do áugure foi diminuindo até Octavian se tornar uma mera parte do cometa flamejante que subia velozmente na direção do céu. — Adeus, Octavian — disse Michael Kahale. Ele olhou para Will e Nico pela última vez, um olhar feroz, como se estivesse desafiando os dois a falar. Depois lhes deu as costas e se afastou, caminhando com dificuldade. Nico podia ter vivido com o fim de Octavian. Podia até ter dito Já vai tarde.
Mas ficou apreensivo ao ver o cometa continuar a ganhar altura até desaparecer nas nuvens de tempestade, e o céu explodir em uma abóbada de fogo.
LIV
NICO
NO DIA SEGUINTE, NÃO HAVIA muitas respostas. Depois da explosão, Piper e Jason, em queda livre e inconscientes, foram apanhados em pleno ar por águias gigantes e levados para um local seguro, mas Leo desapareceu. O chalé de Hefesto inteiro fez buscas no vale e encontrou restos do casco destruído do Argo II, mas nenhum sinal nem do dragão Festus nem de seu mestre. Todos os monstros foram destruídos ou expulsos. As baixas gregas e romanas foram muitas, mas nem de perto tão numerosas quanto poderiam ter sido. À noite, os sátiros e as ninfas desapareceram na mata para uma reunião do Conselho dos Anciãos de Casco Fendido. Pela manhã, Grover Underwood reapareceu para anunciar que eles não podiam sentir a presença da Mãe Terra. A natureza estava mais ou menos de volta ao normal. Aparentemente, o plano de Jason, Piper e Leo tinha funcionado. Gaia havia sido separada de sua fonte de poder, levada a dormir pelo charme de Piper e depois desintegrada pela explosão combinada do fogo de Leo e do cometa improvisado de Octavian. Imortais não morriam, mas agora Gaia seria como seu marido, Urano. A terra continuaria a funcionar normalmente, assim como o céu, mas agora o poder de Gaia estava tão disperso que nunca mais poderia voltar a formar uma consciência. Ou pelo menos assim eles esperavam… Octavian seria lembrado por ter salvado Roma ao se lançar ao céu em uma bola de chamas mortal. Mas Leo Valdez é quem havia feito o verdadeiro sacrifício. A celebração da vitória no acampamento foi embotada pelo pesar — não só por Leo, mas também pelos muitos outros que morreram em batalha. Semideuses envoltos em mortalhas, gregos e romanos, foram queimados na fogueira do acampamento. Quíron pediu a Nico que cuidasse dos ritos funerários. O garoto concordou imediatamente. Era bom ter a oportunidade de homenagear os mortos. Ele nem se incomodou com as centenas de espectadores. A parte mais difícil veio depois, quando Nico e os seis semideuses do Argo II se encontraram no pórtico da Casa Grande. Jason estava cabisbaixo. Até seus óculos pareciam melancólicos. — Era para estarmos lá. Podíamos ter ajudado Leo. — Não é justo — concordou Piper, secando as lágrimas. — Tanto trabalho para conseguir essa cura do médico, e para nada.
Hazel irrompeu no choro. — Piper, pegue a cura. Surpresa, Piper levou a mão ao bolso do cinto e pegou o embrulho. Quando o abriu, porém, estava vazio. Todos os olhos se viraram para Hazel. — Como? — perguntou Annabeth. Frank passou o braço em torno de Hazel. — Em Delos, Leo implorou para que o ajudássemos. Em meio às lágrimas, Hazel explicou que tinha trocado a cura do médico por uma ilusão, um truque da Névoa, para que Leo pudesse ficar com o frasco de verdade. Frank contou a eles sobre o plano de Leo: destruir Gaia quando ela estivesse enfraquecida com uma enorme explosão de fogo. Depois da conversa com Nice e Apolo, Leo estava convencido de que uma explosão desse tipo seria capaz de aniquilar qualquer mortal em um raio de quinhentos metros, por isso sabia que teria que se afastar de todo mundo. — Ele queria fazer isso sozinho — disse Frank. — Achava que havia uma chance mínima de sobreviver ao fogo, por ser filho de Hefesto, mas se houvesse outra pessoa junto… Ele disse que Hazel e eu, como romanos, entenderíamos a ideia de sacrifício. Mas que vocês nunca aceitariam. No início, os outros demonstraram raiva, como se fossem começar a gritar e jogar objetos na parede, mas, à medida que Frank e Hazel falavam, a fúria do grupo pareceu se dissipar. Era difícil ficar com raiva de Frank e Hazel quando os dois estavam chorando. Além disso… aquilo era exatamente o tipo de plano sorrateiro, perverso e ridiculamente irritante e nobre que Leo Valdez faria. Por fim, Piper emitiu um som que ficava entre um soluço de choro e um riso. — Se ele estivesse aqui agora, eu mataria aquele garoto. Como ele pretendia tomar a cura? Ele estava sozinho! — Talvez ele tenha encontrado um jeito — disse Percy. — Estamos falando de Leo. Ele pode voltar a qualquer minuto. Aí faremos fila para estrangulá-lo. Nico e Hazel trocaram olhares. Os dois sabiam que isso não ia acontecer, mas não disseram nada.
* * *
No dia seguinte, o segundo desde a batalha, romanos e gregos trabalhavam lado a lado para limpar a zona de guerra e cuidar dos feridos. Blackjack se recuperava muito bem do ferimento. Guido tinha decidido adotar Reyna como sua humana. Muito a contragosto, Lou Ellen concordou em transformar seus leitõezinhos de estimação em romanos outra vez. Will Solace não falava com Nico desde aquele momento junto ao onagro, no dia da batalha em si. O filho de Apolo passava a maior parte do tempo na
enfermaria, mas sempre que Nico o via correndo pelo acampamento para buscar mais material médico ou visitar algum semideus ferido em seu chalé, sentia uma pontada estranha de melancolia. Sem dúvida Will Solace agora o via como um monstro, por ter deixado Octavian se matar. Os romanos tinham se instalado provisoriamente perto dos campos de morango, onde insistiram em montar seu acampamento militar padrão. Os gregos foram ajudá-los a erguer os muros de terra e cavar os fossos. Nico nunca tinha visto nada mais estranho e, ao mesmo tempo, tão legal. Dakota compartilhava seu refresco açucarado com os campistas do chalé de Dioniso; os filhos de Hermes e Mercúrio riam, contavam histórias e roubavam descaradamente coisas de praticamente todo mundo; Reyna, Annabeth e Piper eram agora um trio inseparável, circulando pelo acampamento para verificar o andamento dos reparos; Quíron, acompanhado por Frank e Hazel, inspecionava as tropas romanas e as elogiava por sua bravura. Quando chegou a noite, o clima geral tinha melhorado um pouco. O salão de refeições nunca havia ficado tão lotado. Os romanos foram recebidos como velhos amigos. O treinador Hedge circulava entre os semideuses, exultante com o filho recém-nascido no colo, dizendo: — Ei, querem conhecer o Chuck? Este é o meu garoto, Chuck! As meninas de Afrodite e Atena ficavam todas bobas em torno do pequeno bebê sátiro enfezado que agitava os punhos gorduchos, esperneava os casquinhos e balia: — Béééééé! Béééééé! Clarisse, que tinha sido escolhida como madrinha do menino, seguia atrás do treinador como um guarda-costas, volta e meia murmurando: — Ok, ok, deem um pouco de espaço para a criança. Na hora dos anúncios e informes, Quíron se adiantou e ergueu seu cálice. — De toda tragédia — começou ele — surge força nova. Hoje, agradecemos aos deuses por esta vitória. Aos deuses! Todos os semideuses brindaram, mas o entusiasmo que demonstravam parecia desbotado. Nico compreendia aquele sentimento: Salvamos os deuses de novo e agora devemos agradecer a eles? Então Quíron acrescentou: — E aos novos amigos! — AOS NOVOS AMIGOS! Centenas de vozes de semideuses ecoaram pelas colinas. Em torno da fogueira, ninguém tirava os olhos das estrelas, como se esperassem que Leo voltasse em uma espécie de surpresa de última hora. Quem sabe ele não surgisse no céu, pulasse das costas de Festus e começasse a contar piadas infames? Mas não aconteceu.
Depois de algumas canções, Reyna e Frank foram chamados à frente para receberem uma retumbante salva de palmas, tanto de gregos quanto de romanos. No alto da Colina Meio-Sangue, a Atena Partenos reluzia ainda mais sob o luar, como se sinalizasse Tudo deu certo no final. — Amanhã — disse Reyna —, nós, romanos, voltaremos para casa. Agradecemos pela hospitalidade, ainda mais considerando que quase matamos vocês… — Nós é que quase matamos vocês — corrigiu Annabeth. — Sei. Uuuuuuuhhhhhhh, fez a multidão em uma só voz, em zombaria. Então todos começaram a rir e a se empurrar. Até Nico teve que abrir um sorriso. — Enfim — disse Frank, assumindo a palavra. — Reyna e eu concordamos que isso marca uma nova era de amizade entre os acampamentos. Reyna deu um tapinha nas costas dele. — Isso mesmo. Por centenas de anos os deuses tentaram nos separar, para evitar que entrássemos em guerra. Mas existe uma forma melhor de se manter a paz: pela cooperação. Piper se levantou do meio da plateia. — Tem certeza de que sua mãe é a deusa da guerra? — Tenho, McLean — disse Reyna. — Ainda pretendo lutar muitas batalhas. Mas, a partir de agora, vamos fazer isso juntos! Muitos aplausos. Frank levantou a mão, pedindo silêncio. — Todos vocês serão bem-vindos no Acampamento Júpiter. Fizemos um acordo com Quíron, de um intercâmbio livre entre os acampamentos: visitas nos fins de semana, programas de treinamento e, é claro, ajuda de emergência em casos de necessidade… — E quanto a festas? — perguntou Dakota. — Isso mesmo! Festas! — exclamou Connor Stoll, em apoio. Reyna abriu os braços. — Mas isso a gente nem precisa falar. Nós, romanos, inventamos as festas. Mais um grande Uuuuuuuhhhhhhh. — Bom, obrigada — concluiu Reyna. — A todos vocês. Nós podíamos ter escolhido ódio e guerra. Em vez disso, encontramos aceitação e amizade. Então Reyna fez algo tão inesperado que Nico mais tarde achou que tinha sido apenas um sonho. Ela foi até Nico, que, como sempre, estava parado um tanto afastado do grupo, nas sombras. Reyna o pegou pela mão e o puxou carinhosamente para a luz da fogueira. — Nós tínhamos um lar — disse ela. — Agora, temos dois.
E deu um forte abraço em Nico. A multidão deu vivas e aplaudiu em grande balbúrdia. Pela primeira vez Nico não teve vontade de se afastar. Ele afundou o rosto no ombro de Reyna e tentou segurar as lágrimas.
LV
NICO
NAQUELA NOITE, NICO DORMIU NO chalé de Hades. Ele nunca havia tido vontade de se instalar ali, mas agora dividia o local com Hazel, o que fazia toda a diferença. Viver novamente com uma irmã o deixava feliz, mesmo que fosse apenas por alguns dias — e mesmo com Hazel insistindo em dividir o chalé com lençóis para ter mais privacidade no seu lado do quarto, de forma que o lugar ficava parecendo uma área de quarentena. Pouco antes do toque de recolher, Frank chegou para visitar Hazel. Os dois passaram alguns minutos conversando aos sussurros. Nico tentou ignorá-los. Ficou se espreguiçando em seu beliche, que mais parecia um caixão: todo em mogno polido com barras de latão na cabeceira, além de travesseiros e cobertores de veludo em tom vermelho-sangue. Nico não tinha acompanhado a construção daquele chalé. Se tivesse, nunca teria sugerido aquelas camas. Pelo visto alguém ali achava que os filhos de Hades eram vampiros, não semideuses. Então Frank bateu na parede junto à cama de Nico. Nico ergueu o olhar. Frank agora estava muito alto. Parecia tão… romano. — Ei — disse Frank. — Vamos partir pela manhã. Eu só queria agradecer. Nico ergueu o corpo. — Você se saiu muito bem, Frank. Foi uma honra. Frank sorriu. — Sinceramente, estou meio surpreso por ter sobrevivido. Toda aquela coisa de graveto mágico… Nico assentiu. Hazel tinha contado a ele sobre o pedaço de lenha que controlava a linha da vida de Frank. Nico entendeu como um bom sinal o fato de que agora Frank conseguisse falar abertamente sobre o assunto. — Não posso ver o futuro — disse Nico —, mas geralmente sei quando as pessoas estão perto da morte. Você não está. Não sei quando aquele pedaço de lenha vai terminar de queimar. Chega um momento em que a lenha acaba para todos nós. Mas vai demorar, pretor Zhang. Você e Hazel… vocês ainda têm muitas aventuras a viver. Estão apenas começando. Cuide bem da minha irmã, ouviu? Hazel se aproximou de Frank e entrelaçou a mão na dele. — Não venha ameaçar meu namorado, hein!
Era algo bom de se ver, os dois tão à vontade juntos. Mas Nico sentiu também uma pontada no coração; uma dor fantasma, como um velho ferimento de guerra latejando por conta do frio. — Não tem por que ameaçar Frank. Ele é um cara legal. Ou um urso legal. Ou um buldogue legal. Ou… — Ah, pare com isso. — Hazel ria. Ela deu um beijo em Frank. — Vejo você de manhã. — Ok. Nico… Tem certeza de que não vem com a gente? Você sempre vai ter um lugar em Nova Roma. — Obrigado, pretor. Reyna me disse o mesmo. Mas… não. — Espero ver você de novo. — Ah, vai me ver sim — prometeu Nico. — Vou ser padrinho do casamento de vocês, não é? — Hum… Frank ficou sem graça, limpou a garganta e foi embora, esbarrando no batente da porta ao sair. Hazel cruzou os braços. — Você tinha que provocá-lo com isso. Ela se sentou na cama do irmão. Durante um tempo os dois apenas ficaram ali, em um silêncio confortável… Irmãos, filhos do passado, filhos do Mundo Inferior. — Vou sentir saudade de você — disse Nico. Ela inclinou o corpo para apoiar a cabeça no ombro dele. — E eu de você, meu irmão. Você vai me visitar. Ele deu um tapinha na nova medalha de oficial que brilhava na camisa dela. — Centuriã da Quinta Coorte. Parabéns. Não existe nenhuma regra contra centuriões namorarem pretores? — Shhh. — Fez Hazel. — Vai dar muito trabalho fazer a legião voltar a entrar em forma, consertar os estragos que Octavian causou. Regras de namoro vão ser o menor dos meus problemas. — Você cresceu muito. Não é a mesma menina que eu levei para o Acampamento Júpiter. Seu poder com a Névoa, sua confiança… — Tudo graças a você. — Não. Conseguir uma segunda chance é uma coisa; o difícil é fazê-la valer a pena. Assim que disse isso, Nico percebeu que podia estar falando também de si mesmo. Mas decidiu guardar para si essa observação. Hazel deu um suspiro. — Uma segunda chance. Eu só queria que… Ela não precisou concluir seu pensamento. Fazia dois dias que o desaparecimento de Leo vinha pairando como uma nuvem sobre todo o
acampamento. Hazel e Nico evitaram se juntar ao coro de especulações sobre o que tinha acontecido com ele. — Você sentiu a morte dele, não sentiu? — perguntou Hazel, em uma voz tímida. Seus olhos estavam marejados. — Sim — admitiu Nico. — Mas não sei. Alguma coisa dessa vez foi… diferente. — É impossível que ele tenha conseguido usar a cura do médico. Não sobrou nada daquela explosão, não tem como. Eu achei… achei que estivesse ajudando Leo. Estraguei tudo. — Não. Não é sua culpa. Mas Nico não estava pronto nem para perdoar a si próprio. Havia passado as últimas quarenta e oito horas revendo a cena com Octavian junto à catapulta, sem saber se havia feito mesmo a coisa certa. Talvez o projétil, com seu poder explosivo, tivesse ajudado a destruir Gaia. Ou talvez tivesse custado desnecessariamente a vida de Leo Valdez. — Eu só queria que Leo não tivesse morrido sozinho — murmurou Hazel. — Não tinha ninguém com ele, ninguém para dar a ele aquela cura. Não temos nem um corpo para enterrar… Ela não conseguiu continuar. Nico a abraçou. Hazel chorou nos braços dele. Até que, por fim, dormiu de exaustão. Nico a ajeitou ali na própria cama e lhe deu um beijo na testa. Depois foi até o santuário de Hades, uma mesinha no canto decorada com ossos e joias. — Para tudo há uma primeira vez — disse ele. Então se ajoelhou e rezou em silêncio pela orientação do pai.
LVI
NICO
AO AMANHECER, ELE AINDA ESTAVA acordado quando alguém bateu insistentemente na porta. Ao atender e ver diante de si um rosto com cabelo louro, por uma fração de segundo achou que fosse Will Solace. Quando percebeu que era Jason, ficou decepcionado. Então sentiu raiva de si mesmo por se sentir daquele jeito. Ele não falava com Will desde a batalha. Os filhos de Apolo ficaram ocupados demais com os feridos. Além disso, provavelmente Will o culpava pelo que tinha acontecido com Octavian. E por que não culparia? Nico tinha basicamente deixado… aquilo acontecer. Assassinato por consenso. Um suicídio medonho. Àquela altura, Will Solace já tinha percebido como Nico di Angelo era assustador e revoltante. Nico não ligava para o que ele pensava, é claro, mas… — Está tudo bem? — perguntou Jason. — Você parece… — Estou bem — respondeu Nico secamente. Depois continuou, em um tom mais suave: — Se veio falar com Hazel, ela ainda está dormindo. Jason emitiu um Ah mudo e fez um gesto para que Nico fosse com ele até lá fora. Nico saiu ao sol, piscando e desorientado. Argh… Talvez o sujeito que havia projetado o chalé estivesse certo sobre os filhos de Hades serem vampiros. Ele não era muito afeito às manhãs. Jason parecia ter dormido tão mal quanto Nico. Seu cabelo estava lambido de um lado, os óculos novos apoiados meio tortos sobre o nariz. Nico teve que se conter para não estender a mão e ajeitá-los ele próprio. Jason apontou para os campos de morango. Perto dali, os romanos desmontavam acampamento. — Foi estranho vê-los ali esses dias. Agora vai ser estranho não vê-los. — Você se arrepende por não ir com eles? — perguntou Nico. Jason deu um meio sorriso. — Um pouco. Mas vou transitar bastante entre os dois acampamentos. Tenho que erguer alguns santuários. — Eu soube. O Senado deve eleger você pontifex maximus. Jason deu de ombros. — Não ligo muito para esse título. O que me interessa é garantir que os deuses sejam lembrados. Não quero que eles continuem a lutar por ciúmes ou que descontem suas frustrações em cima de semideuses. — São deuses — disse Nico. — É a natureza deles.
— Talvez; mas posso tentar torná-los melhores. Leo diria que estou agindo como um mecânico, fazendo manutenção preventiva. Nico sentiu a tristeza de Jason como uma tempestade se aproximando. — Você sabe que não tinha como impedir Leo. Não poderia ter feito nada de diferente. Ele sabia o que precisava acontecer. — É… acho que sim. Mas não temos como afirmar se ele ainda… — Ele morreu — disse Nico. — Sinto muito. Bem que eu queria lhe dizer o contrário, mas eu senti a morte dele. Jason ficou com o olhar perdido. Nico se sentiu culpado por destruir suas esperanças. Até ficou tentado a mencionar que também tinha suas dúvidas… que a morte de Leo lhe provocara uma sensação diferente, quase como se a alma dele tivesse aberto um novo caminho para o Mundo Inferior, algo que envolvesse muitas engrenagens, alavancas e pistões a vapor. Ainda assim, Nico tinha certeza de que Leo Valdez havia morrido. E morte era morte. Não seria justo dar falsas esperanças a Jason. Ao longe, os romanos recolhiam seus equipamentos e barracas e transportavam tudo morro acima. Do outro lado, pelo que Nico ouvira, havia uma frota de utilitários pretos à espera, nos quais a legião cruzaria os Estados Unidos até a Califórnia. Seria uma viagem de carro interessante, pensou Nico, imaginando toda a Décima Segunda Legião na fila do drive-thru do Burger King, ou algum monstro desavisado aterrorizando um semideus qualquer no Kansas só para se ver cercado por várias dezenas de 4x4 cheios de romanos fortemente armados. — Sabia que a harpia Ella vai com eles? — disse Jason. — Ela e Tyson. Até Rachel Elizabeth Dare. Eles vão trabalhar juntos para tentar reconstituir os livros sibilinos. — Isso vai ser interessante. — Pode levar anos — disse Jason. — Mas com a voz de Delfos extinta… — Rachel continua sem conseguir ver o futuro? — Aham. O que será que aconteceu com Apolo em Atenas? Talvez Ártemis consiga fazer Zeus repensar sua decisão, e aí o poder da profecia volte a funcionar. Mas, por enquanto, os livros sibilinos podem ser o único jeito de obtermos orientação para nossas missões. — Pessoalmente — disse Nico —, acho que eu poderia ficar sem profecias e missões por um tempo. — Tem razão. — Jason ajeitou os óculos. — Olhe, Nico, eu queria falar com você porque… Eu sei o que você disse lá no palácio de Austro. Sei que já recusou um lugar no Acampamento Júpiter. Eu… sei que provavelmente não vou conseguir fazer você mudar de ideia e convencê-lo a continuar conosco, mas tenho que…
— Eu vou ficar. Jason ficou apenas olhando para ele por alguns instantes. — O quê? — No Acampamento Meio-Sangue. O chalé de Hades precisa de um conselheiro-chefe. E você viu a decoração? É horrível. Vou ter que reformar isso aqui. E alguém precisa fazer direito os ritos funerários, já que os semideuses insistem em morrer como heróis. — Isso é… é fantástico! Cara! — Jason abriu os braços para um abraço, mas parou no meio do movimento. — Tudo bem. Nada de contato físico. Desculpe. Nico resmungou: — Acho que podemos abrir uma exceção. Então Jason o abraçou com tanta força que Nico teve medo de que quebrasse suas costelas. — Ah, cara — disse Jason. — Espere só até eu contar para Piper. Ei, como eu também estou sozinho no meu chalé, você e eu podemos comer à mesma mesa no refeitório. Podemos também formar uma dupla para os jogos de capturar a bandeira e para os concursos de canto, e… — Você está me assustando… Quer que eu mude de ideia, é isso? — Desculpe. Desculpe. Como quiser, Nico. É só que fiquei contente. O engraçado era que Nico sentia que era sincero. Nico por acaso olhou na direção dos outros chalés e avistou alguém acenando para ele. Will Solace estava à porta do chalé de Apolo, com uma expressão séria no rosto. Ele apontou para o chão aos seus pés, como quem diz Você. Venha cá. Agora. — Jason, você me dá licença?
* * *
— E aí, por onde você andou? — perguntou Will. Ele usava um avental verde de cirurgião, calça jeans e chinelo. Esses trajes não deviam fazer parte do protocolo hospitalar. — Como assim? — Não saio da enfermaria há, tipo, dois dias. Você nem passou aqui. Não se ofereceu para ajudar. — Eu… o quê? Por que vocês iam querer um filho de Hades no mesmo ambiente com pessoas que estão tentando se curar? Por que alguém ia querer algo assim? — Você não pode ajudar um amigo? Talvez cortar ataduras? Ou me trazer um refrigerante, alguma coisa para comer? Quem sabe um simples Tudo bem por aí, Will?. Acha que para mim não seria bom ver um rosto amigo?
— O quê?… Meu rosto? As palavras simplesmente não faziam sentido juntas: Rosto amigo. Nico di Angelo. — Você é tão complicado — observou Will. — Espero que tenha parado com aquela besteira de ir embora do Acampamento Meio-Sangue. — Eu… pois é. Sim. Quer dizer, eu vou ficar. — Bom. Então você pode ser complicado, mas não é um idiota. — E você ainda fala comigo desse jeito? Não sabe que eu posso invocar zumbis e esqueletos e…? — No momento você não pode invocar nem um osso de galinha sem virar uma poça de escuridão, Di Angelo. Já falei, chega dessas coisas do Mundo Inferior. Ordens médicas. Você me deve pelo menos três dias de repouso na enfermaria. Começando agora. Nico sentiu um arrepio de felicidade, como se centenas de borboletasesqueleto ressuscitassem em seu estômago. — Três dias? É… acho que dá. — Ótimo. Ah, e… Um Uhuul! alto cortou o ar. Perto do local da fogueira, no centro da área comum, Percy exibia um sorriso enorme para alguma coisa que Annabeth tinha acabado de lhe contar. Annabeth ria e lhe dava tapinhas no braço. — Já volto — disse Nico a Will. — Juro pelo Rio Estige e tudo. Ele foi até Percy e Annabeth, que ainda riam como alucinados. — E aí, cara — disse Percy ao vê-lo. — Annabeth acabou de me dar uma boa notícia. Desculpe se exagerei na comemoração. — Vamos passar nosso último ano do ensino médio juntos — explicou Annabeth. — Aqui em Nova York. E depois da formatura… — Faculdade em Nova Roma! — Percy fez um gesto no ar como se estivesse tocando uma buzina de caminhão. — Quatro anos sem monstros para enfrentar, sem batalhas, sem profecias estúpidas. Só Annabeth e eu, estudando para ter um diploma, frequentando cafés, curtindo a Califórnia… — E depois… — Annabeth beijou Percy no rosto. — Bem, Reyna e Frank disseram que podemos morar em Nova Roma pelo tempo que quisermos. — Isso é ótimo — disse Nico. Ele ficou um pouco surpreso ao perceber que achava mesmo ótimo. — Eu também vou ficar aqui, no Acampamento MeioSangue. — Que máximo! — exclamou Percy. Nico observou o rosto dele, seus olhos verdes da cor do mar, o sorriso, o cabelo preto bagunçado. Por algum motivo, Percy Jackson agora parecia aos olhos de Nico um garoto normal, não uma figura mítica. Não alguém a idolatrar ou por quem se apaixonar.
— Então — disse Nico. — Como vamos passar pelo menos um ano nos esbarrando aqui no acampamento, acho que é melhor eu esclarecer umas coisas. O sorriso de Percy vacilou. — Como assim? — Por muito tempo eu fui a fim de você. Só queria que você soubesse. Percy olhou para Nico. Depois para Annabeth, como se quisesse confirmar que tinha ouvido direito. Depois de novo para Nico. — Você… — É — disse Nico. — Você é uma pessoa sensacional. Mas eu superei isso. Estou feliz por vocês. — Você… então quer dizer… — Isso mesmo. Os olhos cinza de Annabeth começaram a brilhar. Ela deu um sorrisinho para Nico. — Espere — disse Percy. — Então você quer dizer… — Isso mesmo — repetiu Nico. — Mas relaxe. Já passou. Quer dizer, agora eu entendo… você é bonito, mas não faz meu tipo. — Não faço seu tipo… Espere. Então… — A gente se vê por aí, Percy — disse Nico. — Annabeth. Ela levantou a mão para um high-five. Nico bateu. Depois voltou pelo gramado até onde Will Solace o esperava.
LVII
PIPER
PIPER BEM QUE GOSTARIA DE poder usar o charme para fazer a si mesma dormir. Aquilo podia ter funcionado com Gaia, mas Piper mal conseguira pregar os olhos nas últimas duas noites. Os dias eram ótimos. Ela adorava passar o tempo com Lacy e Mitchell e os outros filhos de Afrodite. Até sua segunda em comando, a chata Drew Tanaka, parecia aliviada, provavelmente porque podia deixar Piper cuidando das coisas e assim ter mais tempo para fofocar e fazer tratamentos de beleza no chalé. Piper se mantinha ocupada ajudando Reyna e Annabeth a coordenar gregos e romanos. Para surpresa de Piper, as duas garotas valorizavam suas habilidades como intermediária para apaziguar qualquer conflito — que não eram muitos, mas Piper conseguiu devolver alguns elmos romanos que tinham misteriosamente ido parar na loja do acampamento. Ela também evitou uma briga entre os filhos de Marte e os filhos de Ares sobre a melhor maneira de matar uma hidra. Na manhã prevista para a partida dos romanos, Piper estava sentada no cais do lago de canoagem, tentando aplacar as náiades. Algumas delas achavam que os romanos eram tão bonitos que elas também queriam partir para o Acampamento Júpiter. As náiades exigiam um aquário gigante e portátil para viajarem para o oeste. Piper havia concluído as negociações quando Reyna a encontrou. A pretora sentou-se ao lado dela no cais. — Muito trabalho? Piper soprou uma mecha de cabelo de sobre os olhos. — Náiades podem ser difíceis, mas acho que chegamos a um acordo. Se elas ainda quiserem ir quando o verão acabar, aí vamos acertar os detalhes. Mas as náiades… hum… geralmente esquecem as coisas em cerca de cinco segundos. Reyna passou a ponta dos dedos pela água. — Às vezes eu queria esquecer as coisas rápido assim. Piper observou o rosto da pretora. Reyna era uma semideusa que não parecia ter mudado durante a guerra contra os gigantes… pelo menos, não por fora. Ela ainda tinha o mesmo olhar forte e determinado, o mesmo rosto bonito e imponente. Usava sua armadura e seu manto roxo com a mesma naturalidade com que a maioria das pessoas usa short e camiseta.
Piper não conseguia entender como alguém conseguia suportar tanta dor, aguentar tanta responsabilidade sem fraquejar. Ela se perguntou se Reyna alguma vez já tivera alguém com quem pudesse se abrir. — Você fez tanto… — disse Piper. — Pelos dois acampamentos. Sem você, nada disso teria sido possível. — Todos nós tivemos um papel. — Claro. Mas você… Eu só queria que você tivesse recebido mais crédito. Reyna deu uma risada gentil. — Obrigada, Piper. Mas eu não quero atenção. Você entende como é isso, não é? Piper entendia. As duas eram muito diferentes, mas ela compreendia o desejo de não querer atrair atenção. Piper desejara o anonimato sua vida inteira, por causa da fama do pai, os paparazzi, as fotos e as histórias escandalosas na imprensa. Ela conhecia tanta gente que dizia: Ah, eu quero ser famoso! Seria maravilhoso! Mas essas pessoas não tinham ideia de como era na realidade. Ela vira o preço que era cobrado de seu pai. Piper não queria saber de nada daquilo. Ela também podia entender a atração do estilo de vida romano: se misturar, fazer parte da equipe, trabalhar como uma peça de uma máquina bemlubrificada. Mas mesmo assim Reyna tinha subido até o topo. Ela não podia ficar escondida. — O poder da sua mãe… Você pode emprestar sua força para os outros? Reyna contraiu os lábios. — Nico lhe contou? — Não. Eu apenas senti isso, observando você liderar a legião. Isso deve deixá-la esgotada. Como… como você recupera essa força? — Quando eu recuperá-la, conto a você. Ela disse isso como brincadeira, mas Piper sentiu a tristeza por trás das palavras. — Você é sempre bem-vinda aqui. Se precisar descansar, se afastar… E agora você tem Frank, que pode assumir mais responsabilidades por um período. Ia lhe fazer bem tirar algum tempo para você, sem ter que atuar como pretora. Os olhos de Reyna encontraram os dela, como se estivessem tentando avaliar a seriedade da oferta. — Eu teria que cantar aquela música esquisita sobre como a vovó veste a armadura? — Não, a menos que você queira muito. Mas talvez tenhamos que deixá-la de fora da captura da bandeira. Tenho a sensação de que você poderia encarar o acampamento inteiro sozinha e ainda nos derrotar. Reyna deu um sorriso malicioso. — Vou pensar na sua oferta. Obrigada.
Reyna ajeitou sua adaga, e, por um momento, Piper pensou na Katoptris, que agora estava trancada em seu baú no chalé. Desde Atenas, quando usara a arma para atingir o gigante Encélado, as visões tinham parado completamente. — Será que… — disse Reyna. — Você é filha de Vênus. Quer dizer, de Afrodite. Talvez… talvez você consiga explicar uma coisa que sua mãe me disse. — Estou honrada. Vou tentar, mas tenho que avisá-la: minha mãe não faz sentido para mim na maioria das vezes. — Uma vez, em Charleston, Vênus me contou uma coisa. Ela disse: Você não vai encontrar amor onde deseja ou espera. Nenhum semideus vai curar seu coração. Eu… eu já pensei sobre isso por… A emoção a fez ficar sem palavras. Piper lutou contra a vontade de encontrar a mãe e socá-la. Ela odiava como Afrodite podia complicar a vida de uma pessoa apenas com uma conversa rápida. — Reyna, não sei o que ela quis dizer, mas sei de uma coisa: você é uma pessoa incrível. Tem alguém aí fora para você. Talvez não seja um semideus. Talvez seja um mortal, ou… eu não sei. Mas, quando tiver que ser, será. E até lá, ei, você tem seus amigos. Muitos amigos, gregos e romanos. Como você é a fonte da força de todo mundo, às vezes pode esquecer que você também precisa buscar força nos outros. Eu estou aqui para o que precisar. Reyna olhou para a outra margem do lago. — Piper McLean, você tem jeito com as palavras. — Não estou usando o charme, juro. — Não é necessário. — Reyna estendeu a mão. — Tenho a sensação de que vamos nos ver outra vez. Elas apertaram as mãos, e, depois que Reyna foi embora, Piper soube que a outra tinha razão. Elas iam tornar a se ver, porque Reyna não era mais uma rival, não era mais uma estranha nem uma inimiga em potencial. Ela era uma amiga. Era família.
* * *
Naquela noite, o acampamento pareceu vazio sem os romanos. Piper já sentia saudade de Hazel. Sentia falta do ranger do Argo II e das constelações que o abajur projetava no teto de sua cabine no navio. Deitada em seu beliche no chalé 10, ela se sentia tão inquieta que sabia que não ia conseguir dormir. Não parava de pensar em Leo. Repassava mentalmente, várias vezes, a luta contra Gaia, tentando descobrir como podia ter falhado tanto com Leo.
Por volta das duas da madrugada, ela desistiu de tentar dormir. Sentou-se na cama e olhou pela janela. O luar deixava a floresta prateada. A brisa trazia os cheiros da maresia e das plantações de morango. Ela não podia acreditar que apenas alguns dias antes a Mãe Terra havia despertado e quase destruído tudo o que Piper amava. Aquela noite parecia tão pacífica… tão normal. Toc, toc, toc. Piper quase bateu com a cabeça no beliche de cima. Jason estava do outro lado da janela, batendo no vidro. Ele sorria. — Venha. — O que está fazendo aqui? — sussurrou ela. — Já passou do horário de recolher. As harpias da patrulha vão destroçar você! — Venha logo. Com o coração acelerado, ela segurou a mão dele e saiu pela janela. Ele a levou até o chalé 1, e eles entraram. Lá dentro, a estátua enorme do Zeus Hippie reluzia à luz fraca. — Jason, o que exatamente…? — Veja. — Ele apontou para uma das colunas de mármore que circundavam a câmara. Atrás dela, quase escondidos contra a parede, havia degraus de ferro: uma escada. — Não posso acreditar que não percebi isso antes. Espere só até ver! Ele começou a subir. Piper não sabia por que se sentia tão nervosa, mas suas mãos tremiam. Ela o seguiu. No alto, Jason abriu uma portinhola. Eles saíram em uma área plana com vista para o norte, ao lado do teto abobadado. O Estreito de Long Island se estendia até o horizonte. Eles estavam em um ponto tão alto, e em ângulo tal, que ninguém lá embaixo tinha a menor possibilidade de enxergá-los. As harpias da patrulha nunca voavam àquela altura. — Veja. Jason apontou para as estrelas, que pareciam uma explosão de diamantes no céu, joias mais bonitas do que até Hazel Levesque poderia invocar. — Lindo. — Piper se aconchegou em Jason, que a envolveu com o braço. — Mas você não vai arranjar problemas por isso? — E daí? Piper riu baixinho. — Quem é você? Ele se virou. Seus óculos reluziam em um tom bronze pálido sob as estrelas. — Jason Grace. É um prazer conhecê-la. Ele a beijou, e… tudo bem, eles já haviam se beijado antes. Mas aquele beijo foi diferente. Piper se sentiu como uma torradeira. Todas as suas resistências ficaram vermelhas de calor. Se esquentassem mais, ela ia começar a cheirar a pão queimado. Jason se afastou apenas o suficiente para olhá-la nos olhos.
— Aquela noite na Escola da Vida Selvagem, nosso primeiro beijo sob as estrelas… — A lembrança — disse Piper. — Aquele que nunca aconteceu. — Bem… agora é de verdade. — Ele fez o gesto para se proteger do mal, o mesmo que tinha usado para libertar o fantasma da mãe, e o lançou para o céu. — A partir de agora, estamos escrevendo nossa própria história, com um novo começo. E acabamos de dar nosso primeiro beijo. — Tenho medo de dizer isso depois de apenas um beijo — disse Piper. — Mas, pelos deuses do Olimpo, eu amo você. — Também amo você, Pipes. Ela não queria estragar o momento, mas não conseguia parar de pensar em Leo, e em como ele nunca poderia ter um novo começo. Jason deve ter percebido algo em sua expressão. — Ei — disse ele. — Leo está bem. — Como você pode acreditar nisso? Ele não tinha a cura. Nico confirmou que ele morreu. — Uma vez você despertou um dragão só com a voz — lembrou-a Jason. — Você acreditou que o dragão deveria estar vivo, certo? — Certo, mas… — Temos que acreditar em Leo. Ele não ia morrer assim tão fácil. Ele é um cara durão. — É verdade. — Piper tentou acalmar o coração. — Então nós acreditamos. Leo tem que estar vivo. — Lembra-se daquela vez em Detroit, quando ele esmagou Ma Gasket com um motor? — Ou aqueles anões em Bolonha. Leo acabou com eles com explosivos caseiros, feitos de pasta de dente. — McManeiro — disse Jason. — Bad boy supremo — lembrou Piper. — Chefe Leo, o especialista em tacos de tofu. Eles riram e ficaram relembrando histórias sobre Leo Valdez, seu melhor amigo. Ficaram no telhado até amanhecer, e Piper começou a acreditar que eles podiam ter um novo começo. Talvez fosse até possível contar uma história diferente, em que Leo ainda estivesse por aí. Em algum lugar…
LVIII
LEO
LEO ESTAVA MORTO. Ele tinha certeza absoluta. Só não entendia por que doía tanto. Ele sentia como se cada célula de seu corpo tivesse explodido. Agora, sua consciência estava aprisionada em um pedaço carbonizado de semideus morto. A náusea era pior do que qualquer enjoo que já sentira em uma viagem de carro. Ele não conseguia se mexer. Não conseguia ver nem ouvir. Só conseguia sentir dor. Ele começou a entrar em pânico, pensando que talvez aquilo fosse seu castigo eterno. Então alguém conectou cabos de bateria em seu cérebro e deu partida em sua vida. Ele encheu os pulmões de ar e ergueu o corpo. A primeira coisa que sentiu foi o vento no rosto, depois uma dor calcinante no braço direito. Ele ainda estava montado em Festus. Seus olhos voltaram a funcionar, e ele percebeu a grande agulha hipodérmica sendo retirada de seu antebraço. A seringa vazia vibrou, emitiu um zunido e se recolheu para o interior de um painel no pescoço de Festus. — Obrigado, parceiro. — Leo gemeu. — Cara, morrer é horrível. Mas a cura do médico? Esse troço é pior. Festus estalou e chacoalhou em código Morse. — Não, cara, é brincadeira — disse Leo. — Estou feliz por estar vivo. E, sim, eu amo você também. Você foi fantástico. Um ronronar metálico atravessou todo o corpo do dragão. Vamos às prioridades: Leo examinou o dragão à procura de sinais de dano. As asas de Festus estavam funcionando bem, apesar de a esquerda estar toda perfurada por disparos. O metal do pescoço estava parcialmente fundido, derretido pela explosão, mas o dragão não parecia prestes a cair. Leo tentou se lembrar do que acontecera. Ele tinha quase certeza de ter derrotado Gaia, mas não fazia ideia de como estavam seus amigos no Acampamento Meio-Sangue. Com sorte, Jason e Piper haviam escapado da explosão. Leo tinha uma lembrança estranha de um míssil lançado em sua direção gritando como uma garotinha… Que diabos tinha sido aquilo? Quando aterrissasse, teria que verificar a barriga de Festus. Os danos mais sérios provavelmente estariam nessa área, onde o dragão lutara corajosamente contra Gaia enquanto eles incineravam a lama que havia nela. Não tinha como saber havia quanto tempo Festus estava no ar. Eles precisavam descer logo.
O que levantou uma questão: onde estavam? Abaixo, havia uma camada branca de nuvens. O sol brilhava diretamente acima deles, em um céu azul límpido. Então devia ser cerca de meio-dia… Mas de que dia? Quanto tempo Leo tinha ficado morto? Ele abriu o painel de controle no pescoço de Festus. O astrolábio vibrava, e o cristal pulsava como um coração de neon. Leo verificou a bússola e o GPS, e um sorriso se abriu em seu rosto. — Festus, boas notícias! — gritou. — As leituras do nosso sistema de navegação estão completamente embaralhadas! Festus respondeu com um rangido metálico. — É! Vamos descer! Vamos para baixo dessas nuvens e talvez… O dragão mergulhou tão depressa que o ar foi sugado dos pulmões de Leo. Atravessaram a camada branca e lá, abaixo deles, estava uma ilha verde isolada em um vasto mar azul. Leo comemorou tão alto que provavelmente foi ouvido lá na China. — É! QUEM MORREU? QUEM VOLTOU? QUEM É O GRANDE McDA HORA AGORA, PESSOAL? AÊÊÊÊÊÊÊ! Eles desceram em espiral na direção de Ogígia, o vento quente batendo no cabelo de Leo. Ele se deu conta de que suas roupas estavam em farrapos, apesar de terem sido tecidas com magia. Seus braços estavam cobertos por uma fina camada de fuligem, como se ele tivesse acabado de morrer em um incêndio devastador… coisa que, é claro, de fato acontecera. Mas ele não conseguia se preocupar com nada disso. Ela estava ali na praia, de calça jeans e blusa branca, com o cabelo âmbar penteado para trás. Festus abriu as asas e aterrissou desajeitadamente. Uma de suas pernas devia estar quebrada. O dragão tombou para o lado e jogou Leo de cara na areia. Uma chegada nada heroica. Leo cuspiu um pedaço de alga. Festus se arrastou pela praia, fazendo ruídos metálicos que significavam: Ai, ui, ai. Leo olhou para cima. Calipso estava parada na frente dele, os braços cruzados e as sobrancelhas arqueadas. — Você está atrasado — anunciou ela. Seus olhos brilhavam. — Desculpe, flor do dia — disse Leo. — O trânsito estava de matar. — Você está coberto de fuligem — observou ela. — E conseguiu acabar com as roupas que fiz para você, que eram impossíveis de destruir. — Bem, você sabe… — Leo deu de ombros. Ele sentia como se alguém tivesse jogado cem bolas de gude dentro de seu peito. — Fazer o impossível é comigo mesmo.
Ela lhe ofereceu a mão e o ajudou a se levantar. Eles ficaram cara a cara enquanto ela observava sua aparência. Calipso cheirava a canela. Será que ela sempre tivera aquela pequena pinta perto do olho esquerdo? Leo queria muito tocá-la. Ela torceu o nariz. — Você está fedendo… — Eu sei. Cheiro de morto. Provavelmente porque eu morri. Um juramento a manter com um alento final e tudo, mas agora estou bem… Ela o interrompeu com um beijo. As bolas de gude não paravam de se mover dentro dele. Leo estava tão feliz que teve que fazer um esforço consciente para não entrar em chamas. Quando ela finalmente o soltou, seu rosto estava coberto de fuligem. Mas ela não pareceu se incomodar. Calipso passou o polegar pela bochecha dele. — Leo Valdez — disse ela. Mais nada, só o nome dele, como se fosse algo mágico. — Sou eu — disse ele, com a voz rouca. — Então, hum… você quer deixar esta ilha? Calipso deu um passo para trás. Ela ergueu a mão, e os ventos ficaram mais fortes. Seus criados invisíveis trouxeram duas malas e as puseram aos seus pés. — De onde você tirou essa ideia? Leo sorriu. — Fez as malas para uma viagem longa, hein? — Eu não tenho planos de voltar. — Calipso olhou para trás, na direção da trilha que levava a seu jardim e à caverna onde morava. — Para onde você vai me levar, Leo? — Primeiro, para algum lugar onde eu possa consertar meu dragão — decidiu ele. — E depois… para onde você quiser. Por quanto tempo eu fiquei longe? — O tempo é uma coisa complicada em Ogígia — disse Calipso. — Pareceu uma eternidade. Leo sentiu uma ponta de dúvida. Ele esperava que seus amigos estivessem bem. Esperava que não tivessem se passado cem anos enquanto ele voava morto por aí e Festus procurava Ogígia. Ele teria que descobrir. Precisava avisar a Jason, Piper e os outros que ele estava bem. Mas naquele momento não podia pensar nisso. Calipso era uma prioridade. — Quando deixar Ogígia — disse ele —, você continua imortal, ou o quê? — Não faço ideia. — E não se importa? — Nem um pouco. — Então, tudo bem! — Ele se virou para seu dragão. — Parceiro, pronto para mais um voo sem destino definido?
Festus cuspiu fogo e começou a andar cambaleante. — Então vamos decolar sem planos — disse Calipso. — Sem ideia de para onde vamos nem de que problemas nos esperam fora desta ilha. Muitas perguntas e nenhuma resposta concreta? Leo levantou as mãos. — É assim que eu voo, flor do dia. Quer que eu leve suas malas? — Claro. Cinco minutos depois, com os braços de Calipso ao redor de sua cintura, Leo fez Festus levantar voo. O dragão de bronze abriu as asas, e eles partiram para o desconhecido.
GLOSSÁRIO
Acrópole antiga cidadela de Atenas, na Grécia, onde estão localizados os templos mais antigos dos deuses Actáion caçador que viu Ártemis tomando banho. Ela ficou com tanta raiva por um mortal tê-la visto nua que o transformou em um veado Ad acien “assumir posição de batalha” em latim Afrodite deusa grega do amor e da beleza. Era casada com Hefesto, mas amava Ares, o deus da guerra. Forma romana: Vênus Afros professor de música e poesia em um acampamento submarino para sereias e tritões. É um dos meios-irmãos de Quíron Alcioneu o mais velho dos gigantes nascidos de Gaia, destinado a combater Plutão ânfora jarro de vinho feito de cerâmica Antínoo líder dos pretendentes à mão da rainha Penélope, esposa de Odisseu, o qual o matou com uma flechada no pescoço Apolo deus grego do sol, da profecia, da música e da cura; filho de Zeus e gêmeo de Ártemis. Forma romana: Apolo Áquilo deus romano do Vento Norte. Forma grega: Bóreas Ares deus grego da guerra; filho de Zeus e Hera e meio-irmão de Atena. Forma romana: Marte Ártemis deusa grega da natureza e da caça; filha de Zeus e Hera e gêmea de Apolo. Forma romana: Diana Asclepeion hospital e escola de medicina na Grécia Antiga Asclépio deus da cura; filho de Apolo. Seu templo era o centro médico da Grécia Antiga. Forma romana: Esculápio Asdrúbal de Cartago rei da Cartago Antiga, na atual Tunísia, de 530 a 510 AEC. Foi eleito “rei” onze vezes e agraciado com o triunfo quatro vezes, sendo o
único cartaginês a receber tal honra Atena deusa grega da sabedoria. Forma romana: Minerva Augusto fundador do Império Romano e seu primeiro imperador. Governou de 27 AEC até sua morte, em 14 EC. Ave Romae “Avante, romanos!” em latim Baco deus romano do vinho e da orgia. Forma grega: Dioniso Banastre Tarleton general britânico na Guerra de Independência; ficou famoso durante a Batalha de Waxhaw pelo assassinato das tropas continentais já rendidas Barrachina restaurante em San Juan, Porto Rico, onde foi criada a piña colada Belona deusa romana da guerra bifurcum “partes íntimas” em latim Bitos professor de luta no acampamento submarino para sereias e tritões; meioirmão de Quíron Bóreas deus grego do Vento Norte. Forma romana: Áquilo Briareu irmão mais velho dos titãs e ciclopes; filho de Gaia e Urano. O último centímano vivo Calipso deusa ninfa da ilha mítica Ogígia; filha do titã Atlas. Deteve o herói Odisseu por muitos anos Campo de Marte área pública na Roma Antiga; também o nome do campo de treinamento no Acampamento Júpiter Casa de Hades local no Mundo Inferior onde Hades, deus grego da morte, e sua esposa, Perséfone, reinam sobre as almas dos mortos; também é o nome de um antigo templo em Épiro, na Grécia Caverna de Nêstor local onde Hermes escondeu o gado roubado de Apolo Cécrope líder dos gemini, os homens-cobra. Foi o fundador de Atenas e julgou a disputa entre Atena e Poseidon. Escolheu Atena como patrona da cidade e
foi o primeiro a erguer um templo para a deusa centímanos filhos de Gaia e Urano, são criaturas com cem mãos e cinquenta rostos; irmãos mais velhos dos ciclopes e deuses primordiais das tempestades violentas cêrcopes anões com aparência de chimpanzé que roubam coisas brilhantes e criam o caos Ceres deusa romana da agricultura. Forma grega: Deméter Ceto antiga deusa dos monstros e das criaturas marinhas; filha de Pontos e Gaia, irmã de Fórcis ciclope membro de uma raça primordial de gigantes que tem um único olho no meio da testa Cimopoleia deusa grega menor responsável pelas tempestades violentas; ninfa e filha de Poseidon e esposa de Briareu, um centímano cinocéfalo monstro com cabeça de cachorro Circe feiticeira grega que transformou a tripulação de Odisseu em porcos Clítio gigante criado por Gaia para absorver a magia de Hécate e derrotá-la coquí nome comum a várias espécies de pequenos sapos nativos de Porto Rico Cronos o mais jovem dos doze titãs; filho de Urano e Gaia e pai de Zeus. Matou o pai por desejo de sua mãe. Titã senhor da agricultura e das colheitas, da justiça e do tempo. Forma romana: Saturno cuneum formate manobra militar romana na qual a infantaria forma uma cunha para penetrar nas linhas inimigas Cupido deus romano do amor. Forma grega: Eros Damásen gigante filho de Tártaro e Gaia. Criado para se opor a Ares; condenado ao Tártaro por matar um drakon que estava destruindo suas terras Deimos medo; gêmeo de Fobos (pânico) e filho de Ares e Afrodite Delos ilha na Grécia onde nasceram Apolo e Ártemis
Deméter deusa grega da agricultura; filha dos titãs Reia e Cronos. Forma romana: Ceres Diana deusa romana da natureza e da caça. Forma grega: Ártemis Diocleciano último grande imperador pagão e primeiro a se aposentar pacificamente; semideus (filho de Júpiter). Segundo a lenda, seu cetro era capaz de convocar um exército de mortos Dioniso deus grego do vinho e da orgia; filho de Zeus. Forma romana: Baco dracaena (pl.: dracaenae) mulheres reptilianas com caudas de serpente no lugar das pernas Efialtes gigante criado por Gaia para destruir o deus Dioniso/Baco; gêmeo de Oto eiaculare flammas “lançar flechas incendiárias” em latim Encélado gigante criado por Gaia para se opor à deusa Atena Éolo deus de todos os ventos Epidauro cidade no litoral grego onde ficava o templo do deus médico Asclépio Épiro região que é o atual noroeste da Grécia; local em que fica a Casa de Hades Erecteion templo de Atena e Poseidon em Atenas Eros deus grego do amor. Forma romana: Cupido espartanos cidadãos da cidade grega de Esparta; soldados da Esparta Antiga, especialmente de sua famosa infantaria espresso café forte feito com vapor pressurizado e grãos torrados e bem moídos Estreito de Corinto canal navegável que liga o Golfo de Corinto ao Golfo Sarônico, no Mar Egeu Eurímaco um dos pretendentes da esposa de Odisseu, a rainha Penélope Évora cidade portuguesa parcialmente cercada por muralhas medievais e com muitos monumentos históricos, entre eles um templo romano filia romana “filha de Roma” em latim
Filipe da Macedônia governou o reino grego da Macedônia de 359 AEC até seu assassinato, em 336 AEC. Pai de Alexandre, o Grande, e de Filipe III Fobos pânico; gêmeo de Deimos (medo) e filho de Ares e Afrodite Fórcis deus primordial dos perigos do mar; filho de Gaia e irmão-marido de Ceto frigidário ambiente com água fria em um banho romano Fúrias deusas romanas da vingança. Normalmente caracterizadas como três irmãs: Alectó, Tisifone e Megera; filhas de Gaia e Urano. Vivem no Mundo Inferior atormentando os mortos julgados culpados. Forma grega: Erínias Gaia deusa grega da terra; mãe dos titãs, gigantes, ciclopes e outros monstros. Forma romana: Terra Gaius Vitellius Reticulus membro da legião romana quando ela foi criada e médico militar no tempo de Júlio César; atualmente é um Lar (espírito) no Acampamento Júpiter geminus (pl.:gemini) os homens-cobra; os atenienses originais Hades deus grego da morte e das riquezas. Forma romana: Plutão Hebe deusa grega da juventude; filha de Zeus e Hera. Forma romana: Juventa Hécate deusa da magia e das encruzilhadas; controla a Névoa; filha dos titãs Perses e Astéria Hefesto deus grego do fogo, do artesanato e dos ferreiros; filho de Zeus e Hera, casado com Afrodite. Forma romana: Vulcano Hera deusa grega do casamento; esposa e irmã de Zeus. Forma romana: Juno Hermes deus grego dos viajantes; guia dos espíritos dos mortos; deus da comunicação. Forma romana: Mercúrio Hígia deusa da saúde, da limpeza e do saneamento; filha de Asclépio, deus da medicina Hípias tirano de Atenas que, após deposto, se aliou aos persas contra o próprio povo
Hipnos deus grego do sono. Forma romana: Somnus hipódromo estádio oval para corridas de cavalos e bigas na Grécia Antiga Hipólito gigante criado para derrotar Hermes Invídia deusa romana da vingança. Forma grega: Nêmesis Íris deusa do arco-íris e mensageira dos deuses Iro velho que faz pequenos serviços para os pretendentes da esposa de Odisseu, a rainha Penélope, em troca de restos de comida Ítaca ilha grega onde se localiza o palácio de Odisseu, no qual o herói grego teve que se livrar dos pretendentes de sua rainha após a Guerra de Troia Jano deus dos portais, princípios e transições. Descrito como tendo dois rostos, porque olha para o futuro e para o passado Juno deusa romana das mulheres, do casamento e da fertilidade; irmã e esposa de Júpiter; mãe de Marte. Forma grega: Hera Júpiter rei romano dos deuses, também chamado de Júpiter Optimus Maximus (o melhor e o maior). Forma grega: Zeus Juventa deusa romana da juventude; filha de Zeus e Hera. Forma grega: Hebe Licáon um rei da Arcádia que testou a onisciência de Zeus servindo-lhe um assado que era feito da carne de um hóspede seu. Zeus o puniu transformando-o em lobo Lupa loba romana sagrada que amamentou os bebês gêmeos Rômulo e Remo makhai espíritos da batalha mania espírito grego da loucura manticore criatura com cabeça humana, corpo de leão e cauda de escorpião Marte deus romano da guerra; também chamado de Marte Ultor. Patrono do império; pai divino de Rômulo e Remo. Forma grega: Ares Medusa sacerdotisa que Atena transformou em górgona quando a flagrou com o deus Poseidon no templo de Atena. Medusa tem cobras no lugar de cabelo e
transforma em pedra as pessoas que olham para seu rosto Mercúrio mensageiro romano dos deuses; deus do comércio, dos negócios e do lucro. Forma grega: Hermes Mérope uma das sete plêiades, filhas do titã Atlas Mimas gigante criado para ser o algoz de Hefesto Minerva deusa romana da sabedoria. Forma grega: Atena mofongo prato à base de banana-da-terra frita, típico de Porto Rico Mykonos ilha grega que faz parte das Cíclades; localizada entre Tinos, Siros, Paros e Naxos Nascidos da Terra monstros de seis braços que vestem apenas uma tanga; também conhecidos como “gegenes” Nêmesis deusa grega da vingança. Forma romana: Invídia nereidas cinquenta espíritos femininos do mar; protetoras dos marinheiros e pescadores e zeladoras das riquezas dos oceanos Netuno deus romano dos mares. Forma grega: Poseidon Nice deusa grega da força, da velocidade e da vitória. Forma romana: Vitória Nix deusa da noite; um dos primeiros deuses elementais antigos a nascer numina montanum deuses romanos da montanha. Forma grega: ourae Odisseu lendário rei grego de Ítaca e herói do poema épico de Homero A Odisseia. Forma romana: Ulisses ogro lestrigão monstro gigante canibal do extremo norte Olímpia o mais antigo e provavelmente mais famoso santuário da Grécia; onde se originaram os Jogos Olímpicos. Localizado na região oeste do Peloponeso onagro arma de cerco gigante Oráculo de Delfos porta-voz das profecias de Apolo. O atual oráculo é Rachel Elizabeth Dare
Orbem formate! a esse comando, legionários romanos assumiam uma formação em círculo, com arqueiros posicionados no centro e atrás para atuarem como força de apoio Orco deus da punição eterna no Mundo Inferior e dos juramentos quebrados Órion caçador gigante que se tornou o companheiro mais valoroso e leal de Ártemis. Em um acesso de ciúme, Apolo levou Órion à loucura despertando nele uma extrema sede de sangue, até que o gigante foi morto por um escorpião. Triste, Ártemis transformou seu adorado caçador em constelação, para honrar sua memória Oto gigante criado por Gaia especificamente para destruir o deus Dioniso/Baco; irmão gêmeo de Efialtes ourae “deuses da montanha” em grego. Forma romana: numina montanum panadería “padaria” em espanhol Parcas, as Três na mitologia grega, mesmo antes da existência dos deuses havia as Parcas: Cloto, que tece o fio da vida; Láguesis, a medidora, que determina a duração de uma vida; e Átropos, que corta o fio da vida com sua tesoura Partenon templo na Acrópole de Atenas, na Grécia, dedicado à deusa Atena. Sua construção começou em 447 AEC, quando o Império Ateniense estava no auge de seu poder Pégaso cavalo alado divino, gerado por Poseidon em seu papel de deus-cavalo e nascido da górgona Medusa; irmão de Crisaor Pelopion monumento funerário a Pêlops; localizado em Olímpia, na Grécia Peloponeso grande península e região geográfica no sul da Grécia, separada da parte norte do país pelo Golfo de Corinto Pêlops segundo o mito grego, filho de Tântalo e neto de Zeus. Quando menino, seu pai o cortou em pedaços, o cozinhou e o serviu em um banquete para os deuses, que, no entanto, perceberam o ardil e lhe restituíram a vida
Penélope rainha de Ítaca e esposa de Odisseu. Durante os vinte anos de ausência do marido, permaneceu fiel a ele, dispensando cem arrogantes pretendentes Pequeno Tibre rio que cruza o Acampamento Júpiter. Corre com tanto poder quanto o Rio Tibre original, em Roma, embora não seja tão grande, e pode lavar das pessoas as bênçãos gregas Peribeia uma giganta; filha mais nova de Porfírion, rei dos gigantes Pilo cidade em Messênia, no Peloponeso, Grécia Píton serpente monstruosa a que Gaia incumbiu de guardar o Oráculo de Delfos Plutão deus romano da morte e das riquezas. Forma grega: Hades Polibotes gigante filho de Gaia, a Mãe Terra; nascido para matar Poseidon Pompeia em 79 EC, essa cidade romana perto da moderna Nápoles foi destruída por uma erupção do Monte Vesúvio, que a cobriu de cinzas e matou milhares de pessoas pontifex maximus sumo sacerdote dos deuses romanos Porfírion rei dos gigantes na mitologia greco-romana Poseidon deus grego do mar; filho dos titãs Cronos e Reia, irmão de Zeus e Hades. Forma romana: Netuno propileu portal de entrada para o território de um templo Quione deusa grega da neve; filha de Bóreas Quios quinta maior das ilhas gregas, no Mar Egeu, ao longo da costa oeste da Turquia reciário gladiador romano que lutava com uma rede com pesos e um tridente Repellere equites “repelir a cavalaria” em latim; formação em quadrado usada pela infantaria romana para se defender da cavalaria Rio Flegetonte rio de fogo que corre dos domínios de Hades para o Tártaro. Ele mantém os maus vivos para que suportem mais tormentos nos Campos de Punição
Rômulo e Remo filhos gêmeos de Marte e da sacerdotisa Reia Sílvia que foram atirados no Rio Tibre por seu pai humano, Amúlio. Resgatados e criados por uma loba, fundaram Roma quando alcançaram a idade adulta Somnus deus romano do sono. Forma grega: Hipnos Spes deusa da esperança; a Festa de Spes, o Banquete da Esperança, cai no dia primeiro de agosto Tártaro marido de Gaia; espírito do abismo; na mitologia grega, pai dos gigantes. É também a região mais profunda do Mundo Inferior Término deus romano das fronteiras e dos marcos Terra deusa romana do planeta Terra. Forma grega: Gaia titãs poderosas deidades gregas, descendentes de Gaia e Urano. Governaram durante a Era de Ouro e foram derrubados por deuses mais jovens, os olimpianos Toas gigante criado para matar as Três Parcas Ulisses forma romana de Odisseu Urano pai dos titãs; deus do céu. Os titãs o derrotaram chamando-o à terra. Eles o afastaram de seu território, o emboscaram, o prenderam e o esquartejaram Vênus deusa romana do amor e da beleza. Era casada com Vulcano, mas amava Marte, o deus da guerra. Forma grega: Afrodite Vitória deusa romana da força, da velocidade e da vitória. Forma grega: Nice Vulcano deus romano do fogo, do artesanato e dos ferreiros. Filho de Júpiter e Juno, casado com Vênus. Forma grega: Hefesto Zeus deus grego do céu; rei dos deuses. Forma romana: Júpiter Zoë Doce-Amarga filha de Atlas que foi exilada e, posteriormente, juntou-se às Caçadoras de Ártemis, tornando-se a tenente da deusa
Não perca a próxima série de Rick Riordan: Magnus Chase e os deuses de Asgard Livro 1 A ESPADA DO VERÃO
Sobre o autor
© Michael Frost
Rick Riordan nasceu em 1964, nos Estados Unidos, em San Antonio, Texas, e hoje vive em Boston com a mulher e os dois filhos. Autor best-seller do New York Times, premiado pela YALSA e pela American Library Association, por quinze anos ensinou inglês e história em escolas de São Francisco, e é a essa experiência que ele atribui sua habilidade em escrever para o público jovem. Além das séries Percy Jackson e os olimpianos e Os heróis do Olimpo, inspiradas na mitologia greco-romana, Riordan assina a bem-sucedida série As crônicas dos Kane, que visita deuses e mitos do Egito Antigo.
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PIPER
PIPER SABIA O QUE ERA medo, mas aquilo era diferente. Ondas de terror quebravam sobre ela. Suas juntas se transformaram em gelatina. Seu coração se recusava a bater. Suas piores lembranças inundaram sua mente: o pai amarrado e espancado em Monte Diablo; a briga mortal de Percy e Jason no Kansas; os três se afogando no ninfeu em Roma; ela enfrentando sozinha Quione e os Boreadas. Mas o pior de tudo foi reviver toda a sua conversa com a mãe sobre o que estava para acontecer. Paralisada, Piper viu o gigante erguer o martelo para esmagá-las. No último instante, ela saltou para o lado, derrubando Annabeth. O martelo quebrou o chão, salpicando estilhaços de pedra pelas costas de Piper. O gigante riu. — Ah, isso não foi justo! Ele ergueu outra vez o martelo. — Annabeth, levante-se! Piper a ajudou a ficar de pé e a arrastou para a extremidade mais distante da câmara, mas Annabeth se movia de modo letárgico, com os olhos arregalados e vidrados. Piper entendeu por quê. O templo amplificava os medos delas. Piper tinha visto algumas coisas horríveis, mas não eram nada em comparação ao que Annabeth havia experimentado. Se ela estivesse tendo lembranças do Tártaro, realçadas e somadas a outras recordações ruins, sua mente não seria capaz de resistir. Ela podia ficar literalmente louca. — Eu estou aqui — prometeu Piper, tentando transmitir em sua voz o máximo de segurança. — Nós vamos sair dessa. O gigante riu. — Uma filha de Afrodite liderando uma filha de Atena! Agora eu já vi de tudo. Como você planeja me derrotar, menina? Com maquiagem e dicas de moda? Alguns meses antes, aquele comentário poderia tê-la machucado, mas Piper já tinha superado aquilo. O gigante caminhou pesadamente na direção delas. Felizmente, ele era lento e carregava um martelo pesado. — Annabeth, confie em mim — disse Piper.
— Um… um plano — gaguejou ela. — Eu vou para a esquerda. Você vai para a direita. Se nós… — Annabeth, chega de planos. — O q-quê? — Chega de planos. Só me siga! O gigante golpeou com o martelo, mas elas se esquivaram com facilidade. Piper saltou para a frente e cortou a parte de trás do joelho do gigante com sua espada. Enquanto ele urrava de raiva, Piper puxou Annabeth para o túnel mais próximo. Imediatamente elas foram engolidas pela escuridão. — Suas tolas! — gritou o gigante, de algum lugar atrás delas. — Esse é o caminho errado! — Não pare. — Piper segurava firme a mão de Annabeth. — Está tudo bem. Vamos. Ela não enxergava nada. Até o brilho de sua espada tinha se apagado. Mas Piper mesmo assim seguia em frente rapidamente e sem hesitar, confiando em suas emoções. Pelo eco de seus passos, o espaço em torno delas devia ser uma caverna ampla, mas ela não podia ter certeza. Então simplesmente seguia na direção que a deixava com mais medo. — Piper, é como a Mansão da Noite — disse Annabeth. — Precisamos fechar os olhos. — Não! — exclamou Piper. — Mantenha os olhos abertos. Não podemos tentar nos esconder. A voz do gigante veio de algum lugar à frente delas: — Perdidas para sempre. Engolidas pelas trevas. Annabeth congelou, forçando Piper a parar também. — Por que nós simplesmente entramos aqui? — perguntou Annabeth. — Estamos perdidas. Nós fizemos exatamente o que ele queria! Devíamos ter aguardado um pouco, conversado com o inimigo, pensado em um plano. Isso sempre funciona! — Annabeth, eu nunca ignoro seus conselhos. — Piper mantinha a voz firme. — Mas, desta vez, preciso fazer isso. Não vamos conseguir derrotar este lugar usando a razão. Você não tem como escapar de suas emoções raciocinando. O riso do gigante ecoou como uma detonação subterrânea. — Desespere-se, Annabeth Chase! Eu sou Mimas, nascido para matar Hefesto. Sou o algoz dos planos, o destruidor das máquinas bem-lubrificadas. Nada dá certo em minha presença. Mapas são lidos equivocadamente. Aparelhos quebram. Dados são perdidos. As melhores mentes viram mingau! — E-eu já enfrentei piores que você! — exclamou Annabeth. — Ah, sei! — Dessa vez, a voz do gigante soou muito mais próxima. — Você não está com medo? — Nunca!
— Claro que estamos com medo — corrigiu Piper. — Aterrorizadas! Ela sentiu um movimento no ar. Bem a tempo, Piper empurrou Annabeth para o lado. CRASH! De repente, elas estavam de volta à câmara circular. A luz fraca agora era quase cegante. O gigante estava ali bem perto delas, tentando arrancar o martelo do chão onde ele o cravara. Piper se lançou sobre ele e enfiou sua lâmina na coxa do gigante. — UGHHHHH! Mimas soltou o martelo e arqueou as costas. Piper e Annabeth se esconderam atrás da estátua acorrentada de Ares, que ainda pulsava com um som metálico: tum-tum, tum-tum, tum-tum. O gigante Mimas se virou para elas. O ferimento em sua perna já estava se curando. — Vocês não podem me derrotar — rosnou ele. — Na última guerra, foram necessários dois deuses para me derrotar. Eu nasci para matar Hefesto, e teria feito isso se Ares não tivesse se aliado a ele! Vocês deveriam ter ficado paralisadas de medo. Teriam tido uma morte mais rápida. Alguns dias antes, ao enfrentar Quione no Argo II, Piper tinha começado a falar sem pensar, seguindo seu coração independentemente do que dizia seu cérebro. Naquele momento, ela fez a mesma coisa: foi para a frente da estátua e encarou o gigante, apesar de seu lado racional gritar: FUJA, SUA IDIOTA! — Este templo — disse ela. — Os espartanos não acorrentaram Ares para que seu espírito ficasse na cidade. — Ah, não? Os olhos do gigante brilharam de divertimento. Ele agarrou o martelo e o arrancou do chão. — Este templo é dos meus irmãos, Deimos e Fobos. — A voz de Piper tremia, mas ela não tentou esconder isso. — Os espartanos vinham aqui se preparar para as batalhas, encarar seus medos. Ares foi acorrentado para lembrá-los de que a guerra tinha consequências. O poder dele, os espíritos da batalha, os makhai, não deveriam ser libertados a menos que se entendesse como eles eram terríveis, a menos que se sentisse medo. Mimas riu. — Uma filha da deusa do amor me dando uma lição sobre guerra. O que você sabe sobre os makhai? — Você já vai descobrir. Piper correu direto para o gigante, fazendo-o se desequilibrar. Quando viu a espada dentada vindo em sua direção, os olhos dele se arregalaram, e Mimas
cambaleou para trás e bateu a cabeça na parede. Uma rachadura irregular se abriu e subiu pelas pedras. Poeira choveu do teto. — Piper, este lugar é instável! — alertou Annabeth. — Se não sairmos… — Nem pense em fugir! Piper correu na direção da corda delas, que pendia do teto. Pulou o mais alto que podia e a cortou. — Piper, você ficou maluca? Provavelmente, pensou ela. Mas Piper sabia que aquela era a única maneira de sobreviver. Ela tinha que contrariar a razão e, em vez disso, seguir a emoção, manter o gigante no chão. — Isso doeu! — Mimas esfregou a cabeça. — Você sabe que não pode me matar sem a ajuda de um deus, e Ares não está aqui! Da próxima vez que eu enfrentar aquele idiota petulante, vou fazê-lo em pedaços. Para começar, eu nem teria que lutar contra ele se Damásen, aquele tolo covarde, tivesse feito seu trabalho… Annabeth soltou um grito gutural: — Não fale mal de Damásen! Ela correu para cima de Mimas, que por pouco não conseguiu desviar a lâmina de drakon com o cabo de seu martelo. Ele tentou agarrar Annabeth, mas Piper se lançou sobre ele, cortando o rosto do gigante com sua lâmina. — AHHH! Mimas cambaleou. Uma pilha de dreadlocks caiu no chão com mais uma coisa: algo grande e carnudo que jazia em uma poça de icor dourado. — Minha orelha! — gritou Mimas, cheio de dor. Antes que o gigante pudesse se recuperar, Piper puxou Annabeth pelo braço, e juntas elas entraram correndo pelo segundo túnel. — Eu vou derrubar este templo! — urrou o gigante. — A Mãe Terra vai me libertar, mas vocês serão esmagadas! O chão tremeu. O som de pedras se quebrando ecoava por toda a volta delas. — Piper, pare — implorou Annabeth. — C-como você está lidando com isso? O medo, a raiva… — Não tente controlá-los. Este lugar é para isso. Você tem que aceitar o medo, se adaptar a ele, se deixar levar como se estivesse nas corredeiras de um rio. — Como você sabe disso? — Eu não sei. Eu apenas sinto. Em algum lugar ali perto, uma parede desmoronou com o barulho de tiros de canhão. — Você cortou a corda — disse Annabeth. — Agora nós vamos morrer aqui embaixo!
Piper segurou o rosto da amiga e a puxou para a frente até as suas testas se tocarem. Pelas pontas de seus dedos, ela sentia o pulso acelerado da outra. — Não dá para ser racional com o medo. Nem com o ódio. Ambos são como o amor: são emoções quase idênticas. É por isso que Ares e Afrodite gostam um do outro. Seus filhos gêmeos, Medo e Pânico, foram gerados tanto pelo amor quanto pela guerra. — Mas eu não… Isso não faz sentido. — Não — concordou Piper. — Pare de pensar sobre isso. Apenas sinta. — Eu odeio isso. — Eu sei. Você não pode planejar seus sentimentos, Annabeth. É como sua relação com Percy, e sobre o futuro… É impossível controlar todas as possibilidades. Você precisa aceitar isso. Deixe que assuste você. Confie que vai ficar tudo bem mesmo assim. Annabeth balançou a cabeça. — Não sei se consigo. — Então, por enquanto, se concentre em vingar Damásen, e Bob. Um momento de silêncio. — Eu estou bem agora. — Ótimo, porque preciso de sua ajuda. Vamos sair correndo daqui juntas. — E depois? — Não tenho ideia. — Pelos deuses, odeio quando é você que está liderando. Piper riu, o que surpreendeu até ela mesma. Medo e amor estavam mesmo ligados. Naquele momento, ela se agarrou ao amor que sentia pela amiga. — Vamos lá! Elas correram para nenhum lugar em especial e se viram de volta na câmara principal, às costas do gigante. Cada uma cortou uma das pernas de Mimas, fazendo-o cair de joelhos. O gigante uivou. Mais pedaços de pedra caíram do teto. — Mortais fracas! — Mimas lutou para se levantar. — Nenhum de seus planos pode me derrotar! — Isso é bom — disse Piper. — Porque eu não tenho um plano. Ela correu na direção da estátua de Ares. — Annabeth, mantenha nosso amigo ocupado! — Ah, ele está ocupado! — ARGHHHH! Piper olhou para o rosto cruel de bronze do deus da guerra. A estátua vibrava com o ruído baixo de uma pulsação metálica. Os espíritos da batalha, pensou ela. Eles estão lá dentro, esperando para ser libertados. Mas não cabia a ela fazer isso, não até que tivesse provado a própria coragem.
A câmara tornou a trepidar. Surgiram mais rachaduras nas paredes. Piper olhou para as imagens esculpidas acima dos portais: os rostos gêmeos carrancudos de Medo e Pânico. — Meus irmãos — disse Piper. — Filhos de Afrodite… Eu lhes ofereço um sacrifício. Ela pôs sua cornucópia aos pés de Ares. O chifre mágico tinha ficado tão conectado a suas emoções que podia amplificar sua raiva, seu amor ou seu pesar e, de acordo com esses sentimentos, despejar sua generosidade. Ela torcia para que aquilo agradasse aos deuses do medo. Ou talvez eles apenas gostassem de seguir uma dieta rica em frutas e verduras frescas. — Estou apavorada — confessou ela. — Não quero fazer isso. Mas aceito que seja necessário. Ela girou sua espada e decepou a cabeça de bronze da estátua. — Não! — berrou Mimas. Um jato de fogo jorrou violentamente do pescoço cortado da estátua. As chamas giraram em torno de Piper e encheram a câmara com um turbilhão de emoções: ódio, medo e sede de sangue, mas também amor, porque ninguém podia encarar uma batalha sem amar alguma coisa — os companheiros, a família, o lar. Piper abriu os braços; os makhai a colocaram no centro de seu rodamoinho. Vamos responder ao seu chamado, sussurraram eles em sua mente. Apenas uma única vez, quando precisar de nós, destruição, ruína e carnificina irão atendê-la. Nós vamos completar sua cura. As chamas desapareceram com a cornucópia, e a estátua de Ares se transformou em pó. — Menina tola! — Mimas correu na direção dela, com Annabeth seguindo logo atrás. — Os makhai a abandonaram! — Ou talvez eles tenham abandonado você! — gritou Piper. Mimas levantou o martelo, mas tinha se esquecido de Annabeth. Ela deu uma estocada em sua coxa, e o gigante cambaleou para a frente, desequilibrado. Piper avançou com calma até ele e enfiou a espada em sua barriga. Mimas deu de cara no portal mais próximo. Ele virou de costas no momento em que o rosto de pedra de Pânico se soltou da parede e caiu em cima dele para um beijo de uma tonelada. O grito do gigante foi interrompido no meio. Seu corpo ficou imóvel. Depois ele se desintegrou em uma pilha de pó de oito metros de altura. Annabeth encarou Piper. — O que acabou de acontecer? — Não sei direito. — Piper, você foi maravilhosa, mas esses espíritos de fogo que você evocou…
— Os makhai… — Como isso vai nos ajudar a encontrar a cura que estamos procurando? — Não sei. Eles disseram que eu posso invocá-los quando chegar a hora. Talvez Ártemis e Apolo possam explicar… De repente, um pedaço da parede despencou como se fosse uma geleira. Annabeth tropeçou na orelha decepada do gigante e quase caiu. — Temos que ir embora daqui. — Estou trabalhando nisso — disse Piper. — E, hum, acho que essa orelha é seu espólio de guerra. — Que nojo. — Daria um escudo lindo. — Cale a boca, Chase. — Piper olhou fixamente para o segundo portal, o que ainda tinha o rosto de Medo esculpido. — Obrigada, irmãos, por me ajudarem a matar o gigante. Mas preciso de mais um favor: uma saída. E podem acreditar em mim, estou devidamente apavorada. Eu ofereço a vocês essa, hum, bela orelha como sacrifício. O rosto de pedra não respondeu. Outro pedaço da parede se soltou e caiu. Abriram-se ainda mais rachaduras no teto. Piper agarrou a mão de Annabeth. — Vamos passar por este portal. Se isso funcionar, nós talvez saiamos na superfície. — E se não funcionar? Piper levantou a cabeça e olhou para o rosto de Medo. — Vamos descobrir. A câmara desmoronava em volta das duas quando elas mergulharam na escuridão.
XXI
REYNA
PELO MENOS ELES NÃO FORAM parar em outro navio de cruzeiro. Ao saírem de Portugal, tinham aterrissado no meio do Atlântico, onde Reyna passara o dia inteiro no convés do Azores Queen afastando criancinhas da Atena Partenos — elas pareciam achar que a estátua era um toboágua. Infelizmente, o salto seguinte levou Reyna para casa. Eles surgiram a três metros do chão, flutuando sobre a área aberta de um restaurante que Reyna logo reconheceu. Ela e Nico caíram em cima de uma enorme gaiola, que se quebrou no ato, jogando-os — junto com três araras muito assustadas — em um amontoado de vasos de samambaias. Já o treinador Hedge caiu em um toldo que cobria um bar. A Atena Partenos aterrissou de pé, com um sonoro BUM, esmagando uma mesa e jogando para o alto um guarda-sol verdeescuro, que foi parar em cima da estátua de Nice na mão de Atena. No final, parecia que a deusa da sabedoria segurava um drinque tropical. — Aaah! — berrou o treinador Hedge. O toldo se rasgou, fazendo-o cair atrás do bar. Foi um estardalhaço de garrafas e vidros se quebrando. Ele se recuperou bem: ressurgiu por trás do balcão com uma dúzia de miniguarda-chuvas no cabelo, pegou a pistola da máquina de refrigerante e serviu um copo para si mesmo. — Gostei! — exclamou ele, jogando um pedaço de abacaxi na boca. — Mas será que da próxima vez podemos aterrissar logo no chão e não em pleno ar? Nico saiu se arrastando do meio das samambaias e desabou na cadeira mais próxima, espantando uma arara azul que tentava pousar em sua cabeça. Depois da luta contra Licáon, tinha jogado fora sua jaqueta de aviador, toda rasgada. O estado da camiseta preta com estampa de caveira não era muito melhor. Reyna tinha costurado os cortes de Nico na altura dos bíceps, o que o fazia parecer um tanto assustador, uma espécie de Frankenstein, mas os ferimentos continuavam inchados e vermelhos. Ao contrário das mordidas, garras de lobisomem não transmitiam licantropia, mas Reyna sabia, por experiência própria, que demoravam a sarar e queimavam como ácido. — Preciso dormir. — Nico olhou ao redor, confuso. — Estamos em segurança? Reyna observou o pátio do restaurante. O lugar parecia deserto, embora ela não entendesse por quê. Àquela hora da noite, deveria estar lotado. O céu noturno emitia um brilho nublado cor de cerâmica, a mesma cor das paredes do prédio. As sacadas do segundo andar, em torno do pátio, estavam vazias, exceto por
vasos de azaleias pendurados nas grades brancas de metal. Por trás de uma parede de portas de vidro, o interior do restaurante estava às escuras. O único som era o gorgolejar solitário da fonte e o ocasional grito de uma arara malhumorada. — Aqui é o Barrachina — disse Reyna. — Viemos parar na China? — perguntou Hedge, abrindo um vidro de cerejas ao marasquino e começando a comer. — Barrachina. É um restaurante famoso — explicou Reyna. — Fica bem no meio de Viejo San Juan. Acho que foi aqui que inventaram a piña colada, na década de sessenta. Nico se levantou da cadeira, deitou-se encolhido no chão e já começou a roncar. O treinador Hedge soltou um arroto. — Bem, parece que vamos ficar aqui por um tempo. Se eles não inventaram nenhum drinque novo desde os anos sessenta, estão atrasados. Vou começar agora mesmo! Enquanto Hedge remexia nos utensílios atrás do balcão do bar, Reyna chamou Aurum e Argentum com um assovio. Os cães pareciam desgastados devido à luta contra os lobisomens, mas Reyna os deixou de vigia. Verificou a entrada que dava para a rua. Os portões decorativos de ferro estavam trancados. Uma placa em espanhol e inglês avisava que o restaurante tinha sido reservado para uma festa particular. Aquilo parecia estranho, já que o local estava deserto. No canto da placa estavam gravadas as iniciais HDVM. Isso incomodou Reyna, embora ela não conseguisse identificar o motivo. Ela espiou através dos portões. A rua Fortaleza encontrava-se estranhamente silenciosa, e o calçamento de pedras azuladas, totalmente livre, sem nenhum pedestre nem carro passando. As fachadas das lojas em tons pastel estavam fechadas e às escuras. Seria domingo? Ou algum tipo de feriado? A sensação de desconforto de Reyna só aumentava. Atrás dela, o treinador Hedge assoviava alegremente enquanto preparava algo em vários liquidificadores enfileirados. As araras estavam pousadas nos ombros da Atena Partenos. Reyna se perguntou se os gregos ficariam ofendidos se sua estátua sagrada chegasse coberta de cocô de aves tropicais. Tantos lugares em que Reyna podia ter ido parar… e logo San Juan. Talvez fosse coincidência, mas ela não acreditava nisso. Porto Rico não ficava no caminho entre a Europa e Nova York. Eles fizeram um bom desvio para o sul. Além disso, ela estava emprestando sua força para Nico havia alguns dias. Talvez o tivesse influenciado inconscientemente. Ele era atraído por pensamentos dolorosos, medo, escuridão. E a recordação mais dolorosa e sombria de Reyna era San Juan. Seu maior medo? Voltar ali.
Os cães perceberam sua agitação. Rondaram o pátio, rosnando para as sombras. O pobre Argentum andava em círculos por causa da cabeça deslocada, para conseguir enxergar com o olho de rubi que lhe restava. Reyna tentou se concentrar em lembranças positivas. Sentia saudades do barulho que os pequenos sapos coquí faziam, cantando pelas ruas como um coral de tampas de garrafa se abrindo. Tinha saudades do cheiro do mar, das magnólias e dos limoeiros em flor, do pão fresco das panaderías locais. Até a umidade do ar lhe era confortável e familiar, como o jato de ar perfumado das secadoras de roupas. Parte dela queria abrir os portões daquele restaurante e sair explorando a cidade. Ela queria visitar a Plaza de Armas, onde os velhinhos jogavam dominó e o quiosque de café vendia um espresso tão forte que fazia suas orelhas doerem. Queria passear pela rua onde tinha morado, a San José, contando os gatos de rua e dando-lhes nomes, inventando uma história para cada um, como fazia com sua irmã. Queria invadir a cozinha do Barrachina e preparar um verdadeiro mofongo, com bananas, bacon e alho — um sabor que sempre a lembraria de tardes de domingo, quando ela e Hylla conseguiam escapar de casa por um tempo e, com alguma sorte, comer ali naquela cozinha, onde os funcionários já as conheciam e se compadeciam delas. Ao mesmo tempo, porém, Reyna queria ir embora dali imediatamente. Queria despertar Nico, por mais cansado que ele estivesse, e forçá-lo a transportá-los para longe dali, para qualquer lugar que não fosse San Juan. Estar tão perto de casa a deixava tensa como um arco de balista. Ela olhou para Nico. Apesar da noite quente, ele tremia no chão de lajotas. Ela pegou um cobertor da mochila e o cobriu. Reyna não tinha mais vergonha de querer protegê-lo. Para o bem ou para o mal, eles agora tinham uma ligação. Cada vez que viajavam nas sombras, a exaustão e os tormentos dele transbordavam sobre ela, e Reyna o entendia um pouco melhor. Nico sentia uma solidão arrasadora. Tinha perdido a irmã mais velha, Bianca. Tinha afastado todos os semideuses que haviam tentado se aproximar dele. Suas experiências no Acampamento Meio-Sangue, no Labirinto e no Tártaro haviam lhe rendido cicatrizes e o deixado receoso de confiar em qualquer um. Reyna duvidava que fosse possível mudar os sentimentos dele, mas queria ao menos lhe dar apoio. Era algo que todos os heróis mereciam. E esta era exatamente a ideia da Décima Segunda Legião: unir forças para lutar por uma causa mais importante. Você não estava sozinho. Você fazia amigos e conquistava respeito. Mesmo quando não parava de lutar, você ainda tinha um lugar na comunidade. Nenhum semideus deveria sofrer sozinho, como Nico sofria.
Era vinte e cinco de julho. Faltavam sete dias para primeiro de agosto. Em teoria, era tempo suficiente para chegar a Long Island. Quando completassem a missão — se completassem —, Reyna faria o que pudesse para garantir que Nico fosse reconhecido por sua bravura. Ela tirou a mochila do ombro. Tentou colocá-la sob a cabeça de Nico como um travesseiro improvisado, mas seus dedos o atravessaram como se ele fosse uma sombra. Ela puxou rapidamente a mão. Será que estava tendo alucinações? Nico tinha despendido energia demais viajando nas sombras… talvez estivesse começando a desaparecer permanentemente. Se continuasse daquele jeito, forçando-se até os limites de sua força, por mais sete dias… O ruído de um liquidificador de repente a despertou de seus pensamentos. — Quer um coquetel de frutas? — perguntou o treinador. — Este é de abacaxi, morango, laranja e banana, tudo enterrado debaixo de uma montanha de coco ralado. Eu o batizei de Hércules! — Eu… eu não quero, não, obrigada. — Ela percorreu com o olhar as sacadas que circundavam o pátio interno. Ainda estava achando muito estranho aquele restaurante totalmente vazio. Festa particular. HDVM. — Treinador, acho que vou checar o segundo andar. Não estou gostando do… Seus olhos captaram um vislumbre de movimento. Na sacada à direita; uma forma escura. Acima da sacada, na beira do telhado, surgiram várias outras silhuetas contra o céu alaranjado. Reyna sacou sua espada, mas era tarde demais. Um brilho prateado, um zunido rápido e baixo, e a ponta de uma agulha se enterrou em seu pescoço. Sua visão se turvou. Seus braços e suas pernas ficaram moles. Ela desmoronou ao lado de Nico. Antes de perder a consciência, Reyna viu os cães virem correndo em sua direção, mas eles congelaram no meio de um latido e tombaram. Do bar, o treinador gritou: — Ei! Outro zunido rápido e baixo. Hedge foi derrubado com um dardo de prata no pescoço. Reyna tentou dizer: Nico, acorde. Mas sua voz não saía. Seu corpo tinha sido desativado tão completamente quanto seus cães de metal. Várias figuras escuras haviam surgido no telhado. Meia dúzia delas pulou para o pátio, em silêncio, com elegância. Uma das figuras se debruçou sobre Reyna, que só distinguia um borrão cinza. Uma voz abafada ordenou: — Levem-na. Um saco de pano cobriu sua cabeça. Reyna se perguntou vagamente se ia morrer daquele jeito, sem sequer lutar.
Mas logo isso já não lhe importava mais. Vários pares de mãos rudes a ergueram como se ela fosse um móvel grande demais, difícil de carregar, e ela mergulhou na inconsciência.
XXII
REYNA
A RESPOSTA LHE OCORREU ANTES mesmo que ela despertasse por completo. As iniciais da placa no Barrachina: HDVM. — Não tem graça — murmurou Reyna para si mesma. — Não tem a menor graça. Anos antes, Lupa lhe ensinara a ter um sono leve e acordar já alerta, pronta para atacar. Agora, conforme seus sentidos voltavam, Reyna avaliava sua situação. O saco de pano ainda cobria sua cabeça, mas não parecia estar preso em seu pescoço. Ela se viu amarrada a uma cadeira dura; de madeira, supôs. Cordas apertavam com força suas costelas. Suas mãos estavam presas às costas, mas suas pernas estavam soltas do joelho para baixo. Ou seus captores eram relaxados, ou não esperavam que ela despertasse tão depressa. Reyna experimentou mexer os dedos das mãos e dos pés. O efeito do tranquilizante havia passado. Em algum lugar à frente de Reyna ecoaram passos por um corredor. O som se aproximava. A garota relaxou os músculos e deixou a cabeça pender, o queixo tocando o peito. Um clique de fechadura. Uma porta rangendo. A julgar pela acústica, ela se encontrava em um ambiente pequeno, com paredes feitas de tijolos ou de concreto: talvez um porão ou uma cela. Alguém entrou no aposento. Reyna calculou a distância. Não mais que um metro e meio. Ela se ergueu de um salto, girando o corpo de tal forma que as pernas da cadeira acertassem o corpo de quem quer que tivesse surgido. A força fez a cadeira se quebrar. Seu captor caiu com um grunhido de dor. Gritos vindos do corredor. Mais passos. Sacudindo a cabeça, Reyna se livrou do saco de pano. Depois deu uma cambalhota para trás, passando as mãos amarradas por baixo das pernas para que os braços ficassem na frente do corpo. Seu captor era uma adolescente usando traje camuflado cinza, e estava caída no chão, atordoada; trazia uma faca presa ao cinto. Reyna pegou a faca, montou sobre a garota e pressionou a lâmina contra a garganta de sua captora.
Outras três garotas surgiram à porta. Duas delas sacaram facas. A terceira armou uma flecha e puxou o arco. Por um momento, todos ficaram paralisados. A artéria carótida da garota rendida pulsava sob a lâmina na mão de Reyna. Sabiamente, a garota não fez nenhuma tentativa de se mexer. Pela mente de Reyna passavam várias possibilidades de como derrotar as garotas que estavam à porta. As três usavam camiseta camuflada cinza, calça jeans de um preto desbotado, tênis de corrida pretos e cinto de utilidades como se estivessem indo acampar, fazer uma trilha ou… caçar. — Vocês são as Caçadoras de Ártemis — compreendeu Reyna. — Vá com calma — disse a garota com o arco. Seu cabelo ruivo era raspado dos lados e comprido em cima. Tinha o físico de um lutador de boxe. — Você não está entendendo a situação. A garota no chão soltou todo o ar dos pulmões, mas Reyna conhecia aquele truque: uma forma de tentar afastar a pele da arma do inimigo. Reyna apertou ainda mais a faca. — Vocês é que não estão entendendo se acham que podem me atacar e me capturar — retrucou Reyna. — Onde estão meus amigos? — Ilesos, exatamente onde você os deixou — assegurou a ruiva. — Olhe, somos três contra uma, e suas mãos estão amarradas. — Tem razão — disse Reyna com raiva. — Podem vir mais seis de vocês, e aí talvez seja uma luta justa. Exijo ver a tenente das Caçadoras, Thalia Grace. A ruiva piscou. As outras pareceram vacilar. No chão, a refém de Reyna começou a tremer. Reyna achou que ela estivesse tendo um ataque, mas então percebeu que a garota estava rindo. — Qual é a graça? — perguntou Reyna. A voz da garota era um sussurro rouco: — Jason me disse que você era boa. Mas não imaginei que fosse tanto. Reyna olhou com mais atenção para sua refém. A garota parecia ter uns dezesseis anos, com cabelo preto espetado e lindos olhos azuis. Uma tiara de prata reluzia em sua testa. — Você é Thalia? — E posso explicar tudo com o maior prazer — disse Thalia —, desde que você faça a gentileza de não cortar minha garganta.
* * *
As Caçadoras a guiaram por um labirinto de corredores. As paredes eram blocos de concreto pintados de verde-musgo, sem nenhuma janela. A única luz vinha de fracas lâmpadas fluorescentes posicionadas a cada dez metros no teto. As
passagens viravam e faziam curvas de um lado para outro. A Caçadora ruiva, Phoebe, seguia na frente; parecia saber aonde estava indo. Thalia Grace seguia mancando, a mão apertando as costelas, na altura em que Reyna a acertara com a cadeira. Devia estar sentindo dor, mas em seus olhos havia um brilho de divertimento. — Mais uma vez, me desculpe por raptá-la. — Thalia não parecia muito arrependida. — Este esconderijo é seguro. As amazonas têm certos protocolos… — As amazonas. Vocês trabalham para elas? — Com elas — corrigiu Thalia. — Temos uma relação amistosa. Às vezes, as amazonas nos mandam recrutas. E quando temos garotas que não querem ser virgens para sempre, as mandamos para as amazonas, que não exigem esses votos. Uma das outras Caçadoras bufou, indignada. — Manter homens como escravos, de coleira e tudo… Sou mais ter uma matilha de cães. — Eles não são escravos, Celyn — repreendeu Thalia. — São apenas subservientes. — Ela olhou para Reyna. — As amazonas e as Caçadoras não têm exatamente a mesma opinião sobre tudo, mas desde que Gaia começou a se agitar, temos atuado em cooperação mútua. Com o Acampamento Júpiter e o Acampamento Meio-Sangue se engalfinhando… bem… alguém tem que lidar com todos os monstros. Nossas forças estão espalhadas pelo continente inteiro. Reyna massageou as marcas de corda no pulso. — Achei que você tivesse dito a Jason que não sabia nada sobre o Acampamento Júpiter. — E era verdade. Mas esses dias agora são passado, graças às maquinações de Hera. — Thalia assumiu uma expressão séria. — Como vai meu irmão? — Quando eu o deixei em Épiro, ele estava bem. E Reyna contou a ela o que sabia. Os olhos de Thalia a perturbavam: de um azul eletrizante, intensos e alertas. Lembravam muito os de Jason. Tirando isso, os irmãos não se pareciam em nada. O cabelo de Thalia era espetado e preto. Ela vestia uma calça jeans toda rasgada, partes presas com alfinetes de segurança; usava correntes de metal no pescoço e nos pulsos, e um button em sua camiseta dizia O PUNK NÃO MORREU. O MORTO É VOCÊ. Reyna sempre pensara em Jason como o típico garoto americano. Thalia parecia mais alguém que aparecia no beco com uma faca para assaltar típicos garotos americanos. — Espero que ele ainda esteja bem — disse Thalia, pensativa. — Faz alguns dias, sonhei com nossa mãe. Não foi… não foi muito agradável. Depois recebi, em meus sonhos, a mensagem de Nico, de que vocês estavam sendo caçados por Órion. Foi ainda menos agradável.
— Foi por isso que você veio. Você recebeu a mensagem dele. — Bem, não viemos correndo até Porto Rico para passar umas férias. Esta é uma das fortalezas mais seguras das amazonas. Achamos que conseguiríamos interceptar vocês. — Interceptar? Como? E por quê? Phoebe, que ia na frente, parou. O corredor terminava bruscamente em uma porta dupla de metal. Phoebe bateu nela com o cabo da faca, uma complicada sequência de toques que parecia código Morse. Thalia esfregou as costelas machucadas. — Vou ter que deixar você aqui. As Caçadoras estão patrulhando a cidade antiga, à espera de Órion. Preciso voltar para as linhas de frente. — Ela estendeu a mão como se esperasse algo. — Minha faca, por favor? Reyna a devolveu. — E as minhas armas? — Você vai tê-las de volta quando for embora. Sei que parece bobagem, o rapto, a venda nos olhos, essas coisas, mas as amazonas levam muito a sério a própria segurança. Mês passado tiveram um incidente na base de operações delas, em Seattle. Talvez você tenha ouvido falar. Uma garota chamada Hazel Levesque roubou um cavalo. A Caçadora Celyn sorriu. — Naomi e eu vimos o vídeo da câmera de segurança. Lendário. — Épico — concordou a terceira Caçadora. — Enfim — continuou Thalia. — Estamos de olho em Nico e no sátiro. Homens não autorizados não têm permissão de chegar nem perto deste lugar, mas deixamos um bilhete, para eles não ficarem preocupados. Thalia pegou um papel do cinto, desdobrou-o e entregou-o a Reyna. Era uma xerox de um bilhete escrito à mão.
Pegamos emprestada de vcs uma pretora romana. Será devolvida sã e salva. Fiquem quietinhos aí. Senão, matamos vcs.
Bjs, As Caçadoras de Ártemis
Reyna devolveu o bilhete. — Ótimo. Eles vão ficar bem tranquilos. Phoebe sorriu.
— Está tudo bem. Cobri a Atena Partenos com uma nova rede de camuflagem que eu projetei. Deve servir para evitar que monstros, inclusive Órion, a encontrem. Além disso, se meu palpite estiver certo, o gigante na verdade não está seguindo o rastro da estátua, mas o seu. Reyna sentiu como se tivesse levado um soco na cara. — Como você pode saber isso? — Phoebe é minha melhor rastreadora — explicou Thalia. — E minha melhor curandeira. Sem contar que… bem, ela geralmente tem razão em quase tudo. — Quase tudo? — protestou a própria Phoebe. Thalia ergueu as mãos em um gesto de rendição. — Quanto ao porquê de termos interceptado vocês, vou deixar que as amazonas expliquem. Phoebe, Celyn, Naomi: entrem com Reyna. Tenho que cuidar de nossas defesas. — Você está preparada para uma luta — observou Reyna. — Mas você disse que este lugar era secreto e seguro… Thalia embainhou a faca. — Você não conhece Órion. Bem que eu queria que tivéssemos mais tempo, pretora. Queria lhe perguntar sobre o seu acampamento, saber como foi parar lá. Você me lembra muito sua irmã, mas ao mesmo tempo… — Você conhece Hylla? — perguntou Reyna. — Ela está em segurança? Thalia inclinou a cabeça ao responder: — Nenhum de nós está seguro no momento, pretora, por isso eu preciso muito ir. Boa caçada! E desapareceu pelo corredor. As portas de metal se abriram com um rangido. As três Caçadoras conduziram Reyna para dentro. Depois daqueles túneis claustrofóbicos, o tamanho do armazém fez Reyna perder o fôlego. O teto era tão amplo que daria para uma ninhada de águias gigantes fazerem manobras pelo ar. Fileiras de estantes de uns dez metros de altura se estendiam até o infinito. Braços mecânicos iam e vinham rapidamente pelos corredores, pegando caixas. Ali perto, meia dúzia de jovens em terninhos pretos comparavam anotações em seus tablets. Diante delas havia contêineres identificados com FLECHAS EXPLOSIVAS E FOGO GREGO: (PCT ABRE FÁCIL, 500G) e FILÉ DE GRIFO (ORGÂNICO — CRIAÇÃO EM GRANJA). Bem diante de Reyna, uma figura familiar estava sentada a uma mesa de reuniões coberta de relatórios e armas brancas. — Irmãzinha. — Hylla se levantou. — Aqui estamos nós de novo, em casa. Encarando a morte certa mais uma vez. Temos que parar de nos encontrar assim.
XXIII
REYNA
OS SENTIMENTOS DE REYNA NÃO estavam muito embaralhados. Na verdade, tinham sido jogados em um liquidificador com cascalho e gelo. Toda vez que encontrava a irmã, ela não sabia se a abraçava, se chorava ou se dava meia-volta e ia embora. Claro que ela amava Hylla. Teria morrido várias vezes se não fosse pela irmã. Mas o passado que elas compartilhavam era mais que complicado. Hylla deu a volta na mesa, indo ao encontro da irmã. A calça de couro preto e a camiseta de malha preta lhe caíam bem. Em sua cintura brilhava uma corrente com intrincados elos de ouro, o cinto da rainha das amazonas. Ela estava agora com vinte e dois anos, mas podia se passar por gêmea de Reyna. As duas tinham cabelo escuro e comprido, os mesmos olhos castanhos. Até usavam anéis de prata idênticos com o símbolo da mãe, Belona. A diferença mais óbvia entre elas era a grande cicatriz branca na testa de Hylla. Tinha esmaecido após quatro anos; agora podia passar por uma mera ruga de preocupação. Mas Reyna se lembrava do dia em que Hylla ganhara aquela cicatriz, em um duelo a bordo do navio pirata. — E então? — disse Hylla. — Não tem nada a dizer para sua irmã? — Obrigada por me sequestrar — disse Reyna. — Por me acertar com um dardo tranquilizante, botar um saco na minha cabeça e me amarrar a uma cadeira. Hylla revirou os olhos com desdém. — Regras são regras. Como pretora, você deveria entender isso. O centro de distribuição é uma das nossas bases mais importantes. Temos que controlar o acesso. Não posso abrir exceções. Muito menos para familiares. — Acho que você fez isso por pura diversão. — Também. Será que Hylla era mesmo tão tranquila e controlada quanto parecia?, perguntou-se Reyna. Era impressionante (e um pouco assustador) como a irmã tinha se adaptado rápido a sua nova identidade. Seis anos antes, Hylla era uma irmã mais velha assustada fazendo o possível para proteger Reyna da fúria do pai. Suas principais habilidades eram correr e encontrar lugares para as duas se esconderem. Depois, na ilha de Circe, Hylla se esforçava muito para chamar atenção. Usava roupas berrantes e maquiagem. Ria, vivia sorridente e alegre, como se
parecer feliz fosse de fato fazê-la feliz. Tinha se tornado uma das assistentes preferidas de Circe. Depois que seu santuário na ilha foi destruído pelo fogo, elas viraram prisioneiras dos piratas. Hylla mudou mais uma vez. Duelou por sua liberdade, foi mais pirata que os piratas, ganhou tanto o respeito da tripulação que BarbaNegra finalmente as libertou, por medo de que Hylla tomasse seu navio. Agora ela havia se reinventado de novo como rainha das amazonas. Claro, Reyna entendia por que a irmã era tão camaleônica. Se ela estivesse sempre mudando, jamais iria fossilizar na mesma coisa em que o pai tinha se transformado… — Aquelas iniciais na placa do Barrachina — disse Reyna. — HDVM. Hylla Duas Vezes Mortal, seu novo apelido. É uma piadinha? — Só queria ver se você estava atenta. — Você sabia que íamos aterrissar no pátio. Como? Hylla deu de ombros. — A viagem nas sombras opera por magia. Várias de minhas seguidoras são filhas de Hécate. Foi bem fácil para elas desviar vocês do seu curso, ainda mais com a conexão que nós duas temos. Reyna tentava manter sua raiva sob controle. Hylla, mais que qualquer outra pessoa, deveria saber como ela se sentiria ao ser arrastada de volta para Porto Rico. — Quanto trabalho vocês tiveram — observou Reyna. — A rainha das amazonas e a tenente de Ártemis indo às pressas a Porto Rico para nos interceptar, e imediatamente após receberem a mensagem… Imagino que não tenha sido porque você sentiu saudades de mim. Phoebe, a Caçadora ruiva, riu. — A garota é esperta. — Claro — disse Hylla. — Fui eu que ensinei tudo a ela. Outras amazonas se aproximaram, provavelmente detectando uma luta em potencial. Amazonas amavam a violência como entretenimento, quase tanto quanto piratas. — Órion — compreendeu Reyna. — Foi o que trouxe você aqui. O nome dele chamou sua atenção. — Eu não podia deixar que ele a matasse — disse Hylla. — É mais que isso. — Sua missão de escoltar a Atena Partenos… — … é importante. Mas também não é só isso. Você tem algum interesse pessoal nessa história. E as Caçadoras também. Por que não abre o jogo? Hylla passou os polegares pelo cinto de ouro. — Órion é um problema. Diferente dos outros gigantes, faz séculos que ele caminha pela Terra. Ele gosta de matar amazonas, ou Caçadoras, ou qualquer
mulher que ouse ser forte. — Por quê? Reyna teve a impressão de que uma onda de medo percorreu as garotas ali em torno dela. Hylla olhou para Phoebe. — Quer explicar? Você estava lá. O sorriso da Caçadora desapareceu. — Em tempos antigos, Órion se aliou às Caçadoras. Era o melhor amigo de Ártemis. Ninguém era páreo para ele no arco, exceto pela própria deusa, e talvez seu irmão, Apolo. Reyna sentiu um calafrio. Phoebe parecia não ter mais que catorze anos. E pensar que ela conhecia Órion havia três ou quatro mil anos… — Até que…? — perguntou Reyna. As orelhas de Phoebe ficaram vermelhas. — Órion ultrapassou os limites. Apaixonou-se por Ártemis. Hylla torceu o nariz em desprezo. — Sempre acontece com os homens. Eles prometem amizade. Prometem tratar você como igual. No fim, só querem mesmo possuí-la. Phoebe cutucava a unha do polegar. Atrás dela, as outras duas Caçadoras pareciam inquietas e desconfortáveis. — Lady Ártemis o rejeitou, é claro — prosseguiu Phoebe. — O que deixou Órion amargurado. Ele começou a partir em viagens cada vez mais longas por florestas e territórios ermos, sempre sozinho. No fim… não sei dizer ao certo o que aconteceu. Um dia, Ártemis voltou para o acampamento e nos contou que Órion tinha morrido. E se recusou a tocar no assunto. Hylla franziu a testa, o que acentuou a cicatriz branca em sua testa. — Seja lá o que aconteceu, Órion voltou do Tártaro como o pior inimigo de Ártemis. O maior ódio possível é por alguém que um dia você já amou. Reyna compreendia isso. Veio-lhe à mente uma conversa que ela tivera com a deusa Afrodite dois anos antes, em Charleston… — Se ele é um problema tão grande assim, por que Ártemis simplesmente não o mata outra vez? — perguntou Reyna. Phoebe fez um esgar de insatisfação. — Falar é fácil. Órion é sorrateiro. Sempre que Ártemis está conosco, ele se afasta. Sempre que nós, Caçadoras, estamos por conta própria, como agora… ele ataca sem avisar e desaparece de novo. Nossa tenente anterior, Zoë DoceAmarga, passou séculos tentando encontrá-lo para matá-lo. — As amazonas também tentaram — disse Hylla. — Órion não distingue entre nós e as Caçadoras. Acho que todas nós o lembramos demais Ártemis. Ele sabota nossos armazéns, embarga nossos centros de distribuição, mata nossas guerreiras…
— Em outras palavras — disse Reyna secamente —, fica no caminho dos seus planos de dominação mundial. Hylla deu de ombros. — Exatamente. — Foi por isso que vocês vieram correndo me interceptar — continuou Reyna. — Vocês sabiam que Órion estaria bem atrás de mim. Estão preparando uma armadilha. E eu sou a isca. Todas as outras garotas deram um jeito de olhar para qualquer outra coisa que não o rosto de Reyna. — Ah, por favor — reclamou Reyna. — Não me venham agora com crise de consciência. É um bom plano. Como vamos fazer? Hylla abriu um sorriso satisfeito para suas companheiras. — Não falei que minha irmã era durona? Phoebe, explique os detalhes a ela. A Caçadora pendurou o arco no ombro. — Como eu disse, acreditamos que Órion esteja seguindo você, não a Atena Partenos. O faro dele para semideusas é especialmente aguçado. Ou seja, pelo visto somos a presa natural de Órion. — Maravilha — disse Reyna. — Então meus amigos… Nico e Gleeson Hedge… eles não correm perigo? — Ainda não consigo entender por que você viaja com homens — resmungou Phoebe. — Mas eu diria que eles estão mais seguros sem você por perto. Fiz o possível para camuflar a estátua. Com sorte, Órion vai seguir você até aqui, direto para nossas linhas de defesa. — E quando isso acontecer? — perguntou Reyna. Hylla dirigiu a ela o tipo de sorriso frio que em outros tempos deixava os piratas de Barba-Negra nervosos. — Thalia e a maioria de suas Caçadoras estão vigiando o perímetro de Viejo San Juan. Assim que Órion se aproximar de nós, vamos saber. Montamos armadilhas em todos os pontos por onde ele pode tentar passar. Tenho minhas melhores guerreiras em alerta. Vamos pegar o gigante. Depois, de um jeito ou de outro, vamos mandá-lo de volta para o Tártaro. — É realmente possível matá-lo? — perguntou Reyna, incerta. — Achei que a maioria dos gigantes só pudesse ser destruída por um deus e um semideus lutando juntos. — É o que pretendemos descobrir — disse Hylla. — Com Órion capturado, essa sua missão e dos seus amigos vai ser muito mais fácil. Vocês poderão seguir caminho com nossa bênção. — Vocês podiam nos dar mais que uma bênção — disse Reyna. — As amazonas enviam produtos para o mundo inteiro. Por que não fornecer um transporte seguro para a Atena Partenos? Ou nos levar até o Acampamento Meio-Sangue até primeiro de agosto…
— Não posso — disse Hylla. — Se eu pudesse, irmã, eu a levaria, mas com certeza você já sentiu a raiva que emana da estátua. Nós, amazonas, somos filhas honorárias de Ares. A Atena Partenos nunca toleraria nossa interferência. Além disso, você sabe como as Parcas são. Para que a missão tenha sucesso, vocês devem entregar a estátua pessoalmente. A decepção de Reyna deve ter ficado evidente. Phoebe a cutucou com o ombro, como um gato tentando parecer sociável. — Ei, não fique assim. Vamos ajudar você o máximo possível. O setor de manutenção da Amazon consertou aqueles seus cães de metal. E temos uns presentes de despedida muito legais. Celyn entregou a Phoebe uma bolsinha de couro. — Vamos ver… — disse Phoebe, remexendo dentro da bolsinha. — Poções de cura. Dardos tranquilizantes iguais aos que usamos em vocês. Humm, o que mais? Ah, sim! Ela ergueu triunfantemente um tecido prateado dobrado em formato retangular. — Um lenço? — perguntou Reyna. — Melhor que isso. Afaste-se um pouco. Phoebe jogou no chão o tecido, que imediatamente se expandiu, tornando-se uma barraca de camping de três por três metros. — Tem ar-condicionado — disse Phoebe. — Cabem quatro pessoas. No interior tem uma mesa para refeições e sacos de dormir. Qualquer equipamento extra que você guardar dentro da barraca desmonta junto. Quer dizer, no limite do razoável… Não tente botar sua estátua gigante aí. Celyn deu um riso de escárnio e comentou: — Se os homens que viajam com você começarem a ficar irritantes, é só deixá-los aí dentro. Naomi franziu a testa. — Isso não ia funcionar… ou ia? — Enfim — disse Phoebe. — Essas barracas são maravilhosas. Tenho uma igualzinha. Uso sempre. Quando estiver pronta para fechá-la, a palavra de comando é Actáion. E nisso a barraca voltou a ser um pequeno retângulo de tecido. Phoebe o pegou, guardou na bolsinha e a entregou a Reyna. — Eu… eu não sei o que dizer — gaguejou Reyna. — Obrigada. — Ownnn… — Phoebe deu de ombros. — É o mínimo que posso fazer por… A uns quinze metros delas, uma porta se abriu com violência. Uma amazona veio correndo na direção de Hylla, uma garota de terninho preto que trazia o cabelo castanho comprido preso em um rabo de cavalo. Reyna a reconheceu da batalha no Acampamento Júpiter. — Kinzie, não é?
A garota assentiu distraidamente. — Pretora. A recém-chegada sussurrou algo no ouvido de Hylla, e a expressão da rainha das amazonas se nublou. — Entendo. — Ela olhou de relance para Reyna. — Tem alguma coisa errada. Perdemos contato com as defesas externas. Estou com medo de que Órion… Atrás de Reyna, as portas de metal explodiram.
XXIV
REYNA
REYNA LEVOU A MÃO À espada, mas então se lembrou de que a haviam confiscado. — Saiam daqui! — gritou Phoebe, preparando o arco. Celyn e Naomi correram em direção à porta fumegante, só para serem derrubadas por flechas negras. Phoebe gritou de raiva, e respondeu com fogo enquanto as amazonas avançavam com escudos e espadas. — Reyna! — Hylla a puxou pelo braço. — Precisamos ir embora! — Não podemos simplesmente… — Minhas guardas vão ganhar tempo para você! — gritou Hylla. — Sua missão precisa ser cumprida. Mesmo se odiando por isso, Reyna saiu correndo com Hylla. Quando alcançaram uma porta lateral, Reyna olhou rapidamente para trás. Dezenas de lobos, escuros como os que ela enfrentara em Portugal, jorraram para dentro do armazém. Amazonas corriam para interceptá-los. No vão da porta de metal, tomado pela fumaça, amontoavam-se os corpos das que não haviam resistido: Celyn, Naomi, Phoebe. A Caçadora ruiva que tinha vivido por milhares de anos agora jazia imóvel, os olhos arregalados em choque, uma flecha negra imensa cravada em sua barriga. A amazona Kinzie avançou, grandes facas reluzindo em suas mãos. Saltando os corpos, ela mergulhou na fumaça. Hylla puxou Reyna. As duas cruzaram a porta e puseram-se a correr, juntas. — Todas elas vão morrer! — gritou Reyna. — Tem que haver alguma coisa que… — Não seja estúpida, minha irmã! — Lágrimas brilhavam nos olhos de Hylla. — Órion foi mais esperto que nós. Ele transformou a emboscada em um massacre. Só o que podemos fazer agora é segurá-lo enquanto você foge. Você precisa levar aquela estátua para os gregos e derrotar Gaia! Guiando Reyna, ela subiu um lance de escadas. As duas seguiram por um labirinto de corredores, até chegarem a um vestiário. Lá, viram-se cara a cara com um grande lobo, mas, antes que a fera pudesse sequer rosnar, Hylla lhe deu um soco bem entre os olhos. O lobo desabou. — Por aqui. — Hylla correu para a fileira de armários mais próxima. — Suas armas estão aí dentro. Depressa.
Reyna pegou a adaga, o gládio e a mochila. Depois, ainda seguindo a irmã, subiu por uma escada de metal em caracol. A escada terminava no teto do vestiário. Hylla se virou e olhou com uma expressão muito séria para a irmã. — Não vou ter tempo de explicar isto, ok? Segure firme. Fique bem junto de mim. Reyna não sabia o que poderia ser pior do que a cena que elas tinham acabado de deixar para trás. Então Hylla abriu uma portinhola de alçapão, que levou as duas até… sua antiga casa. A sala estava exatamente como Reyna se lembrava. A luz entrava por claraboias opacas posicionadas nos tetos altos. As paredes imaculadamente brancas não tinham nenhum adorno. A mobília era de carvalho, aço e couro branco, totalmente impessoal e masculina. Sacadas se projetavam nas duas extremidades do cômodo, o que sempre fizera Reyna sentir como se estivesse sendo observada (porque, afinal, muitas vezes não era apenas uma sensação). O pai das duas tinha feito de tudo para dar um visual moderno à centenária hacienda. Tinha instalado as claraboias, pintara tudo de branco para tornar o ambiente mais claro e arejado. Mas só conseguira fazer com que o lugar parecesse um cadáver bem-arrumado em um terno novo. A portinhola se abriu no interior da enorme lareira. Reyna nunca tinha entendido por que eles tinham uma lareira em Porto Rico, mas ela e Hylla fingiam que era um esconderijo secreto; onde o pai não as encontraria. Imaginavam que, ao entrar ali, viajariam para outros lugares. Agora, Hylla fazia essa fantasia se tornar realidade. Ela havia ligado seu esconderijo subterrâneo ao lar de sua infância. — Hylla… — Já falei que não temos tempo. — Mas… — A casa é minha agora. Passei para o meu nome. — Você fez o quê? — Eu estava cansada de fugir do passado, Reyna. Resolvi recuperá-lo. Reyna a encarava, pasma. Um celular ou uma mala perdida no aeroporto, esse tipo de coisa dava para recuperar. Até um depósito de lixo tóxico. Mas aquela casa, e o que havia acontecido ali? Não tinha como recuperar aquilo. — Irmã — disse Hylla —, estamos perdendo tempo. Você vem ou não? Reyna olhou para as sacadas, quase esperando que formas luminosas tremeluzissem nos gradis. — Você os tem visto? — Alguns. — E papai?
— Claro que não — respondeu Hylla com aspereza. — Você sabe que ele nunca mais vai voltar. — Não sei nada sobre isso. Como você pôde voltar? Por quê? — Para entender! — gritou Hylla. — Você não quer saber o que aconteceu com ele? — Não! Não há nada para se aprender com fantasmas, Hylla. Você, mais que todo mundo, deveria saber que… — Estou indo — disse Hylla. — Seus amigos estão a alguns quarteirões daqui. Você vem comigo ou eu digo a eles que você morreu porque ficou perdida no passado? — Não fui eu que me apossei deste lugar! Hylla girou nos calcanhares e saiu pisando forte, cruzando a porta da frente. Reyna olhou para o cômodo mais uma vez. Ela se lembrava de seu último dia ali, quando tinha dez anos. Quase podia ouvir os gritos de raiva do pai ecoando pela sala, o coral de almas lamuriantes nas sacadas internas. Ela correu para a porta, mergulhando no agradável calor do sol da tarde. A rua não havia mudado: as casas em tons pastel, todas caindo aos pedaços; as pedras azuladas do calçamento; dezenas de gatos dormindo embaixo dos carros ou à sombra das bananeiras. Reyna teria sentido nostalgia naquele momento… não fosse por sua irmã estar, a poucos metros dela, cara a cara com Órion. — Ora, ora. — O gigante sorriu. — As duas filhas de Belona juntas. Excelente!
* * *
Reyna tomou aquilo como uma ofensa pessoal. Ela criara uma imagem de Órion como um demônio feio e enorme, ainda pior que Polibotes, o gigante que havia atacado o Acampamento Júpiter. Em vez disso, Órion podia passar por humano; um humano alto, musculoso e bonito. Sua pele era da cor de pão torrado. Tinha cabelo preto, raspado dos lados e espetado em cima. Com a calça e o gibão de couro, ambos em estilo medieval, a faca de caça, o arco e a aljava, ele parecia o irmão malvado e bonitão de Robin Hood. Só os olhos é que estragavam. À primeira vista, ele parecia estar usando óculos militares de visão noturna. Depois Reyna percebeu que não eram óculos. Eram criações de Hefesto: olhos mecânicos de bronze engastados nas enormes órbitas do gigante. Anéis de foco, como os das câmeras manuais, giraram e fizeram clique quando ele olhou para Reyna. Miras a laser mudaram de vermelho para verde. Reyna teve a desagradável sensação de que ele estava
vendo muito mais que sua forma: sua temperatura corporal, seu ritmo cardíaco, seu nível de medo. Ele segurava junto ao corpo um grande arco de metal e madeira quase tão sofisticado quanto seus olhos. Eram cordas dando inúmeras voltas por uma série de polias que pareciam rodas de trem em miniatura. A empunhadura era de bronze polido, cheia de displays e botões. Ele não tinha nenhuma flecha armada. Não fazia nenhum movimento ameaçador. Possuía um sorriso tão fascinante que Reyna quase esqueceu que aquele sujeito ali era um inimigo, alguém que havia matado pelo menos meia dúzia de Caçadoras e amazonas para chegar até ali. Hylla sacou suas facas. — Reyna, vá embora daqui. Eu dou um jeito nesse monstro. Órion deu uma risadinha. — Hylla Duas Vezes Mortal, você é corajosa. Suas tenentes também eram. E agora elas estão mortas. Hylla deu um passo à frente. Reyna segurou o braço da irmã. — Órion! — chamou ela. — Suas mãos já estão bem sujas de sangue de amazonas. Talvez seja a hora de experimentar uma romana. Com um clique, os olhos do gigante se dilataram. Pontos de laser vermelho dançaram pelo peitoral de Reyna. — Ah, a jovem pretora. Admito que estava curioso. Antes de matá-la, talvez você possa me esclarecer: por que uma filha de Roma está se esforçando tanto pelos gregos? Você deixou seu posto, abandonou sua legião, tornou-se uma desertora… em troca de quê? Jason Grace a desprezou. Percy Jackson também. Não acha que já foi bastante… qual é a palavra… rejeitada? Os ouvidos de Reyna zumbiram. Ela se lembrou do aviso de Afrodite, dois anos antes, em Charleston: Você não vai encontrar amor onde deseja ou espera. Nenhum semideus vai curar seu coração. Ela se obrigou a sustentar o olhar do gigante. — Eu não me defino pelos garotos que podem ou não gostar de mim. — Bravas palavras. — O sorriso do gigante era de enfurecer. — Mas você não é diferente das amazonas, nem das Caçadoras, nem da própria Ártemis. Fala de força e independência, mas, assim que encara um homem de verdadeira força, sua confiança desmorona. Você se sente ameaçada por meu grande poder, e porque esse poder atrai você. Então fuja ou se renda, ou você vai morrer. Hylla livrou o braço da mão de Reyna. — Vou matar você, gigante. Vou cortá-lo em pedacinhos tão pequenos… — Hylla — interrompeu Reyna. Ela não se importava com o que pudesse acontecer, só sabia que não podia ver a irmã morrer. Precisava atrair a atenção do gigante para si mesma. — Você diz ser forte, Órion. No entanto, não
conseguiu manter os votos da Caçada. Morreu rejeitado. E agora fica de paumandado da sua mãe. Então me explique, de que forma exatamente você é ameaçador? Órion trincou os dentes. Seu sorriso ficou mais tenso e mais frio. — Boa tentativa — reconheceu ele. — Você está tentando me desestabilizar. Acha que, se conseguir ganhar tempo com essa conversinha, seus reforços vão chegar para salvá-las. Infelizmente, pretora, não há reforços. Queimei o refúgio subterrâneo de sua irmã com seu próprio fogo grego. Ninguém sobreviveu. Com um rugido, Hylla se lançou à frente e atacou. Órion a acertou com a extremidade do arco, lançando-a para trás. Hylla caiu na rua. Órion puxou uma flecha da aljava. — Pare! — gritou Reyna. Seu coração martelava em seu peito. Ela precisava encontrar a fraqueza do gigante. O Barrachina ficava a poucos quarteirões dali. Se as duas conseguissem chegar até lá, talvez Nico pudesse transportá-los. E as Caçadoras não podiam estar todas mortas… Elas estavam patrulhando o perímetro inteiro da cidade antiga. Com certeza ainda havia algumas delas por aí… — Órion, você perguntou o que me motiva. — Ela manteve a voz firme. — Não quer a resposta antes de nos matar? Aposto que fica intrigado em ver as mulheres insistindo em rejeitar um cara grande e bonitão como você. O gigante armou a flecha no arco. — Agora você me confundiu com Narciso. Não vai conseguir me comprar com lisonjas. — Claro que não — disse Reyna. Hylla se levantou com uma expressão assassina no rosto, mas Reyna tentou expandir seus sentidos, transmitir à irmã o tipo mais difícil de força: o autocontrole. — Mas mesmo assim… você deve ficar furioso. Primeiro, levou um fora de uma princesa mortal… — Mérope — disse Órion, em tom de escárnio. — Garota bonita, mas burra. Se tivesse o mínimo de bom senso, teria entendido que eu estava apenas flertando com ela. — Já sei — disse Reyna. — Ela gritou e chamou os guardas. — Na hora, eu estava desarmado. Ninguém leva o arco e as facas quando está cortejando uma princesa. Os guardas me prenderam com facilidade. O pai dela, o rei, me cegou e me exilou. Logo acima da cabeça de Reyna, uma pedrinha rolou sobre um telhado de telhas de cerâmica. Talvez fosse sua imaginação, mas ela se lembrava daquele som das muitas noites em que Hylla fugia do quarto trancado e subia pelo telhado para ver como ela estava. Foi preciso toda a sua força de vontade para não olhar para cima.
— Mas você agora tem olhos novos — disse ela ao gigante. — Hefesto ficou com pena de você. — Sim… — O olhar de Órion perdeu o foco. Reyna sabia disso porque os pontos das miras a laser desapareceram do peito dela. — Fui parar em Delos, onde conheci Ártemis. Tem ideia de como é estranho conhecer sua arqui-inimiga e acabar atraído por ela? — Ele riu. — Ora, o que estou dizendo, pretora? É claro que você sabe. Deve sentir pelos gregos o que eu senti por Ártemis, um fascínio culpado, uma admiração que se transforma em amor. Mas amor demais é como veneno, ainda mais quando ele não é correspondido. Se você ainda não entendeu isso, Reyna Ramírez-Arellano, vai entender em breve. Hylla avançou, mancando, as facas ainda nas mãos. — Irmã, por que está deixando esse animal falar? Vamos acabar com ele. — Como se você fosse conseguir — refletiu Órion. — Muitos tentaram. Nem o próprio irmão de Ártemis, Apolo, conseguiu me matar, nos tempos antigos. Teve que trapacear para se livrar de mim. — Ele não gostava que você andasse com a irmã dele? Reyna ficou atenta, ansiosa por ouvir mais sons dos telhados, mas não ouviu nada. — Apolo era ciumento. — Os dedos do gigante se fecharam em torno da corda do arco. Órion a tensionou, acionando as engrenagens e polias da arma. — Ele tinha medo de que eu seduzisse Ártemis e a fizesse se esquecer de seus votos de castidade. Quem sabe? Sem a interferência de Apolo, talvez acontecesse isso mesmo. Ela teria sido mais feliz. — Como sua criada? — gritou Hylla com raiva. — Sua mulherzinha obediente? — Isso agora não importa — disse Órion. — Apolo me infligiu a loucura, o desejo de matar todos os animais da terra. Abati milhares antes que minha mãe, Gaia, finalmente pusesse um fim a meu acesso de fúria. Ela invocou um escorpião gigante da terra, que me matou com uma picada nas costas. Sou grato a ela por isso. — Você é grato a Gaia — disse Reyna — por matar você. As pupilas mecânicas de Órion se fecharam em espiral, virando minúsculos pontos reluzentes. — Minha mãe me mostrou a verdade. Eu estava lutando contra minha própria natureza, o que não me trouxe nada além de infelicidade. Os gigantes não nasceram para amar mortais nem deuses. Gaia me ajudou a aceitar o que sou. No fim, todos temos que voltar para casa, pretora. Temos que abraçar nosso passado, por mais amargo e sombrio que ele seja. — Ele apontou com o queixo para a villa atrás de Reyna. — Exatamente como você fez. Você tem sua própria cota de fantasmas, não é mesmo?
Reyna sacou a espada. Não há nada para se aprender com fantasmas, dissera ela à irmã. Talvez com gigantes também não. — Esta não é minha casa — disse ela. — E nós não somos iguais. — Eu já vi a verdade. — O gigante falava como se realmente quisesse ajudar. — Você se agarra à fantasia de que pode fazer seus inimigos a amarem. Não pode, Reyna. Não há amor para você no Acampamento Meio-Sangue. As palavras de Afrodite ecoaram em sua cabeça: Nenhum semideus vai curar seu coração. Reyna observava o belo e cruel rosto do gigante, com seus olhos mecânicos brilhantes. Por um momento terrível, ela entendeu por que mesmo uma deusa, até uma virgem eterna como Ártemis, se deixaria levar pelas palavras melosas de Órion. — Eu podia ter matado você vinte vezes agora mesmo — disse o gigante. — Você se dá conta disso, não? Quero poupá-la, e isso só depende de você. Só preciso de um pequeno voto de confiança. Diga-me onde está a estátua. Reyna quase deixou a espada cair. Onde está a estátua… Órion não tinha localizado a Atena Partenos. A camuflagem das Caçadoras tinha funcionado. Durante todo aquele tempo, o gigante estava seguindo o rastro de Reyna, o que significava que mesmo se ela morresse agora, Nico e o treinador Hedge estariam a salvo. A missão não estava perdida. Ela sentiu como se tivesse tirado uma armadura de cinquenta quilos. Deu uma risada. O som ecoou pela rua de pedras. — Phoebe foi mais esperta que você — disse ela. — Ao seguir meu rastro, você perdeu a estátua. Agora meus amigos estão livres para prosseguir com a missão. Órion franziu o lábio. — Ah, mas eu vou encontrá-los, pretora. Depois que acabar meu assunto com você. — Então — falou Reyna — acho que vamos ter que acabar com você primeiro. — Essa é a minha irmãzinha — disse Hylla com orgulho. E as duas atacaram juntas.
* * *
O disparo do gigante teria perfurado Reyna, mas Hylla foi mais rápida: interceptou a flecha em pleno ar e então se lançou sobre Órion enquanto Reyna tentava golpeá-lo no peito. Mas o gigante interceptou os dois ataques com o arco. Ele chutou Hylla para trás, fazendo-a cair sobre o capô de um Chevrolet velho. Meia dúzia de gatos saiu correndo de sob o carro. O gigante então girou,
repentinamente com uma adaga na mão, e Reyna por pouco não conseguiu desviar do golpe. Ela atacou de novo, cortando o gibão de couro de Órion, mas mal conseguiu arranhar seu peito. — Você luta bem, pretora — reconheceu ele. — Mas não o suficiente para sobreviver. Reyna desejou que sua espada se estendesse em um pilum. — Minha morte não significa nada. Se Nico e Hedge pudessem prosseguir com a missão em paz, ela estava totalmente disposta a morrer lutando. Mas primeiro pretendia machucar tanto aquele gigante que ele jamais esqueceria o nome dela. — E a morte da sua irmã? — perguntou Órion. — Significa alguma coisa? Antes mesmo que Reyna pudesse piscar, ele lançou uma flecha na direção do peito de sua irmã. Um grito se formou na garganta de Reyna, mas, sabe-se lá como, Hylla pegou a flecha. Hylla desceu do capô do carro e quebrou a flecha com uma das mãos. — Eu sou a rainha das amazonas, seu idiota. Uso o cinto real. Com a força que ele me transmite, vou vingar as amazonas que você matou hoje. Hylla agarrou o para-choque dianteiro do Chevrolet e arremessou o carro inteiro na direção de Órion com tanta facilidade como se estivessem em uma piscina e ela jogasse água na cabeça dele. O Chevrolet esmagou Órion contra a parede de uma casa. O estuque rachou. Uma bananeira tombou. Mais gatos saíram correndo. Reyna foi correndo na direção dos destroços, mas o gigante, urrando, empurrou o carro para longe. — Vocês vão morrer juntas! — prometeu ele. Duas flechas surgiram armadas em seu arco, a corda já totalmente tensionada. Nesse instante, os telhados explodiram com um estrondo. — MORRA! Saltando para a rua, Gleeson Hedge surgiu bem atrás de Órion. Ele acertou a cabeça do gigante com tanta força que o taco de beisebol, da famosa marca Louisville Slugger, partiu-se ao meio. Ao mesmo tempo, Nico di Angelo surgiu na frente do gigante. O menino cortou a corda do arco de Órion com sua espada estígia, fazendo polias e engrenagens rangerem e zunirem e a corda se recolher com centenas de quilos de força, acertando Órion no nariz como um chicote de couro. — AAAAHHHHHHH! Órion cambaleou e deixou o arco cair. Caçadoras de Ártemis surgiram nos telhados, enchendo Órion de flechas de prata até deixá-lo parecido com um porco-espinho brilhante. Ele foi
cambaleando às cegas, segurando o nariz; icor dourado escorria por seu rosto. Alguém segurou Reyna pelo braço. — Vamos embora! Thalia Grace tinha voltado. — Vá com ela! — ordenou Hylla. Reyna sentia como se seu coração estivesse se despedaçando. — Irmã… — Você precisa ir! AGORA! — Era exatamente o que Hylla tinha lhe dito seis anos antes, na noite em que fugiram da casa do pai. — Vou segurar Órion o máximo possível. Hylla agarrou uma das pernas do gigante, desequilibrou-o e o arremessou longe. Órion foi parar a vários quarteirões dali, para consternação geral de mais dezenas de gatos. As Caçadoras partiram atrás dele pelos telhados, disparando flechas que explodiam em fogo grego, envolvendo o gigante em chamas. — Sua irmã tem razão — disse Thalia. — Você precisa ir. Nico e Hedge se juntaram a ela, ambos exibindo um ar de plena satisfação consigo mesmos. Aparentemente, tinham feito algumas compras na lojinha do Barrachina, pois, em vez das camisas sujas e rasgadas, usavam agora espalhafatosos modelos com estampa tropical. — Nico — disse Reyna —, você está… — Não quero ouvir nem uma palavra sobre a camisa — avisou ele. — Nem uma palavra. — Por que vocês vieram atrás de mim? — perguntou ela. — Vocês podiam ter ido embora ilesos. O gigante estava seguindo o meu rastro. Se tivessem simplesmente… — De nada, docinho — resmungou o treinador. — Não podíamos ir embora sem você. Agora vamos dar o fora daqui… Ele então olhou por cima dos ombros de Reyna e perdeu a voz. Reyna se virou. Atrás dela, as sacadas do segundo andar de sua antiga casa estavam cheias de figuras reluzentes: um homem com uma barba bifurcada e armadura enferrujada de colonizador; outro homem barbado, em roupas de pirata do século XVIII, com a camisa salpicada de furos de tiro; uma mulher com uma camisola ensanguentada; um capitão da Marinha americana usando uniforme de gala; e mais uma dúzia de outros fantasmas que Reyna conhecia de sua infância, todos a encarando acusadoramente. As vozes deles sussurravam em sua mente: Traidora. Assassina. — Não… Reyna sentiu como se tivesse dez anos outra vez. Queria se encolher no canto do quarto e tapar os ouvidos para fazer as acusações sumirem.
— Reyna, quem são eles? — perguntou Nico, segurando seu braço. — O que…? — Não consigo — suplicou ela. — N-não consigo. Ela havia passado muitos anos construindo uma represa dentro de si mesma para conter seus medos. Agora a represa tinha se rompido, levando embora suas forças. — Está tudo bem. — Nico olhou atentamente para as sacadas. Os fantasmas não estavam mais lá, mas Reyna sabia que eles não tinham ido embora de verdade. Eles nunca iam. — Vamos embora daqui logo, logo — prometeu Nico. — Vamos andando. Thalia pegou o outro braço de Reyna, e os quatro foram correndo na direção do restaurante, da Atena Partenos. Às suas costas, Reyna ouvia urros de dor de Órion e explosões de fogo grego. E, em sua mente, as vozes ainda sussurravam: Assassina. Traidora. Você nunca conseguirá fugir de seu crime.
XXV
JASON
JASON GRACE SE ERGUEU DE seu leito de morte só para se afogar com o restante da tripulação. O navio balançava com tanta violência que ele teve que ficar de quatro para sair da enfermaria. O casco rangia. O motor bramia como um búfalo. Em meio ao uivo do vento, a deusa Nice gritava dos estábulos: — VOCÊ PODE FAZER MELHOR DO QUE ISSO, TEMPESTADE! QUERO VER CENTO E DEZ POR CENTO! Jason subiu até o andar das cabines. Suas pernas tremiam. Sua cabeça girava. O navio guinou para bombordo, jogando-o contra a parede oposta. Hazel saiu cambaleando de sua cabine, segurando a barriga. — Eu odeio o mar! Quando ela o viu, seus olhos se arregalaram. — O que você está fazendo fora da cama? — Eu vou lá em cima! — insistiu ele. — Posso ajudar! Hazel fez menção de argumentar. Então o navio tombou para estibordo, e ela foi trôpega na direção do banheiro, a mão na boca. Jason teve dificuldade para chegar até a escada. Ele não saía da cama havia um dia e meio, desde que as garotas tinham voltado de Esparta e ele desmaiara inesperadamente. Seus músculos protestavam contra o esforço. Suas entranhas doíam como se Michael Varus estivesse atrás dele, golpeando-o repetidas vezes e gritando: Morra como romano! Morra como romano! Jason ignorou a dor. Estava cansado de ter pessoas cuidando dele, sussurrando quanto estavam preocupadas. Estava cansado de sonhar que virava churrasquinho. Ele já passara tempo suficiente cuidando da ferida em sua barriga. Ou aquilo ia matá-lo, ou não. Ele não ia ficar esperando que o ferimento se decidisse. Precisava ajudar seus amigos. De algum modo ele conseguiu chegar ao convés. O que viu lá o deixou quase tão enjoado quanto Hazel. Uma onda do tamanho de um arranha-céu arrebentou sobre a proa, carregando as balistas e metade da amurada a bombordo para o mar. As velas foram rasgadas em pedaços. Raios lampejavam por todos os lados, atingindo o mar como refletores elétricos. Uma chuva forte fustigou o rosto de Jason. As nuvens estavam tão escuras que ele honestamente não sabia dizer se era dia ou noite. A tripulação fazia o possível… o que não era muito.
Leo tinha se prendido ao painel de controle com um rolo de cabo elástico. A princípio, aquilo devia ter parecido uma boa ideia, mas toda vez que uma onda quebrava, ele era arrastado e depois jogado de volta sobre o painel como se tivesse levado uma raquetada. Piper e Annabeth tentavam salvar o cordame. Desde Esparta, elas tinham se tornado uma dupla e tanto, capazes de trabalhar juntas sem sequer trocar uma palavra — o que era ótimo, já que não conseguiriam ouvir uma à outra no meio da tempestade. Frank — pelo menos Jason imaginava que fosse Frank — tinha virado um gorila. Ele estava pendurado de cabeça para baixo na amurada a estibordo, usando sua força enorme e seus pés flexíveis para se segurar enquanto soltava alguns remos quebrados. Aparentemente eles estavam tentando fazer o navio decolar, mas, mesmo que conseguissem levantar voo, Jason não tinha certeza de que o céu seria mais seguro. Até Festus, a figura de proa, tentava ajudar. Ele cuspia fogo na chuva, apesar de isso não parecer desanimar a tempestade. Só Percy tinha algum sucesso. Ele estava de pé junto ao mastro principal com os braços abertos como se estivesse sobre uma corda bamba. Toda vez que o navio inclinava, ele empurrava na direção oposta, e o casco se estabilizava. Ele invocava punhos gigantes de água do oceano para golpear as ondas maiores antes que elas atingissem o convés, fazendo parecer que o oceano estava batendo repetidas vezes na própria cara. Com a tempestade forte daquele jeito, Jason percebeu que o navio já teria virado ou sido feito em pedaços se Percy não estivesse ali. Jason foi com dificuldade até o mastro. Leo gritou alguma coisa, provavelmente “Volte lá para baixo!”, mas Jason apenas acenou de volta. Ele chegou perto de Percy e tocou seu ombro. Percy balançou a cabeça como quem dá oi. Não pareceu chocado nem mandou que Jason voltasse para a enfermaria, o que agradou a Jason. Se Percy se concentrasse, podia ficar seco, mas obviamente ele tinha coisas mais importantes com que se preocupar naquele momento. Seu cabelo escuro estava grudado no rosto. Sua roupa, encharcada e rasgada. Ele gritou algo no ouvido de Jason, mas o garoto só conseguiu entender algumas palavras: — LÁ EMBAIXO… AQUELA COISA… PARAR! Percy apontou para a amurada. — Tem alguma coisa provocando a tempestade? — perguntou Jason. Percy sorriu e deu tapinhas nas orelhas. Ele claramente não conseguia ouvir nem uma palavra. Fez um gesto com as mãos como se estivesse mergulhando do barco, depois cutucou Jason no peito. — Quer que eu vá?
Jason se sentiu um pouco orgulhoso. O resto da tripulação o estava tratando como se ele fosse de cristal, mas Percy… bem, ele parecia concluir que, se Jason estava no convés, estava pronto para a ação. — É pra já! — gritou Jason. — Mas não posso respirar embaixo d’água! Percy deu de ombros. Desculpe, não consigo ouvir você. Então correu para a amurada a estibordo, empurrou outra onda para longe do navio e mergulhou no mar. Jason olhou para Piper e Annabeth. As duas se agarraram ao cordame e olharam fixamente para ele, chocadas. A expressão no rosto de Piper dizia Ficou maluco? Ele levantou o polegar para elas, em parte para garantir que ia ficar bem (coisa da qual não tinha certeza), em parte para concordar que, de fato, ele era maluco (coisa da qual ele tinha certeza). Jason caminhou com dificuldade até a amurada, onde parou e avaliou a tempestade. Os ventos sopravam, furiosos. As nuvens ribombavam. Jason sentiu um exército inteiro de venti girando acima dele, raivosos e agitados demais para assumir uma forma física, mas famintos por destruição. Ele ergueu o braço e invocou uma corda de vento. Jason aprendera havia muito tempo que a melhor maneira de controlar uma multidão de valentões era pegar o cara mais poderoso e perverso e submetê-lo à força. Depois os outros seguiriam. Ele jogou sua corda de vento, à procura do ventus mais forte e encrenqueiro da tempestade. Laçou um pedaço especialmente maldoso de nuvem carregada de tempestade e o puxou. — Você vai me ajudar hoje. Uivando em protesto, o ventus o cercou. A tormenta acima do navio pareceu arrefecer um pouco, como se os outros venti estivessem pensando: Droga. Esse cara está falando sério. Jason levitou do convés envolto em seu próprio furacão em miniatura. Girando como um saca-rolha, mergulhou na água.
* * *
Jason achou que as coisas estariam mais calmas debaixo d’água. Ledo engano. É claro que isso podia estar relacionado com a forma como ele foi parar ali. Descer de ciclone até o fundo do mar gerou uma turbulência inesperada. Ele afundava e guinava sem nenhuma lógica aparente; seus ouvidos estalavam, e seu estômago ficou pressionado contra as costelas.
Finalmente ele parou ao lado de Percy, que estava de pé na beira de um abismo. — E aí? — cumprimentou ele. Jason podia ouvi-lo perfeitamente, apesar de não saber como. — O que está acontecendo? Em seu casulo de ventus, sua voz soava como se ele estivesse falando através de um aspirador de pó. Percy apontou para o vazio. — Espere só. Três segundos depois, um facho de luz verde varreu a escuridão como um refletor, depois desapareceu. — Tem alguma coisa lá embaixo — disse Percy. — Instigando esta tempestade. — Ele se virou e avaliou o furacão de Jason. — Belo traje. Você tem como mantê-lo se mergulharmos mais fundo? — Não tenho ideia de como estou fazendo isso — disse Jason. — Ok. Bem, tente não desmaiar. — Cale a boca, Jackson. Percy sorriu. — Vamos ver o que tem lá embaixo. Eles afundaram tanto que Jason não conseguia ver nada além de Percy nadando ao seu lado sob a luz fraca de suas espadas de ouro e bronze. De vez em quando, o holofote verde se projetava para cima. Percy nadava direto em sua direção. O ventus de Jason crepitava e rugia em seu esforço para se libertar. O cheiro de ozônio o estava deixando tonto, mas ele manteve seu casulo de ar intacto. Por fim, a escuridão a sua volta diminuiu. Faixas brancas de luminosidade suave, como grupos de águas-vivas, flutuavam diante de seus olhos. Conforme se aproximava mais do fundo do mar, ele percebeu que as faixas eram campos reluzentes de algas que cercavam as ruínas de um palácio. Montes de lodo cobriam os pátios vazios com piso de abalone. Colunas gregas cheias de cracas adentravam as sombras. No centro da construção erguia-se uma fortificação maior que a Estação Grand Central, com paredes incrustadas de pérolas e a cobertura dourada da cúpula quebrada e aberta como um ovo. — Atlântida? — perguntou Jason. — Ela é um mito — afirmou Percy. — Hum… Mas nós não lidamos com mitos? — Não, estou dizendo que é um mito inventado. Tipo, não é um verdadeiro mito real. — Dá para perceber por que Annabeth é o cérebro desta missão. — Cale a boca, Grace. Eles entraram flutuando pela abertura na cúpula e penetraram na escuridão.
— Este lugar me é familiar. — A voz de Percy ficou tensa. — Quase como se eu já tivesse estado aqui… O holofote verde piscou diretamente abaixo deles, cegando Jason. Ele despencou como uma pedra, caindo sobre o chão liso de mármore. Quando sua visão clareou, ele viu que os dois não estavam sozinhos. À sua frente havia uma mulher de seis metros de altura em um vestido verde ondulante, preso na cintura por um cinto de abalone. Sua pele era de um branco luminoso como os campos de alga. Seu cabelo balançava e reluzia como tentáculos de águas-vivas. O rosto dela era belo, mas sobrenatural: olhos brilhantes demais, traços delicados demais, sorriso frio demais, como se ela tivesse estudado o sorriso dos humanos mas não dominasse bem essa arte. Suas mãos repousavam sobre um disco de metal verde polido, de cerca de um metro e oitenta de diâmetro, apoiado sobre um tripé de bronze. Aquilo lembrou a Jason um tambor de aço que ele uma vez tinha visto um artista de rua tocar no Embarcadero, em São Francisco. A mulher girou o disco de metal como se fosse um volante. Um facho de luz verde se projetou para o alto, agitando a água e abalando as paredes do palácio antigo. Pedaços do teto abobadado se soltaram e desabaram em câmera lenta. — Você está provocando a tempestade — disse Jason. — Estou mesmo. A voz da mulher era melodiosa e ao mesmo tempo tinha uma ressonância estranha, como se ultrapassasse o alcance da audição humana. Jason sentiu uma pressão entre os olhos. Parecia que seus seios da face iam explodir. — Está bem, eu vou começar — disse Percy. — Quem é você, e o que você quer? A mulher virou-se para ele. — Ora, sou sua irmã, Perseu Jackson. E queria conhecê-lo antes de você morrer.
XXVI
JASON
JASON TINHA DUAS OPÇÕES: LUTAR ou conversar. Normalmente, ao se deparar com uma mulher assustadora de seis metros de altura e cabelo de água-viva, ele teria optado por lutar. Mas hesitou quando ela chamou Percy de irmão. — Percy, você conhece essa… moça? Percy balançou a cabeça em negativa. — Bem, você não se parece com minha mãe, por isso imagino que sejamos parentes pelo lado divino. Você é filha de Poseidon, senhorita…? A mulher pálida passou as unhas no disco de metal, produzindo um som agudo que parecia o de uma baleia sendo torturada. — Ninguém me conhece. — Ela suspirou. — Por que eu deveria supor que meu próprio irmão me reconheceria? Eu sou Cimopoleia! Percy e Jason se entreolharam. — Então… — disse Percy. — Vamos chamá-la de Leia. E você seria, hum, uma nereida? Uma deusa menor? — Menor? — Ele quer dizer que você não tem idade para beber! — disparou Jason. — Porque obviamente é muito jovem e bonita! Percy olhou rapidamente para ele: Mandou bem. A deusa voltou toda a sua atenção para Jason. Ela traçou sua silhueta na água com o dedo indicador. Ele sentiu o espírito do ar capturado se agitando a sua volta, como se estivessem lhe fazendo cócegas. — Jason Grace — disse a deusa. — Filho de Júpiter. — É. Sou amigo de Percy. Leia semicerrou os olhos. — Então é verdade… Estamos em um momento de amizades estranhas e inimigos inesperados. Os romanos nunca me cultuaram. Para eles, eu era um medo sem nome, um sinal da fúria de Netuno. Eles nunca veneraram Cimopoleia, a deusa das tempestades marinhas violentas! Ela girou o disco. Outro raio de luz verde piscou para o alto, agitando a água e provocando um estrondo nas ruínas. — Ah, sim — disse Percy. — Os romanos não são bons em navegação. Eles tinham, tipo, um barco a remo. Que eu afundei. Por falar em tempestades violentas, você está fazendo um trabalho de primeira lá em cima. — Obrigada — disse Leia.
— O problema é que nosso navio está preso nela, e meio que está sendo feito em pedaços. Tenho certeza de que não era sua intenção… — Ah, era sim. — Entendo. — Percy fez uma careta. — Bem, isso é muito chato. Imagino, então, que você não vai parar, nem que a gente peça com jeitinho? — Não — concordou a deusa. — Agora mesmo o navio está quase afundando. Estou impressionada que tenha aguentado tanto tempo. Um belo trabalho de construção. Voaram fagulhas dos braços de Jason para dentro do furacão. Ele pensou em Piper e nos outros tentando desesperadamente manter o navio inteiro. Ao descer até ali, Percy e ele os tinham deixado indefesos. Eles precisavam agir rápido. Além disso, o ar de Jason estava ficando saturado. Ele não sabia se era possível esgotar um ventus respirando-o, mas, se ele ia ter que lutar, era melhor encarar Leia antes de ficar sem oxigênio. O problema era que… combater uma deusa em seu próprio território não ia ser fácil. E mesmo se conseguissem vencê-la, não havia garantia de que a tempestade terminaria. — Então… Leia — disse ele. — O que poderíamos fazer para você mudar de ideia e liberar nosso barco? Leia deu aquele sorriso sobrenatural e assustador. — Filho de Júpiter, você sabe onde está? Jason ficou tentado a responder: embaixo d’água. — Você está falando destas ruínas? Um palácio antigo? — Isso mesmo — disse Leia. — O palácio original de Poseidon. Percy estalou os dedos. — Foi por isso que eu o reconheci. O palácio novo do nosso pai no Atlântico é parecido com este. — Não tenho como saber — disse Leia. — Nunca sou convidada para ver meus pais. Só posso andar pelas ruínas de seus antigos domínios. Eles acham minha presença… incômoda. Ela tornou a girar o disco. Toda a parede dos fundos da construção desmoronou, levantando no interior da câmara uma nuvem de lodo e algas. Felizmente, o ventus agiu como um ventilador, soprando os destroços para longe do rosto de Jason. — Você, incômoda? — perguntou Jason. — Não sou bem-vinda na corte do meu pai — disse a deusa. — Ele limita meus poderes. Essa tempestade lá em cima? Eu não me divirto assim há séculos, e isso é apenas uma pequena amostra do que posso fazer! — Uma pequena amostra já é muita coisa — disse Percy. — Enfim, e quanto à pergunta de Jason sobre você mudar de ideia…
— Meu pai chegou até a me casar para se livrar de mim — continuou Leia. — Sem minha permissão, ele me ofereceu como troféu para Briareu, um centímano… Uma recompensa por seu apoio na guerra contra Cronos, éons atrás. Percy abriu um sorriso. — Ei, eu conheço Briareu. Ele é meu amigo! Eu o libertei de Alcatraz. — É, eu sei. — Os olhos de Leia brilharam friamente. — Eu odeio meu marido. Não fiquei nada satisfeita em tê-lo de volta. — Ah. Então… Briareu está por aqui? — perguntou Percy, esperançoso. O riso de Leia lembrou o silvo dos golfinhos. — Ele está no Monte Olimpo, em Nova York, reforçando as defesas dos deuses. Não que isso vá fazer diferença. O que estou dizendo, meu caro irmão, é que Poseidon nunca me tratou com justiça. Gosto de vir aqui, ao velho palácio de meu pai, porque muito me agrada contemplar sua obra em ruínas. Um dia, em breve, seu novo palácio vai ficar parecido com este, e então todos os mares vão viver em eterna fúria. Percy olhou para Jason. — Essa é a parte em que ela nos diz que está trabalhando para Gaia. — É — concordou Jason. — E que a Mãe Terra prometeu a ela um ótimo acordo depois que os deuses forem destruídos e blá-blá-blá. — Ele se virou para Leia. — Você sabe que Gaia não mantém suas promessas, certo? Ela está apenas usando você, assim como está usando os gigantes. — Estou tocada com sua preocupação — disse Leia. — Já os deuses do Olimpo nunca me usaram, não é? Percy estendeu as mãos. — Pelo menos os olimpianos estão tentando. Depois da última guerra contra os titãs, eles passaram a dar mais atenção aos outros deuses. Muitos deles agora têm chalés no Acampamento Meio-Sangue: Hécate, Hades, Hebe, Hipnos… ah, e provavelmente alguns outros que não começam com H. Fazemos oferendas a eles em todas as refeições, estandartes legais, além de reconhecimento especial na programação de verão… — E eu recebi oferendas assim? — perguntou a deusa. — Bem… não. Não sabíamos que você existia. Mas… — Então poupe suas palavras, irmão. — O cabelo de tentáculos de água-viva de Leia se aproximava de Percy, como se estivesse ansioso para paralisar uma nova presa. — Ouvi falar muito sobre o grande Percy Jackson. Os gigantes estão muito obcecados por capturar você. Devo admitir que não entendo o porquê de tanta preocupação. — Obrigado, irmãzinha. Mas, se você vai tentar me matar, tenho que avisar que já tentaram isso antes. Enfrentei várias deusas recentemente: Nice, Akhlys,
até a própria Nix. Em comparação a elas, você não está me assustando. Além disso, você ri como um golfinho. As narinas delicadas de Leia se dilataram. Jason pegou a espada. — Ah, eu não vou matar você — disse Leia. — Minha parte no acordo foi apenas distraí-lo. Mas tem alguém aqui que quer muito matar você. Acima deles, na borda da cúpula quebrada, surgiu uma forma escura, uma figura ainda mais alta que Cimopoleia. — O filho de Netuno — ribombou uma voz grave. O gigante desceu flutuando. Nuvens de um fluido escuro e viscoso, possivelmente veneno, saíam em espiral de sua pele azul. Seu peitoral verde era moldado de forma a parecer um conjunto de bocas abertas e famintas. Ele trazia nas mãos as armas de um reciário: um tridente e uma rede com pesos. Jason nunca tinha visto aquele gigante, mas já tinha ouvido as histórias. — Polibotes — disse ele. — O anti-Poseidon. O gigante sacudiu seus dreadlocks. Uma dezena de serpentes verde-limão, com uma coroa de pele em torno da cabeça, se soltou e saiu nadando. Basiliscos. — Isso mesmo, filho de Roma — disse o gigante. — Mas, se me der licença, meu assunto mais urgente é com Percy Jackson. Eu o segui por todo o Tártaro. Agora, aqui, nas ruínas de seu pai, pretendo destruí-lo de uma vez por todas.
XXVII
JASON
JASON ODIAVA BASILISCOS. As criaturinhas desprezíveis adoravam se esconder sob os templos de Nova Roma. Na época em que Jason era centurião, sua coorte sempre ficava com a tarefa nada popular de eliminar seus ninhos. Um basilisco não parecia grande coisa — era apenas uma cobra do tamanho de um braço, com olhos amarelos e uma coroa de pele branca —, mas se movia rápido e podia matar qualquer coisa que tocasse. Jason nunca tinha enfrentado mais que dois de uma vez. Agora havia uma dúzia nadando em torno das pernas do gigante. A única coisa boa: embaixo d’água, basiliscos não conseguiriam cuspir fogo, mas isso não os tornava nem um pouco menos mortíferos. Duas das serpentes se lançaram sobre Percy. Ele as cortou ao meio. As outras dez giravam em torno dele, mas fora do alcance de sua espada. Ziguezagueavam de um lado para outro em um padrão hipnótico, à procura de uma brecha. Uma mordida, um toque, seria o suficiente. — Ei! — gritou Jason. — Não vão me dar um pouco de atenção? As cobras o ignoraram. O mesmo fez o gigante, que havia se afastado e agora assistia a tudo com um sorriso presunçoso, aparentemente satisfeito por seus animais de estimação estarem prestes a fazer a matança. — Cimopoleia — Jason fez um grande esforço para pronunciar corretamente o nome dela —, você tem que parar com isso. Ela o encarou com seus olhos brancos e reluzentes. — Por que eu faria isso? A Mãe Terra me prometeu poderes ilimitados. Você pode fazer uma oferta melhor? Uma oferta melhor… Ele percebeu uma abertura… um espaço para negociar. Mas o que ele tinha que uma deusa das tempestades poderia querer? Os basiliscos fecharam o círculo. Percy os afastou com correntes de água, mas eles apenas continuaram girando ao seu redor. — Ei, basiliscos! — gritou Jason. Nenhuma reação. Ele podia atacar, romper o círculo e ajudar, mas, mesmo juntos, ele e Percy não teriam nenhuma condição de enfrentar dez basiliscos ao mesmo tempo. Ele precisava de uma ideia melhor. Jason olhou para cima. Uma tempestade furiosa trovejava na superfície, mas eles estavam centenas de metros abaixo. Ele não ia conseguir invocar raios
estando no fundo do mar, ia? E mesmo que conseguisse, a água conduzia eletricidade um pouco bem demais. Ele poderia acabar fritando Percy. Mas Jason não conseguiu pensar em nenhuma opção melhor, então ergueu sua espada. Imediatamente a lâmina brilhou vermelha como brasa. Uma nuvem de luz amarela difusa desceu ondulante até as profundezas, como se alguém tivesse derramado neon líquido na água. A luz acertou a espada de Jason para então se dividir em dez raios diferentes, acertando os basiliscos. Os olhos dos basiliscos escureceram. Suas coroas de pele se desintegraram. Todas as dez serpentes viraram de barriga para cima e passaram a boiar na água, mortas. — Da próxima vez, olhem para mim quando eu estiver falando com vocês. O sorriso de Polibotes azedou. — Você está assim tão ansioso para morrer, romano? Percy levantou a espada e se lançou sobre o gigante, mas Polibotes moveu a mão pela água e deixou um arco de veneno negro oleoso. Percy avançou antes que Jason pudesse gritar Cara, o que você está fazendo? Ele deixou Contracorrente cair, ofegou e agarrou a garganta. O gigante arremessou sua rede com pesos, e o garoto desabou no chão, completamente preso, enquanto o veneno ia se adensando ao seu redor. — Solte-o! — A voz de Jason saiu aguda por causa do pânico. O gigante riu. — Não se preocupe, filho de Júpiter. Seu amigo vai demorar muito tempo para morrer. Depois de todo o trabalho que ele me deu, eu jamais o mataria depressa. Nuvens tóxicas se expandiram em torno do gigante, enchendo as ruínas como fumaça densa de charuto. Jason saltou para trás depressa. Não foi rápido o suficiente, mas seu ventus se revelou um filtro útil. Enquanto ele era envolvido pelo veneno, o furacão em miniatura girou mais rápido e repeliu as nuvens. Cimopoleia torceu o nariz e afastou a escuridão com um aceno, mas, fora isso, ela parecia não se afetar. Percy se contorcia dentro da rede, e seu rosto estava ficando verde. Jason correu para ajudá-lo, mas o gigante o deteve com seu tridente enorme. — Ah, não posso deixar que você acabe com minha diversão — repreendeu Polibotes. — O veneno vai matá-lo, mas primeiro vem a paralisia e horas de dor excruciante. Quero que ele tenha a experiência completa! Ele pode assistir enquanto destruo você, Jason Grace! Polibotes avançou lentamente, dando a Jason bastante tempo para contemplar a torre de três andares de armadura e músculos que seguia em sua direção. Ele se esquivou do tridente e, tomando impulso para a frente com a ajuda do ventus, enfiou a espada na perna reptiliana do gigante. Polibotes soltou um urro e cambaleou; icor dourado jorrava de seu ferimento. — Leia! — gritou Jason. — É isso mesmo o que você quer?
A deusa das tempestades parecia muito entediada, girando preguiçosamente seu disco de metal. — Poder ilimitado? Por que não? — Mas vai ser divertido? — perguntou Jason. — Então você destrói nosso navio. Acaba com toda a faixa litorânea do mundo. Depois que Gaia destruir a civilização humana, quem vai restar para temê-la? Você vai continuar desconhecida. Polibotes se virou. — Você é uma desgraça, filho de Júpiter. Vou destruí-lo! Jason tentou invocar mais raios. Nada aconteceu. Se um dia ele encontrasse seu pai, teria que solicitar um aumento em sua cota diária de raios. Ele conseguiu desviar das pontas do tridente novamente, mas o gigante usou a haste para acertá-lo no peito. Jason cambaleou para trás, espantado e dolorido. Polibotes avançou para matá-lo. Quando o tridente ia perfurá-lo, o ventus de Jason agiu por conta própria: girou em espiral de lado e o lançou do outro lado do pátio, a dez metros de distância. Obrigado, parceiro, pensou Jason. Devo a você uns purificadores de ar. Ele não soube dizer se o ventus gostou daquela ideia ou não. — Na verdade, Jason Grace — disse Leia, examinando as unhas —, agora que você falou nisso, eu gosto mesmo de ser temida por mortais. Não sou temida o suficiente. — Eu posso ajudar você com isso! Jason desviou de outro golpe do tridente. Ele transformou seu gládio em uma lança e espetou Polibotes no olho. — ARGH! O gigante cambaleou. Percy se contorcia na rede, mas seus movimentos estavam ficando mais lentos. Jason precisava se apressar. Tinha que levar Percy para a enfermaria do navio, e se a tempestade continuasse com aquela força acima deles, não haveria nenhuma enfermaria para onde levá-lo. Ele correu para o lado de Leia. — Você sabe que os deuses dependem dos mortais. Quanto mais cultuamos vocês, mais poderosos vocês ficam. — Como posso saber? Eu nunca fui cultuada! Ela ignorou Polibotes, que agora corria desabalado em torno dela, tentando arrancar Jason de seu redemoinho de vento. Jason fazia o possível para manter a deusa entre eles. — Eu posso mudar isso — prometeu ele. — Eu mesmo vou providenciar um santuário para você na Colina dos Templos em Nova Roma. O seu primeiro
santuário romano! Também vou erguer um no Acampamento Meio-Sangue, na costa do Estreito de Long Island. Imagine, ser cultuada… — E temida. — … e temida tanto por gregos quanto por romanos. Você vai ser famosa! — PARE DE FALAR! Polibotes golpeou com o tridente como se fosse um taco de beisebol. Jason se agachou; Leia, não. O gigante a acertou com tanta força nas costelas que fios de seu cabelo de água-viva se soltaram e saíram boiando pela água envenenada. Os olhos de Polibotes se arregalaram. — Desculpe, Cimopoleia. Você não devia ter ficado no caminho! — NO CAMINHO? — A deusa se aprumou. — Eu estou no caminho? — Você o ouviu — disse Jason. — Você não passa de um instrumento para os gigantes. Eles vão abandoná-la assim que conseguirem destruir os mortais. Aí, não haverá mais semideuses, nem templos, nem medo, nem respeito. — MENTIRAS! — Polibotes tentou acertá-lo, mas Jason se escondeu atrás do vestido da deusa. — Cimopoleia, quando Gaia reinar, você vai poder comandar tempestades com toda a fúria que quiser! — Haverá mortais para aterrorizar? — perguntou Leia. — Bem… não. — Navios para destruir? Semideuses para se curvarem de medo? — Hum… — Me ajude — pediu Jason. — Juntos, uma deusa e um semideus podem matar um gigante. — Não! — De repente, Polibotes pareceu ficar muito nervoso. — Não, isso é uma péssima ideia. Gaia ficará muito aborrecida! — Se Gaia despertar — disse Jason. — A poderosa Cimopoleia pode nos ajudar a impedir que isso aconteça. Aí, todos os semideuses vão honrá-la muito. — Eles vão ficar aterrorizados? — Demais! Além de botar seu nome na programação de verão. Um estandarte personalizado. Um chalé no Acampamento Meio-Sangue. Dois santuários. E ainda incluo um action figure seu. — Não! — protestou Polibotes. — Direitos comerciais, não! Cimopoleia virou-se para o gigante. — Infelizmente, esse acordo é melhor do que o oferecido por Gaia. — Isso é inaceitável! — berrou o gigante. — Você não pode confiar nesse romano desprezível! — Se eu não cumprir minha promessa — disse Jason —, Leia pode me matar quando quiser. Mas com Gaia ela não tem garantia nenhuma. — Ótimo argumento — concordou Leia. Enquanto Polibotes se esforçava para encontrar uma resposta, Jason avançou e enfiou sua lança na barriga do gigante.
Leia tirou seu disco de bronze do pedestal. — Diga adeus, Polibotes. Ela arremessou o disco no pescoço do gigante. A borda do disco, por acaso, era afiada. Polibotes achou difícil dizer adeus, já que não tinha mais cabeça.
XXVIII
JASON
— VENENO É UM VÍCIO FEIO. — A um gesto de Cimopoleia, as nuvens turvas se dissiparam. — Veneno de segunda mão pode matar uma pessoa, sabia? Jason também não gostava de veneno de primeira, mas resolveu não mencionar isso. Ele cortou a rede para libertar Percy e o apoiou contra a parede do templo, envolvendo-o no casulo de ar do ventus. O oxigênio estava ficando rarefeito, mas Jason tinha a esperança de que isso ajudasse a expelir o veneno dos pulmões dele. Pareceu funcionar: Percy se dobrou para a frente e começou a ter ânsias de vômito. — Ugh, obrigado. Jason suspirou de alívio. — Você me deixou preocupado, cara. Percy piscou repetidas vezes, os olhos ainda fora de foco. — Ainda estou um pouquinho confuso. Mas você… você prometeu fazer um action figure da Cimopoleia? A deusa assomou sobre eles. — Ele prometeu, sim. E eu espero que cumpra. — Eu vou cumprir — disse Jason. — Quando ganharmos esta guerra, vou garantir que todos os deuses sejam reconhecidos. — Ele pôs a mão no ombro de Percy. — Meu amigo aqui começou esse processo no verão passado. Ele fez os olimpianos prometerem dar mais atenção a vocês. Leia fez uma expressão de escárnio. — Sabemos quanto vale a promessa de um olimpiano. — E é por isso que eu vou garantir que nenhum dos deuses seja esquecido, nos dois acampamentos. Talvez eles ganhem templos, chalés ou pelo menos santuários… — Ou cards colecionáveis — sugeriu Leia. — Claro. — Jason sorriu. — Vou servir de ligação entre os dois acampamentos até que isso esteja resolvido. Percy soltou um assovio. — Você está falando de dezenas de deuses. — Centenas — corrigiu Leia. — Então, bem… — disse Jason. — Pode demorar um pouco. Mas você vai ser a primeira da lista, Cimopoleia… a deusa das tempestades que decapitou um gigante e salvou nossa missão.
Leia acariciou seu cabelo de água-viva. — Está bem assim. — Ela olhou para Percy. — Apesar de eu sentir muito por não vê-lo morrer. — Ouço muito esse comentário — disse Percy. — Agora, e em relação a nosso navio…? — Ainda está inteiro — confirmou a deusa. — Não em grande forma, mas deve conseguir chegar a Delos. — Obrigado — disse Jason. — É — falou Percy. — E na verdade Briareu, seu marido, é um sujeito legal. Você devia dar uma chance a ele. A deusa apanhou seu disco de bronze. — Não abuse da sorte, irmão. Briareu tem cinquenta caras, e todas são feias. Tem cem mãos, e mesmo assim não faz nada direito em casa. — Tudo bem — cedeu Percy. — Não vou abusar da sorte. Leia virou o disco, revelando correias do outro lado, como em um escudo. Ela o jogou sobre o ombro, estilo Capitão América. — Vou acompanhar seu progresso. Polibotes não estava se vangloriando quando alertou que seu sangue vai despertar a Mãe Terra. Os gigantes estão muito confiantes nisso. — Meu sangue, especificamente? — perguntou Percy. O sorriso de Leia ficou ainda mais assustador que o normal. — Eu não sou um oráculo, mas ouvi o que o vidente Fineu contou a você em Portland. Há um sacrifício pela frente que talvez você não tenha a coragem de fazê-lo, e isso vai lhe custar o mundo. Você ainda precisa enfrentar seu defeito fatal, meu irmão. Olhe ao redor. Toda a obra de deuses e homens um dia acaba em ruínas. Não seria mais fácil fugir para as profundezas com aquela sua namorada? Percy se apoiou no ombro de Jason e se levantou. — Juno me ofereceu uma escolha como essa quando eu encontrei o Acampamento Júpiter. Vou dar a você a mesma resposta: eu não fujo quando meus amigos precisam de mim. Leia levantou as mãos para o ar. — E esse é o seu defeito, não conseguir se afastar. Vou me retirar para as profundezas e assistir ao desenrolar desta batalha. As forças do oceano também estão em guerra, sabia? Sua amiga Hazel Levesque causou uma impressão e tanto nas sereias e nos tritões, e também em seus mentores, Afros e Bitos. — Os sujeitos homem-peixe — murmurou Percy. — Eles não quiseram me conhecer. — Agora mesmo eles estão lutando uma guerra por sua causa — disse Leia. — Tentando manter os aliados de Gaia longe de Long Island. Se vão sobreviver ou não… isso ainda não sabemos. E em relação a você, Jason Grace, seu
caminho não será mais fácil do que o dele. Você será enganado. Vai sofrer uma perda insuportável. Jason se segurou para não soltar raios. Não sabia se o coração de Percy aguentaria o choque. — Leia, você disse que não é um oráculo, mas deveria trabalhar com isso. Você é com certeza deprimente o bastante. A deusa soltou sua risada de golfinho. — Você me diverte, filho de Júpiter. Espero que viva para derrotar Gaia. — Obrigado — disse ele. — Alguma dica para derrotar uma deusa que não pode ser derrotada? Cimopoleia inclinou a cabeça. — Ah, mas você sabe a resposta. Você é um filho do céu, tem tempestades no sangue. Um deus primordial já foi derrotado antes. Você sabe de quem estou falando. As entranhas de Jason começaram a se revirar mais rápido que o ventus. — Urano, o primeiro deus do céu. Mas isso significa… — Sim. — Os traços sobrenaturais de Leia assumiram uma expressão que quase lembrava simpatia. — Vamos torcer para que não chegue a isso. Se Gaia realmente despertar… bem, sua tarefa não vai ser fácil. Mas, se vocês vencerem, lembre-se de sua promessa, pontifex. Jason levou um momento para processar as palavras dela. — Eu não sou um sacerdote. — Não? — Os olhos de Leia brilharam. — Mudando de assunto: seu criado ventus diz que deseja ser libertado. Como ele o ajudou, espera que você o solte quando chegarem à superfície. Ele promete não incomodá-lo uma terceira vez. — Uma terceira vez? Leia fez uma pausa, como se estivesse escutando. — Ele diz que se juntou à tempestade lá em cima para se vingar, mas que, se soubesse quanto você ficou forte desde o Grand Canyon, nunca teria se aproximado do seu navio. — O Grand Canyon… — Jason se lembrou do dia na passarela Skywalk, quando um de seus colegas de turma idiotas se revelou ser um espírito do vento. — Dylan? Você está de brincadeira comigo? Eu estou respirando o Dylan? — Está — disse Leia. — Parece que esse é o nome dele. Jason sentiu um calafrio. — Vou libertá-lo assim que chegarmos à superfície, sem problemas. — Adeus, então — disse a deusa. — E que as Parcas sorriam para vocês… isto é, se elas sobreviverem.
* * *
Eles precisavam sair dali. Jason estava ficando sem ar (ar de Dylan… eca), e todos no Argo II deviam estar preocupados com eles. Mas Percy ainda estava zonzo por causa do veneno, então os dois se sentaram na borda da cúpula dourada em ruínas por alguns minutos para que ele recuperasse o fôlego… ou a água, ou o que quer que um filho de Poseidon recuperasse no fundo do oceano. — Obrigado, cara — disse Percy. — Você salvou minha vida. — Ei, é isso que os amigos fazem. — Mas, hum, o cara de Júpiter salvar o de Poseidon no fundo do oceano… será que podemos manter esse detalhe entre nós? Senão eu nunca vou parar de ouvir falar nisso. Jason sorriu. — Fechado. Como está se sentindo? — Melhor. Eu… eu tenho que admitir que quando estava sufocando com o veneno, pensei em Akhlys, a deusa da miséria no Tártaro. Eu quase a destruí com veneno. — Ele sentiu um calafrio. — Eu me senti bem, mas de um jeito ruim. Se Annabeth não tivesse me impedido… — Mas ela impediu — disse Jason. — Isso é outra coisa que os amigos têm que fazer uns pelos outros. — É… O problema é que, enquanto eu estava sufocando, não parava de pensar: isso é o troco por Akhlys. As Parcas estão me deixando morrer da mesma maneira que eu tentei matar aquela deusa. E… honestamente, parte de mim sentiu que eu merecia. Por isso não tentei controlar o veneno do gigante e afastá-lo de mim. Isso deve parecer loucura. Jason se lembrou de Ítaca, quando entrou em desespero por causa da visita do espírito de sua mãe. — Não, acho que eu entendo. Percy observou seu rosto. Quando Jason parou de falar, Percy mudou de assunto: — O que Leia quis dizer sobre derrotar Gaia? Você mencionou Urano… Jason olhou para o lodo que se acumulava em torno das colunas do velho palácio em ruínas. — O deus do céu… os titãs o derrotaram chamando-o à terra. Eles o tiraram de seu território, o emboscaram, o prenderam e o cortaram em pedaços. Parecia que o enjoo de Percy estava voltando. — Como faremos isso com Gaia? Jason lembrou-se de um verso da profecia: Em tempestade ou fogo, o mundo terá acabado. Ele agora tinha uma ideia do que aquilo significava… mas se estivesse certo, Percy não poderia ajudar. Na verdade, ele poderia, sem querer, tornar as coisas ainda piores.
Eu não fujo quando meus amigos precisam de mim, dissera Percy. E esse é o seu defeito, alertara Leia. Não conseguir se afastar. Era dia vinte e sete de julho. Em cinco dias, Jason ia descobrir se tinha razão. — Vamos a Delos primeiro — disse ele. — Apolo e Ártemis podem ter algum conselho para nós. Percy assentiu, apesar de não parecer satisfeito com essa resposta. — Por que Leia chamou você de Pontiac? O riso de Jason literalmente limpou o ar. — Pontifex. Significa sacerdote. — Ah. — Percy franziu a testa. — Ainda parece uma marca de carro. O novo Pontifex XLS. Você vai ter que usar um colarinho branco e abençoar as pessoas? — Não. Os romanos tinham um pontifex maximus, que supervisionava todos os sacrifícios apropriados e coisas assim, para garantir que nenhum dos deuses ficasse com raiva. O que eu me ofereci para fazer… acho que parece o trabalho de um pontifex. — Então você estava falando sério? — perguntou Percy. — Vai mesmo tentar construir templos para todos os deuses menores? — Vou. Na verdade, nunca havia pensado nisso antes, mas gosto da ideia de ser a ligação entre os acampamentos; supondo, você sabe, que estejamos vivos depois da semana que vem e que os dois acampamentos ainda existam. O que você fez ano passado no Olimpo, recusando a imortalidade e em vez disso pedindo aos deuses que fossem mais legais… aquilo foi muito nobre, cara. Percy resmungou. — Acredite, às vezes eu me arrependo dessa escolha. Ah, você quer recusar nossa oferta? Tudo bem! ZAP! Perca a memória! Vá para o Tártaro! — Você fez o que um herói deveria fazer. Eu o admiro por isso. O mínimo que posso fazer, se sobrevivermos, é dar continuidade a esse trabalho, garantir que todos os deuses tenham algum reconhecimento. Se os deuses se entenderem melhor, talvez possamos impedir que mais guerras aconteçam. Quem sabe? — Isso com toda a certeza seria bom — concordou Percy. — Sabe, você parece diferente… um diferente bom. Seu ferimento ainda dói? — Meu ferimento… Jason ficara tão ocupado com o gigante e a deusa que tinha se esquecido do ferimento em sua barriga, apesar de apenas uma hora antes estar morrendo na enfermaria do navio. Ele levantou a camisa e tirou os curativos. Nenhuma fumaça. Nenhum sangramento. Nenhuma cicatriz. Nenhuma dor. — Meu ferimento… desapareceu — disse ele, surpreso. — Eu me sinto completamente normal. Mas o que aconteceu?
— Você o derrotou, cara! — Percy riu. — Você encontrou sua própria cura. Jason refletiu sobre isso. Devia ser verdade. Talvez deixar a dor de lado para ajudar os amigos fosse o que faltava. Ou talvez sua decisão de cultuar os deuses nos dois acampamentos o tivesse curado, mostrando a ele um caminho nítido para o futuro. Romano ou grego… a diferença não importava. Como ele dissera aos fantasmas em Ítaca, sua família só havia aumentado. Agora Jason encontrara seu lugar nela. Ele ia manter sua promessa à deusa das tempestades. E, graças a isso, a espada de Michael Varus não significava nada. Morra como um romano. Não. Se ele tivesse que morrer, morreria como filho de Júpiter, um filho dos deuses — o sangue do Olimpo. Mas ele não iria se deixar ser sacrificado… pelo menos, não sem lutar. — Vamos. — Jason deu um tapinha nas costas do amigo. — Vamos ver como está nosso barco.
XXIX
NICO
SE TIVESSE QUE ESCOLHER ENTRE a morte e o mercado Zippy Mart de Buford, Nico ficaria indeciso. Na Terra dos Mortos ele pelo menos sabia como transitar. E a comida por lá era mais fresca. — Ainda não entendi — resmungou o treinador Hedge, andando pelo corredor principal do mercado. — Eles batizaram uma cidade inteira com o nome da mesa do Leo? — Acho que a cidade veio primeiro, treinador — opinou Nico. — Ah. — O treinador pegou da prateleira uma caixa de donuts se desfazendo em farelos. — Deve ser. Estes donuts parecem ter uns cem anos, no mínimo. Que saudade daquelas tais farturas de Portugal. Nico sentia dor nos braços só de pensar em Portugal. As marcas das garras de lobisomem ainda riscavam seu bíceps, inchadas e vermelhas. A atendente da loja lhe perguntou se ele tinha entrado em uma briga com um tigre. Compraram um kit de primeiros socorros, um bloco de papel (para o treinador Hedge escrever mais mensagens em aviõezinhos de papel para a esposa), alguns biscoitos industrializados e refrigerante (já que a mesa da tenda mágica de Reyna só fornecia alimentos saudáveis e água fresca) e alguns itens de camping para o treinador Hedge montar aquelas suas armadilhas inúteis, mas incrivelmente complicadas. Nico tinha esperança de encontrar roupas novas para comprar. Haviam deixado San Juan dois dias antes, e ele estava cansado de andar por aí com a camisa florida da ISLA DEL ENCANTORICO, ainda mais com o treinador Hedge vestindo uma igual. Infelizmente, porém, o Zippy Mart só tinha camisetas com a bandeira da Confederação americana ou frases bregas como KEEP CALM E SIGA O CAIPIRA. Nico achou melhor continuar com as araras e palmeiras. Os três voltaram para o acampamento por uma estrada de pista dupla sob o sol abrasador. Aquela parte da Carolina do Sul parecia formada principalmente por campos cobertos de mato pontuados por postes e árvores cobertas de trepadeiras kudzu. O centro da cidade era uma coleção de barracões de metal portáteis (seis ou sete, provavelmente o mesmo número de habitantes de Buford inteira). Nico não era muito fã do sol, mas dessa vez o calor foi bem-vindo, ajudandoo a se sentir mais substancial, ancorado no mundo mortal. A cada salto ficava mais difícil voltar das sombras. Mesmo em plena luz do dia, sua mão atravessava
objetos sólidos. Seu cinto e sua espada não paravam de cair no chão, sem motivo aparente. Uma vez, quando não estava prestando muita atenção ao caminho, tinha chegado a atravessar uma árvore. Ele se lembrou do que Jason lhe dissera no palácio de Noto: Talvez seja hora de você parar de se esconder nas sombras. Bem que eu queria, pensou ele. Pela primeira vez na vida, Nico tinha começado a temer a escuridão, porque podia se fundir a ela permanentemente. Nico e Hedge não tiveram dificuldades em encontrar o caminho de volta para o acampamento: a Atena Partenos era o ponto de referência mais alto em um raio de quilômetros. Sob sua nova rede de camuflagem, a estátua reluzia com um brilho prateado, como um fantasma de doze metros exageradamente ofuscante. Pelo visto a Atena Partenos queria que eles visitassem um lugar com caráter educativo, pois tinha aterrissado bem ao lado de um marco histórico em que se lia MASSACRE DE BUFORD, em um acostamento de cascalho no cruzamento do Nada com o Lugar Nenhum. A barraca de Reyna estava armada em um bosque a cerca de trinta metros da estrada. Havia um monumento retangular formado por centenas de pedras empilhadas na forma de um túmulo enorme. A lápide era um obelisco gigante, e espalhado em volta havia coroas esmaecidas e buquês de flores de plástico pisoteadas, o que tornava o lugar ainda mais triste. Aurum e Argentum estavam na mata brincando de correr atrás de uma das bolas de borracha do treinador. Desde que tinham sido consertados pelas amazonas, os dois viviam alegres e cheios de energia — ao contrário de sua dona. Reyna estava sentada de pernas cruzadas na entrada da barraca, olhando fixamente para o obelisco funerário. Mal tinha aberto a boca desde a fuga de San Juan, dois dias antes. Nesses dois dias, eles não tinham encontrado monstros, o que preocupava Nico. Eles não sabiam o que havia acontecido com Hylla nem com Thalia, nem com o gigante Órion. Nico não gostava das Caçadoras de Ártemis. A tragédia as acompanhava aonde fossem, tão fielmente quanto seus cães e aves de caça. A irmã de Nico, Bianca, morrera depois de se juntar às Caçadoras. Depois disso, Thalia Grace se tornara a líder, e ela começara a recrutar ainda mais garotas para sua causa. Isso o irritava, pois era como se a morte de Bianca pudesse ser esquecida. Como se ela pudesse ser substituída. No Barrachina, ao acordar e encontrar o bilhete das Caçadoras informando sobre o sequestro de Reyna, Nico havia destruído o pátio do restaurante, de tanta raiva. Não queria que as Caçadoras levassem embora mais uma pessoa importante na vida dele. Felizmente, ele havia resgatado Reyna, mas não gostava de vê-la assim cabisbaixa e taciturna. Toda vez que tentava perguntar a ela sobre o incidente na
rua San José — sobre os fantasmas na sacada, todos olhando para ela, sussurrando acusações —, Reyna se fechava e o afastava. Nico sabia algumas coisas sobre fantasmas. Deixá-los entrar em sua cabeça era perigoso. Ele queria ajudar Reyna, mas como ele próprio seguia a estratégia de lidar sozinho com os problemas, rejeitando qualquer um que tentasse se aproximar, não podia criticá-la por agir da mesma forma. Reyna ergueu os olhos quando os dois se aproximaram. — Eu descobri. — Que lugar histórico é este? — perguntou Hedge. — Que bom, porque eu já estava ficando maluco. — A Batalha de Waxhaws — disse ela. — Ah, sim… — O treinador assentiu com um ar grave. — Foi um massacre extremamente cruel. Nico tentou detectar a presença de espíritos inquietos na área, mas não sentiu nada. Algo incomum para um lugar que tinha servido de campo de batalha. — Tem certeza? — Em 1780 — explicou Reyna. — Na Guerra de Independência dos Estados Unidos. A maioria dos líderes coloniais eram semideuses gregos. Os generais britânicos eram semideuses romanos. — Porque na época a Inglaterra era uma espécie de Roma — arriscou Nico. — Um império em seu auge. Reyna pegou um buquê amassado do chão. — Acho que sei por que viemos parar aqui. É minha culpa. — Ah, que isso… — brincou Hedge. — O Zippy Mart de Buford não é culpa de ninguém. Essas coisas acontecem. Reyna mexia distraidamente nas flores de plástico desbotadas. — Durante a Guerra de Independência, quatrocentos americanos foram surpreendidos aqui pela cavalaria britânica. As tropas coloniais tentaram se render, mas os britânicos queriam sangue. Massacraram os americanos mesmo depois que eles já tinham baixado as armas. Só uns poucos sobreviveram. Nico talvez devesse ficar chocado. Mas depois de tantas viagens pelo Mundo Inferior, ouvindo tantas histórias de maldade e mortes, um massacre durante uma guerra não parecia uma grande notícia. — Reyna, por que isso seria culpa sua? — O general britânico era Banastre Tarleton. — Já ouvi falar dele — disse Hedge com uma nota de repulsa na voz. — Sujeito maluco. Eles o chamavam de Benny Açougueiro. — Isso… — Reyna inspirou com força, trêmula. — Ele era filho de Belona. — Ah — disse Nico. Ele olhou para o túmulo enorme. Ainda o incomodava o fato de não conseguir detectar nenhum espírito. Centenas de soldados massacrados naquele lugar…
aquilo devia transmitir algum tipo de vibração de morte. Ele se sentou ao lado de Reyna e resolveu arriscar: — Então você acha que fomos atraídos até aqui porque você tem algum tipo de ligação com os fantasmas. Como o que aconteceu em San Juan? Ela permaneceu em silêncio por alguns segundos, girando o buquê de plástico na mão. — Não quero falar sobre San Juan. — Pois deveria. — Nico se sentiu um estranho no próprio corpo. Por que ele estava estimulando Reyna a se abrir? Não era do seu estilo nem da sua conta. Mas mesmo assim ele continuou: — O principal a se ter em mente quando pensamos em fantasmas é que a maioria deles perdeu a voz. Em Asfódelos, milhões de espíritos perambulam sem rumo, tentando se lembrar de quem eram. Sabe por que eles acabam assim? Porque nunca lutaram pelo que acreditavam em vida. Nunca expressaram suas opiniões, por isso nunca foram ouvidos. Nossa voz é nossa identidade. Se não a usamos… — Ele deu de ombros. — Já estamos a meio caminho de Asfódelos. Reyna franziu a testa. — Era para ser uma conversa animadora? O treinador Hedge limpou a garganta. — Isso está ficando psicológico demais para mim. Vou escrever umas cartas. E, pegando seu bloco, ele seguiu para o bosque. Nos dois últimos dias ou mais, ele andava escrevendo bastante; e, aparentemente, não só para Mellie. O treinador não revelava detalhes, mas tinha dado a entender que estava recorrendo a seus contatos para obter ajuda na missão. Pelo que Nico sabia, ele podia estar escrevendo até para Jackie Chan. Nico abriu a sacola de compras. Pegou um pacote de biscoitos recheados e ofereceu um a Reyna. Ela torceu o nariz. — Esse biscoito está com cara de que passou do prazo de validade no tempo dos dinossauros. — Pode ser. Mas eu ando com um apetite enorme. Estou achando qualquer comida gostosa… Menos sementes de romã, que eu já não aguento mais. Reyna pegou um biscoito e deu uma mordida. — Os fantasmas de San Juan… eram meus ancestrais. Nico esperou. A brisa agitou a rede de camuflagem que cobria a Atena Partenos. — A família Ramírez-Arellano é muito antiga — continuou Reyna. — Não sei a história toda. Meus ancestrais viviam na Espanha na época em que era uma província romana. Meu tatara-alguma-coisa-avô foi um colonizador que veio para Porto Rico com Ponce de León.
— Um dos fantasmas que vi na varanda usava uma armadura de colonizador — lembrou Nico. — Era ele. — Então… sua família inteira descende de Belona? Eu achava que você e Hylla fossem filhas dela, não herdeiras. Nico percebeu tarde demais que não deveria ter mencionado Hylla. Uma expressão de desespero cruzou o rosto de Reyna, mas ela logo conseguiu escondê-la. — Nós duas somos filhas de Belona. Somos as primeiras verdadeiras filhas de Belona na família Ramírez-Arellano. Mas Belona sempre favoreceu nosso clã. Milênios atrás, ela decretou que teríamos papéis fundamentais em muitas batalhas. — Como você está tendo agora — disse Nico. Reyna limpou alguns farelos do queixo. — Talvez. Alguns de meus ancestrais foram heróis. Outros, vilões. Você viu o fantasma com os tiros no peito? Nico assentiu. — Um pirata? — O mais famoso na história de Porto Rico. Ele era conhecido como o pirata Cofresí, mas seu sobrenome era Ramírez-Arellano. Para construir nossa casa, a villa da família, foi usada parte do tesouro que ele enterrou. Por um instante, Nico sentiu como se fosse novamente criança. Quase exclamou: Que máximo! Antes mesmo de se interessar por Mitomagia, Nico já era obcecado por piratas. Isso provavelmente havia contribuído para que ele ficasse tão fascinado por Percy, que era filho do deus do mar. — E os outros fantasmas? — perguntou ele. Reyna deu mais uma mordida no biscoito. — O cara de uniforme da Marinha… ele é meu tio-bisavô da Segunda Guerra Mundial, o primeiro latino a se tornar comandante de um submarino. Você entende o quadro geral: vários guerreiros; Belona foi nossa deusa padroeira por gerações. — Mas ela nunca teve filhos semideuses na família… não antes de vocês. — A deusa… Belona se apaixonou por meu pai, Julian, que era soldado no Iraque. Ele era… — A voz de Reyna vacilou. Ela jogou fora o buquê de flores de plástico. — Eu não consigo. Não consigo falar sobre ele. Uma nuvem passou no céu, cobrindo o bosque de sombras. Nico não queria forçá-la. Que direito ele tinha? Ele deixou de lado os biscoitos… e percebeu que as pontas de seus dedos estavam virando fumaça. A luz do sol retornou. Suas mãos voltaram a ser sólidas, mas Nico sentiu uma agulhada nos nervos. Como se tivesse sido puxado no exato momento em que ia cair da beira de um terraço muito alto.
Nossa voz é nossa identidade, ele tinha dito a Reyna. Se não a usamos, já estamos a meio caminho de Asfódelos. Ele odiava quando seu próprio conselho se aplicava a si mesmo. — Meu pai certa vez me deu um presente — disse Nico. — Um zumbi. Reyna o encarou. — O quê? — Jules-Albert. Ele é francês. — Um… um zumbi francês? — Hades não é o melhor dos pais, mas às vezes ele tem esses momentos em que cisma de querer se aproximar de mim. Acho que a intenção era usar o zumbi como uma oferenda de paz. Ele disse que Jules-Albert podia ser meu chofer. — Um zumbi francês como chofer — comentou Reyna, o canto da boca se retorcendo em ironia. Nico se deu conta de como aquilo soava ridículo. Ele nunca havia contado a ninguém sobre Jules-Albert, nem mesmo a Hazel. Mas mesmo assim ele continuou: — Hades achava que eu deveria, você sabe, tentar agir como um adolescente moderno. Fazer amigos. Conhecer o século XXI. Ele entendia vagamente que pais mortais levam os filhos de carro a muitos lugares. Como não podia fazer isso, a solução que encontrou foi me arranjar um zumbi. — Para levar você ao shopping. Ou a uma lanchonete drive-thru. — Acho que sim. — Nico sentia que seus nervos começavam a se acalmar. — Porque não há nada que ajude você a fazer amigos mais rápido que um cadáver em decomposição com sotaque francês. Reyna riu. — Desculpe… eu não deveria estar rindo disso. — Tudo bem. A questão é que… eu também não gosto de falar sobre o meu pai. Mas às vezes — ao dizer isso, ele a olhava nos olhos — é preciso. Reyna ficou séria. — Não conheci meu pai em seus melhores dias. Hylla disse que ele era mais carinhoso quando ela era muito pequena, antes de eu nascer. Ele era um bom soldado… corajoso, disciplinado, sabia manter a cabeça fria durante as batalhas. Era bonito e podia ser muito charmoso. Belona o abençoou, como fez com tantos de meus ancestrais, mas isso não era suficiente para meu pai. Ele queria se casar com ela. No meio das árvores, o treinador murmurava coisas para si mesmo enquanto escrevia. Três aviõezinhos de papel já subiam em espiral para o céu, levados pela brisa para só os deuses sabiam onde. — Meu pai se dedicou completamente a Belona — prosseguiu Reyna. — Uma coisa é respeitar o poder da guerra. Outra é se apaixonar por isso. Não sei
como ele conseguiu, mas conquistou o coração da deusa. Minha irmã nasceu pouco antes de ele ir para o Iraque para seu último período em serviço. Ele se reformou com honras e voltou para casa como um herói. Se… se tivesse conseguido se adaptar à vida civil, acho que teria ficado tudo bem. — Mas ele não conseguiu — concluiu Nico. — Não. Pouco depois de voltar, ele teve um último encontro com Belona… foi nessa… hã… ocasião que eu fui concebida. Belona deu a ele um vislumbre do futuro. Explicou por que nossa família era tão importante para ela. Disse que o legado de Roma nunca se extinguiria enquanto houvesse alguém de nossa linhagem para defender nossa terra natal. Isso tudo… Acho que a intenção dela era oferecer consolo, mas meu pai ficou obcecado. — Muitas vezes é difícil superar a guerra. Ao dizer isso, Nico estava se lembrando de Pietro, um vizinho seu na época em que morava na Itália, quando criança. Pietro tinha voltado inteiro da campanha africana de Mussolini, mas, depois de bombardear civis etíopes com gás de mostarda, sua mente nunca mais fora a mesma. Apesar do calor, Reyna puxou seu manto para se cobrir. — Parte do problema foi o estresse pós-traumático. Ele não conseguia parar de pensar na guerra. Depois, foi a dor constante que ele sentia por conta de uma bomba que tinha explodido na beira de uma estrada e deixado estilhaços no ombro e no peito do meu pai. Mas era mais que isso. Com o passar dos anos, enquanto eu crescia, ele… ele mudou. Nico não disse nada. Nunca ninguém havia conversado com ele assim tão abertamente, à exceção, talvez, de Hazel. Ele sentiu como se estivesse vendo um bando de aves pousar em um campo: um movimento mais brusco poderia assustá-las. — Ele ficou paranoico — continuou Reyna. — Achou que as palavras de Belona eram um alerta de que nossa família seria exterminada e que o legado de Roma seria extinto. Via inimigos em toda a parte. Colecionava armas. Transformou nossa casa em uma fortaleza. À noite, trancava a mim e a Hylla nos nossos quartos. Se fugíssemos, ele gritava, quebrava móveis… Bem, aterrorizava nossa vida. Às vezes chegava a pensar que nós éramos os inimigos. Ele se convenceu de que o estávamos espionando, tentando sabotá-lo. Foi quando os fantasmas começaram a aparecer. Acho que eles sempre estiveram lá, mas, com a agitação do meu pai, começaram a se manifestar. Os fantasmas sussurravam coisas ruins no ouvido dele, alimentando suas suspeitas. Um dia, por fim… não sei dizer exatamente quando… percebi que ele tinha deixado de ser meu pai. Tinha se transformado em um dos fantasmas. Nico sentiu um bloco de gelo se formar em seu peito. — Um quadro de mania — concluiu ele. — Já vi isso acontecer. Um humano que vai se degenerando até que não é mais humano. Só restam suas piores
qualidades. Sua loucura… Pela expressão de Reyna, estava claro que a explicação de Nico não ajudava em nada. — O que quer que fosse — disse Reyna —, ficou impossível continuar morando com ele. Hylla e eu fugíamos de casa sempre que podíamos, mas acabávamos… voltando… e enfrentando a raiva dele. Não sabíamos mais o que fazer. Ele era a única família que tínhamos. Na última vez que voltamos, ele estava tão furioso que literalmente brilhava. Não conseguia mais tocar as coisas fisicamente, mas conseguia movê-las… como um poltergeist, algo assim. Ele arrancou as lajotas do piso. Rasgou o sofá. E no fim arremessou uma cadeira que acertou Hylla. Minha irmã desabou no chão. Ela só ficou inconsciente, mas achei que tivesse morrido. Hylla tinha passado tantos anos me protegendo… Eu perdi o controle naquele momento. Peguei a arma mais próxima que encontrei: uma herança de família, o sabre do pirata Cofresí. Eu… eu não sabia que era feito de ouro imperial. Corri na direção do espírito do meu pai e… — Você o vaporizou — completou Nico. Reyna tinha os olhos marejados. — Eu matei meu próprio pai. — Não, Reyna, não. Aquele não era seu pai. Era um fantasma. Pior ainda: uma mania. Você estava protegendo sua irmã. Ela girou o anel de prata no dedo. — Você não entende. Patricídio é o pior crime que um romano pode cometer. É imperdoável. — Você não matou seu pai. Ele já estava morto — insistiu Nico. — Você derrotou um fantasma! — Não faz diferença! — Reyna começou a chorar. — Se as pessoas descobrirem isso no Acampamento Júpiter… — Você será executada — disse uma terceira voz. Na margem do bosque havia um legionário romano de armadura completa, empunhando um pilum. Cabelos castanhos fartos caíam sobre seus olhos. O nariz obviamente tinha sido quebrado pelo menos uma vez, o que tornava seu sorriso ainda mais sinistro. — Obrigado por sua confissão, ex-pretora. Você facilitou muito o meu trabalho.
XXX
NICO
O TREINADOR HEDGE ESCOLHEU AQUELE exato momento para surgir de repente na clareira agitando um aviãozinho de papel e gritando: — Boas notícias, pessoal! Ele congelou quando viu o romano. — Ah… deixa pra lá. Então rapidamente amassou o aviãozinho e o comeu. Reyna e Nico se levantaram. Aurum e Argentum correram para o lado dela e rosnaram para o estranho. Nico não entendia como aquele cara tinha chegado tão perto sem que nenhum deles percebesse. — Bryce Lawrence — disse Reyna. — O mais novo cão de caça de Octavian. O romano inclinou a cabeça. Tinha olhos verdes, mas não da cor do mar, como os de Percy… eram mais como o verde do lodo que se acumula no fundo de um lago. — O áugure tem muitos cães de caça — disse Bryce. — Eu sou apenas o que teve a sorte de encontrar vocês. Seu amigo graecus aqui. — Ele apontou com o queixo para Nico. — Foi fácil segui-lo. Ele carrega o mau cheiro do Mundo Inferior. Nico desembainhou a espada. — Você conhece o Mundo Inferior? Posso providenciar uma visita se quiser. Bryce riu. Seus dentes da frente eram de dois tons diferentes de amarelo. — Acha que pode me assustar? Sou descendente de Orco, o deus dos juramentos quebrados e da punição eterna. Já ouvi de perto os gritos que ecoam nos Campos de Punição. São música para meus ouvidos. Logo vou acrescentar ao coral mais uma alma condenada. — Ele sorriu para Reyna. — Patricídio, hein? Octavian vai adorar essa notícia. Você está presa por múltiplas violações da lei romana. — Sua presença aqui é contra a lei romana — disse Reyna. — Os romanos não saem em missão sozinhos. É necessário um líder com posto de centurião ou mais alto. Você está in probatio. E mesmo esse posto já é demais para você. Não tem o direito de me prender. Bryce deu de ombros. — Em tempos de guerra, algumas regras precisam ser flexíveis. Mas não se preocupe. Como recompensa por levá-la a julgamento, me tornarei membro
efetivo da legião. Imagino que serei também promovido a centurião. Não tenho dúvidas de que haverá vagas depois da batalha que se aproxima. Alguns oficiais não vão sobreviver, ainda mais se escolherem o lado errado. O treinador ergueu o taco. — Não conheço a etiqueta romana, mas posso arrebentar esse garoto agora? — Um fauno — disse Bryce. — Interessante. Eu soube que os gregos realmente confiavam em seus homens-bode. Hedge baliu. — Eu sou um sátiro. E pode acreditar que vou enfiar este bastão na sua cabeça, seu pivete. O treinador avançou, mas assim que seu pé tocou o monumento, ouviu-se um estrondo e as pedras começaram a se mexer, como se fervilhassem. Vários guerreiros esqueléticos irromperam do cemitério, spartoi vestindo os restos esfarrapados de casacas vermelhas, o antigo uniforme britânico. Hedge tentou fugir, mas os primeiros dois esqueletos o seguraram pelos braços e o levantaram do chão. O treinador deixou o taco cair e ficou chutando o ar com os cascos. — Ei, me soltem, seus cabeça de osso idiotas! — berrava ele. Nico viu, paralisado, mais soldados britânicos jorrarem para fora do túmulo, cinco, dez, vinte, multiplicando-se tão depressa que Reyna e seus cães de metal foram cercados antes que o menino pudesse sequer pensar em levantar a espada. Como ele podia não ter detectado que sob seus pés havia tantos mortos? — Eu já ia esquecendo: na verdade, não estou sozinho nesta missão. Como podem ver, tenho apoio. Estes soldados britânicos prometeram misericórdia às tropas coloniais. Mas depois as chacinaram. Pessoalmente, gosto de um bom massacre, mas como eles quebraram o juramento, seus espíritos foram amaldiçoados, portanto estarão para sempre sob o poder de Orco. O que significa que estão também sob o meu controle. — Ele apontou para Reyna. — Peguem a garota. Os spartoi avançaram. Aurum e Argentum derrubaram os primeiros, mas foram rapidamente dominados e forçados ao chão. Mãos esqueléticas cobriamlhes o focinho, apertando com força. Os britânicos agarraram Reyna pelos braços. Para mortos-vivos, aquelas criaturas eram surpreendentemente rápidas. Nico finalmente despertou do transe. Ele atacou os spartoi, mas sua espada os atravessava inutilmente. Tentou transmitir a ordem de se dissolverem, mas os esqueletos agiram como se ele não existisse. — Qual o problema, filho de Hades? — perguntou Bryce, fingindo piedade. — Perdendo o dom? Nico tentou abrir caminho entre os esqueletos, mas eram numerosos demais. Era como se Bryce, Reyna e o treinador Hedge estivessem do outro lado de um muro de metal.
— Nico, fuja daqui! — ordenou Reyna. — Pegue a estátua e vá. — Isso, boa ideia! — concordou Bryce. — É claro, você sabe que seu próximo salto nas sombras será o último. Sabe que não tem força para sobreviver a mais um. Mas, por favor, leve a Atena Partenos. Nico baixou o olhar. Ele ainda segurava a espada estígia, mas suas mãos estavam escuras e transparentes como vidro fumê. Mesmo sob a luz direta do sol, ele estava se dissolvendo. — Pare com isso! — gritou ele. — Ora, eu não estou fazendo nada — disse Bryce. — Mas estou curioso para ver o que vai acontecer. Se você levar a estátua, vai desaparecer com ela para sempre, mergulhar no esquecimento. Se não levá-la… bem, tenho ordens de entregar Reyna viva para ser julgada por traição. Quanto a você, ou ao fauno, não recebi nenhuma ordem parecida. — Sátiro! — berrou o treinador, dando um chute na virilha ossuda de um esqueleto. Aparentemente, o golpe doeu mais em Hedge do que no soldado morto. — Ai! Britânicos mortos idiotas! Bryce cutucou a barriga do treinador com a ponta do pilum, dizendo: — Quero ver o nível de tolerância à dor deste aqui. Já testei todo tipo de animal. Cheguei a matar meu próprio centurião, certa vez. Nunca experimentei em um fauno… perdão, um sátiro. Vocês reencarnam, não é mesmo? Quanto de dor vocês aguentam antes de virarem um canteiro de margaridas? A raiva de Nico tornou-se fria e sombria como sua espada. Ele já havia sido transformado em algumas plantas, e não tinha gostado nada da experiência. Nico odiava gente como Bryce Lawrence, que provocava dor por pura diversão. — Deixe-o em paz — alertou Nico. Bryce ergueu uma sobrancelha. — Senão… o quê? Gostaria muito que você usasse seus poderes do Mundo Inferior, Nico. Eu adoraria ver. Estou com a ligeira impressão de que qualquer esforço grande vai fazer você desaparecer para sempre. Vá em frente. Reyna tentava avançar. — Bryce, deixe-os. Se você me quer como prisioneira, tudo bem. Vou de boa vontade e encaro o tribunal idiota de Octavian. — Bela proposta. — Bryce virou a lança, deixando a ponta pairar a alguns centímetros dos olhos de Reyna. — Você não sabe mesmo o que Octavian planejou, sabe? Ele anda ocupado usando sua influência, gastando o dinheiro da legião. Reyna cerrou os punhos. — Octavian não tem o direito de… — Ele tem o direito do poder — retrucou Bryce. — Você abriu mão de sua autoridade quando fugiu para as terras antigas. No dia primeiro de agosto, seus amigos gregos do Acampamento Meio-Sangue vão descobrir como Octavian é
um inimigo poderoso. Tive acesso aos projetos dele para algumas máquinas de guerra… Até eu fiquei impressionado. Nico sentiu como se seus ossos estivessem virando hélio, como daquela vez em que o deus Favônio o transformara em vento. Então os olhos dele encontraram os de Reyna. Nico sentiu a força dela preenchê-lo, uma onda de coragem e vitalidade que o fez se sentir substancial de novo, ancorado ao mundo mortal. Mesmo cercada pelos mortos e encarando a ameaça de execução, Reyna Ramírez-Arellano tinha um enorme reservatório de coragem a transmitir. — Nico — disse ela —, faça o que você tem que fazer. Eu lhe dou cobertura. Bryce deu uma risadinha. Estava obviamente se divertindo. — Ah, Reyna. Você dá cobertura a ele? Vai ser tão divertido arrastá-la até um tribunal, forçá-la a confessar que matou o próprio pai. Espero que eles a executem à moda antiga: que a joguem em um saco de pano com um cão raivoso, costurem você lá dentro e atirem o saco em um rio. Sempre quis ver isso. Mal posso esperar para que todos saibam do seu segredinho. Para que todos saibam do seu segredinho. A ponta do pilum riscou o rosto de Reyna, deixando uma linha de sangue. E foi então que a fúria de Nico explodiu.
XXXI
NICO
MAIS TARDE, CONTARAM A ELE o que tinha acontecido. Nico só se lembrava de gritar. Segundo Reyna, o ar em volta dele congelou. O chão enegreceu. Com um grito medonho, ele lançou uma onda de dor e raiva que varreu a todos na clareira. Reyna e o treinador vivenciaram a jornada de Nico pelo Tártaro, sua captura pelos gigantes, os dias que ele ficara dentro do jarro de bronze. Sentiram a angústia de Nico nos dias passados no Argo II e seu encontro com Cupido nas ruínas de Salona. Ouviram o desafio não verbal que ele dirigia a Bryce Lawrence, em alto e bom som: Você quer segredos? Então tome. Os spartoi se desintegraram, desfazendo-se em cinzas. As pedras do monumento funerário ficaram brancas, cobertas de gelo. Bryan Lawrence cambaleou, as mãos na cabeça, o nariz sangrando. Nico marchou na direção dele. Ao alcançá-lo, pegou o cordão de probatio do romano e o arrancou do pescoço dele. — Você não é digno disso — disse Nico com raiva. A terra se abriu aos pés de Bryce, e ele afundou até a cintura. — Pare! Bryce tentou se segurar na terra e nos buquês de plástico, mas seu corpo continuava afundando. — Você fez um juramento à legião. — No frio, a respiração de Nico saía em forma de vapor. — Você violou seus votos. Causou dor. Matou o próprio centurião. — Eu… eu não o matei! Eu… — Você deveria ter morrido por seus crimes — prosseguiu Nico. — Essa era a pena. Mas não, você foi exilado. Você deveria ter ficado lá, longe. Seu pai, Orco, pode não aprovar a quebra de juramentos, mas meu pai com certeza não aprova aqueles que escapam de sua devida punição. — Por favor! Aquela expressão não fazia sentido para Nico. Não havia piedade no Mundo Inferior. Apenas justiça. — Você já está morto — disse Nico. — É um fantasma sem língua, sem memória. Não vai revelar nenhum segredo. — Não! — O corpo de Bryce ficou escuro e enfumaçado. Ele afundou na terra até o peito. — Não, eu sou Bryce Lawrence! Eu estou vivo!
— Quem é você? — perguntou Nico. O som seguinte que saiu da boca de Bryce foi um sussurro indefinido. Seu rosto perdeu a definição. Ele podia ser qualquer um; apenas mais um espírito sem nome entre milhões. — Desapareça — ordenou Nico. O espírito se dissipou. A terra se fechou. Nico olhou para trás e viu que os amigos estavam a salvo. Reyna e Hedge não tiravam os olhos dele, horrorizados. O rosto de Reyna sangrava. Aurum e Argentum giravam em círculos, como se seus cérebros mecânicos tivessem entrado em curto-circuito. Nico desmaiou.
* * *
Os sonhos não faziam sentido algum, o que era quase um alívio. Um bando de corvos voava em círculos no céu escuro. Depois as aves se transformavam em cavalos que galopavam na praia em meio à arrebentação das ondas. Ele viu Bianca sentada no pavilhão do refeitório do Acampamento MeioSangue com as Caçadoras de Ártemis, sorrindo e se divertindo com seu novo grupo de amigas. Então Bianca se transformava em Hazel, que dava um beijo no rosto do irmão e dizia: — Quero que você seja uma exceção. Ele viu a harpia Ella com o cabelo vermelho emaranhado, as penas vermelhas e os olhos que pareciam café torrado. Estava empoleirada no sofá da sala da Casa Grande. Ao lado dela estava a cabeça empalhada mágica de Seymour. Ella balançava para a frente e para trás, dando Cheetos para o leopardo. — Queijo não é bom para harpias — resmungava ela. Depois seu rosto se retorcia, e ela recitava uma das linhas de profecia que havia memorizado: — A queda do sol, o último verso. — Ela dava mais Cheetos para Seymour. — Queijo é bom para cabeças de leopardo. E Seymour concordava com um rosnado. Ella então se transformava em uma ninfa das nuvens de cabelo negro e de gravidez avançada, retorcendo-se de dor em um dos beliches do acampamento. Clarisse La Rue, sentada ao lado dela, passava um pano úmido fresco na testa da ninfa. — Você vai ficar bem, Mellie — dizia Clarisse, apesar do tom de preocupação na voz. — Não, não está nada bem! — gemia Mellie. — Gaia está despertando! Outra cena. Nico com Hades em Berkeley Hills no dia em que o pai o levara
pela primeira vez ao Acampamento Júpiter. — Vá até eles — ordenava o deus. — Apresente-se como filho de Plutão. É importante que você atue como um elo. — Por quê? — perguntava Nico. Mas Hades se dissolvia no ar. Nico se via outra vez no Tártaro, diante de Akhlys, a deusa da miséria. Pelo rosto dela escorria sangue. De seus olhos brotavam lágrimas, que caíam no escudo de Hércules em seu colo. — Filho de Hades, o que mais eu poderia fazer por você? Você é perfeito! Tanto pesar e sofrimento! Nico arfou. Então abriu os olhos de uma vez. Estava estirado de costas, fitando a luz do sol que jorrava sobre os galhos das árvores. — Graças aos deuses. Reyna se debruçou sobre ele e tocou sua testa com a mão fria. Não havia mais vestígios do corte no rosto dela. O treinador Hedge estava ao lado de Reyna com uma expressão séria. Para infelicidade de Nico, dali de baixo ele tinha uma vista completa do interior das narinas do sátiro. — Ótimo — disse Hedge. — Só mais algumas aplicações. Ele então colocou sobre o nariz de Nico uma grande atadura quadrada coberta com uma gosma marrom. — O que é…? Urgh. A gosma fedia a adubo misturado com lascas de cedro, suco de uva e um leve toque de fertilizante. Nico não tinha forças para tirar aquilo do rosto. Seus sentidos voltaram a funcionar outra vez. Ele percebeu que se encontrava deitado sobre um saco de dormir fora da barraca. Estava só de cueca e com o corpo coberto de curativos marrons. A lama quase seca fazia seus braços, pernas e peito coçarem. — Você está… está tentando me plantar? — murmurou ele. — É medicina do esporte com um pouco de magia da natureza — explicou o treinador. — Uma espécie de hobby. Nico tentou se concentrar no rosto de Reyna. — Você aprovou isso? Ela parecia prestes a desmaiar de exaustão, mas conseguiu abrir um sorriso. — O treinador Hedge trouxe você de volta, e foi por pouco. Poção de unicórnio, ambrosia, néctar… não podíamos usar nada disso. Você estava praticamente desaparecendo. — Desaparecendo…? — Não se preocupe com isso agora, garoto. — Hedge aproximou um canudinho da boca de Nico. — Beba um pouco de Gatorade.
— Não… não quero… — Você precisa beber um pouco — insistiu o treinador. Nico tomou uns goles. Ficou surpreso ao ver como estava com sede. — O que aconteceu comigo? — perguntou o menino. — E com Bryce… e aqueles esqueletos…? Reyna e o treinador trocaram um olhar constrangido. — Temos boas e más notícias — disse Reyna. — Mas primeiro coma alguma coisa. Você precisa recuperar as forças antes de ouvir as más.
XXXII
NICO
— TRÊS DIAS? Nico não sabia se tinha ouvido direito nas primeiras doze vezes. — Não podíamos mover você — disse Reyna. — Quer dizer… literalmente, não tinha como, pois você praticamente não possuía substância. Se não fosse pelo treinador Hedge… — Não foi nada de mais — garantiu o treinador. — Uma vez, durante um jogo decisivo de futebol americano, tive que fazer uma tala para a perna do quarterback apenas com galhos de árvore e fita adesiva. Apesar do tom casual, o treinador exibia olheiras profundas. Suas faces estavam encovadas. Ele parecia tão mal quanto Nico. Nico não conseguia acreditar que tinha ficado tanto tempo inconsciente. Ele contou aos amigos sobre os sonhos estranhos que tivera: os murmúrios da harpia Ella, a visão da ninfa Mellie (o que deixou o treinador preocupado). Para Nico parecia que aquelas visões tinham durado apenas segundos. Segundo Reyna, era a tarde de trinta de julho. Ele tinha passado dias em uma espécie de coma. — Os romanos vão atacar o Acampamento Meio-Sangue depois de amanhã. — Nico bebeu mais Gatorade, que desceu bem e gelado, mas sem sabor. Suas papilas gustativas pareciam ter desaparecido para sempre no mundo das sombras. — Temos que correr. Eu preciso me preparar. — Não. — Reyna pressionou de leve o braço dele, produzindo um craquelado nos curativos. — Mais uma viagem nas sombras e você morre. Ele cerrou os dentes. — Se eu morrer, morri e pronto. Temos que levar a estátua para o Acampamento Meio-Sangue. — Ei, garoto — disse o treinador. — Admiro sua dedicação, mas não vai adiantar nada se você nos levar para a escuridão eterna com a Atena Partenos. Nesse ponto Bryce Lawrence estava certo. À menção de Bryce, os cães metálicos de Reyna levantaram as orelhas e rosnaram. Reyna lançou um olhar cheio de angústia para o dólmen, como se mais espíritos indesejáveis pudessem emergir das pedras. Nico respirou fundo, o cheiro do remédio caseiro de Hedge preencheu suas narinas. — Reyna, eu… eu agi sem pensar. O que fiz com Bryce…
— Você o destruiu — disse Reyna. — Transformou-o em um fantasma. E, sim, foi como o que aconteceu com meu pai. — Não era minha intenção assustar você — disse Nico, amargurado. — Eu não queria… estragar mais uma amizade. Me desculpe. Reyna observou o rosto dele. — Nico, tenho que admitir que durante o primeiro dia em que você ficou inconsciente, eu não sabia o que pensar nem sentir. O que você fez foi difícil de ver… difícil de processar. O treinador Hedge mascava um graveto. — Sou forçado a concordar com ela nesse ponto, garoto. Uma coisa é acertar alguém na cabeça com um taco de beisebol. Mas transformar aquele ser detestável em fantasma? Foi bem sinistro. Nico achou que fosse sentir raiva, gritar com eles por tentarem julgá-lo. Era isso o que ele normalmente fazia. Mas sua raiva não se concretizava. Ele ainda estava furioso com Bryce Lawrence e Gaia e os gigantes. Queria encontrar Octavian e estrangulá-lo com o próprio cinto do áugure. Mas não estava com raiva de Reyna nem do treinador. — Por que vocês me trouxeram de volta? — perguntou ele. — Vocês sabiam que eu não poderia ajudá-los mais. Podiam ter encontrado outro jeito de seguir em frente com a estátua. Mas desperdiçaram três dias cuidando de mim. Por quê? O treinador Hedge bufou. — Você faz parte da equipe, seu idiota. Não vamos abandonar você. — É mais que isso. — Reyna pôs a mão sobre a de Nico. — Enquanto você dormia, eu pensei muito. Aquilo que lhe contei sobre meu pai… Nunca tinha contado a ninguém. Acho que eu sabia que você era a pessoa certa com quem me abrir. Você aliviou o meu fardo. Eu confio em você, Nico. Ele a encarou, desconcertado. — Como pode confiar em mim? Vocês dois sentiram minha raiva, viram meus piores sentimentos… — Ei, garoto — disse o treinador Hedge com um tom de voz mais suave. — Todo mundo sente raiva. Até um fofo como eu. Reyna abriu um meio sorriso e apertou a mão de Nico. — Ele tem razão, Nico. Você não é o único que libera escuridão de vez em quando. Eu lhe contei o que aconteceu com meu pai, e você me apoiou. Você revelou suas experiências mais dolorosas; como poderíamos não lhe dar apoio? Somos seus amigos. Nico não sabia o que dizer. Eles tinham visto seus segredos mais profundos. Sabiam quem ele era, o que ele era. Mas pareciam não se importar. Não… na verdade, importavam-se ainda mais com ele.
Aqueles dois não o julgavam. Estavam preocupados. Nada daquilo fazia sentido para Nico. — Mas, Bryce, eu… — Nico não conseguiu continuar. — Você fez o que tinha que ser feito. Eu agora sei disso — disse Reyna. — Mas prometa uma coisa: se pudermos evitar, nada de transformar pessoas em fantasmas. — É — disse o treinador. — A menos que você me deixe bater nelas primeiro. Além disso, temos boas notícias também. Reyna assentiu. — Não vimos nenhum sinal de outros romanos, o que nos leva a concluir que Bryce não avisou a mais ninguém onde estávamos. Também nenhum sinal de Órion. Vamos torcer para que isso signifique que as Caçadoras deram um jeito nele. — E quanto a Hylla? — perguntou Nico. — E Thalia? Reyna franziu os lábios. — Nenhuma notícia. Mas preciso acreditar que ainda estão vivas. — Você não contou a ele a melhor notícia — disse o treinador, ansioso. Reyna franziu a testa. — Talvez porque seja difícil demais de acreditar. O treinador Hedge acha que encontrou outro jeito de transportar a estátua. Ele passou os últimos três dias falando nisso. Mas até agora não vimos nem sinal do… — Ei, vai acontecer! — O treinador sorriu para Nico. — Você se lembra daquele aviãozinho de papel que eu recebi antes de o Desprezível-Mor Lawrence aparecer? Era uma mensagem de um dos contatos de Mellie no palácio de Éolo. Tem uma harpia chamada Nuggets; ela e Mellie são amigas há muito tempo. Enfim… ela conhece um cara que conhece um cara que conhece um cavalo que conhece um bode que conhece outro cavalo… — Treinador — reclamou Reyna —, desse jeito ele vai se arrepender de ter saído do coma. — Está bem. — O sátiro bufou de irritação. — Resumindo: tive que mexer vários pauzinhos. Consegui avisar aos espíritos do vento legais que precisávamos de ajuda. Sabe a carta que eu comi? Era a confirmação de que a cavalaria está a caminho. Eles disseram que precisavam de algum tempo para se organizar, mas logo ele deve estar chegando… na verdade, a qualquer minuto. — Quem é ele? — perguntou Nico. — Que cavalaria? Reyna se levantou de repente. Ao olhar para o norte, ficou de queixo caído. — Aquela cavalaria… Nico acompanhou seu olhar. Viu um bando de aves no horizonte… aves grandes. À medida que elas se aproximavam, Nico percebeu que eram cavalos com asas, pelo menos meia dúzia deles, em formação em V. Nenhum cavaleiro os
montava. Na frente voava um garanhão enorme, de pelo dourado e plumagem multicolorida como a de uma águia. Sua envergadura era duas vezes maior que a dos outros. — Pégasos — disse Nico. — E muitos. O suficiente para carregarem a estátua. O treinador riu de prazer. — E não só pégasos quaisquer, garoto. Você vai ter uma grande surpresa. — O garanhão na frente… — Reyna balançava a cabeça, sem acreditar. — Aquele é o Pégaso, o senhor imortal dos cavalos.
XXXIII
LEO
TÍPICO. Quando Leo finalmente terminou suas modificações, uma grande deusa das tempestades surgiu e arrancou as alças de vela de seu navio. Depois de seu encontro com Cimopo-sei-lá-o-quê, o Argo II se arrastava pelo Egeu. Danificado demais para voar e lento demais para escapar de monstros, eles enfrentavam serpentes-marinhas famintas de hora em hora e atraíam cardumes de peixes curiosos. Em certo momento, ficaram encalhados em uma rocha, e Percy e Jason tiveram que descer e empurrar. O som resfolegante do motor deixava Leo com vontade de chorar. Após três longos dias, quando conseguiu botar o navio em condições minimamente decentes de funcionamento, eles atracaram na ilha de Mykonos, o que provavelmente significava que era hora de serem feitos em pedaços outra vez. Percy e Annabeth desembarcaram para explorar a cidade, enquanto Leo ficou no tombadilho, ajustando o painel de controle. Estava tão envolvido com a fiação que não percebeu a volta dos dois até Percy falar: — Oi, cara. Gelato. Seu dia melhorou na hora. Sem tempestades ou ataques de monstros com que se preocupar, a tripulação se sentou no convés e tomou sorvete. Bem, menos Frank, que tinha intolerância à lactose. Ele ganhou uma maçã. O dia estava quente, e ventava. O mar agitado reluzia, mas Leo havia consertado os estabilizadores, o que fez com que Hazel não ficasse tão enjoada. À esquerda de onde o navio estava ancorado ficava a cidade de Mykonos, um conjunto de construções de estuque branco com telhados, janelas e portas azuis. — Vimos pelicanos andando pela cidade — contou Percy. — Tipo entrando nas lojas, parando nos bares… Hazel franziu a testa. — Monstros disfarçados? — Não — disse Annabeth, rindo. — Pelicanos normais. Eles são as mascotes da cidade, ou algo assim. E ela tem uma parte italiana. Por isso o sorvete é tão bom. — A Europa é uma bagunça. — Leo balançou a cabeça. — Primeiro vamos a Roma atrás de praças espanholas. Depois vamos à Grécia e compramos sorvete italiano. Mas ele não podia discutir com o gelato. Ele comeu as duas bolas de chocolate e tentou imaginar que ele e os amigos estavam só relaxando, de férias. O que o
fez desejar que Calipso estivesse ao seu lado, o que o fez desejar que a guerra tivesse acabado e que todos eles estivessem vivos… o que o deixou triste. Era dia trinta de julho. Menos de quarenta e oito horas para o Dia G, quando Gaia, a Princesa da Lama e da Imundície, ia despertar em toda a sua glória de cara suja. O estranho era que, quanto mais se aproximavam de primeiro de agosto, mais ânimo seus amigos tinham. Ou talvez ânimo não fosse a palavra certa. Eles pareciam estar se preparando para o último ato, conscientes de que os dois dias seguintes poderiam consagrá-los ou destruí-los. Não fazia sentido ficar se lamuriando quando se estava diante da morte iminente. O fim do mundo fazia com que o sorvete tivesse um gosto muito melhor. Claro, o resto da tripulação não tinha descido até os estábulos com Leo e conversado com Nice, a deusa da vitória, nos três dias anteriores… Piper soltou seu potinho de sorvete. — Então, a ilha de Delos fica do outro lado da baía. A morada de Ártemis e Apolo. Quem vai lá? — Eu — disse Leo imediatamente. Todo mundo olhou para ele. — O que foi? — perguntou ele. — Eu sou diplomático e tal. Frank e Hazel se ofereceram para ir comigo. — Nós nos oferecemos? — Frank baixou a maçã comida pela metade. — Quer dizer… claro que sim. Os olhos dourados de Hazel brilharam sob a luz do sol. — Leo, você teve algum sonho sobre isso ou algo assim? — Tive — respondeu Leo, depressa. — Bem… não. Não exatamente. Mas… gente, vocês precisam confiar em mim nessa. Eu preciso falar com Apolo e Ártemis. Tenho uma ideia e preciso discuti-la com eles. Annabeth franziu a testa, como se fosse protestar, mas Jason tomou a palavra. — Se Leo tem uma ideia — disse ele —, precisamos confiar nele. Leo se sentia culpado em relação a isso, especialmente considerando qual era a ideia, mas ele esboçou um sorriso. — Valeu, cara. Percy deu de ombros. — Tudo bem. Mas tenho um conselho: quando encontrar Apolo, não mencione haicais. Hazel franziu as sobrancelhas. — Por que não? Ele não é o deus da poesia? — Confie em mim. — Entendido. — Leo ficou de pé. — E, gente, se houver uma loja de lembranças em Delos, com certeza vou trazer para vocês bonequinhos de Apolo e Ártemis!
* * *
Apolo não parecia estar no clima para haicais. E também não vendia bonequinhos. Frank se transformara em uma águia gigante para voar até Delos, mas Leo pegara uma carona com Hazel e Arion. Nada contra Frank, mas depois do fiasco em Forte Sumter, Leo desistira de montar águias gigantes. Ele tinha um índice de falha de cem por cento. Eles encontraram a ilha deserta, talvez porque o mar estivesse agitado demais para barcos turísticos. As colinas varridas pelos ventos eram áridas, exceto por rochas, grama e flores silvestres, e, é claro, vários templos em ruínas. Os destroços deviam ser impressionantes, mas, depois de Olímpia, Leo já ultrapassara sua cota de ruínas antigas. Ele tinha enjoado de colunas de mármore branco. Queria voltar para os Estados Unidos, onde os prédios mais antigos eram as escolas públicas e o seu bom e velho McDonald’s. Eles desceram uma avenida margeada por leões de pedra brancos, com as cabeças tão erodidas pelo tempo que quase não era possível ver mais traços. — É assustador — disse Hazel. — Está sentindo algum fantasma? — perguntou Frank. Ela balançou a cabeça. — A ausência de fantasmas é assustadora. Na Antiguidade, Delos era um local sagrado. Nenhum mortal podia nascer ou morrer aqui. Não há nenhum espírito mortal em toda esta ilha. — Por mim tudo bem — disse Leo. — Então quer dizer que ninguém tem permissão de nos matar aqui? — Não foi isso que eu disse. — Hazel parou no alto de um monte. — Olhem. Lá embaixo. Abaixo deles, um anfiteatro havia sido escavado na encosta. Pequenos arbustos brotavam entre as fileiras de assentos de pedra, parecendo um show para espinheiros. No centro, o deus Apolo estava sentado em um bloco de pedra no palco, debruçado sobre um uquelele, no qual dedilhava uma música triste. Bom, Leo supôs que fosse Apolo. O sujeito parecia ter dezessete anos, com cabelo louro cacheado e um bronzeado perfeito. Ele usava calça jeans rasgada, camiseta preta e um paletó de linho branco com lapelas cintilantes de strass, como se estivesse tentando criar um visual híbrido de Elvis, Ramones e Beach Boys. Leo não via o uquelele como um instrumento triste. (Patético, com certeza. Mas não triste.) Entretanto, a melodia que o deus tocava era tão melancólica que mexeu com os sentimentos dele. Havia uma garota de uns treze anos usando legging preta e túnica prateada sentada na primeira fila. O cabelo preto estava preso em um rabo de cavalo. Ela
estava entalhando um pedaço comprido de madeira… fazendo um arco. — Aqueles ali são os deuses? — perguntou Frank. — Mas eles não parecem gêmeos. — Ora, pense bem — disse Hazel. — Se você é um deus, pode ter a aparência que quiser. Se tivesse um irmão gêmeo… — Eu ia escolher me parecer com qualquer coisa menos meu irmão — concordou Frank. — Então qual é o plano? — Não atirem! — gritou Leo. Parecia um bom começo diante de dois deuses arqueiros. Ele ergueu os braços e se aproximou do palco. Nenhum dos deuses pareceu surpreso ao vê-los. Apolo deu um suspiro e voltou a tocar seu uquelele. Quando eles chegaram à primeira fila, Ártemis resmungou: — Aí estão vocês. Estávamos começando a ficar preocupados. Isso fez Leo relaxar um pouco. Ele estava prestes a se apresentar, explicar que vieram em paz, contar algumas piadas e oferecer balas de menta. — Então vocês estavam nos esperando — disse Leo. — Dá para perceber pelo nível de empolgação. Apolo tocou uma melodia que parecia a versão fúnebre de “Camptown Races”. — Estávamos esperando ser encontrados, perturbados e atormentados. Só não sabíamos por quem. Vocês não podem nos deixar sofrer em paz? — Você sabe que não, irmão — interveio Ártemis. — Eles precisam de nossa ajuda em sua missão, mesmo que suas chances sejam quase nulas. — Vocês dois são muito encorajadores — disse Leo. — Mas, afinal, por que estão escondidos aqui? Vocês não deviam… sei lá, estar combatendo gigantes ou algo assim? Os olhos pálidos de Ártemis fizeram Leo se sentir como um veado prestes a ser devorado. — Delos é nossa terra natal — disse a deusa. — Aqui não somos afetados pelo cisma greco-romano. Acredite em mim, Leo Valdez, se eu pudesse, estaria com minhas Caçadoras, enfrentando nosso velho inimigo Órion. Infelizmente, se eu sair desta ilha, ficarei incapacitada pela dor. Tudo o que posso fazer é assistir, impotente, enquanto Órion massacra minhas companheiras. Muitas deram a vida para proteger seus amigos e aquela maldita estátua de Atena. Hazel soltou um gritinho. — Está falando de Nico? Ele está bem? — Bem? — Apolo começou a chorar em cima de seu uquelele. — Nenhum de nós está bem, menina! Gaia está despertando! Ártemis olhou de relance para Apolo.
— Hazel Levesque, seu irmão ainda está vivo. Ele é valente, assim como você. Eu gostaria de poder dizer o mesmo do meu irmão. — Você está errada a meu respeito! — gemeu Apolo. — Eu fui enganado por Gaia e aquele garoto romano horrível! Frank pigarreou. — Hum, senhor Apolo, você está falando de Octavian? — Não diga o nome dele! — Apolo tocou um acorde menor. — Ah, Frank Zhang, queria que você fosse meu filho. Eu ouvi suas preces, sabia? Todas aquelas semanas em que você queria ser reclamado. Mas, infelizmente, Marte fica com todos os bons. Eu fico com… aquela criatura como meu descendente. Ele encheu minha cabeça de elogios… Falou dos grandes templos que ia erguer em minha honra. Ártemis fungou. — Você é bajulado com muita facilidade, irmão. — Porque eu tenho muitas qualidades maravilhosas para louvar! Octavian disse que iria tornar os romanos poderosos novamente. E eu só concordei! E dei a ele minha bênção. — Pelo que me lembro — disse Ártemis —, ele também prometeu fazer de você o deus mais importante, acima até de Zeus. — Como eu poderia recusar uma oferta dessas? Zeus tem um bronzeado perfeito? Ele sabe tocar uquelele? Acho que não! Mas nunca imaginei que Octavian fosse começar uma guerra! Gaia devia estar turvando meus pensamentos, sussurrando mentiras em meu ouvido. Leo se lembrou do sujeito maluco dos ventos, Éolo, que se tornou homicida após ouvir a voz de Gaia. — Então resolva isso! — disse Leo. — Diga a Octavian para parar. Ou, você sabe, atire uma de suas flechas nele. Isso também serviria. — Não posso! — lamentou Apolo. — Veja! O uquelele se transformou em um arco. Ele o apontou para o céu e disparou. A flecha dourada subiu cerca de sessenta metros, depois virou fumaça. — Para usar meu arco, eu teria que sair de Delos — lamentou Apolo. — Mas eu ficaria incapacitado, ou Zeus iria me matar. Meu pai jamais gostou de mim. Ele não confia em mim há milênios! — Bem — disse Ártemis —, para ser justa, teve aquela vez em que você conspirou com Hera para derrubá-lo. — Isso foi um mal-entendido! — E você matou alguns dos ciclopes de Zeus. — Tive um bom motivo! De qualquer forma, agora Zeus me culpa por tudo: as armações de Octavian, a queda de Delfos… — Espere aí. — Hazel fez um sinal pedindo tempo. — A queda de Delfos?
O arco de Apolo se transformou outra vez no uquelele. Ele tocou um acorde dramático. — Quando o problema entre as personalidades grega e romana começou, eu fiquei muito confuso, e Gaia se aproveitou disso! Ela despertou meu velho inimigo, Píton, a grande serpente, para retomar o Oráculo de Delfos. Aquela criatura horrenda está lá agora habitando as cavernas antigas, bloqueando a magia da profecia. E eu estou preso aqui, por isso nem posso enfrentá-lo. — Que droga — disse Leo, apesar de, em segredo, achar que a ausência de profecias talvez fosse uma coisa boa. Sua lista de tarefas já estava bem grande. — Uma droga mesmo! — Apolo suspirou. — Zeus já estava com raiva de mim por indicar aquela garota nova, Rachel Dare, como meu oráculo. Meu pai achou que, ao fazer isso, eu antecipei a guerra com Gaia, pois, assim que dei a Rachel minha bênção, ela anunciou a Profecia dos Sete. Mas as profecias não funcionam assim! Meu pai só precisava de um bode expiatório. Então, é claro que ele escolheu o deus mais bonito, mais talentoso e, com certeza, mais incrível. Ártemis fingiu que ia vomitar. — Ah, não venha com essa, irmã! — exclamou Apolo. — Você também está enrascada! — Só porque eu contrariei os desejos de Zeus e mantive contato com minhas Caçadoras — disse Ártemis. — Mas sempre posso convencer papai a me perdoar. Ele nunca conseguiu ficar com raiva de mim por muito tempo. É com você que estou preocupada. — Eu também estou preocupado comigo! — concordou Apolo. — Precisamos fazer alguma coisa. Não temos como matar Octavian. Humm. Talvez devêssemos matar estes semideuses. — Ei, Cara da Música, calma aí. — Leo conteve a vontade de se esconder atrás de Frank e gritar: Quero ver você enfrentar este canadense grandão aqui! — Estamos do seu lado, lembra? Por que você iria nos matar? — Talvez faça com que eu me sinta melhor! — exclamou Apolo. — Preciso fazer alguma coisa! — Você podia nos ajudar — disse Leo rapidamente. — Então, temos um plano… Ele lhes contou que Hera havia orientado que fossem a Delos e obtivessem os ingredientes da cura do médico que Nice revelara. — A cura do médico? — Apolo se levantou e destruiu o uquelele nas pedras. — É esse o seu plano? Leo levantou as mãos. — Ei, hum, normalmente sou totalmente a favor de destruir uqueleles, mas é que… — Eu não posso ajudar! — exclamou Apolo. — Se eu contasse a vocês o segredo da cura do médico, Zeus jamais me perdoaria!
— Você já está com problemas — observou Leo. — Não pode ficar pior do que já está. Apolo olhou para ele. — Se soubesse do que meu pai é capaz, mortal, você não faria essa pergunta. Seria mais simples se eu apenas matasse todos vocês. Talvez isso agrade a Zeus… — Irmão… — chamou Ártemis. Os gêmeos se encararam e tiveram uma discussão silenciosa. Aparentemente, Ártemis venceu. Apolo soltou um grande suspiro e chutou o uquelele quebrado para o outro lado do palco. Ártemis se levantou. — Hazel Levesque, Frank Zhang, venham comigo. Há coisas que vocês devem saber sobre a Décima Segunda Legião. Quanto a você, Leo Valdez… — A deusa mirou os olhos prateados e frios nele. — Apolo vai ouvi-lo. Veja se vocês conseguem chegar a um acordo. Meu irmão gosta de uma boa negociação. Frank e Hazel olharam para ele como quem diz Por favor, não morra. Depois, subiram os degraus do anfiteatro atrás de Ártemis e desceram pelo outro lado do monte. — E então, Leo Valdez? — Apolo cruzou os braços. Seus olhos tinham um brilho dourado. — Vamos negociar. O que tem a oferecer que poderia me convencer a ajudá-lo em vez de matá-lo?
XXXIV
LEO
— NEGOCIAR. — OS DEDOS DE LEO se contorciam. — Sim. Claro. As mãos dele começaram a trabalhar antes que sua mente soubesse o que estava fazendo. Ele começou a tirar coisas dos bolsos de seu cinto de ferramentas mágico: fios de cobre, parafusos, um funil de latão. Ele estava guardando pedaços e peças de máquinas havia vários meses, porque nunca sabia do que poderia precisar. E quanto mais tempo usava o cinto, mais intuitivo ele se tornava. Ele enfiava a mão em um bolso e a coisa certa simplesmente aparecia. — Então a situação é esta — disse Leo, enquanto suas mãos torciam os fios. — Zeus está furioso com você, certo? Se nos ajudar a derrotar Gaia, você pode voltar a ficar bem com ele. Apolo torceu o nariz. — Imagino que isso seja possível. Mas seria mais fácil destruir você. — E que tipo de balada isso daria? — As mãos de Leo trabalhavam loucamente, prendendo alavancas, fixando o funil de latão em um velho eixo de engrenagem. — Você é o deus da música, não é? Você ouviria uma canção chamada “Apolo mata um semideus baixinho”? Eu, não. Mas “Apolo derrota a Mãe Terra e salva todo o universo”… isso parece um primeiro lugar garantido no top dez da Billboard! Apolo olhou para o vazio, como se visualizasse seu nome em um letreiro luminoso. — O que você quer, exatamente? E o que eu ganho com isso? — A primeira coisa de que preciso é um conselho. — Leo passou alguns fios pela abertura do funil. — Quero saber se meu plano vai funcionar. Leo explicou o que tinha em mente. O garoto estava remoendo aquela ideia havia dias, desde que Jason voltara do fundo do mar e ele começou a conversar com Nice. Cimopoleia dissera a Jason: Um deus primordial já foi derrotado antes. Você sabe de quem estou falando. As conversas de Leo com Nice o ajudaram a fazer alguns ajustes no plano, mas ele ainda queria uma segunda opinião de outro deus. Pois, assim que Leo se comprometesse, não haveria volta. Ele tinha esperança de que Apolo apenas risse e lhe dissesse para esquecer tudo aquilo. Em vez disso, o deus assentiu, pensativo.
— Este conselho é de graça: você pode derrotar Gaia como me descreveu, mais ou menos como fizeram com Urano éons atrás. Entretanto, qualquer mortal que estiver por perto será completamente… — A voz de Apolo vacilou. — O que é isso? Leo olhou para o instrumento que tinha em mãos. Fileiras de fios de cobre, como vários jogos de cordas de uma guitarra, se cruzavam no interior do funil. Conjuntos de captadores eram controlados por botões no exterior da estrutura, que estava presa a uma placa de metal com várias manivelas. — Ah, isso…? A mente de Leo trabalhava alucinadamente. O objeto em suas mãos parecia uma caixa de música misturada com um gramofone antigo, mas o que era aquilo? Algo para negociar. Ártemis lhe dissera para chegar a um acordo com Apolo. Leo lembrou-se de uma história da qual as crianças do chalé 11 costumavam se gabar: como o pai deles, Hermes, escapara do castigo por roubar as vacas sagradas de Apolo. Quando Hermes foi pego, ele fez um instrumento musical — a primeira lira — e o ofereceu a Apolo, que o perdoou imediatamente. Poucos dias antes, Piper mencionara ter visto em Pilos a caverna onde Hermes tinha escondido aquelas vacas. Isso deve ter ficado no subconsciente de Leo. Sem querer, ele havia construído um instrumento musical, coisa que lhe causou certa surpresa, já que ele não sabia nada de música. — Hum, bem — disse Leo. — Este é simplesmente o instrumento mais maravilhoso de todos os tempos! — Como funciona? — perguntou o deus. Boa pergunta, pensou Leo. Ele girou as manivelas, torcendo para que aquilo não explodisse na sua cara. Soaram algumas notas. Metálicas, mas quentes. Leo manipulou as alavancas e as engrenagens. Ele reconheceu a canção, a mesma melodia melancólica sobre recordações e saudades que Calipso cantou para ele em Ogígia. Mas, através das cordas no funil de latão, a canção soava ainda mais triste, como uma máquina com o coração partido, como Festus soaria se pudesse cantar. Leo esqueceu que Apolo estava ali. Tocou a canção até o final. Quando terminou, seus olhos lacrimejavam. Ele quase sentia o cheiro de pão saído do forno na cozinha de Calipso; o gosto do único beijo que ela lhe dera. Apolo olhava impressionado para o instrumento. — Eu preciso dele. Como se chama? O que você quer por ele? Leo sentiu um desejo súbito de esconder o instrumento e guardá-lo para si. Mas engoliu sua melancolia. Tinha uma tarefa a cumprir… Calipso… Calipso precisava que ele tivesse sucesso.
— Este é o Valdezinator, é claro! — Ele estufou o peito. — Ele funciona, hum, traduzindo seus sentimentos em música enquanto você manipula os controles. Mas, na verdade, ele é feito para ser usado por mim, um filho de Hefesto. Não sei se você conseguiria… — Eu sou o deus da música! — exclamou Apolo. — É claro que posso aprender a tocar o Valdezinator. Eu preciso! É meu dever! — Então, Cara da Música, vamos começar a negociar — disse Leo. — Eu lhe dou isso se você me entregar a cura do médico. — Ah… — Apolo mordeu o lábio divino. — Bem, na verdade eu não tenho a cura do médico. — Achei que você fosse o deus da medicina. — Sou, mas sou o deus de muitas coisas! Poesia, música, o Oráculo de Delfos… — Ele começou a chorar, cobrindo a boca com o punho. — Desculpe, eu estou bem, estou bem. Como estava dizendo, tenho muitas áreas de influência. E, claro, além disso, tenho todo esse trabalho de “deus do sol” que herdei de Hélios. A questão é que sou mais um clínico geral. Para a cura do médico, você precisa ver um especialista, o único que já conseguiu curar com sucesso a morte: meu filho, Asclépio, o deus da cura. Leo ficou arrasado. A última coisa de que precisavam era mais uma missão para procurar mais um deus que provavelmente iria exigir camisetas em sua homenagem ou um Valdezinator. — É uma pena, Apolo. Eu esperava que pudéssemos fazer negócio. Leo girou as alavancas em seu Valdezinator, produzindo uma melodia suave ainda mais triste. — Pare! — gemeu Apolo. — É bonito demais. Vou lhe dizer como encontrar Asclépio. Ele está muito, muito perto! — Como vamos garantir que ele vai nos ajudar? Nós só temos dois dias antes que Gaia desperte. — Ele vai ajudar! — prometeu Apolo. — Meu filho adora ajudar. Basta apelar para ele em meu nome. Você vai encontrá-lo em seu velho templo em Epidauro. — Qual é a pegadinha? — Ah… bem, nada. Exceto, é claro, que ele está sob vigilância. — Quem está vigiando? — Não sei! — Apolo estendeu as mãos, desesperado. — Só sei que Zeus está mantendo Asclépio preso para que ele não saia pelo mundo ressuscitando as pessoas. Na primeira vez em que Asclépio despertou os mortos… bem, ele causou um grande tumulto. É uma história longa. Mas tenho certeza de que você pode convencê-lo a ajudar. — Isso não me parece um bom negócio — disse Leo. — E sobre o último ingrediente, a maldição de Delos. O que é isso?
Apolo olhou com cobiça para o Valdezinator. Leo temeu que o deus simplesmente o tomasse dele, e como ele o impediria? Atacar o deus do sol com fogo provavelmente não iria adiantar muita coisa. — Eu posso lhe dar o último ingrediente — disse Apolo. — Aí você terá tudo de que precisa para que Asclépio prepare a poção. Leo tocou mais um verso. — Não sei. Trocar esse belo Valdezinator por uma maldição de Delos… — Na verdade, não é uma maldição! Veja… — Apolo correu até as flores silvestres mais próximas e colheu uma amarela da fenda entre as pedras. — Isto é a maldição de Delos. Leo olhou atentamente para a flor. — Uma margarida amaldiçoada? Apolo deu um suspiro exasperado. — É só um apelido. Quando minha mãe, Leto, estava prestes a dar à luz Ártemis e a mim, Hera estava com raiva, porque Zeus a havia traído novamente. Então ela foi a todo pedaço de terra do planeta e fez os espíritos da natureza de todos os lugares prometerem expulsar minha mãe, para que ela não pudesse dar à luz em lugar algum. — Isso é a cara da Hera. — Pois é. Enfim, Hera obteve promessas de todos os lugares enraizados na terra, menos de Delos, porque na época Delos era uma ilha flutuante. Os espíritos da natureza daqui receberam minha mãe. Ela deu à luz minha irmã e a mim, e a ilha ficou tão feliz por ser nosso novo lar sagrado que se cobriu com essas florzinhas amarelas. As flores são uma bênção, porque somos maravilhosos. Mas também simbolizam uma maldição, pois, depois que nascemos, Delos se enraizou e não pôde mais flutuar pelos mares. É por isso que margaridas amarelas são consideradas a maldição de Delos. — Então eu podia simplesmente ter colhido uma margarida e ido embora? — Não, não! Para a poção que você tem em mente, a flor tem que ser colhida por mim ou minha irmã. Então, o que me diz, semideus? Instruções para encontrar Asclépio e seu último ingrediente mágico em troca desse novo instrumento musical. Negócio fechado? Leo odiou a ideia de entregar um Valdezinator em perfeito estado em troca de uma florzinha, mas não via outra opção. — Cara da Música, é difícil barganhar com você. Eles fizeram a troca. — Excelente! — Apolo mexeu nas manivelas do Valdezinator, produzindo um som que lembrava o motor de um carro. — Humm… talvez seja necessário um pouco de prática, mas vou aprender! Agora, vamos achar seus amigos. Quanto antes vocês partirem, melhor!
* * *
Hazel e Frank aguardavam nas docas de Delos. Ártemis não estava com eles. Quando Leo se virou para se despedir de Apolo, viu que o deus também tinha desaparecido. — Caramba — resmungou Leo. — Ele estava mesmo ansioso para praticar com o Valdezinator. — Com o quê? — perguntou Hazel. Leo contou a eles sobre seu novo hobby como inventor genial de funis musicais. Frank coçou a cabeça. — E, em troca, você ganhou uma margarida? — É o ingrediente final para curar a morte, Zhang. É uma supermargarida! E vocês dois? Descobriram alguma coisa com Ártemis? — Infelizmente, sim. — Hazel olhou para o mar, onde o Argo II balançava ancorado. — Ártemis sabe muito sobre armas de guerra. Ela nos contou que Octavian encomendou algumas… surpresas para o Acampamento Meio-Sangue. Ele usou a maior parte do tesouro da legião para comprar onagros construídos por ciclopes. — Ah, não, onagros, não! — exclamou Leo. — Por falar nisso, o que é um onagro? Frank franziu a testa. — Você constrói máquinas. Como pode não saber o que é um onagro? É simplesmente a maior e mais letal catapulta já usada pelo exército romano. — Legal — disse Leo. — Mas onagro é um nome idiota. Eles deveriam tê-las chamado de Valdezpultas. Hazel revirou os olhos. — Leo, isso é sério. Se Ártemis estiver certa, seis dessas máquinas vão chegar a Long Island amanhã à noite. É isso o que Octavian está esperando. Ao amanhecer do dia primeiro de agosto, ele vai ter poder de fogo suficiente para destruir o Acampamento Meio-Sangue sem uma única baixa romana. Octavian acha que isso fará dele um herói. Frank murmurou um palavrão em latim. — Só que ele também convocou tantos monstros “aliados” que a legião está completamente cercada por centauros selvagens, bandos de cinocéfalos com cabeças de cachorro e sabe-se lá o que mais. Assim que a legião destruir o Acampamento Meio-Sangue, os monstros vão se voltar contra Octavian e destruir a legião. — E aí Gaia desperta — concluiu Leo. — E coisas ruins acontecem. Engrenagens giravam na cabeça do garoto à medida que novas informações se encaixavam no lugar.
— Tudo bem… isso só torna meu plano ainda mais importante. Assim que conseguirmos essa cura do médico, vou precisar da ajuda de vocês. Frank olhou apreensivo para a margarida amarela amaldiçoada. — Que tipo de ajuda? Leo contou o plano a eles. Quanto mais falava, mais chocados eles pareciam, mas, quando terminou, nenhum dos dois lhe disse que ele estava louco. Uma lágrima cintilava no rosto de Hazel. — Tem que ser assim — disse Leo. — Nice confirmou. Apolo confirmou. Os outros nunca iriam aceitar, mas vocês… vocês são romanos. Foi por isso que eu quis que viessem a Delos comigo. Vocês têm toda essa coisa de sacrifício… de cumprir com seu dever, de ficar entre a cruz e a adaga. Frank fungou. — Acho que você quis dizer entre a cruz e a espada. — Tanto faz — disse Leo. — Vocês sabem que tem que ser essa a resposta. — Leo… — A voz de Frank ficou embargada. Até Leo quis chorar como um Valdezinator, mas manteve a calma. — Ô grandão, estou contando com você. Lembra-se do que me contou sobre aquela conversa com Marte? Seu pai disse que você ia ter que agir, certo? Você teria que tomar a decisão que ninguém mais estaria disposto a tomar. — Ou a guerra vai descambar — lembrou Frank. — Mas mesmo assim… — E Hazel — disse Leo. — Grande Hazel da Névoa Mágica… preciso que você me dê cobertura. Você é a única que pode fazer isso. Meu bisavô Sammy viu como você era especial. Ele me abençoou quando eu era bebê, porque acho que de alguma forma ele sabia que você ia voltar e me ajudar. Tudo pelo que passamos, mi amiga, nos conduziu a isso. — Ah, Leo… Então suas lágrimas começaram a jorrar. Ela o abraçou apertado, o que foi carinhoso até Frank começar a chorar e abraçar os dois. E aí foi meio estranho. — Está bem, está bem… — Leo se livrou deles com delicadeza. — Então, estamos de acordo? — Odiei esse plano — disse Frank. — Achei horrível. — Pensem em como eu me sinto — disse Leo. — Mas vocês sabem que é nossa melhor chance. Nenhum dos dois discordou. Leo meio que desejava que o tivessem contrariado. — Vamos voltar para o navio — disse ele. — Temos que encontrar um deus da cura.
XXXV
LEO
LEO IMEDIATAMENTE VIU A ENTRADA secreta. — Ah, isso é lindo. Ele manobrou o navio de forma a pairar acima das ruínas de Epidauro. O Argo II não estava em boas condições para voar, mas Leo conseguira fazêlo subir após uma única noite de trabalho. Com o mundo terminando na manhã seguinte, ele estava extremamente motivado. O garoto tinha consertado os remos. Injetara água do Rio Estige na parafuseta. Dera à figura de proa, Festus, sua bebida favorita: óleo de motor com molho de pimenta. Até Buford, a Mesa Maravilhosa, havia aparecido chacoalhando pelos andares inferiores com seu mini-Hedge holográfico gritando “PAGUE TRINTA FLEXÕES!” para inspirar o motor. Finalmente, eles pairavam acima dos destroços do antigo templo do deus da cura, Asclépio, onde tinham esperança de conseguir a cura do médico e talvez ambrosia, néctar e salgadinhos, porque os estoques de Leo estavam acabando. Ao lado dele no tombadilho, Percy observava, apoiado na amurada. — Parece que temos mais ruínas — observou. Seu rosto ainda estava meio esverdeado devido ao veneno, mas pelo menos ele estava vomitando com menos frequência. Somando ele e o enjoo de Hazel, tinha sido impossível encontrar um banheiro vazio nos últimos dias. Annabeth apontou para a estrutura em forma de disco cerca de cinquenta metros a bombordo. — Ali. Leo sorriu. — Exatamente. Viram? A arquiteta sabe o que está fazendo. O restante da tripulação se reuniu ao redor deles. — Nós estamos olhando para o quê? — perguntou Frank. — Ah, señor Zhang — disse Leo. — Você não fala sempre: “Leo, você é o único gênio de verdade entre os semideuses”? — Tenho quase certeza de que nunca disse isso. — Bem, quer dizer que há outros gênios de verdade! Porque um deles deve ter feito aquela obra de arte. — É um círculo de pedra — disse Frank. — Provavelmente a fundação de um santuário antigo. Piper balançou a cabeça.
— Não, é mais que isso. Veja os sulcos e as ranhuras esculpidos em torno da borda. — Parecem os dentes de uma engrenagem — sugeriu Jason. — E aqueles anéis concêntricos. — Hazel apontou para o centro da estrutura, onde rochas curvadas formavam uma espécie de alvo. — Esse padrão me lembra o pingente de Pasifae: o símbolo do Labirinto. — Hum. — Leo franziu a testa. — Bem, eu não tinha pensado nisso. Mas pense como um mecânico. Frank, Hazel… onde vimos círculos concêntricos como esses antes? — No laboratório sob Roma — disse Frank. — A fechadura de Arquimedes — lembrou Hazel. — Tinha anéis dentro de anéis. Percy escarneceu: — Estão me dizendo que aquilo é uma fechadura de pedra maciça? Tem uns quinze metros de diâmetro. — Leo pode estar certo — disse Annabeth. — Na Antiguidade, o templo de Asclépio era como o hospital da Grécia. Todo mundo vinha aqui em busca do melhor tratamento. Na superfície, tinha o tamanho de uma cidade, mas supostamente as coisas realmente aconteciam no subsolo. Era lá que os sumos sacerdotes tinham seu CTI, um complexo supermágico acessível apenas por uma passagem secreta. Percy coçou a orelha. — Então se aquela coisa redonda enorme é a tranca, como arranjamos a chave? — Você está atrasado, Aquaman — disse Leo. — Ei, não me chame de Aquaman. Isso é ainda pior que garoto da água. Leo se virou para Jason e Piper. — Vocês dois se lembram da garra de Arquimedes que eu disse que estava construindo? Jason ergueu uma sobrancelha. — Achei que você estivesse brincando. — Ah, meu amigo. Eu nunca brinco quando o assunto são garras gigantes! — Leo esfregou as mãos em antecipação. — É hora de pescar prêmios!
* * *
Em comparação com as outras modificações que Leo tinha feito no navio, a garra mecânica fora moleza. Originalmente, Arquimedes a projetara para lançar navios inimigos para fora da água. Mas Leo tinha encontrado outro uso para ela.
Ele abriu a portinhola de acesso à parte dianteira do casco e estendeu a garra mecânica, guiada pelo monitor no painel de controle e por Jason, que voava lá fora gritando instruções. — Esquerda! — exclamou Jason. — Um pouco mais… Aí! Tudo bem, pode descer. Continue. Você está indo bem. Usando o trackpad e um controle, Leo abriu a garra. Os dedos se posicionaram em torno dos sulcos da estrutura circular de pedra. Ele conferiu os estabilizadores aéreos e as imagens no monitor. — Tudo bem, amiguinho. — Leo deu um tapinha na esfera de Arquimedes instalada no timão. — Agora é a sua vez. Ele ativou a esfera. A garra começou a girar como um saca-rolha. O mecanismo rodou o círculo externo de pedra, que rangeu e fez um estrondo, mas felizmente não se quebrou. Em seguida, a garra o soltou, agarrou o segundo círculo e o girou no sentido oposto. Piper, que estava ao lado dele junto do monitor, o beijou no rosto. — Está funcionando. Leo, você é incrível. Leo sorriu. Estava prestes a fazer um comentário sobre como ele era mesmo incrível quando se lembrou do plano que tinha combinado com Hazel e Frank e do fato de que podia nunca mais tornar a ver Piper depois do dia seguinte. A piada meio que morreu em sua garganta. — É, bem… obrigado, Miss Universo. Abaixo deles, o último anel de pedra girou e parou com um chiado pneumático retumbante. A base de quinze metros de diâmetro afundou, transformando-se em uma escada em espiral. Hazel soltou o ar dos pulmões. — Leo, mesmo daqui de cima, estou sentindo coisas ruins no fim dessa escada. Alguma coisa grande e perigosa. Tem certeza de que não quer que eu vá antes? — Obrigado, Hazel, mas vamos ficar bem. — Ele deu um tapinha nas costas dela. — Eu, Piper e Jason… nós três somos profissionais com coisas grandes e perigosas. Frank estendeu o frasco de menta pilosiana. — Não quebre. Leo assentiu com seriedade. — Ok, não quebrar o frasco de veneno mortal. Cara, ainda bem que você avisou. Nunca teria passado pela minha cabeça. — Cale a boca, Valdez. — Frank lhe deu um abraço de urso. — E cuidado. — Minhas costelas — gemeu Leo. — Desculpe.
Annabeth e Percy lhes desejaram boa sorte. Em seguida, Percy pediu licença para ir vomitar. Jason invocou os ventos e levou Piper e Leo para pousar lá embaixo.
* * *
A escada em espiral descia cerca de vinte metros para então se abrir em uma câmara tão grande quanto o bunker 9, ou seja: enorme. As lajotas polidas nas paredes e no chão refletiam a luz da espada de Jason tão bem que Leo não precisou acender uma chama. Fileiras de bancos de pedra compridos enchiam toda a câmara, lembrando a Leo uma dessas igrejas imensas que sempre anunciavam lá em Houston. Do outro lado do salão, onde deveria ficar o altar, havia uma estátua de três metros de puro alabastro, uma jovem de túnica branca e sorriso sereno no rosto. A figura tinha uma serpente dourada enrolada no braço e segurava uma taça, com a cabeça do réptil apoiada na borda como se o animal fosse beber. — Grande e perigosa — comentou Jason. Piper olhou em volta. — Aqui devia ser a área de pernoite. — Sua voz ecoou um pouco alto demais para o gosto de Leo. — Os pacientes dormiam aqui. O deus Asclépio mandava um sonho para eles, dizendo qual cura deveriam pedir. — Como sabe disso? — perguntou Leo. — Annabeth contou a você? Piper pareceu ofendida. — Eu sei das coisas. Aquela estátua é de Hígia, a deusa da boa saúde. É daí que vem a palavra higiene. Jason observou a estátua com desconfiança. — E essa cobra e a taça? — Hum, não tenho certeza — admitiu Piper. — Mas antigamente este lugar, o Asclepeion, era também uma escola de medicina. Todos os melhores doutoressacerdotes eram treinados aqui. Eles deviam cultuar tanto Asclépio quanto Hígia. Leo teve vontade de dizer: Tudo bem, o tour foi ótimo. Agora vamos embora. O silêncio, as lajotas brancas cintilantes, o sorriso assustador no rosto de Hígia… tudo lhe dava vontade de cair fora dali o mais rápido possível. Mas Jason e Piper seguiram pelo corredor principal na direção da estátua, então Leo achou melhor ir atrás deles. Havia revistas velhas jogadas nos bancos: O melhor para crianças, outono, 20 AEC; A semana na tevê Hefesto: A nova gravidez de Afrodite; A — A revista de Asclépio: Dez dicas simples para tirar o máximo de suas sangrias! — É uma sala de espera — murmurou Leo. — Odeio salas de espera.
Em alguns pontos, havia pilhas de poeira e ossos espalhados pelo chão, o que não revelava coisas animadoras sobre o tempo de espera. — Olhem lá. — Jason apontou. — Aqueles avisos estavam ali quando chegamos? E aquela porta? Leo achava que não. Na parede à direita da estátua havia dois painéis eletrônicos. O de cima dizia:
O MÉDICO ESTÁ: PRESO.
O painel abaixo dizia:
ATENDENDO AGORA A SENHA: 0000000
Jason apertou os olhos. — Não consigo ler a essa distância. O médico está… — Preso — completou Leo. — Apolo me avisou que Asclépio estava sendo mantido sob vigilância. Zeus não queria que ele revelasse seus segredos médicos ou algo assim. — Aposto vinte e um pacotes de jujuba que a estátua é a guardiã — disse Piper. — Nem vou entrar nessa aposta. — Leo olhou para a pilha de poeira mais próxima. — Bem… acho melhor pegarmos um número.
* * *
A estátua gigante tinha outros planos. Quando os três chegaram a um metro e meio de distância, ela virou a cabeça e olhou para eles. Sua expressão permaneceu congelada. A boca não se mexeu. Mas uma voz vinda de algum ponto acima dos três ecoou por todo o salão. — Vocês têm hora marcada? Piper não perdeu tempo: — Oi, Hígia! Apolo nos mandou. Precisamos ver Asclépio. A estátua de alabastro desceu de sua plataforma. Talvez ela fosse mecânica, mas Leo não conseguia ouvir nenhuma parte móvel. Para ter certeza, teria que tocá-la, e ele não queria chegar tão perto.
— Entendo. — A estátua não parava de sorrir, apesar do tom aborrecido. — Podem me emprestar a carteirinha do plano de saúde? — Ah, bem, não trouxemos, mas… — Não estão com a carteirinha do plano? — A estátua balançou a cabeça. Um suspiro exasperado ecoou pela câmara. — Imagino que vocês também não tenham se preparado para a consulta. Lavaram bem as mãos? — Hum… sim? — disse Piper. Leo olhou para as próprias mãos, que, como sempre, estavam sujas de graxa e fuligem. Ele as escondeu às costas. — Estão usando roupa de baixo limpa? — perguntou a estátua. — Ei, moça — disse Leo. — Isso está ficando muito invasivo. — É necessário usar roupa de baixo limpa para ir ao consultório médico — repreendeu Hígia. — Infelizmente, vocês são um risco para a saúde. Vão ter que ser higienizados antes de entrarem. A serpente dourada se desenrolou e desceu de seu braço, recuou a cabeça e sibilou, exibindo presas que pareciam sabres. — Ah, sabe — disse Jason —, ser higienizado por serpentes gigantes não está incluído em nosso plano de saúde. Droga. — Ah, isso não tem importância — assegurou-lhes Hígia. — A higienização é um serviço para a comunidade. É gratuito! A serpente deu o bote. Leo tinha muita prática em se esquivar de monstros mecânicos, o que foi útil, porque a serpente era rápida e passou a centímetros de sua cabeça. Ele rolou e se levantou com as mãos em chamas. Quando a cobra atacou, ele as lançou na direção de seus olhos, fazendo-a desviar para a esquerda e bater com força em um banco. Piper e Jason estavam cuidando de Hígia. Eles cortaram os joelhos da estátua com suas lâminas, derrubando-a como uma árvore de Natal de alabastro. A cabeça dela bateu em um banco. Seu cálice virou, derramando ácido por todo o chão. Jason e Piper se aproximaram para matá-la, mas, antes que pudessem golpeá-la, as pernas de Hígia se uniram novamente, como se tivessem ímãs. A deusa se levantou, ainda sorrindo. — É inaceitável — disse ela. — O médico só vai vê-los quando estiverem devidamente higienizados. Ela jogou o conteúdo de sua taça na direção de Piper, que saltou para o lado enquanto mais ácido caía nos bancos próximos, dissolvendo a rocha em uma nuvem sibilante de fumaça. Nesse meio-tempo, a cobra recobrou os sentidos. Seus olhos de metal derretido se consertaram de alguma maneira. Sua cabeça se desamassou e recuperou a inabalável forma, como um capô de carro.
Ela atacou Leo, que se abaixou e tentou agarrá-la pelo pescoço. Foi como tentar segurar uma lixa a sessenta quilômetros por hora. A serpente passou direto, e sua pele áspera de metal deixou as mãos de Leo raladas e sangrando. O contato rápido, porém, foi suficiente para Leo perceber algumas coisas. A cobra era uma máquina. Ele sentiu seu funcionamento, e se a estátua de Hígia funcionasse de forma parecida, talvez houvesse uma chance… Do outro lado da câmara, Jason levantou voo e arrancou a cabeça da deusa. Mas, infelizmente, a cabeça voou direto de volta para seu lugar. — Inaceitável — disse Hígia, calmamente. — Decapitação não faz parte de um estilo de vida saudável. — Jason, vem pra cá! — berrou Leo. — Piper, preciso que você ganhe tempo para nós! Piper olhou para ele como quem diz Falar é fácil. — Hígia! — gritou ela. — Eu tenho plano de saúde! Isso chamou a atenção da estátua. Até a cobra dourada se virou para ela, como se plano de saúde fosse alguma espécie de roedor saboroso. — Plano de saúde? — disse a estátua com avidez. — Qual? — Hum… Raio Azul — respondeu Piper. — Estou com a carteirinha bem aqui. Só um segundo. Ela fez uma cena fingindo revistar os bolsos. A cobra rastejou para mais perto a fim de acompanhar. Jason correu para o lado de Leo, arfando. — Qual é o plano? — Não podemos destruir essas coisas — contou Leo. — Elas foram projetadas para se curarem. São imunes a praticamente qualquer tipo de dano. — Ótimo. Então…? — Você se lembra do videogame velho de Quíron? — perguntou Leo. Os olhos de Jason se arregalaram. — Leo, isso aqui não é o Mario Party 6. — Mas é o mesmo princípio. — Modo idiota? Leo sorriu. — Preciso que você e Piper distraiam as duas. Vou reprogramar a cobra, depois a grandalhona. — Hígia. — Que seja. Pronto? — Não. Leo e Jason correram na direção da cobra. Hígia estava cobrindo Piper de perguntas sobre o plano de saúde. — A mensalidade está em dia? Ainda está em carência? Quem é sua divindade de contato de emergência?
Enquanto Piper respondia de improviso, Leo pulou sobre as costas da serpente. Dessa vez, ele sabia o que estava procurando, e por um instante a serpente nem pareceu notá-lo. Leo abriu um painel perto da cabeça da cobra. Ele se segurava com as pernas, tentando ignorar a dor e o sangue grudento nas mãos enquanto refazia a fiação da serpente. Jason estava por perto, pronto para atacar, mas a cobra parecia hipnotizada pelos problemas de Piper com a cobertura do plano Raio Azul. — Então, a enfermeira que me atendeu disse que eu tinha que ligar para a central de atendimento. E que os medicamentos não estavam cobertos pelo meu plano! E que… A cobra se moveu bruscamente quando Leo conectou os dois últimos fios. O garoto então saltou das costas dela, e a serpente dourada começou a tremer sem parar. Hígia voltou o olhar para eles. — O que vocês fizeram? Minha cobra precisa de cuidados médicos! — Ela tem plano de saúde? — perguntou Piper. — O QUÊ? A estátua voltou sua atenção para Piper, e Leo saltou. Jason invocou uma rajada de vento, que carregou Leo até os ombros da estátua, como um menininho na corcunda do pai. Leo abriu a parte de trás da cabeça de Hígia enquanto ela andava sem rumo pela câmara derramando ácido. — Saia daí! — berrou ela. — Isso não é higiênico. — Ei! — berrou Jason, voando em círculos ao redor dela. — Eu tenho algumas perguntas sobre as minhas carências! — O quê!? — exclamou a estátua. — Hígia! — gritou Piper. — Preciso de um recibo para o imposto de renda! — Não, por favor! Leo encontrou o chip de controle da estátua. Apertou alguns botões e puxou alguns fios, tentando fingir que Hígia fosse um console da Nintendo, só que grande e perigoso. Ele reconectou os circuitos, e Hígia começou a girar, gritando e agitando os braços. Leo pulou para longe dela, evitando um banho de ácido. Todos os semideuses recuaram enquanto Hígia e sua cobra pareciam ter um ataque epilético. — O que você fez? — perguntou Piper. — Modo idiota — explicou Leo. — Como? — Lá no acampamento — explicou Jason —, Quíron tinha um jogo antigo na sala de recreação. Leo e eu jogávamos de vez em quando. Você compete contra, tipo, adversários controlados pelo computador. Era bem tosco… — E tinha três níveis de dificuldade — cortou Leo. — Fácil, médio e difícil.
— Eu já joguei videogames — disse Piper. — Então o que você fez? — Bem, eu me cansei do jogo. — Leo deu de ombros. — Então inventei um quarto nível de dificuldade: o modo idiota. Ele faz os adversários agirem de maneira tão estúpida que fica engraçado. Eles sempre escolhem exatamente a coisa errada a fazer. Piper olhava para a estátua e a cobra. Ambas se contorciam e começavam a soltar fumaça. — Tem certeza de que botou as duas em modo idiota? — Vamos descobrir em um minuto. — E se você botou em dificuldade extra? — Vamos descobrir isso também. A cobra parou de se contorcer, se enroscou e olhou ao redor, como se estivesse muito confusa. Hígia congelou. Uma nuvem de fumaça saiu de sua orelha direita. Ela olhou para Leo. — Você deve morrer! Olá! Você deve morrer! Ela levantou a taça e derramou ácido no próprio rosto. Depois se virou e andou até dar de cara com a parede mais próxima. A serpente deu o bote e bateu com a cabeça várias vezes no chão. — Tudo bem — disse Jason. — Acho que conseguimos o modo idiota. — Olá! Morram! Hígia se afastou da parede e bateu com a cara de novo. — Vamos embora. Leo correu na direção da porta de metal perto da plataforma. Ele segurou a maçaneta. Ainda estava trancada, mas Leo sentiu os mecanismos em seu interior, fios correndo pelo portal, conectados com… Ele olhou para os dois painéis que piscavam acima da porta. — Jason, me dê uma ajudinha. Outra rajada de vento o ergueu no ar. Leo começou a trabalhar com seus alicates, reprogramando os painéis até o do alto se acender com a mensagem:
O MÉDICO ESTÁ: NA PISTA PRA NEGÓCIO.
O painel de baixo dizia:
ATENDENDO AGORA A SENHA: AS GATAS SE AMARRAM NO LEO!
A porta de metal se abriu, e Leo desceu até o chão. — Viu, a espera não foi das piores! — Leo sorriu para os amigos. — O doutor vai nos atender agora.
XXXVI
LEO
NO FIM DO CORREDOR HAVIA uma porta de nogueira com uma placa de bronze:
ASCLÉPIO Médico, dentista, enfermeiro, veterinário, paramédico, deus, cirurgião, pai de santo, milagreiro, curandeiro, Ph.D, LTDA., MBA, DVD, MP3, RSVP, VIP, BPKCT.
A lista devia continuar, mas, àquela altura, o cérebro de Leo tinha explodido. Piper bateu à porta. — Dr. Asclépio? A porta se abriu de repente. O homem que surgiu tinha um sorriso simpático, rugas ao redor dos olhos, cabelo curto e grisalho e barba bem-aparada. Usava jaleco branco por cima de um terno escuro e tinha um estetoscópio pendurado no pescoço — o estereótipo de um médico, exceto por uma coisa: Asclépio segurava um cajado negro polido com uma píton de verdade enrolada nele. Leo não gostou de ver outra cobra. A píton o encarou com seus olhos amarelos pálidos, e Leo teve a sensação de que ela não estava programada no modo idiota. — Olá! — disse Asclépio. — Doutor. — O sorriso de Piper era tão caloroso que teria derretido um Boreada. — Nós ficaríamos tão gratos por sua ajuda. Precisamos da cura do médico. Leo nem era seu alvo, mas o charme de Piper o atingiu de maneira irresistível. Ele teria feito qualquer coisa para ajudá-la a conseguir aquela cura. Teria feito faculdade de medicina, conseguido doze diplomas de doutorado e comprado uma grande píton verde em uma vara. Asclépio pôs a mão no peito. — Ah, minha querida, será um prazer. O sorriso de Piper vacilou. — O senhor vai nos ajudar? Quer dizer, é claro que vai. — Venham! Venham! — Asclépio os convidou a entrar em seu consultório. O sujeito era tão simpático que Leo achou que sua sala estaria cheia de instrumentos de tortura, mas parecia… bem, um consultório médico: uma grande
escrivaninha de madeira, estantes cheias de livros de medicina e alguns daqueles modelos de órgãos de plástico com os quais Leo adorava brincar quando criança. Ele se lembrou de quando arranjou problemas uma vez por ter transformado um rim e alguns ossos da perna em um monstro-rim e assustado a enfermeira. Naquela época, a vida era mais simples. Asclépio sentou-se na grande poltrona de médico e apoiou o cajado e a cobra na mesa. — Por favor, sentem-se! Jason e Piper sentaram-se nas duas cadeiras em frente à mesa. Leo teve que permanecer de pé, o que não foi nenhum problema. Ele não queria ficar cara a cara com a cobra. — Bem. — Asclépio se recostou. — Mal posso dizer a vocês como é bom conversar com pacientes de verdade. Nos últimos milênios, a papelada ficou fora de controle. Depressa, depressa, depressa. Preencha os formulários. Resolva a burocracia. Sem falar na vigia de alabastro gigante que mata todo mundo na sala de espera. Isso tira toda a graça da medicina! — É — disse Leo. — Hígia é meio deprimente. Asclépio sorriu. — A verdadeira Hígia não é assim, garanto a vocês. Minha filha é muito simpática. De qualquer modo, você fez bem ao reprogramar a estátua. Tem mãos de cirurgião. Jason sentiu um calafrio. — Leo com um bisturi? Não dê ideias. O deus médico riu. — Bem, o que posso fazer por vocês? — Ele chegou a cadeira para a frente e olhou atentamente para Jason. — Hum… ferimento de espada de ouro imperial, mas cicatrizou bem. Nada de câncer nem problemas cardíacos. Fique atento a essa mancha no seu pé esquerdo, mas tenho certeza de que é benigna. Jason ficou pasmo. — Como o senhor… — Ah, é claro! — disse Asclépio. — Você é um pouco míope! Fácil de resolver. Ele abriu a gaveta e pegou um bloco de receituário e um estojo de óculos. O deus rabiscou alguma coisa no bloco, depois entregou os óculos e uma folha de papel para Jason. — Fique com os óculos e guarde a receita para futura referência, mas estas lentes devem funcionar. Experimente. — Espere — disse Leo. — Jason é míope? Jason abriu o estojo. — Eu… ultimamente tenho tido um pouco de dificuldade para ver as coisas a certa distância — admitiu ele. — Achei que fosse só cansaço. — Ele
experimentou os óculos, que tinham uma armação fina de ouro imperial. — Uau. É. Muito melhor. Piper sorriu. — Ficou com cara de sério. — Não sei, cara — disse Leo. — Eu ia preferir lentes de contato… daquelas laranja e brilhantes com pupilas de gato. Seria muito legal. — Os óculos ficaram ótimos — disse Jason. — Obrigado, Dr. Asclépio, mas não foi por isso que viemos. — Não? — Asclépio juntou as mãos, apenas tocando as pontas dos dedos. — Bem, vamos ver, então… — Ele se virou para Piper. — Você parece bem, minha querida. Quebrou o braço quando tinha seis anos. Queda de cavalo? Piper ficou boquiaberta. — Como você pode saber uma coisa dessas? — Vegetariana — continuou ele. — Nenhum problema, apenas se lembre de continuar a consumir ferro e proteínas suficientes. Humm… Uma pequena fraqueza no ombro esquerdo. Suponho que tenha sido atingida por algo pesado, há cerca de um mês, talvez? — Um saco de areia, em Roma — disse Piper. — Isso é impressionante. — Se incomodar, alterne compressas frias e quentes — aconselhou Asclépio. — E você… Ele se virou para Leo. — Minha nossa. — A expressão do médico ficou séria. O brilho amistoso desapareceu de seus olhos. — Ah, estou vendo… A expressão nos olhos do doutor dizia Eu sinto muito mesmo. O coração de Leo ficou pesado como concreto. Se ele nutria alguma esperança de evitar o que estava por vir, desapareceu naquele instante. — O quê? — Os óculos novos de Jason brilharam. — Qual o problema com Leo? — Ei, doutor. — Ele lançou para o médico um olhar de esqueça. Com sorte, eles já tinham o conceito de sigilo médico na Grécia Antiga. — Nós viemos em busca da cura do médico. O senhor pode nos ajudar? Tenho um pouco de menta pilosiana aqui e uma margarida amarela muito bonita. Ele pôs os ingredientes na mesa, com cuidado para evitar a boca da serpente. — Espere — disse Piper. — Tem algum problema com Leo ou não? Asclépio pigarreou. — Eu… Não importa. Esqueçam que eu disse qualquer coisa. Bem, vocês querem a cura do médico. Piper fechou a cara. — Mas… — Gente, sério — disse Leo. — Tirando o fato de que Gaia vai destruir o mundo amanhã, eu estou bem. Vamos nos concentrar.
Eles não pareceram muito convencidos, mas Asclépio simplesmente seguiu com a conversa: — Esta margarida foi colhida por meu pai, Apolo? — Foi — disse Leo. — Ele mandou beijos e abraços. Asclépio pegou a flor e a cheirou. — Espero que meu pai saia bem dessa guerra. Zeus pode ser… bastante injusto. Agora, o único ingrediente que está faltando são os batimentos do deus acorrentado. — Está comigo — disse Piper. — Pelo menos eu posso invocar os makhai. — Excelente. Só um instante, querida. — Ele olhou para sua serpente. — Espeto, está pronto? Leo segurou o riso. — O nome da sua cobra é Espeto? Espeto olhou para ele de modo sinistro; então sibilou e abriu uma coroa de espinhos em torno do pescoço, como um basilisco. O riso de Leo morreu em sua garganta. — Foi mal — disse ele. — Claro que seu nome é Espeto. — Ele é um pouco mal-humorado — disse Asclépio. — As pessoas vivem confundindo o meu cajado com o de Hermes, que obviamente tem duas cobras. Há séculos as pessoas consideram o cajado de Hermes o símbolo da medicina, quando, é claro, deveria ser o meu cajado. Espeto se sente ofendido. George e Martha ficam com toda a atenção. Enfim… Asclépio pôs a margarida e o veneno diante de Espeto. — Menta pilosiana, morte certa. A maldição de Delos, enraizando o que não pode ser enraizado. Agora o ingrediente final, os batimentos do deus acorrentado, caos, violência e medo da mortalidade. — Ele se virou para Piper. — Querida, pode invocar os makhai. Piper fechou os olhos. Um turbilhão de vento invadiu a sala. Vozes raivosas gritavam. Leo sentiu uma vontade estranha de acertar Espeto com um martelo. Queria estrangular o bom doutor com as próprias mãos. Então a cobra abriu a boca e engoliu o vento furioso. Seu pescoço inflou como um balão quando os espíritos da batalha passaram por sua garganta. Depois Espeto engoliu a margarida e o frasco de menta pilosiana, de sobremesa. — O veneno não vai fazer mal a ele? — perguntou Jason. — Não, não — garantiu Asclépio. — Esperem só para ver. No momento seguinte, a cobra Espeto regurgitou um frasco: um tubo de vidro do tamanho do dedo de Leo. Em seu interior brilhava um líquido vermelhoescuro. — A cura do médico. — Asclépio pegou o frasco e o virou para a luz. Sua expressão ficou séria, depois confusa. — Esperem… por que eu concordei em
fazer isso? Piper pôs a mão na mesa com a palma virada para cima. — Porque nós precisamos disso para salvar o mundo. É muito importante. O senhor é o único que pode nos ajudar. O charme era tão poderoso que até Espeto, a cobra, ficou mais calmo. Ele se enroscou em torno do cajado e pegou no sono. A expressão de Asclépio se tranquilizou, como se ele estivesse relaxando em uma banheira de água quente. — É claro — disse o deus. — Tinha esquecido. Mas vocês devem tomar cuidado. Hades odeia quando eu trago pessoas dos mortos. Na última vez que dei essa poção a uma pessoa, o senhor do Mundo Inferior reclamou com Zeus, e eu fui morto por um raio. BUM! Leo ficou perplexo. — Você está muito bem para um morto. — Ah, eu melhorei. Isso foi parte do acordo. Sabe, quando Zeus me matou, meu pai, Apolo, ficou muito aborrecido. Ele não podia descarregar sua raiva diretamente em Zeus; afinal, o rei dos deuses era poderoso demais. Então, em vez disso, Apolo resolveu se vingar nos criadores dos raios. Ele matou alguns dos ciclopes anciãos. Por causa disso, Zeus castigou Apolo… severamente. No fim, para trazer a paz, Zeus concordou em me tornar o deus da cura, com a condição de que eu não trouxesse mais ninguém de volta à vida. — Nesse momento, os olhos de Asclépio se encheram de desconfiança. — E aqui estou eu… dando a cura a vocês. — O senhor está disposto a abrir uma exceção, pois sabe quanto isso é importante — disse Piper. — É… — Com relutância, Asclépio entregou o frasco a Piper. — De qualquer modo, a poção deve ser usada o mais rápido possível após a morte. Pode ser injetada ou derramada na boca. E só há o suficiente para uma pessoa. — Ele olhou diretamente para Leo. — Vocês entenderam? — Sim — prometeu Piper. — Tem certeza de que o senhor não quer vir com a gente, Asclépio? Sua guardiã está incapacitada. O senhor seria de grande ajuda a bordo do Argo II. Asclépio sorriu com saudade. — O Argo… Na época em que eu era um semideus, viajei no navio original, sabiam? Ah, ser novamente um aventureiro sem preocupações! — Sim… — murmurou Jason. — Sem preocupações. — Mas, infelizmente, não posso. Zeus já vai ficar com muita raiva de mim por ajudar vocês. Além disso, minha guardiã logo vai se reprogramar sozinha. Vocês devem partir. — Asclépio se levantou. — Desejo tudo de bom para vocês, semideuses. E se tornarem a ver meu pai, por favor… peçam desculpas a ele por mim.
Leo não entendeu o que o médico queria dizer com aquilo, mas eles foram embora. Quando passaram pela sala de espera, a estátua de Hígia estava sentada em um banco, derramando ácido no rosto e cantando “Brilha, brilha, estrelinha” enquanto a cobra dourada mordia seu pé. A cena pacífica quase foi suficiente para deixar Leo animado.
* * *
Quando voltaram ao Argo II, eles se reuniram no refeitório e contaram tudo para os outros. — Não gostei do jeito como Asclépio olhou para Leo… — disse Jason. — Ah, ele só percebeu a dor que eu sinto no coração. — Leo tentou sorrir. — Estou morrendo de saudade de Calipso. — Isso é tão lindo — disse Piper. — Mas não sei se é bem isso. Percy olhou com uma expressão séria para o frasco vermelho reluzente que estava sobre a mesa, bem no meio. — Qualquer um de nós pode morrer, certo? Então vamos precisar manter essa poção sempre à mão. — Isso supondo que apenas um de nós morra — observou Jason. — Só tem uma dose. Hazel e Frank olharam para Leo. Ele lançou para os dois um olhar que dizia Parem com isso. Os outros não viam o quadro completo: Em tempestade ou fogo, o mundo terá acabado… Jason ou Leo. Em Olímpia, Nice tinha avisado que um dos quatro semideuses que estavam lá iria morrer: Percy, Hazel, Frank ou Leo. Só um nome estava nessas duas listas: Leo. E para que o plano dele funcionasse, o garoto não poderia ter ninguém por perto quando apertasse o gatilho. Seus amigos nunca aceitariam sua decisão. Iam discutir. Iam tentar salvá-lo. Iam insistir em procurar outra maneira. Mas Leo estava convencido de que dessa vez não havia outra maneira. Era como Annabeth sempre dizia: lutar contra uma profecia nunca funcionava. Só criava mais problemas. Ele tinha que garantir que aquela guerra terminaria, de uma vez por todas. — Temos que manter nossas opções em aberto — sugeriu Piper. — Precisamos, tipo, designar uma pessoa para levar a poção, alguém que possa reagir rapidamente e curar quem quer que seja morto. — Boa ideia, Miss Universo — mentiu Leo. — Eu escolho você. Piper piscou.
— Mas… Annabeth é mais sábia. Hazel pode chegar mais rápido em Arion. Frank pode se transformar em animais… — Mas você tem o coração. — Annabeth apertou a mão da amiga. — Leo tem razão. Quando chegar a hora, você vai saber o que fazer. — É — concordou Jason. — Tenho a sensação de que você é a melhor escolha, Pipes. Você vai estar lá com a gente no fim, aconteça o que acontecer, tempestade ou fogo. Leo pegou o frasco. — Todo mundo de acordo? Ninguém se opôs. Leo olhou nos olhos de Hazel. Você sabe o que precisa fazer. Ele puxou um pedaço de camurça de seu cinto de ferramentas e fez um grande teatro para embrulhar a cura do médico. Depois, entregou o embrulho para Piper. — Então, tudo bem — disse ele. — Próxima parada: Atenas. Preparem-se para encarar alguns gigantes. — É… — murmurou Frank. — Tenho certeza de que vou dormir bem. Depois que as pessoas deixaram a mesa, Jason e Piper tentaram dar uma prensa em Leo. Queriam conversar sobre o que tinha acontecido no consultório do deus, mas Leo se esquivou. — Tenho que trabalhar no motor — disse ele, o que era verdade. Quando chegou à sala das máquinas, com apenas Buford, a Mesa Maravilhosa, como companhia, Leo respirou fundo. Levou a mão ao cinto de ferramentas e pegou o verdadeiro frasco com a cura do médico, não a versão truque-da-Névoa que entregara a Piper. Buford soprou vapor sobre ele. — Ei, cara, eu tive que fazer isso — defendeu-se Leo. Buford ativou o Hedge holográfico: “VISTA ALGUMA COISA!” — Olhe, esse é o único jeito. Do contrário, todos nós vamos morrer. Buford emitiu um ruído agudo e melancólico, depois foi chacoalhando para um canto, emburrado. Leo olhou para o motor. Ele tinha gastado muito tempo construindo-o. Havia dedicado meses de suor, dor e solidão. Agora o Argo II se aproximava de seu destino final. A vida inteira de Leo, a infância com Tía Callida, a morte da mãe no incêndio do armazém, seus anos como filho adotivo, os meses no Acampamento Meio-Sangue com Jason e Piper… Tudo isso culminaria na manhã seguinte em uma única batalha final. Ele abriu o painel de serviço. A voz de Festus crepitou pelo sistema de comunicação. — É, parceiro — concordou Leo. — Está na hora. Mais estalidos.
— Eu sei. Juntos até o fim? Festus emitiu um ruído agudo, concordando. Leo conferiu o antigo astrolábio de bronze, que agora estava com o cristal de Ogígia encaixado. Só podia torcer para que funcionasse. — Vou voltar para você, Calipso — murmurou Leo. — Eu jurei pelo Rio Estige. Ele acionou um botão e ligou o sistema de navegação on-line. Ajustou o timer para vinte e quatro horas. Por fim, abriu a saída de ventilação do motor e empurrou lá dentro o frasco com a cura do médico. O frasco desapareceu nas entranhas do navio com um tump definitivo. — Agora é tarde demais para voltar atrás — disse Leo. Ele se encolheu no chão e fechou os olhos, determinado a aproveitar o ruído familiar do motor pela última vez.
XXXVII
REYNA
— VOLTE! Reyna não gostava de dar ordens a Pégaso, o senhor dos cavalos alados, mas gostava menos ainda de ser derrubada do céu. Quando se aproximavam do Acampamento Meio-Sangue, antes das primeiras horas do dia primeiro de agosto, ela avistou seis onagros romanos. Mesmo no escuro, o revestimento em ouro imperial dos mecanismos reluzia. Os enormes braços de lançamento se vergavam para trás como mastros de navio adernando em uma tempestade. Equipes de artilheiros corriam em torno dos onagros, carregando-os e conferindo a torção das cordas. — O que são essas coisas? — perguntou Nico, aos gritos. Ele voava uns seis metros à esquerda dela, no pégaso negro Blackjack. — Armas de cerco — respondeu Reyna. — Se avançarmos mais, podem nos derrubar do céu. — Desta altura? À direita dela, montado em Guido, o treinador Hedge gritou: — São onagros, garoto! Essas coisas acertam mais alto que um chute do Bruce Lee! — Lorde Pégaso — disse Reyna, botando a mão no pescoço do garanhão —, precisamos de um lugar seguro para aterrissar. Pégaso deve ter entendido, pois fez uma curva para a esquerda. Os outros cavalos alados foram atrás dele: Blackjack, Guido e os seis que levavam a Atena Partenos, pendurada por cabos. Enquanto davam a volta na extremidade oeste do acampamento, Reyna pôde observar o cenário completo. A legião estava posicionada na base das colinas a leste, pronta para atacar ao amanhecer. Os onagros ficavam na retaguarda, em um semicírculo espaçado, com intervalos de trezentos metros entre um e outro. A julgar pelo tamanho das armas, Reyna calculou que Octavian tinha poder de fogo suficiente para destruir todos os seres vivos do vale. Mas isso era apenas parte da ameaça. Havia centenas de forças auxiliares acampadas ao longo dos flancos da legião. Embora fosse difícil enxergar no escuro, Reyna identificou pelo menos uma tribo de centauros selvagens e um exército de cinocéfalos, os homens com cabeça de cachorro que séculos antes tinham feito uma trégua instável com a legião. Os romanos estavam em grande inferioridade numérica, cercados por um mar de aliados não confiáveis.
— Ali. — Nico apontou na direção do Estreito de Long Island, onde as luzes de um iate grande brilhavam a uns quinhentos metros da costa. — Podíamos pousar no convés daquele iate. Os gregos controlam o mar. Reyna duvidava que os gregos seriam minimamente mais amistosos que os romanos, mas pelo visto Pégaso gostou da ideia, pois desviou na direção das águas escuras do estreito. A embarcação tinha cem pés de comprimento, linhas elegantes e portas de cor escura. Na proa, em letras vermelhas, estava pintado o nome MI AMOR. No tombadilho havia um heliporto grande o suficiente para a Atena Partenos. Reyna não viu ninguém a bordo. O iate devia ser um mero barco mortal, ancorado apenas para a noite, mas se fosse uma armadilha… — É nossa melhor opção — disse Nico. — Os cavalos estão cansados. Precisamos descer. Ela assentiu com relutância. — Vamos lá. Pégaso aterrissou no convés de proa com Guido e Blackjack. Os outros seis cavalos baixaram a Atena Partenos cuidadosamente no heliporto, depois pousaram ao redor da estátua. Com os cabos e arreios, pareciam cavalinhos de carrossel. Reyna desmontou. Tal qual fizera dois dias antes, ao conhecer Pégaso, ajoelhou-se diante do cavalo. — Obrigada, ó grandioso. Pégaso abriu as asas e inclinou a cabeça. Mesmo naquele momento, depois de percorrer metade da costa leste americana nas asas de Pégaso, Reyna mal podia acreditar que o cavalo imortal lhe havia permitido montá-lo. Reyna sempre o imaginara completamente branco, com asas como as de uma pomba, mas Pégaso tinha pelagem castanha com pintas douradas e vermelhas em torno do focinho. Hedge dizia que as pintas eram marcas de nascença, dos pontos em que o cavalo emergira do sangue e do icor de sua mãe decapitada, Medusa. As asas de Pégaso eram das cores de asas de águia (dourado, branco, marrom e ferrugem), o que o deixava muito mais belo e imponente do que se fosse apenas branco. Ele tinha a cor de todos os cavalos, representando toda a sua linhagem. O poderoso Pégaso relinchou. Hedge foi até eles para traduzir. — Pégaso diz que precisa partir antes de a batalha começar. Sabe, a força vital dele conecta todos os pégasos, então se ele for ferido, todos os cavalos alados sentem sua dor. É por isso que ele não sai muito. Ele é imortal, mas seus descendentes não. E Pégaso não quer que eles sofram por sua causa. Ele ordenou
aos outros cavalos que ficassem conosco para nos ajudar a completar nossa missão. — Eu entendo — disse Reyna. — Obrigada. Pégaso relinchou. Hedge arregalou os olhos. Ele engoliu um soluço, depois pegou um lenço na mochila e secou os olhos. — Treinador? — Nico franziu a testa, preocupado. — O que Pégaso disse? — Ele disse que não foi por causa da minha mensagem que veio nos ajudar. — Hedge se virou para Reyna. — Foi por sua causa. Ele sente o que todos os outros cavalos alados sentem e acompanhou sua amizade com Cipião. Pégaso disse que nunca ficou tão emocionado com a compaixão de um semideus por um cavalo alado. Ele dá a você o título de Amiga dos Cavalos. É uma grande honra. Os olhos de Reyna lacrimejaram. Ela inclinou a cabeça. — Obrigada, lorde Pégaso. Pégaso bateu com as patas no convés. Os outros cavalos alados relincharam em saudação. Então Pégaso se elevou aos céus e subiu em uma espiral noite adentro. Hedge ficou olhando para as nuvens, pasmo. — Pégaso não aparecia fazia séculos. — Ele deu tapinhas nas costas de Reyna. — Muito bem, romana. Reyna não achava que merecesse crédito por fazer Cipião passar por tanto sofrimento, mas reprimiu o sentimento de culpa. — Nico, é melhor verificarmos o navio — disse ela. — Se houver alguém a bordo… — Você está atrasada. — Ele acariciou o focinho de Blackjack. — Sinto a presença de dois mortais dormindo na cabine principal. Mais ninguém. Não sou nenhum filho de Hipnos, mas mandei para eles alguns sonhos profundos. Deve ser suficiente para que acordem só depois de amanhecer. Reyna tentava não encará-lo. Nos últimos dias, ele tinha ficado muito mais forte. A magia da natureza de Hedge o trouxera de volta da quase morte. Ela já tinha visto Nico realizar coisas impressionantes, mas manipular sonhos… Será que ele sempre fora capaz de fazer isso? O treinador Hedge esfregou as mãos com ansiedade. — Então, quando podemos ir para terra firme? Minha esposa está esperando! Reyna observou o horizonte. Uma trirreme grega patrulhava as águas junto à costa, aparentemente alheia à chegada deles. Nenhum alarme soava. Nenhum sinal de movimento ao longo da praia. Ela captou o vislumbre de um rastro d’água prateado ao luar, uns quinhentos metros a oeste. Uma lancha preta acelerava na direção deles, com todas as luzes apagadas. Reyna torceu para que fosse um mortal. Quando a lancha se
aproximou, Reyna apertou com força o cabo da espada. Na proa da lancha brilhava a forma de uma coroa de louros com as letras SPQR. — A legião mandou um comitê de boas-vindas — comentou Reyna. Nico acompanhou o olhar dela. — Achei que os romanos não tivessem marinha. — Não tínhamos — disse ela. — Pelo visto, Octavian andou bem mais ocupado do que eu pensava. — Então vamos atacar! — exclamou Hedge. — Porque ninguém vai ficar no meu caminho agora que estou tão perto. Reyna contou três pessoas na lancha. Os dois atrás usavam elmos, mas ela reconheceu o rosto triangular e os ombros fortes do líder: Michael Kahale. — Vamos tentar negociar — decidiu Reyna. — Aquele ali é um dos braços direitos de Octavian, mas é um bom legionário. Talvez eu consiga me entender com ele. O vento jogou o cabelo preto de Nico sobre seu rosto. — Mas se não conseguir… A lancha reduziu e parou de costado. Michael gritou de lá: — Reyna, tenho ordens de prendê-la e confiscar a estátua. Vou subir a bordo com mais dois centuriões. Espero que não seja necessário derramar sangue. Reyna tentava controlar as pernas trêmulas. — Suba, Michael! — Ela então se virou para Nico e Hedge. — Se eu não conseguir, estejam preparados. Michael Kahale não vai ser uma luta fácil.
* * *
Michael não estava vestido para combate. Usava apenas a camiseta roxa do acampamento, calça jeans e tênis de corrida. Não portava nenhuma arma visível, o que, no entanto, não tranquilizava Reyna nem um pouco. Seus braços eram grossos como cabos de suspensão, sua expressão acolhedora como um muro. A tatuagem de pomba em seu antebraço parecia mais uma ave de rapina. Com um brilho sombrio no olhar, ele avaliou a cena: a Atena Partenos presa com cabos aos pégasos, Nico empunhando a espada estígia, o treinador Hedge com o taco de beisebol. Os centuriões que acompanhavam Michael eram Leila, da Quarta Coorte, e Dakota, da Quinta. Escolhas estranhas… Leila, filha de Ceres, não era conhecida por sua agressividade. Normalmente era bem equilibrada. E Dakota… Reyna não podia acreditar que o filho de Baco, o oficial mais simpático e de boa índole da legião, pudesse ficar do lado de Octavian. — Reyna Ramírez-Arellano — disse Michael, como se estivesse lendo uma lista de nomes. — Ex-pretora.
— Eu sou pretora — corrigiu-o Reyna. — A menos que eu tenha sido destituída por votação unânime no Senado. É esse o caso? Michael deu um suspiro profundo. Não parecia muito feliz com a tarefa. — Tenho ordens de prendê-la e levá-la a julgamento. — Sob a autoridade de quem? — Você sabe de quem… — Sob quais acusações? — Escute, Reyna… — Michael passou a mão na testa, como se assim pudesse eliminar a dor de cabeça. — Eu também não gosto nada disso. Mas tenho ordens a cumprir. — Ordens ilegais. — É tarde demais para discutir. Octavian assumiu a liderança em uma situação emergencial. Ele tem o apoio da legião. — Isso é verdade? — Ao perguntar isso, Reyna olhou acusadoramente para Dakota e Leila. Leila não conseguia olhá-la nos olhos. Dakota piscava como se estivesse tentando transmitir uma mensagem, mas, sendo ele quem era, ficava difícil saber: poderia estar apenas tremendo por excesso de açúcar de tanto beber Tang. — Estamos em guerra — disse Michael. — Temos que nos manter unidos. Dakota e Leila não foram os mais entusiasmados em se aliar. Octavian deu a eles esta última chance de provarem seu apoio. Se me ajudarem a levar você… de preferência viva, mas morta se necessário… não perderão o posto e terão provado sua lealdade. — Lealdade a Octavian — observou Reyna. — Não à legião. Michael estendeu as mãos como quem se resigna; mãos quase do tamanho de luvas de beisebol. — Você não pode culpar os oficiais por apoiarem Octavian. Ele tem um plano, um bom plano. Ao amanhecer, aqueles onagros vão destruir o acampamento grego sem nenhuma baixa romana. Os deuses serão curados. Nico interveio: — Vocês vão eliminar metade dos semideuses do mundo, metade do legado dos deuses, para curá-los? Vão destruir o Olimpo antes mesmo de Gaia despertar. E ela está despertando, centurião. Michael franziu a testa. — Embaixador de Plutão, filho de Hades… seja lá qual for seu nome, você foi considerado um espião inimigo. Tenho ordens de levá-lo para ser executado. — Se conseguir — disse Nico friamente. Aquela conversa era tão absurda que quase chegava a ser engraçada. Nico tinha vários anos, trinta centímetros e vinte e cinco quilos a menos. Mas Michael não fez um movimento sequer. As veias em seu pescoço pulsavam. Dakota pigarreou.
— Hã… Reyna… venha conosco em paz. Por favor. Podemos resolver isso. Definitivamente ele estava piscando para ela. — Tudo bem, chega de conversa — disse o treinador Hedge, olhando para Michael Kahale de cima a baixo. — Podem deixar comigo que eu acabo com esse palhaço. Já enfrentei maiores. Ao ouvir isso, Michael deu um sorriso de desdém. — Você é um fauno corajoso, mas… — Sátiro! O treinador Hedge avançou sobre o centurião, baixando o taco de beisebol com toda a força. Michael simplesmente tomou o taco da mão dele e o quebrou com o joelho. Depois empurrou o treinador para trás, mas Reyna percebeu que ele não estava tentando machucá-lo. — Chega! — rosnou Hedge. — Agora você me deixou furioso de verdade! — Treinador — alertou Reyna —, Michael é muito forte. Você teria que ser um ogro ou um… De algum ponto lá embaixo na água, uma voz gritou: — Kahale! Por que tanta demora? Michael levou um susto. — Octavian? — Claro que sou eu! — berrou a voz do meio da escuridão. — Cansei de esperar que você cumprisse minhas ordens! Vou subir a bordo. Todo mundo, dos dois lados, largue as armas! Michael franziu a testa. — Hã… senhor? Todo mundo? Até nós? — Você não resolve nenhum problema nem com a espada nem com os punhos, seu grande idiota! Deixe esse lixo graecus comigo! Michael ficou desconfiado, mas fez um gesto para Leila e Dakota, que puseram suas espadas no piso do convés. Reyna olhou para Nico. Obviamente, havia alguma coisa errada. Ela não conseguia pensar em nenhum motivo para Octavian ir até ali e se colocar em risco. Ele com certeza não mandaria que os próprios oficiais largassem as armas. Mas os instintos de Reyna lhe diziam para continuar com o jogo. Ela largou a espada. Nico fez o mesmo. — Estão todos desarmados, senhor — avisou Michael. — Ótimo! — berrou Octavian. Uma silhueta escura surgiu na escada, mas era grande demais para ser Octavian. Uma forma menor com asas planava no ar atrás dele — uma harpia? Quando Reyna percebeu o que estava acontecendo, o ciclope já tinha atravessado o convés em apenas dois passos largos. Ele deu um tapa na cabeça de Michael Kahale, que caiu como um saco cheio de pedras. Dakota e Leila recuaram, alarmados.
A harpia voou até o teto da cabine do convés. Sob a luz do luar, suas penas pareciam da cor de sangue coagulado. — Forte — disse Ella, alisando as penas. — O namorado de Ella é mais forte que os romanos. — Amigos! — falou Tyson, o ciclope, com sua voz grave. Ele levantou Reyna em um braço e Nico no outro. — Viemos salvar vocês. Um viva para nós!
XXXVIII
REYNA
REYNA NUNCA TINHA FICADO TÃO feliz em ver um ciclope; pelo menos até Tyson botá-los no chão e partir para cima de Leila e Dakota. — Romanos maus! — Tyson, espere! — disse Reyna. — Não os machuque! Tyson franziu a testa, confuso. Ele era pequeno para um ciclope; uma criança, na verdade: pouco mais de dois metros de altura, cabelo castanho emaranhado e coberto de crostas de sal da água do mar. Seu único olho era grande e da cor de melado. Ele usava apenas sunga e uma blusa de pijama de flanela, como se não conseguisse decidir se ia nadar ou dormir. Exalava um cheiro forte de manteiga de amendoim. — Eles não são maus? — perguntou Tyson. — Não — disse Reyna. — Estavam apenas cumprindo ordens más. Acho que eles estão arrependidos. Não estão, Dakota? Dakota levantou os braços tão rápido que mais parecia o Super-Homem prestes a levantar voo. — Reyna, eu estava tentando avisar você! Leila e eu tínhamos combinado de surpreender Michael ajudando vocês a derrotá-lo. — Isso mesmo! — Leila quase caiu de costas da amurada. — Mas o ciclope se adiantou e fez isso antes! — Até parece! — zombou o treinador Hedge. Tyson espirrou. — Desculpe. Pelo de bode. Tenho alergia. Nós confiamos em romanos? — Eu confio — disse Reyna. — Dakota, Leila, vocês entendem qual é a nossa missão? Leila assentiu. — Vocês querem devolver a Atena Partenos aos gregos como uma oferta de paz. Por favor, nos deixe ajudar. — É. — Dakota assentiu vigorosamente. — A legião não está nem de perto tão unida quanto Michael afirmou. Não confiamos em todas as forças auxiliares que Octavian reuniu. Nico deu um riso amargo. — É um pouco tarde para ter dúvidas. Vocês estão cercados. Assim que o Acampamento Meio-Sangue cair, esses aliados vão se voltar contra vocês. — Então o que faremos? — perguntou Dakota. — Temos no máximo uma hora antes do nascer do sol.
— Cinco horas e cinquenta e dois minutos — disse Ella, ainda pousada no teto da cabine do convés. — É o horário em que o sol vai nascer no dia primeiro de agosto na costa leste. Horários para meteorologia naval. Uma hora e doze minutos é mais que uma hora. Dakota lançou um olhar atravessado para a harpia. — Eu acato a correção. O treinador Hedge olhou para Tyson. — Corremos algum risco ao entrarmos no Acampamento Meio-Sangue? Mellie está bem? Tyson coçou o queixo, pensativo. — Está bem roliça. — Mas ela está bem? — insistiu Hedge. — Ainda não deu à luz? — O parto ocorre no fim do terceiro trimestre — aconselhou Ella. — Página quarenta e três do Guia da mãe de primeira viagem para… — Eu preciso chegar lá! Hedge parecia prestes a pular do iate e ir nadando. Reyna pôs a mão em seu ombro. — Treinador, vamos levar você até sua esposa, mas vamos fazer isso direito. Tyson, como você e Ella chegaram aqui? — Arco-Íris! — Vocês… vocês pegaram um arco-íris? — Meu amigo cavalo-peixe. — Um cavalo-marinho — corrigiu Nico. — Entendo. — Reyna pensou por um instante. — Você e Ella podem levar o treinador para o acampamento em segurança? — Claro! — disse Tyson. — Com certeza! — Ótimo. Treinador, vá encontrar sua esposa. Diga aos campistas que devo levar a Atena Partenos à Colina Meio-Sangue ao amanhecer. É um presente de Roma para a Grécia, para encerrar nossas desavenças. Se eles puderem não atirar em mim nem me derrubar do céu, eu agradeço. — Pode deixar — disse Hedge. — Mas e a legião romana? — Isso é um problema — disse Leila com ar sério. — Aqueles onagros vão derrubar vocês. — Vamos precisar distraí-los — decidiu Reyna. — Algo que atrase o ataque ao Acampamento Meio-Sangue e, de preferência, deixe essas armas fora de combate. Dakota e Leila, suas coortes vão seguir vocês? — E-eu acho que sim… — gaguejou Dakota. — Mas se pedirmos a eles que cometam traição… — Não é traição — disse Leila. — Não quando estamos agindo sob ordens diretas de nossa pretora. E Reyna ainda é pretora. Reyna se virou para Nico.
— Preciso que você vá com Dakota e Leila. Enquanto eles estiverem criando problemas entre as fileiras, tentando retardar o ataque, você tem que dar um jeito de sabotar aqueles onagros. O sorriso de Nico foi tão sombrio que fez Reyna sentir alívio por ele estar do lado dela. — Vai ser um prazer. Vamos ganhar tempo para você entregar a Atena Partenos. — Hã… — Dakota parecia desconfortável. — Digamos que você consiga entregar esse presente aos gregos; o que vai impedir Octavian de destruir a Atena Partenos depois que a estátua tiver sido entregue? Ele tem muito poder de fogo, mesmo sem os onagros. Reyna olhou para o rosto de marfim de Atena sob o véu da rede de camuflagem. — Quando a estátua for devolvida aos gregos… acho que vai ser difícil destruí-la. Ela tem muita magia. Só decidiu não usar seu poder ainda. Leila se abaixou devagar e pegou sua espada, sem tirar os olhos da Atena Partenos. — Vou confiar na sua palavra. E quanto a Michael, o que fazemos com ele? Reyna olhou para o semideus havaiano, uma montanha roncando. — Coloque-o na lancha em que vocês vieram. Não o machuque nem o amarre. Sinto que, no fundo, Michael está do lado certo. Só teve o azar de ser apadrinhado pela pessoa errada. Nico embainhou sua espada negra. — Tem certeza disso, Reyna? Não quero deixar você sozinha. Blackjack relinchou e lambeu o rosto de Nico. — Argh! Tudo bem, me desculpe. — Nico limpou a baba do cavalo. — Reyna não está sozinha. Ela tem uma tropa de pégasos excelentes. Reyna não teve como não sorrir. — Vou ficar bem. Com sorte, em breve vamos todos nos reencontrar, a tempo de lutar lado a lado contra as forças de Gaia. Tomem cuidado, e Ave Romae! Dakota e Leila repetiram a saudação. Tyson franziu sua única sobrancelha. — Que ave é essa? — Significa Avante, romanos. — Reyna apertou carinhosamente o braço do ciclope. — Mas também Avante, gregos, sem dúvida. — As palavras soaram estranhas em sua boca. Ela encarou Nico. Queria abraçá-lo, mas não sabia se ele receberia bem o gesto. Ela estendeu a mão. — Foi uma honra sair em missão com você, filho de Hades. Nico apertou-lhe a mão com força.
— Você é a semideusa mais corajosa que eu já conheci, Reyna. Eu… A voz do menino falhou, talvez por ele perceber que tinha um grande público assistindo. — Não vou decepcioná-la. Vejo você na Colina Meio-Sangue. O céu começava a clarear no leste quando o grupo se dispersou. Logo Reyna estava no convés do Mi Amor sozinha… exceto pelos oito pégasos e uma estátua de doze metros de altura. Ela tentou acalmar os nervos. Não podia fazer nada até que Nico, Dakota e Leila tivessem tempo de desestabilizar os planos de ataque da legião, mas odiava ficar parada esperando. Logo além da linha escura das montanhas, seus companheiros da Décima Segunda Legião se preparavam para um ataque desnecessário. Se Reyna tivesse ficado com eles, poderia tê-los guiado melhor. Poderia ter impedido a ascensão de Octavian. Talvez o gigante Órion tivesse razão: ela havia falhado como pretora. Reyna se lembrou dos fantasmas nas sacadas de sua casa em San Juan, todos apontando para ela, sussurrando acusações: Assassina. Traidora. Lembrou-se da sensação do sabre de ouro na mão quando acertou o espectro do pai, o rosto dele contorcendo-se em uma expressão de ultraje e traição. Você é uma Ramírez-Arellano!, seu pai sempre repetia. Nunca abandone seu posto. Nunca baixe a guarda. E, acima de tudo, nunca traia os seus! Ao ajudar os gregos, Reyna tinha feito tudo isso. O que se esperava de um romano era que destruísse os inimigos. Mas, em vez disso, Reyna se juntara a eles. Deixara sua legião nas mãos de um louco. O que sua mãe diria? Belona, a deusa da guerra… Blackjack deve ter sentido sua agitação, pois foi até Reyna e esfregou o focinho nela. Ela o acariciou. — Não tenho nenhuma guloseima para você, garoto. Ele bateu a cabeça contra o corpo dela carinhosamente. Nico dissera a Reyna que Blackjack normalmente era a montaria de Percy, mas ele parecia amigável com todo mundo. Tinha levado o filho de Hades sem protestar. E agora estava confortando uma romana. Ela abraçou o poderoso pescoço do cavalo com os dois braços. A pelagem de Blackjack tinha o mesmo cheiro que a de Cipião, um misto de grama recémcortada e pão quente. Ela deixou escapar um soluço que estava preso em sua garganta fazia algum tempo. Como pretora, Reyna não podia demonstrar fraqueza nem medo na frente de seus companheiros de luta. Tinha que permanecer forte. Mas, aparentemente, o cavalo não se importava. Ele relinchou baixinho. Reyna não falava cavalês, mas achou que ele queria dizer: Está tudo bem. Você agiu bem. Ela olhou para as estrelas, já desbotando no céu.
— Mãe — disse ela —, não tenho rezado o suficiente para você. Nunca a conheci. Nunca pedi sua ajuda. Mas, por favor… me dê forças hoje para fazer o que é certo. Justo nesse momento, um ponto de luz brilhou no horizonte, algo vindo do outro lado do estreito, aproximando-se depressa como se fosse outra lancha. Por um prolongado momento, Reyna pensou que fosse um sinal de Belona. A forma escura se aproximava. A esperança de Reyna foi se transformando em medo. Ela esperou e esperou, paralisada pela incredulidade, enquanto a figura se revelava um grande homem correndo em sua direção pela superfície da água. A primeira flecha acertou Blackjack no flanco. Ele caiu com um guincho de dor. Reyna gritou, mas, antes que pudesse sequer se mexer, uma segunda flecha se cravou no piso bem entre seus pés. Preso ao cabo havia um pequeno display de LED brilhante, do tamanho de um relógio de pulso, marcando uma contagem regressiva começando em 5:00. 4:59. 4:58.
XXXIX
REYNA
— EU NO SEU LUGAR NÃO me mexeria, pretora! Órion estava de pé na superfície da água, quinze metros a estibordo. Em seu arco, uma flecha pronta para ser disparada. Reyna percebeu, através de seu olhar cheio de raiva e pesar, as novas cicatrizes que o gigante trazia. As Caçadoras o haviam deixado com marcas cinza e rosa nos braços e no rosto, de forma que ele parecia um pêssego amassado em processo de putrefação. Seu olho mecânico esquerdo estava escurecido. O cabelo tinha sido totalmente queimado, sobrando apenas algumas mechas esfiapadas. Seu nariz estava inchado e vermelho, consequência da corda de arco que Nico tinha feito arrebentar na cara do gigante. Tudo isso deu a Reyna uma pontada malévola de satisfação. Infelizmente, porém, o gigante continuava com seu sorriso presunçoso. Aos pés de Reyna, o cronômetro na flecha marcava 4:42. — Flechas explosivas são muito sensíveis — disse Órion. — Depois que se cravam em um lugar, até o menor movimento pode detoná-las. Eu não ia querer que você perdesse os últimos quatro minutos da sua vida. Os sentidos de Reyna se aguçaram. Os pégasos, nervosos, batiam os cascos no piso do convés em torno da Atena Partenos. Começava a amanhecer. O vento que soprava da margem trazia um leve aroma de morangos. Deitado ao lado dela no convés, Blackjack tremia e respirava com dificuldade — ainda vivo, mas gravemente ferido. O coração de Reyna batia tão forte que ela teve medo de seus tímpanos estourarem. Para manter Blackjack vivo, transmitiu sua força a ele. Ela não ia deixá-lo morrer. Reyna queria gritar insultos para o gigante, mas suas primeiras palavras foram surpreendentemente calmas: — O que aconteceu com minha irmã? O branco dos dentes de Órion reluziu em seu rosto arruinado. — Eu adoraria dizer que ela está morta. Adoraria ver a dor no seu rosto. Infelizmente, pelo que sei, sua irmã ainda está viva. Assim como Thalia Grace e aquelas Caçadoras irritantes. Elas me surpreenderam, tenho que admitir. Fui forçado a fugir para o mar. Passei os últimos dias ferido e sentindo dor, curandome lentamente e construindo um arco novo. Mas não se preocupe, pretora. Você vai morrer primeiro. Sua preciosa estátua será queimada em uma grande fogueira. Depois que Gaia despertar, quando o mundo mortal estiver em ruínas,
vou encontrar sua irmã. Vou dizer a ela que você morreu sofrendo. E depois vou matá-la. — Ele sorriu. — Então está tudo certo! 4:04. Hylla estava viva. Thalia e as Caçadoras ainda continuavam por aí, em algum lugar. Mas nada disso importaria se a missão de Reyna falhasse. O sol nascia no último dia do mundo… Blackjack começou a respirar com mais dificuldade. Reyna reuniu sua coragem. O cavalo alado precisava dela. Lorde Pégaso a nomeara Amiga dos Cavalos, e ela não iria decepcioná-lo. Por enquanto ela não podia pensar no mundo inteiro. Tinha que se concentrar no que precisava de atenção imediata. 3:54. — Então. — Ela encarava Órion com furor no olhar. — Você está ferido e feio, mas não morto. Acho que isso significa que vou precisar da ajuda de um deus para matar você. Órion deu uma risadinha. — Infelizmente, os romanos nunca foram muito bons em invocar deuses para ajudá-los. Acho que eles não têm muita consideração por vocês. Reyna ficou tentada em concordar. Ela havia rezado para a mãe… e fora abençoada com a chegada de um gigante homicida. Um apoio daqueles. Mas… Reyna riu. — Ah, Órion. O sorriso do gigante vacilou. — Você tem um senso de humor estranho, garota. Do que está rindo? — Belona respondeu sim a minha oração. Ela não luta minhas batalhas por mim. Não me garante uma vitória fácil. Ela me dá oportunidades de provar meu valor; me dá inimigos fortes e aliados em potencial. O olho esquerdo de Órion cintilou. — Quanta baboseira. Você e sua estátua grega preciosa estão prestes a ser destruídas por uma coluna de fogo. Nenhum aliado pode ajudá-la. Sua mãe a abandonou, assim como você abandonou sua legião. — Mas ela não fez isso — disse Reyna. — Belona não era apenas uma deusa da guerra. Ela não era como sua forma grega, Ênio, uma mera incorporação da carnificina. O templo de Belona era o lugar onde os romanos recebiam os embaixadores estrangeiros. Guerras eram declaradas lá, mas também se negociavam tratados de paz. Paz duradoura com base na força. 3:01. Reyna sacou a adaga. — Belona me deu a chance de fazer a paz com os gregos e aumentar a força de Roma. Eu aceitei a missão. Se eu morrer, vou morrer defendendo essa causa.
Por isso digo que minha mãe está comigo hoje. A força dela se somará à minha. Atire sua flecha, Órion. Não vai fazer diferença. Quando eu arremessar esta adaga e perfurar seu coração, você vai morrer. Órion estava de pé sobre as ondas, imóvel, seu rosto uma máscara de concentração. Seu olho bom brilhou cor de âmbar. — Você está blefando — gritou ele. — Já matei centenas como você: garotas brincando de guerra, fingindo que estão à altura dos gigantes! Não vou lhe proporcionar uma morte rápida, pretora. Vou vê-la queimar, tal como as Caçadoras me queimaram. 2:31. Blackjack arquejava, batendo as patas no chão. O céu começava a ficar corde-rosa. Um vento mais forte arrancou a rede de camuflagem da Atena Partenos, fazendo o tecido prateado voar, tremulando, para longe. A estátua brilhou às primeiras luzes do dia, e Reyna imaginou como a deusa ficaria linda na colina que se erguia acima do acampamento grego. Isso precisa acontecer, pensou ela, torcendo para que os pégasos sentissem o que ela pretendia fazer. Vocês têm que completar a jornada sem mim. Reyna fez uma reverência para a Atena Partenos. — Senhora, foi uma honra escoltá-la. Órion escarneceu: — Agora resolveu conversar com estátuas inimigas? Esqueça. Você não tem nem dois minutos de vida. — Ah, mas eu não vivo de acordo com os seus horários, gigante — disse Reyna. — Um romano não espera pela morte. Um romano vai ao encontro dela e a recebe segundo os próprios termos. Ela arremessou a adaga. Acertou em cheio: bem no meio do peito do gigante. Órion gritou em agonia. Que belo último som a se ouvir. Ela puxou para a frente do corpo o manto que vestia e se jogou em cima da flecha explosiva, determinada a proteger Blackjack e os outros pégasos e, com sorte, proteger também os mortais que dormiam no convés inferior. Reyna não tinha ideia se seu corpo seria suficiente para conter a explosão ou se o manto abafaria as chamas, mas aquela era sua melhor chance de salvar seus amigos e a missão. Ela se retesou inteira, esperando morrer. Sentiu a pressão quando a flecha detonou… mas não foi o que ela esperava. A explosão fez apenas um leve pop contra suas costelas, como um balão de aniversário cheio demais. Seu manto ficou desconfortavelmente quente. Nenhuma chama escapou de sob seu corpo. Por que ela ainda estava viva? Levante-se, ordenou uma voz em sua cabeça. Em transe, Reyna obedeceu. Ondas de fumaça escapavam de seu manto. Ela percebeu algo diferente: o tecido roxo brilhava como se a trama tivesse
filamentos de ouro imperial. Aos pés de Reyna, parte do chão tinha sido reduzida a um círculo de carvão, mas o manto não estava nem chamuscado. Aceite meu aegis, Reyna Ramírez-Arellano, disse a voz. Pois hoje você provou ser uma verdadeira heroína do Olimpo. Reyna olhava atônita para a Atena Partenos, que brilhava envolvida por uma leve aura. O aegis… Reyna lembrava, de seus anos de estudo, que o termo aegis não se aplicava apenas ao escudo de Atena. Significava também a capa da estátua. Segundo a lenda, Atena às vezes cortava pedaços de seu enorme manto e os jogava sobre as estátuas de seus templos ou sobre algum herói que ela escolhesse proteger. O manto de Reyna, que a garota usava fazia anos, de repente tinha mudado. O tecido havia absorvido a explosão. Ela tentou dizer alguma coisa, agradecer à deusa, mas a voz não saía. A aura de luz da estátua se extinguiu. O ruído nos ouvidos de Reyna desapareceu. Ela percebeu que Órion ainda gritava de dor, cambaleando pela superfície da água. — Você errou! — Ele arrancou a adaga do peito e a atirou nas ondas. — Ainda estou vivo! Ele armou o arco e disparou, mas a cena se desenrolou como que em câmera lenta. Reyna puxou o manto para a frente do corpo. A flecha se despedaçou contra o tecido. Ela então correu na direção da amurada e saltou sobre o gigante. Era uma distância impossível de se transpor com um salto, mas Reyna sentia uma onda de poder percorrer suas pernas, como se pegasse emprestada a força de sua mãe, Belona — recompensa por toda a força que Reyna emprestara aos outros ao longo dos anos. Reyna apoiou-se no arco do gigante e o usou para dar impulso, saltando como uma ginasta. Foi parar nas costas de Órion. Ela o agarrou pela cintura com as pernas, depois torceu o manto em uma espécie de corda e a enrolou no pescoço do gigante com toda a sua força. Ele instintivamente largou o arco. Órion tentou agarrar-se ao tecido cintilante do manto, mas, ao tocá-lo, seus dedos soltaram fumaça e criaram bolhas. Uma fumaça de odor acre e pungente começou a subir de seu pescoço. Reyna apertou com mais força. — Isto é por Phoebe — rosnou ela no ouvido do gigante. — Por Kinzie. Por todas as que você matou. Você vai morrer pelas mãos de uma garota. Órion se debatia e lutava, mas a força de vontade de Reyna era inabalável. O poder de Atena impregnava seu manto. Belona a abençoava com força e determinação. Não apenas uma — duas deusas poderosas a ajudavam, mas era Reyna quem tinha que terminar de matá-lo. E ela assim o fez.
O gigante caiu de joelhos e afundou na água. Reyna não o soltou até ele parar de se debater e seu corpo dissolver na espuma do mar. O olho mecânico desapareceu sob as ondas. O arco começou a afundar. Reyna deixou que a arma dele sumisse na água. Não estava interessada em espólios de guerra, não tinha nenhum desejo de deixar qualquer parte do gigante sobreviver. Assim como a mania de seu pai e todos os outros fantasmas cheios de raiva que preenchiam seu passado, Órion não tinha nada para ensinar a ela. Ele merecia ser esquecido. Além do mais, estava amanhecendo. Reyna voltou nadando para o iate.
XL
REYNA
NÃO HAVIA TEMPO PARA COMEMORAR a vitória sobre Órion. O focinho de Blackjack espumava. Suas pernas agitavam-se em espasmos. Do ferimento em seu flanco escorria sangue. Reyna recorreu à bolsa de suprimentos que ganhara de Phoebe. Primeiro usou um unguento curativo para limpar o ferimento e depois derramou poção de unicórnio sobre a lâmina do canivete de prata. — Por favor, por favor — murmurava ela para si mesma. Na verdade, Reyna não tinha ideia do que estava fazendo, mas limpou a ferida da melhor maneira possível e segurou firme o cabo da flecha. Se a ponta fosse farpada e ela a arrancasse, acabaria machucando Blackjack ainda mais. Mas, se estivesse envenenada, não podia deixá-la ali. A garota também não podia empurrá-la para fazê-la sair do outro lado, pois estava cravada bem no meio do corpo do cavalo. Reyna teria que optar pelo menor dos males. — Isso vai doer, meu amigo — disse ela a Blackjack. Ele bufou, como se quisesse dizer Conte uma novidade. Usando a adaga, ela fez um talho de cada lado da ferida. E arrancou a flecha. Blackjack emitiu um grito agudo, mas a flecha saiu sem problemas. A ponta não era farpada. Podia estar envenenada, mas não tinha como ela saber. Um problema de cada vez. Reyna passou um pouco mais de unguento sobre o ferimento e fez um curativo. Então pressionou o local por alguns segundos, contando baixinho. Ao que parecia, o sangramento estava diminuindo. Ela então derramou poção de unicórnio na boca de Blackjack. Reyna perdeu a noção do tempo. A pulsação do cavalo ficava cada vez mais estável e firme. Seus olhos já não revelavam dor. Sua respiração se acalmou. Quando Reyna se levantou, tremia de medo e exaustão, mas Blackjack ainda estava vivo. — Você vai ficar bem — prometeu ela. — Vou conseguir ajuda no Acampamento Meio-Sangue. Blackjack fez um ruído incompreensível. Reyna podia jurar que ele tinha tentado dizer donuts. Ela só podia estar começando a delirar. Finalmente percebeu como o céu já havia clareado. A Atena Partenos brilhava ao sol. Guido e os outros cavalos alados batiam com os cascos no convés, impacientes. — A batalha…
Reyna se virou na direção da praia, mas não viu nenhum sinal de combate. Uma trirreme grega balançava na água preguiçosamente na maré da manhã. As colinas exibiam um verde de aparente tranquilidade. Por um instante ela pensou que os romanos tivessem desistido de atacar. Talvez Octavian tivesse caído em si. Talvez Nico e os outros tivessem dissuadido a legião. Então um brilho laranja iluminou os cumes das colinas. Inúmeros rastros de fogo subiram aos céus. Pareciam dedos em chamas. Os onagros tinham disparado sua primeira carga.
XLI
PIPER
PIPER NÃO SE SURPREENDEU COM a chegada dos homens-cobra. Tinha passado a semana inteira pensando naquela vez em que encontrara o bandido Círon, no Argo II. Haviam acabado de escapar de uma tartaruga gigante quando ela fez a besteira de dizer: “Estamos protegidos.” No mesmo instante, uma flecha acertou o mastro principal, a poucos centímetros de seu nariz. Piper havia tirado disso uma lição valiosa: nunca ache que está segura e nunca, nunca tente as Parcas anunciando que você acha que está seguro. E foi por isso que, quando o navio atracou na Baía de Pireu, perto de Atenas, Piper resistiu a uma grande vontade de dar um suspiro de alívio. Claro, eles tinham finalmente alcançado seu destino. Em algum lugar próximo dali — depois dos vários navios de cruzeiro, depois das colinas pontilhadas de casas e prédios —, eles encontrariam a Acrópole. De um jeito ou de outro, a jornada dos sete terminaria aquele dia. Mas isso não significava que ela podia relaxar. A qualquer instante, uma surpresa terrível podia surgir do nada. E a surpresa foram três sujeitos com rabo de cobra em vez de pernas. Piper estava de vigia enquanto os outros se preparavam para o combate — conferindo armas e armaduras, carregando balistas e catapultas — quando avistou os homens-cobra se aproximando pelas docas, rastejando entre multidões de turistas mortais que os ignoravam solenemente. — Hã… Annabeth? — chamou Piper. Annabeth e Percy foram até ela. — Ah, que ótimo — disse Percy. — Dracaenae. Annabeth apertou os olhos. — Acho que não. Pelo menos são diferentes das que eu já vi. As dracaenae têm dois rabos de cobra no lugar das pernas. Esses caras só têm um. — Verdade — disse Percy. — E a parte de cima do corpo deles também parece mais humana. Não é toda escamosa e verde e tal. E aí, vamos recebê-los na base da conversa ou da luta? Piper preferia optar pela luta. Só conseguia pensar na história que contara a Jason sobre o caçador cherokee que tinha virado cobra por quebrar seu tabu. Aqueles três ali deviam ter comido muita carne de esquilo. Estranhamente, o que vinha à frente do trio lembrou a Piper seu pai quando deixara a barba crescer para seu papel em Rei de Esparta. O homem-cobra
vinha com a cabeça bem erguida. Tinha o rosto moreno e cinzelado, os olhos negros como basalto, o cabelo preto cacheado brilhando de gel. Seu tronco era bem musculoso, coberto só por uma clâmide grega — um manto de lã branca que se usava transpassado, preso apenas no ombro. Da cintura para baixo, o estranho tinha um corpo gigante de serpente, com uns dois metros e meio de cauda, que ondulava atrás dele enquanto ele se movia. Em uma das mãos ele carregava um cajado com uma cintilante joia verde no topo. Na outra, trazia uma travessa coberta com uma redoma de prata, como um prato a ser servido em um jantar grã-fino. Os dois sujeitos atrás dele pareciam ser guardas. Usavam peitorais de bronze e elmos elaborados, com uma crista de crina de cavalo no topo. A lança que cada um portava tinha uma pedra verde na ponta; o escudo oval tinha gravada uma grande letra K grega, capa. Eles pararam a alguns metros do Argo II. O líder da comitiva olhou para cima e observou os semideuses. Sua expressão era intensa, mas inescrutável. Ele podia tanto estar com raiva quanto preocupado, ou mesmo precisando desesperadamente ir ao banheiro. — Permissão para subir a bordo. A voz rouca do estranho lembrou a Piper uma navalha sendo passada em um amolador, como na barbearia de seu avô em Oklahoma. — Quem é você? — perguntou ela. Ele fixou os olhos negros nela. — Eu sou Cécrope, o primeiro e eterno rei de Atenas. Gostaria de lhes dar as boas-vindas a minha cidade. — Ele ergueu a travessa coberta. — Trouxe bolo. Piper olhou de soslaio para os amigos. — Uma armadilha? — Provavelmente — disse Annabeth. — Pelo menos ele trouxe a sobremesa. — Percy sorriu para os homenscobra. — Bem-vindos a bordo!
* * *
Cécrope concordou em deixar seus guardas no convés superior com Buford, a mesa, que os mandou deitar no chão e pagar vinte flexões. Os guardas pareceram encarar aquilo como um desafio. Enquanto isso, o rei de Atenas foi conduzido ao refeitório para um encontro de apresentações. — Sente-se, por favor — convidou Jason. Cécrope torceu o nariz. — O povo serpente não senta. — Então continue de pé, por favor — disse Leo.
Ele partiu o bolo e comeu um pedaço antes que Piper tivesse a chance de alertá-lo: poderia estar envenenado, ou não ser comestível para mortais, ou só ruim mesmo. — Uau! — Ele sorriu. — O povo serpente sabe mesmo fazer um bolo. Tem um gostinho de laranja, com um toque de mel. Só precisava de um pouco de leite. — O povo serpente não bebe leite — disse Cécrope. — Somos répteis com intolerância à lactose. — Eu também! — disse Frank. — Quer dizer, tenho intolerância à lactose. Embora eu possa ser um réptil às vezes… — Enfim — interrompeu Hazel. — Rei Cécrope, o que o traz aqui? Como sabia de nossa chegada? — Sei de tudo o que acontece em Atenas — disse Cécrope. — Sou o fundador da cidade, fui o primeiro rei, nascido desta terra. Fui eu quem julguei a disputa entre Atena e Poseidon, eu que escolhi Atena como patrona da cidade. — Sem ressentimentos — murmurou Percy. Annabeth deu uma cotovelada nele. — Já ouvi falar de você, Cécrope. Você foi o primeiro a oferecer sacrifícios a Atena. Construiu para ela o primeiro santuário na Acrópole. — Exato. — A resposta de Cécrope soou amarga, como se ele estivesse arrependido da decisão. — Meu povo eram os atenienses originais, os gemini. — Gêmeos? Tipo o signo do zodíaco? — perguntou Percy. — Eu sou de Leão. — Não, seu idiota — disse Leo. — Não é nada disso. — Vocês dois querem parar com isso? — brigou Hazel. — Acho que ele está querendo dizer gemini como duplo, metade homem, metade cobra. É esse o nome do povo dele. Ele é um geminus, no singular. — Sim… — Cécrope se inclinou para longe de Hazel como se de algum modo ela o tivesse ofendido. — Milênios atrás, fomos expulsos para o subterrâneo pelos humanos de duas pernas, mas eu conheço os caminhos da cidade melhor do que ninguém. Vim alertá-los. Se tentarem se aproximar da Acrópole pela superfície, vocês serão destruídos. — Quer dizer… por você? — perguntou Jason, interrompendo sua degustação do bolo. — Pelos exércitos de Porfírion — disse o rei cobra. — Em volta de toda a Acrópole há grandes armas de cerco… onagros. — Mais onagros? — protestou Frank. — Eles estavam em liquidação ou o quê? — Os ciclopes — deduziu Hazel. — Eles estão fornecendo onagros tanto para Octavian quanto para os gigantes. — Como se precisássemos de mais provas de que Octavian está do lado errado — resmungou Percy. — E essa não é a única ameaça — continuou Cécrope. — O ar está cheio de
espíritos da tempestade e grifos. Todos os caminhos para a Acrópole estão sendo patrulhados pelos Nascidos da Terra. Frank tamborilou os dedos na cúpula que protegia o bolo. — Então o que faremos? Vamos desistir? Não viemos até aqui para isso. — Eu lhes ofereço uma alternativa — disse Cécrope. — A passagem subterrânea até a Acrópole. Por Atena, pelos deuses, ajudarei vocês. Piper sentiu um arrepio na nuca. Ela se lembrou do que a giganta Peribeia lhe dissera em sonho: que os semideuses encontrariam amigos e inimigos em Atenas. Talvez a giganta estivesse falando de Cécrope e seu povo serpente. Mas alguma coisa na voz dele não agradava a Piper, aquele tom de navalha no amolador, como se ele estivesse se preparando para fazer um corte profundo. — Mas…? — perguntou ela. Cécrope virou seus insondáveis olhos negros para ela. — Só um grupo pequeno de semideuses, não mais que três, pode passar despercebido pelos gigantes. Do contrário, eles detectariam a presença de vocês pelo cheiro. Mas nossas passagens subterrâneas podem levá-los direto às ruínas da Acrópole. Lá, vocês poderão neutralizar em segredo as armas de cerco para permitir que o restante da sua tripulação se aproxime. Com sorte, podem pegar os gigantes de surpresa. Assim têm a chance de impedir a cerimônia. — Cerimônia? — perguntou Leo. — Ah… tipo para despertar Gaia. — Já começou, agora mesmo — avisou Cécrope. — Não estão sentindo a terra trepidar? Os gemini são a melhor chance de vocês. Piper notou avidez na voz dele. Quase fome. Percy olhou para os outros ao redor da mesa. — Alguma objeção? — Só algumas — disse Jason. — Estamos às portas do inimigo. E você está nos pedindo para nos dividir. Não é assim que as pessoas acabam morrendo nos filmes de terror? — Além do mais — acrescentou Percy —, Gaia quer que cheguemos ao Partenon. Quer que nosso sangue molhe as pedras e todo esse lixo psicopata. Não estaríamos indo direto para as mãos dela? Os olhos de Annabeth encontraram os de Piper. Em silêncio, ela fez uma pergunta: O que está achando disso tudo? Piper não estava acostumada com aquilo, com Annabeth olhando para ela em busca de conselhos. Desde Esparta elas haviam aprendido que juntas podiam enfrentar problemas de dois modos diferentes. Annabeth via as coisas de forma lógica, o movimento tático, enquanto Piper tinha reações instintivas que eram tudo menos lógicas. Juntas, ou elas resolviam os problemas duas vezes mais rápido, ou confundiam uma à outra completamente. A oferta de Cécrope fazia sentido. Ou pelo menos parecia a opção menos suicida. Mas Piper tinha certeza de que o rei cobra estava ocultando suas
verdadeiras intenções. Ela só não sabia como provar isso… Então se lembrou de algo que seu pai lhe dissera anos antes: Seu nome é Piper porque seu avô Tom achou que você teria uma voz poderosa. Você ia aprender todas as canções cherokee, até mesmo a canção da cobra. Um mito de uma cultura totalmente diferente, mas lá estava ela, encarando o rei do povo serpente. Ela começou a cantar “Summertime”, uma das músicas preferidas do pai. Cécrope ficou olhando para ela em deslumbramento. Até começou a balançar o corpo. No início, a garota sentiu vergonha de estar cantando na frente de todos os seus amigos e de um homem-cobra. Seu pai sempre dissera que Piper tinha uma voz boa, mas ela não gostava de chamar atenção. Não gostava nem de cantar em grupo, em volta da fogueira no acampamento. Agora sua voz era a única a soar no refeitório. Todos ouviam, atônitos. Quando ela terminou a primeira estrofe, todos ficaram alguns segundos em silêncio. — Pipes — disse Jason. — Eu não sabia. — Isso foi lindo — concordou Leo. — Talvez não… você sabe, lindo como Calipso, mas mesmo assim… Piper encarava o rei cobra. — Quais são suas verdadeiras intenções? — Enganar vocês — respondeu ele, em transe, ainda balançando o corpo. — Queremos levá-los para os túneis e destruí-los. — Por quê? — perguntou Piper. — A Mãe Terra nos prometeu grandes recompensas. Se derramarmos o sangue de vocês sob o Partenon, será suficiente para completar o despertar de Gaia. — Mas você serve a Atena — insistiu Piper. — Você fundou a cidade. Cécrope sibilou baixinho: — E, em troca, a deusa me abandonou. Atena me substituiu por um rei de duas pernas, um humano. Levou minhas filhas à loucura; elas pularam para a morte dos penhascos da Acrópole. Os atenienses originais, os gemini, foram expulsos para os subterrâneos e esquecidos. Atena, a deusa da sabedoria, nos deu as costas, mas a sabedoria também vem da terra. Somos, fundamentalmente, filhos de Gaia. A Mãe Terra nos prometeu um lugar ao sol no mundo da superfície. — Gaia está mentindo — disse Piper. — Ela pretende destruir o mundo da superfície, e não dá-lo a ninguém. Cécrope mostrou as presas. — Então não vamos ficar pior do que estávamos sob o domínio dos traiçoeiros deuses!
Ele ergueu o cajado, mas Piper começou outra estrofe de “Summertime”. Os braços do rei cobra amoleceram; seus olhos ficaram vidrados. Depois de mais alguns versos, Piper arriscou mais uma pergunta: — As defesas dos gigantes, a passagem subterrânea até a Acrópole… Até que ponto é verdade o que você nos contou? — É tudo verdade — respondeu Cécrope. — A Acrópole está, sim, fortemente defendida, como descrevi. Qualquer aproximação pela superfície seria impossível. — Então você poderia nos guiar por seus túneis — disse Piper. — Isso também é verdade? Cécrope franziu a testa. — Sim… — E se você mandasse seu povo não nos atacar — prosseguiu ela —, eles obedeceriam? — Sim, mas… — Cécrope estremeceu. — Sim, eles obedeceriam. Mas só três de vocês poderiam ir sem atrair a atenção dos gigantes. Uma sombra cobriu os olhos de Annabeth. — Piper, tentar isso seria loucura. Ele vai nos matar na primeira oportunidade. — É — concordou o rei cobra. — Só a música dessa garota me controla. Eu a odeio. Por favor, cante mais. Piper cantou mais um verso para ele. Leo entrou na dança: pegou duas colheres e começou a batucar na mesa até levar um tapa de Hazel no braço. — Eu devo ir — disse Hazel. — Se é no subterrâneo. — Nunca — disse Cécrope. — Uma filha do Mundo Inferior? Meu povo se revoltaria com a sua presença. Nem a melhor música encantada pelo charme seria suficiente para impedi-los de exterminar vocês. Hazel engoliu em seco. — Talvez seja melhor eu ficar por aqui mesmo. — Eu e Percy — sugeriu Annabeth. — Hum… — Percy ergueu a mão. — Vou levantar o assunto aqui de novo. Isso é exatamente o que Gaia quer, nós dois, nosso sangue molhando as pedras et cetera e tal. — Eu sei. — Annabeth exibia uma expressão grave no rosto. — Mas é a escolha mais lógica. Os santuários mais antigos da Acrópole são dedicados a Poseidon e Atena. Cécrope, isso não ocultaria nossa aproximação? — Sim — admitiu o rei cobra. — Seria difícil identificar o… o cheiro de vocês. As ruínas sempre irradiam o poder desses dois deuses. — E eu — disse Piper ao terminar a música. — Vocês vão precisar de mim para manter nosso amigo aqui na linha. Jason apertou a mão dela.
— Ainda não suporto a ideia de nos dividirmos. — Mas é nossa melhor chance — disse Frank. — Eles três entram lá escondidos, neutralizam os onagros e criam uma distração. Aí a gente chega voando e disparando o fogo das balistas. — Isso — disse Cécrope. — Esse plano pode funcionar. Se eu não matar vocês primeiro. — Tive uma ideia — disse Annabeth. — Frank, Hazel, Leo… vamos conversar. Piper, pode neutralizar musicalmente nosso amigo aqui? Piper começou outra música: “Happy Trails”, uma canção boba que seu pai cantava para ela antigamente, sempre que voltavam de Oklahoma para Los Angeles. Annabeth, Leo, Frank e Hazel saíram para discutir estratégias. — Muito bem. — Percy se levantou e estendeu a mão a Jason. — Então nos vemos de novo na Acrópole, cara. É a minha vez de matar alguns gigantes.
XLII
PIPER
O PAI DE PIPER DIZIA que passar pelo aeroporto não contava como visitar uma cidade. Piper tinha a mesma opinião em relação aos esgotos. Do porto até a Acrópole, ela não viu nada de Atenas além de túneis escuros e pútridos. Nas docas, os homens-cobra os fizeram descer por um bueiro de ferro, que os levou direto para o covil subterrâneo dos gemini. Ali embaixo fedia a peixe podre, mofo e pele de cobra. Naquela atmosfera, era difícil cantar músicas leves como “Summertime”, que falava sobre verão e plantações de algodão e uma vida tranquila, mas Piper continuava. Se parasse por mais que um ou dois minutos, Cécrope e seus guardas começavam a sibilar e a distribuir olhares raivosos. — Não gosto deste lugar — murmurou Annabeth. — Estes túneis me lembram a vez em que fiquei nos subterrâneos de Roma. Cécrope soltou uma risada sibilante. — Nossos domínios são muito mais antigos. Muito, muito mais. Annabeth segurou a mão de Percy, o que deixou Piper triste e desanimada. Como ela queria que Jason estivesse ali ao seu lado. Droga, até Leo serviria… embora talvez ela preferisse não segurar a mão dele: elas tendiam a pegar fogo quando ele ficava nervoso. A voz de Piper ecoava pelos túneis. À medida que avançavam, mais homenscobra se juntavam para ouvi-la. Logo estavam sendo seguidos por uma procissão, dezenas de gemini rastejando e se balançando ao ritmo da música. A previsão de seu avô tinha se cumprido. Piper havia aprendido a canção da cobra — que por um acaso era uma composição de George Gershwin de 1935. Até então, Piper tinha até conseguido impedir que o rei cobra mordesse, como na velha história cherokee. Só havia um problema com aquela lenda: o guerreiro que aprendeu a música das cobras teve que sacrificar a esposa em troca do poder. Piper não queria sacrificar ninguém. O frasco com a cura do médico continuava embrulhado no tecido, guardado em um bolso de seu cinto. Ela não havia tido tempo de conversar com Jason e Leo antes de partir. Só lhe restava torcer para que todos se reencontrassem no topo da colina antes que algum deles precisasse da cura. Se um dos dois morresse e ela não conseguisse alcançá-los… Apenas continue cantando, disse a si mesma.
Eles atravessaram câmaras de pedra talhadas rusticamente e repletas de ossos. Subiram elevações tão íngremes e escorregadias que mal conseguiam se manter de pé. Em determinado momento, passaram por uma caverna quente do tamanho de uma quadra poliesportiva que estava cheia de ovos de serpente, cobertos por uma camada de filamentos prateados que pareciam uma versão gosmenta daqueles enfeites compridos de árvore de Natal. Cada vez mais homens-cobra se juntavam à procissão. O barulho que faziam ao se movimentarem rastejando era como um exército de homens enormes arrastando os pés — só que com uma lixa na sola dos sapatos. Piper se perguntou quantos gemini viviam ali embaixo. Centenas, talvez milhares. Tinha a impressão de estar ouvindo as batidas do próprio coração ecoando pelos corredores, e o som ficava cada vez mais alto à medida que eles avançavam. Então se deu conta de que o persistente tum-tum estava por toda a volta, ressoando através das rochas e do ar. Eis que eu desperto. Uma voz de mulher, tão nítida quanto Piper cantando. — Opa, isso não é bom — disse Annabeth, parando de repente. — Como o Tártaro — disse Percy com tensão na voz. — Lembra? A batida do coração… Quando ele apareceu… — Pare — disse Annabeth. — Por favor. — Desculpe. À luz de sua espada, o rosto de Percy parecia um vaga-lume gigante, um brilho turvo e momentâneo no escuro. Gaia fez-se ouvir novamente, desta vez mais alto: Finalmente. A voz de Piper vacilou no meio da música. Ela foi tomada pelo medo, da mesma forma que tinha acontecido no templo espartano. Mas agora os deuses Fobos e Deimos eram seus velhos amigos. Ela deixou o medo queimar em seu interior como combustível, tornando sua voz ainda mais forte. Ela cantava para o povo serpente, para proteger seus amigos. Por que não também para Gaia? Por fim, alcançaram o topo de uma subida íngreme, onde o caminho terminava em uma cortina de gosma verde. Cécrope virou-se para os semideuses. — A Acrópole fica depois desta camuflagem. Fiquem aqui. Vou ver se o caminho está livre. — Espere. — Piper virou-se para dirigir-se à multidão de gemini. — Há apenas morte na superfície. É melhor para vocês que fiquem aqui nos túneis. Voltem; rápido. Esqueçam que nos viram. Protejam-se. O medo em sua voz foi canalizado perfeitamente pelo charme. O povo serpente, até os guardas, deu meia-volta e, rastejando, desapareceu na escuridão, deixando ali apenas o rei.
— Cécrope, você está planejando nos trair assim que passar por essa gosma, não? — disse Piper. — Sim — confirmou ele. — Vou alertar os gigantes. Eles vão destruí-los. — Então ele acrescentou, em um sussurro agressivo: — Por que eu disse isso a vocês? — Escute a pulsação de Gaia — insistiu Piper. — Você está sentindo a fúria da Mãe Terra, não está? Cécrope hesitou. A ponta de seu cajado emitiu um brilho suave. — Sim. Ela está com raiva. — Ela vai destruir tudo — continuou Piper. — Vai reduzir a Acrópole a uma cratera fumegante. Atenas, sua cidade, será totalmente arrasada, assim como o seu povo. Você acredita em mim, não acredita? — Eu… sim, acredito. — Por mais ódio que você sinta dos humanos, dos semideuses, de Atena, nós somos a única chance de deter Gaia. Então você não vai nos trair. Para seu próprio bem e o de seu povo, você vai dar uma busca no território para garantir que o caminho está livre. Não vai contar nada aos gigantes. E depois vai voltar. — É isso… o que vou fazer. E então Cécrope cruzou a membrana de gosma e desapareceu. Annabeth balançava a cabeça, impressionada. — Piper, isso foi incrível. — Vamos ver se dá certo. Piper sentou-se no chão de pedra fria. Bem que ela podia descansar enquanto tinha a chance. Os outros se agacharam ao lado dela. Percy lhe passou um cantil de água. Até tomar o primeiro gole, Piper não tinha se dado conta de como sua garganta estava seca. — Obrigada. — Você acha que o charme vai durar? — Não sei — admitiu ela. — Se Cécrope voltar daqui a dois minutos com um exército de gigantes, é porque não deu certo. A pulsação de Gaia ecoava através do chão. Estranhamente, isso lembrava a Piper o mar, o estrondo das ondas quebrando nos penhascos de Santa Monica. O que seu pai estaria fazendo naquele momento? Na Califórnia, devia ser madrugada àquela hora. Talvez ele estivesse dormindo, ou sendo entrevistado em um programa de tevê. Piper gostaria que ele estivesse em seu local preferido: a varanda da sala, contemplando a lua sobre o Pacífico, curtindo um pouco de tranquilidade. Ela queria imaginá-lo feliz e satisfeito naquele momento… caso eles falhassem na missão. Ela pensou nos amigos do chalé de Afrodite, no Acampamento Meio-Sangue. Pensou nos primos em Oklahoma — o que era estranho, já que nunca tinha
passado muito tempo com eles. Nem os conhecia direito; agora se arrependia disso. Desejou ter aproveitado mais a vida, apreciado mais as coisas. Piper sempre seria grata por sua família a bordo do Argo II, mas tinha muitos outros amigos e parentes que desejava poder ver uma última vez. — Vocês pensam nas suas famílias? — perguntou ela. Era uma pergunta boba, ainda mais na iminência de uma batalha. Piper deveria estar concentrada na missão, não distraindo os amigos. Mas eles não a condenaram. Percy ficou com o olhar perdido. Seu lábio inferior começou a tremer. — Minha mãe… Eu… eu nunca mais sequer a vi desde que Hera me sequestrou. Telefonei para ela do Alasca. Pedi ao treinador Hedge que enviasse a ela algumas cartas minhas. Eu… — A emoção transbordava em sua voz. — Minha mãe é tudo o que eu tenho. Ela e meu padrasto, Paul. — E Tyson — lembrou-o Annabeth. — E Grover. E… — Sim, claro — disse Percy. — Obrigado. Agora me sinto bem melhor. Piper provavelmente não deveria ter rido, mas estava nervosa e melancólica demais para se conter. — E você, Annabeth? — Meu pai… minha madrasta e meus meios-irmãos. — Ela virou distraidamente a espada de osso de drakon que tinha no colo. — Depois de tudo que passei no último ano, parece bobagem ficar ressentida com eles por tanto tempo. E a família do meu pai… Fazia anos que eu não pensava neles. Tenho um tio e um primo em Boston. Percy fez uma expressão de choque. — Logo você, aí com o seu boné dos Yankees? Você tem família no território dos Red Sox? Annabeth esboçou um sorriso. — Eu nunca encontro essa parte da família. Meu pai e meu tio não se dão bem. Alguma rixa antiga. Não sei. As pessoas se afastam por coisas estúpidas. Piper concordou. Seria bom ter os poderes curativos de Asclépio. Seria bom poder olhar para as pessoas e ver o que as estava machucando, depois receitar umas poções e remédios e assim fazer com que tudo ficasse melhor. Mas devia haver uma razão para Zeus manter Asclépio preso ali naquele templo subterrâneo. Algumas dores não devem ser eliminadas com tanta facilidade. É necessário lidar com elas, até abraçá-las. Sem a agonia dos últimos meses, Piper nunca teria encontrado suas melhores amigas, Hazel e Annabeth. Nunca teria descoberto a própria coragem. Certamente não teria coragem de cantar para o povo serpente no subsolo de Atenas. Na entrada do túnel, a membrana verde se abriu.
Piper pegou rapidamente a espada e a ergueu, preparada para uma enxurrada de monstros. Mas Cécrope surgiu sozinho. — Tudo certo — disse ele. — Mas andem rápido. A cerimônia está quase no fim.
* * *
Passar por uma cortina de catarro foi quase tão divertido quanto Piper tinha imaginado. Ela saiu do outro lado sentindo como se tivesse acabado de despencar da narina de um gigante. Felizmente, não ficou nenhuma gosma grudada no corpo, mas mesmo assim ela sentia arrepios de nojo. Os três se viram em um poço fresco e úmido que parecia ser o nível subterrâneo de um templo. Por toda a volta estendia-se um solo irregular que terminava em escuridão. Logo acima de suas cabeças havia uma abertura retangular que dava para o céu. Piper via o alto de paredes e o topo de colunas, mas nenhum monstro… ainda. A membrana de camuflagem tinha se fechado atrás deles e se fundido ao chão. Piper examinou a área: parecia rocha sólida. Eles não poderiam voltar por onde tinham chegado. Annabeth passou a mão por algumas marcas no chão, linhas no formato de um pé de galinha irregular, do tamanho de uma pessoa. A área era protuberante e branca, como uma cicatriz na pedra. — É aqui — disse ela. — Percy, estas são as marcas do tridente de Poseidon. Percy tocou as ranhuras, hesitante. — Ele devia estar usando um tridente tamanho GG. — Foi aqui que ele atingiu a terra — continuou Annabeth. — Onde ele fez surgir uma nascente de água salgada quando disputou com minha mãe para ser patrono de Atenas. — Então foi aqui que começou a rivalidade — concluiu Percy. — Foi. Percy puxou Annabeth para si e a beijou… Um beijo tão demorado que Piper ficou bem constrangida, embora não tenha dito nada. Ela se lembrou da velha regra do chalé de Afrodite: para ser reconhecida como filha da deusa do amor, era preciso partir o coração de alguém. Piper havia decidido, fazia muito tempo, mudar essa regra. Percy e Annabeth eram um exemplo perfeito do motivo: era preciso tornar completo o coração de alguém. Esse era um teste muito melhor. Quando Percy se afastou, Annabeth parecia um peixe tentando desesperadamente respirar. — A rivalidade termina aqui — disse Percy. — Eu amo você, Sabidinha.
Annabeth deu um leve suspiro, como se alguma coisa dentro de seu peito tivesse derretido. Percy olhou para Piper. — Desculpe, eu tive que fazer isso. Piper sorriu. — Como uma filha de Afrodite poderia não aprovar? Você é um ótimo namorado. Annabeth soltou outro suspiro. — Hã… enfim… Estamos embaixo do Erecteion. É um templo tanto para Atena quanto para Poseidon. O Partenon deve ficar em uma diagonal a sudeste daqui. Vamos ter que dar a volta discretamente e neutralizar o maior número possível de armas de cerco, para abrir uma brecha por onde o Argo II possa se aproximar. — Estamos em plena luz do dia — disse Piper. — Como vamos passar despercebidos? Annabeth observou o céu. — Foi por isso que eu, Frank e Hazel montamos um plano. Tomara que… Ah. Vejam. Uma abelha zumbiu acima deles. Depois, dezenas mais fizeram coro. Elas enxamearam em torno de uma coluna, depois ficaram voando acima da abertura do poço. — Pessoal, digam oi para Frank — disse Annabeth. Piper acenou. A nuvem de abelhas foi embora voando. — Como é que isso funciona? — perguntou Percy. — Tipo… uma abelha é um dedo? Outras duas abelhas são os olhos? — Não sei — admitiu Annabeth. — Mas ele é nosso mensageiro. Assim que Frank avisar Hazel, ela vai… — Ahh! — gritou Percy. Annabeth cobriu a boca com a mão. O que foi bem esquisito, porque de repente todos eles tinham se transformado em enormes Nascidos da Terra de seis braços. — A Névoa de Hazel — lembrou Piper, em um tom de voz sério, grave. Ao olhar para baixo, ela percebeu que também tinha agora um belo corpo de Neandertal: barriga cabeluda, tanguinha, pernas atarracadas e pés enormes. Se ela se concentrasse, conseguia ver seus braços normais, mas, quando os movimentava, via-os tremeluzindo como miragens, separando-se em três pares diferentes de musculosos braços de Nascidos da Terra. Percy fez uma careta, que ficou ainda pior em seu recém-adquirido rosto feioso. — Uau, Annabeth… Ainda bem que a gente se beijou antes de você se transformar.
— Puxa, muito obrigada. Bom, temos que ir. Vou dar a volta no sentido horário. Piper, você vai no sentido contrário. Percy, você vai pelo meio… — Esperem — disse Percy. — Estamos indo direto para a armadilha do derramamento de sangue sobre a qual fomos alertados, e vocês querem se dividir ainda mais? — Assim vamos cobrir uma área maior — argumentou Annabeth. — Precisamos correr. Esses cânticos… Piper não tinha percebido até aquele momento, mas então ela ouviu: um som monótono agourento a distância, como cem empilhadeiras em ponto morto. Ela olhou para o chão e percebeu fragmentos de cascalho vibrando e se movendo na mesma direção, como se estivessem sendo atraídos para o Partenon. — Certo — disse Piper. — Encontro vocês no trono do gigante.
* * *
No início foi fácil. Havia monstros por toda parte, centenas de ogros, Nascidos da Terra e ciclopes circulando em meio às ruínas, mas a maioria deles estava reunida no Partenon, assistindo à cerimônia em andamento. Piper seguia pelas bordas dos penhascos da Acrópole sem ser perturbada. Havia três Nascidos da Terra tomando sol sobre as rochas perto do primeiro onagro. Piper foi para perto deles e sorriu. — Olá. Antes que eles emitissem qualquer som, ela os matou com a espada. Os três derreteram em montes de escória. Piper então cortou a corda da mola do onagro para neutralizar a arma, depois seguiu em frente. Agora Piper tinha um objetivo. Causar o maior estrago possível antes que descobrissem a sabotagem. Ela desviou de uma patrulha de ciclopes. O segundo onagro estava cercado por um grupo de ogros lestrigões, mas Piper conseguiu se aproximar da arma sem levantar suspeitas. Ela derramou um frasco de fogo grego no cesto. Com sorte, assim que tentassem carregar a catapulta, a máquina explodiria na cara deles. Seguiu em frente. Havia grifos empoleirados na colunata de um templo antigo. Um grupo de empousai tinha ido para a sombra de uma arcada e parecia estar cochilando, o cabelo flamejante bruxuleando, tênue, as pernas de metal brilhando. Com sorte, se tivessem que lutar, o calor do sol as deixaria lentas. Sempre que podia, Piper matava monstros isolados, mas passava direto por grupos maiores. Enquanto isso, a multidão no Partenon aumentava. Os cânticos ficavam mais altos. Piper não conseguia ver o que estava acontecendo no interior das ruínas, só as cabeças de vinte ou trinta gigantes de pé em um círculo,
murmurando e balançando o corpo — talvez uma versão monstro de músicas gospel. Ela sabotou uma terceira arma de cerco cortando as cordas de torção, o que provavelmente daria ao Argo II caminho livre para se aproximar pelo norte. Piper torcia para que Frank estivesse atento ao progresso dela. Quanto tempo o navio levaria para chegar? De repente, a cantilena parou. Um BUM ecoou pela encosta. No Partenon, os gigantes urraram em triunfo. Por toda a volta de Piper chegavam monstros, indo na direção do som. Aquilo não podia ser boa coisa. Piper se enfiou no meio de um grupo de Nascidos da Terra de cheiro azedo. Subiu os degraus de entrada do templo, depois escalou alguns andaimes de metal para enxergar sobre as cabeças dos gigantes e ciclopes. A cena nas ruínas quase a fez dar um grito. Diante do trono de Porfírion, dezenas de gigantes de pé formavam um círculo espaçado, gritando e brandindo suas armas, enquanto dois deles desfilavam em volta da roda, suas presas à mostra. A princesa Peribeia segurava Annabeth pelo pescoço como se a menina fosse um gato feroz. O gigante Encélado tinha Percy preso em sua enorme mão fechada. Annabeth e Percy lutavam inutilmente. Seus captores os exibiram para a horda vibrante de monstros, depois se viraram para encarar o rei Porfírion, que estava sentado em seu trono improvisado, os olhos brancos reluzindo de maldade. — Bem na hora! — exclamou o rei dos gigantes. — O sangue do Olimpo, para despertar a Mãe Terra!
XLIII
PIPER
PIPER VIA HORRORIZADA O REI dos gigantes se levantar. De pé, sua altura era quase a mesma das colunas do templo. O rosto dele era exatamente como Piper se lembrava: pele verde como bile, um sorriso perverso e o cabelo cor de alga marinha trançado com espadas e machados tomados de semideuses mortos. Elevando-se acima de seus prisioneiros, ele os observava se debaterem. — Eles chegaram exatamente como você previu, Encélado! Parabéns! O velho inimigo de Piper fez uma reverência; e os ossos trançados chacoalharam em seus dreadlocks. — Foi simples, meu rei. Os padrões de chamas em sua armadura reluziam. Sua lança queimava, tomada por labaredas arroxeadas. Ele só precisava de uma das mãos para segurar seu prisioneiro. Apesar de todo o poder de Percy Jackson, apesar de tudo a que ele havia sobrevivido, no fim, o filho de Poseidon estava impotente diante da força bruta do gigante… e da inevitabilidade da profecia. — Eu sabia que esses dois iam liderar o ataque — prosseguiu Encélado. — Entendo como eles pensam. Atena e Poseidon… Eles eram iguaizinhos a estes garotos! Os dois vieram para cá querendo reclamar para si esta cidade. Sua arrogância foi sua ruína! Em meio aos gritos da multidão, Piper mal conseguia ouvir os próprios pensamentos, mas ela repetiu mentalmente as palavras de Encélado: esses dois iam liderar o ataque. Seu coração acelerou. Os gigantes esperavam por Percy e Annabeth. Não esperavam por ela. Pela primeira vez, ser Piper McLean, a filha de Afrodite, aquela que ninguém levava a sério, podia lhe dar alguma vantagem. Annabeth tentou falar, mas a giganta Peribeia a sacudiu pelo pescoço. — Cale a boca! Nem ouse usar sua lábia contra mim! A princesa sacou uma faca tão comprida quanto a espada de Piper. — Deixe-me fazer as honras, pai! — Espere, filha. — O rei recuou. — O sacrifício deve ser feito corretamente. Toas, algoz das Parcas, aproxime-se! O gigante cinza e enrugado surgiu arrastando os pés, segurando um cutelo exageradamente grande. Ele fixou os olhos leitosos em Annabeth. Percy gritou. Do outro lado da Acrópole, a centenas de metros de distância, um gêiser de água jorrou para o céu.
O rei Porfírion riu. — Vai ter que fazer melhor que isso, filho de Poseidon. A terra aqui é poderosa demais. Nem seu pai seria capaz de invocar mais que uma nascente. Mas não se preocupe. O único líquido necessário hoje é seu sangue! Piper corria os olhos pelo céu desesperadamente. Onde estava o Argo II? Toas se ajoelhou e, reverentemente, tocou a terra com lâmina de seu cutelo. — Mãe Gaia… — A voz dele era incrivelmente grave, abalando as ruínas, fazendo os andaimes de metal ressoarem sob os pés de Piper. — Em tempos ancestrais, o sangue se misturou com seu solo para criar vida. Agora, deixe que o sangue desses semideuses retribua o favor. Vamos garantir seu despertar. Nós a saudamos como nossa senhora eterna! Sem pensar, Piper saltou do andaime. Passou por cima das cabeças dos ciclopes e ogros, aterrissou no pátio do templo e abriu caminho até o círculo dos gigantes. Quando Toas se levantou com o cutelo, Piper atacou com sua espada, decepando a mão de Toas na altura do pulso. O gigante velho uivou. O cutelo e a mão decepada caíram no chão aos pés de Piper. Ela sentiu seu disfarce de Névoa se esgotar até sua imagem voltar ao normal: uma garota no meio de um exército de gigantes. Sua espada dentada parecia um palito de dente comparada com as armas enormes deles. — O QUE É ISSO? — urrou Porfírion. — Como essa criatura fraca e inútil ousa nos interromper? Piper seguiu seu instinto. Atacou.
* * *
As vantagens de Piper: ser pequena, rápida e completamente louca. Ela sacou a adaga Katoptris e a lançou em Encélado, torcendo para não acertar Percy por acidente. Então se jogou para o lado sem testemunhar se o acertara ou não, mas, a julgar pelo grito de dor do gigante, ela tinha mirado bem. Vários gigantes correram ao mesmo tempo na direção dela. Piper escapou entre as pernas deles, deixando que eles batessem suas cabeças. Ela passou ziguezagueando pela multidão, enfiando a espada em pés de dragão sempre que surgia a oportunidade, gritando “FUJAM! FUJAM DAQUI!”, para semear a discórdia. — NÃO! DETENHAM-NA! — gritou Porfírion. — MATEM-NA! Uma lança quase a empalou. Piper se esquivou e continuou a correr. É igual à captura da bandeira, disse para si mesma. Só que todos da equipe adversária têm dez metros de altura. Uma espada enorme cortou seu caminho. Em comparação a seu treinamento com Hazel, o golpe foi ridiculamente lento. Piper saltou a lâmina e correu em
zigue-zague na direção de Annabeth, que ainda se contorcia e esperneava na mão de Peribeia. Piper precisava salvar a amiga. Infelizmente, porém, a giganta previu seu plano. — Acho que não, semideusa! — berrou Peribeia. — Esta aqui vai sangrar! A giganta levantou sua faca. Piper gritou com o charme: — ERRE! Ao mesmo tempo, Annabeth encolheu as pernas para se tornar um alvo menor. A faca de Peribeia passou por baixo das pernas da filha de Atena e acertou a própria mão da giganta. — AAAAIIII! Peribeia soltou Annabeth… viva, mas não intacta. A lâmina abriu um corte feio na parte de trás de sua coxa. Quando a menina rolou para longe, seu sangue molhou a terra. O sangue do Olimpo, pensou Piper, horrorizada. Mas ela não podia fazer nada em relação a isso. Precisava ajudar Annabeth. Piper atacou Peribeia. Sua espada dentada de repente ficou fria como gelo em suas mãos. Surpresa, a giganta olhou para baixo quando a arma do Boreada penetrou em sua barriga. Seu peitoral se cobriu de gelo. Piper arrancou a espada. A giganta caiu para trás, congelada e soltando vapor branco da ferida, e atingiu o chão com um baque surdo. — Minha filha! O rei Porfírion apontou sua lança e atacou. Mas Percy tinha outras ideias. Encélado o havia soltado… provavelmente porque estava ocupado demais cambaleando sem rumo com a adaga de Piper enfiada na testa, cheio de icor escorrendo dos olhos. Percy estava desarmado. Sua espada talvez tivesse sido confiscada ou perdida na luta, mas ele não deixou que isso o detivesse. Enquanto o rei gigante corria na direção de Piper, Percy segurou a ponta da lança de Porfírion, empurrou-a para baixo e a fincou no chão. O próprio impulso do gigante o levantou do chão em uma manobra involuntária de salto com vara, e ele deu uma cambalhota e caiu de costas. Enquanto isso, Annabeth se arrastava pelo templo. Piper correu até ela e ficou junto à amiga golpeando com a espada de um lado para outro a fim de manter os gigantes afastados. Um vapor azul e frio envolvia sua espada agora. — Quem quer virar o próximo picolé? — gritou ela, canalizando sua raiva no charme. — Quem quer voltar para o Tártaro?
Fez efeito. Os gigantes ficaram agitados e confusos, olhando para o corpo congelado de Peribeia. E por que Piper não iria intimidá-los? Afrodite era a olimpiana mais antiga, nascida do mar e do sangue de Urano. Era mais velha que Poseidon e Atena, até mesmo que Zeus. E Piper era sua filha. Mais que isso, ela era uma McLean. Seu pai tinha vindo de baixo e agora era conhecido no mundo inteiro. Os McLean não recuavam. Como todos os cherokee, eles sabiam resistir ao sofrimento, sabiam como manter o orgulho e, quando necessário, sabiam lutar. E aquela era hora de lutar. A quinze metros dali, Percy se debruçou sobre o rei gigante, tentando arrancar uma espada das tranças de seu cabelo. Mas Porfírion não estava tão zonzo quanto parecia. — Tolos! Porfírion deu um tapa com as costas da mão em Percy como se ele fosse uma mosca irritante. O filho de Poseidon bateu contra uma coluna com um crec assustador. Porfírion ficou de pé. — Esses semideuses não podem nos matar! Eles não têm a ajuda dos deuses. Lembrem-se de quem vocês são! Os gigantes fecharam o cerco. Havia uma dúzia de lanças apontadas para o peito de Piper. Annabeth se levantou com dificuldade e pegou a faca de Peribeia, mas mal conseguia se manter de pé, muito menos lutar. Cada gota de seu sangue que pingava no chão borbulhava, passando de vermelho para dourado. Percy tentou se levantar, mas estava obviamente atordoado. Não conseguiria se defender. A única opção de Piper era manter os gigantes concentrados nela própria. — Vamos lá, então! — gritou. — Eu mesma vou destruir todos vocês, se for preciso! Um cheiro metálico de tempestade preencheu o ar. Todos os pelos nos braços de Piper se arrepiaram. — A questão é que… — disse uma voz vinda de cima — você não precisa. O coração de Piper quase saltou do peito. Jason estava parado em cima da colunata mais próxima, a espada brilhando dourada ao sol. Frank estava ao seu lado, com o arco pronto. Hazel viera montada em Arion, que empinava e relinchava em desafio. Com uma explosão ensurdecedora, um raio branco calcinante caiu do céu, direto através do corpo de Jason, quando ele saltou envolto em sua luz sobre o rei dos gigantes.
XLIV
PIPER
DURANTE OS TRÊS MINUTOS SEGUINTES, a vida foi maravilhosa. Aconteceu tanta coisa ao mesmo tempo que só um semideus hiperativo e com déficit de atenção poderia acompanhar. Jason caiu sobre o rei Porfírion com tanta força que o gigante desabou de joelhos, atingido pelo raio e golpeado no pescoço por um gládio de ouro. Frank disparou uma saraivada de flechas, obrigando os gigantes próximos de Percy a recuar. O Argo II assomava sobre as ruínas, e todas as balistas e catapultas disparavam simultaneamente. Leo devia ter programado as armas com precisão cirúrgica, pois em torno de todo o Partenon erguia-se uma parede de fogo grego crepitante. Embora o fogo não alcançasse o interior do templo, em um segundo a maioria dos monstros menores em volta da construção foi incinerada. A voz de Leo ribombou pelo alto-falante: — RENDAM-SE! VOCÊS ESTÃO CERCADOS POR UMA MÁQUINA DE GUERRA FALANTE MUITO SINISTRA! O gigante Encélado gritou, revoltado: — Valdez! — E AÍ, ENCHILADAS? — rugiu em resposta a voz de Leo. — BELA ADAGA AÍ NA SUA TESTA. — ARGH! — O gigante arrancou a Katoptris da cabeça. — Monstros, destruam aquele navio! As forças remanescentes fizeram o possível. Um bando de grifos levantou voo para atacar. Festus, a figura de proa, cuspiu fogo e os derrubou do céu, carbonizando-os. Alguns Nascidos da Terra arremessaram uma rajada de pedras, mas uma dezena de esferas de Arquimedes foi lançada das laterais do casco, interceptando as pedras e explodindo-as. — VISTA ALGUMA COISA! — ordenou Buford. Hazel esporeou Arion e saltou da colunata, mergulhando na batalha. A queda de doze metros teria quebrado as patas de qualquer outro cavalo, mas Arion tocou o solo já em movimento. Hazel ia de gigante em gigante, golpeando-os com a lâmina de sua spatha. Um pouco atrasados, Cécrope e seu povo serpente resolveram entrar na luta. Em quatro ou cinco pontos em torno das ruínas, o chão se transformou em gosma verde, e dali surgiram gemini armados, liderados pelo próprio Cécrope. — Matem os semideuses! — sibilou ele. — Matem os trapaceiros!
Antes que muitos guerreiros pudessem obedecer, Hazel apontou sua espada para o túnel mais próximo. O chão tremeu. Todas as membranas gosmentas estouraram e os túneis desmoronaram, expelindo nuvens de fumaça. Cécrope olhou ao redor para seu exército, agora reduzido a seis homens-cobra. — RASTEJAR EM RETIRADA! — ordenou Cécrope. As flechas de Frank detiveram a tentativa de fuga. A giganta Peribeia tinha descongelado em uma velocidade alarmante. Ela tentou agarrar Annabeth, mas, mesmo com a perna machucada, a garota conseguia se defender. E com a própria faca da giganta, ela a atacou, e deu início a uma brincadeira de pique mortal em volta do trono. Percy estava de pé outra vez, com Contracorrente de novo nas mãos. Ainda parecia zonzo. Seu nariz sangrava. Mas ele parecia estar conseguindo se virar contra o velho gigante Toas, que de algum modo tinha recuperado a mão e encontrado seu cutelo. Piper e Jason estavam de costas um para o outro, enfrentando todo gigante que ousasse se aproximar. Por um instante ela se sentiu em êxtase. Eles estavam vencendo! Mas logo o elemento surpresa se foi. Os gigantes se recuperaram da confusão. Frank ficou sem flechas, então se transformou em um rinoceronte e caiu dentro da batalha, mas assim que derrubava os gigantes, eles se levantavam de novo. Seus ferimentos pareciam estar se curando mais rápido. Peribeia estava se aproximando de Annabeth. Hazel foi derrubada de sua cela a cem quilômetros por hora. Jason invocou outro raio, mas, dessa vez, Porfírion simplesmente o desviou com a ponta de sua lança. Os gigantes eram maiores, mais fortes e mais numerosos. Não havia como matá-los sem a ajuda dos deuses. E eles não pareciam estar se cansando. Os seis semideuses foram forçados a formar um círculo defensivo. Outra rajada de rochas dos Nascidos da Terra acertou o Argo II. Dessa vez, Leo não conseguiu reagir rápido o suficiente. Fileiras de remos foram destruídas. O navio estremeceu e adernou no céu. Então Encélado jogou sua lança flamejante, que perfurou o casco do navio e explodiu em seu interior; labaredas saíram pelas aberturas dos remos. Uma nuvem negra densa e sinistra subiu do convés. O Argo II começou a cair. — Leo! — gritou Jason. Porfírion riu. — Vocês, semideuses, não aprenderam nada. Não há deuses para ajudá-los. Nós só precisamos de mais uma coisa para tornar nossa vitória completa. O rei dos gigantes sorriu com expectativa. Ele parecia estar olhando para Percy Jackson. Piper olhou para ele. O nariz de Percy ainda estava sangrando. Ele parecia não ter notado que um fio de sangue tinha escorrido por seu rosto e chegado à
ponta de seu queixo. — Percy, cuidado… — tentou dizer Piper, mas pela primeira vez sua voz falhou. Uma única gota de sangue pingou do queixo de Percy e tocou o chão entre seus pés, onde fervilhou como água em uma frigideira. O sangue do Olimpo banhou as pedras antigas. A Acrópole gemeu e estremeceu com o despertar da Mãe Terra.
XLV
NICO
A MENOS DE DEZ QUILÔMETROS do acampamento havia um 4x4 preto, estacionado na praia. Eles prenderam o barco em uma marina particular. Nico ajudou Dakota e Leila a puxarem Michael Kahale para a terra. O grandalhão continuava semiconsciente, balbuciando ordens e incentivos para um time imaginário de futebol americano, ao que pareceu a Nico: “Vermelho doze. Direita trinta e um. Manda um snap!” E então ele caía na gargalhada. — Vamos deixá-lo aqui — disse Leila. — Só não o amarre. Coitado… — E o carro? — perguntou Dakota. — As chaves estão no porta-luvas, mas… hã… você sabe dirigir? Leila franziu a testa. — Achei que você soubesse dirigir. Você já não tem dezessete anos? — Eu nunca aprendi! — exclamou Dakota. — Estava ocupado. — Podem deixar comigo — garantiu Nico. Os dois olharam para ele. — Mas você tem, tipo, catorze anos — disse Leila. Nico gostava de ver como os romanos ficavam nervosos perto dele, mesmo sendo mais velhos, maiores e mais experientes em batalha. — Eu não disse que ia me arriscar ao volante. Ele se ajoelhou e pôs a mão no chão. Sentiu os túmulos mais próximos, os ossos de humanos enterrados e espalhados por ali, mergulhados no esquecimento. Então procurou mais fundo, estendendo seus sentidos até o Mundo Inferior. — Jules-Albert. Vamos dar uma volta. O chão se abriu. Um zumbi em um traje esfarrapado de motorista do século XIX arrastou-se até a superfície. Leila deu um passo para trás. Dakota gritou como uma criancinha. — Mas o que é isso, cara? — protestou Dakota. — É o meu motorista — explicou Nico. — Jules-Albert terminou em primeiro na corrida Paris-Rouen de 1895, mas não pôde receber o prêmio por causa do alimentador automático do seu carro a vapor. Leila olhava para ele interrogativamente. — Do que é que você está falando? — Ele é uma alma inquieta, sempre à procura de mais uma chance de dirigir — disse Nico. — Tem sido meu motorista fiel nos últimos anos. — Então você tem um chofer zumbi — disse Leila, incrédula.
— Eu vou na frente. Nico sentou-se no banco do carona. Os romanos entraram atrás, relutantes. Jules-Albert tinha uma grande qualidade: era imune a emoções. Podia passar o dia inteiro preso no engarrafamento que não perdia a paciência. Era imune à fúria do trânsito. Podia até dirigir na direção de um grupo de centauros selvagens e passar pelo meio deles sem ficar nervoso. Os centauros eram diferentes de tudo que Nico já vira. Tinham traseiro de baio, peito e braços peludos cobertos de tatuagens e chifres de touro na testa. Nico duvidava muito que eles conseguissem se misturar com os humanos com a mesma facilidade que Quíron. Havia pelo menos duzentos deles treinando incansavelmente com espadas e lanças, ou assando carcaças de animais sobre fogueiras (centauros carnívoros… Nico teve um calafrio só de pensar). O acampamento deles ficava do outro lado da estradinha rural que serpenteava em volta do perímetro sudeste do Acampamento Meio-Sangue. O 4x4 foi abrindo caminho, buzinando quando necessário. De vez em quando um centauro olhava pela janela do motorista, via o zumbi e recuava em choque. — Pela armadura de Plutão — murmurou Dakota. — Chegaram ainda mais centauros ontem à noite. — Não os olhe nos olhos — alertou Leila. — Eles encaram isso como um desafio para um duelo mortal. Nico manteve o olhar fixo à frente enquanto o 4x4 avançava. Seu coração batia forte, mas ele não estava com medo. Estava com raiva. Octavian havia cercado o Acampamento Meio-Sangue de monstros. Claro, os sentimentos de Nico em relação ao acampamento grego eram bem conflitantes. Sim, ele tinha se sentido rejeitado ali, deslocado, indesejado e ignorado… mas agora que o local estava à beira da destruição, Nico percebia quanto significava para ele. Aquele era o último lar onde ele e Bianca tinham vivido juntos, o único lugar onde haviam se sentido seguros, mesmo que apenas temporariamente. Fizeram uma curva na estrada. Nico cerrou os punhos: mais monstros… centenas mais. Homens com cabeça de cachorro circulavam em matilhas, seus machados de guerra reluzindo à luz das fogueiras dos acampamentos. Mais além, via-se uma tribo de homens de duas cabeças vestidos em trapos e cobertores, como mendigos, e armados com uma coleção variada de fundas, porretes e canos de metal. — Octavian é um idiota — disse Nico entre dentes. — Ele acha que pode controlar essas criaturas? — E elas não param de chegar — comentou Leila. — Antes que a gente se dê conta… Bem, veja.
A legião estava em formação de combate na base da Colina Meio-Sangue, as cinco coortes em perfeita ordem, seus estandartes resplandecentes e imponentes. Águias gigantes sobrevoavam-nas em círculos. As armas de cerco, seis onagros dourados do tamanho de casas, estavam posicionadas na retaguarda em um semicírculo espaçado, três em cada flanco. Mas, mesmo com toda essa disciplina impressionante, a Décima Segunda Legião parecia pateticamente pequena, uma mancha de valentia semidivina em um mar de monstros vorazes. Naquele momento, Nico desejou ainda ter consigo o cetro de Diocleciano, mas dificilmente uma legião de guerreiros mortos conseguiria causar sequer um arranhão naquele exército. Nem o Argo II teria muito poder contra aquele tipo de força. — Preciso neutralizar os onagros — disse Nico. — Não temos muito tempo. — Você não vai conseguir chegar nem perto — avisou Leila. — Mesmo se convencermos a Quarta e a Quinta inteiras a nos seguir, as outras coortes vão tentar nos deter. E aquelas armas de cerco são operadas pelos seguidores mais leais de Octavian. — Não vamos nos aproximar pela força — concordou Nico. — Mas sozinho eu posso conseguir. Dakota, Leila… Jules-Albert vai levar vocês até as linhas da legião. Vão, conversem com suas tropas e convençam-nas a seguir sua liderança. Vou precisar de uma distração. Dakota franziu a testa. — Tudo bem, mas não vou ferir nenhum de meus camaradas legionários. — Ninguém está lhe pedindo isso — resmungou Nico. — Mas, se não impedirmos esta guerra, a legião inteira vai ser destruída. Você disse que as tribos de monstros se ofendem com qualquer coisa? — É — disse Dakota. — Tipo, você faz qualquer comentário para esses caras de duas cabeças sobre como eles cheiram e… Ah. — Ele sorriu. — Se começarmos uma briga… acidentalmente, é claro… — Conto com vocês — disse Nico. Leila franziu a testa. — Mas como você vai… — Eu vou pegar um atalho — disse ele. E desapareceu nas sombras.
* * *
Nico achou que estava preparado. Mas não. Mesmo depois de três dias e das maravilhosas propriedades curativas da lama gosmenta marrom do treinador Hedge, Nico começou a se dissolver no
momento em que mergulhou nas sombras. Seus braços e suas pernas se vaporizaram. O frio penetrou seu peito. Vozes de espíritos sussurraram em seus ouvidos: Ajude-nos. Lembre-se de nós. Junte-se a nós. Ele não havia percebido quanto tinha dependido de Reyna até ali. Sem a força dela, Nico se sentia tão fraco quanto um bezerrinho recém-nascido, cambaleando perigosamente, prestes a cair a cada passo. Não, disse ele a si mesmo. Eu sou Nico di Angelo, filho de Hades. Eu controlo as sombras, e não elas que me controlam. Ele voltou ao mundo mortal tropegamente, no alto da Colina Meio-Sangue. Caiu de joelhos, agarrando-se ao pinheiro de Thalia para se apoiar. O Velocino de Ouro não estava mais nos galhos. O dragão guardião havia desaparecido. Talvez tivessem sido levados para um lugar mais seguro, agora que a batalha era iminente. Nico não sabia. Mas, olhando para as forças romanas em posição de combate próximo ao vale, seu ânimo vacilou. O onagro mais próximo estava cem metros colina abaixo, em uma trincheira protegida com arame farpado, guardado por uma dúzia de semideuses. Estava carregado, pronto para disparar. Um projétil do tamanho de um Honda Civic, revestido por flocos de ouro que cintilavam, repousava no enorme cesto de lançamento. Com uma certeza fria, Nico entendeu o que Octavian estava tramando. O projétil era uma mistura de carga incendiária com ouro imperial. Mesmo em pequenas quantidades, o ouro imperial era incrivelmente volátil. Exposto a muito calor ou pressão, explodiria com um impacto devastador e, é claro, era mortal tanto para monstros quanto para semideuses. Se aquele onagro acertasse o Acampamento Meio-Sangue, tudo na zona de impacto seria aniquilado — vaporizado pelo calor ou desintegrado pelos estilhaços. E os romanos tinham seis onagros, todos abastecidos com farta munição. — Isso é maligno — disse Nico. Ele tentou pensar. Estava amanhecendo. Não tinha a menor condição de neutralizar todas as seis armas antes que o ataque começasse, mesmo que encontrasse forças para viajar nas sombras tantas vezes assim. Se conseguisse mais uma vez, já seria um milagre. Ele viu a tenda do comando romano, atrás da legião, mais à esquerda. Octavian devia estar lá, tomando seu café da manhã a uma distância segura da luta. Ele não liderava suas tropas em combate. Aquele ser desprezível desejava destruir o acampamento de longe, esperar que a poeira baixasse para só então marchar sobre a área derrotada sem resistência. Nico sentiu um aperto na garganta, de tanto ódio que sentiu. Ele se concentrou na tenda, visualizando o salto que teria que dar. Se conseguisse assassinar Octavian, quem sabe não resolveria o problema? A ordem para o ataque talvez
nunca viesse a ser dada. Ele estava prestes a entrar em ação quando uma voz às suas costas chamou: — Nico? Ele se virou de imediato, a espada instantaneamente na mão, quase decapitando Will Solace. — Abaixe isso! — sussurrou Will. — O que você está fazendo aqui? Surpreso, Nico ficou sem palavras. Will e dois outros campistas estavam agachados no mato, com binóculos pendurados no pescoço e facas na cintura. Usavam calça jeans e camiseta pretas, o rosto pintado de graxa como tropas de elite. — Eu? — perguntou Nico. — O que vocês estão fazendo aí? Querem morrer? Will fez cara feia. — Ei, estamos espionando o inimigo. Tomamos precauções. — Ah, é, se vestiram de preto em pleno nascer do sol. Pintaram o rosto, mas não cobriram essa cabeleira loura. Chamariam menos atenção se estivessem agitando uma bandeira amarela. As orelhas de Will ficaram vermelhas. — Lou Ellen nos envolveu em um pouco de Névoa também. — Oi. — A garota ao lado dele agitou os dedos em saudação. Parecia um pouco envergonhada. — Nico, não é? Ouvi falar muito de você. E este é Cecil, do chalé de Hermes. Nico se ajoelhou ao lado deles. — O treinador Hedge conseguiu chegar ao acampamento? Lou Ellen deu uma risadinha nervosa. — Já não era sem tempo, né? Will deu uma cotovelada nela. — Sim. Hedge está bem. Ele chegou bem a tempo para o nascimento do bebê. — O bebê! — Nico sorriu, o que fez com que os músculos de seu rosto doessem. Não estava acostumado a fazer essa expressão. — Mellie e a criança estão bem? — Estão. Um menininho sátiro muito fofinho. — Will deu de ombros. — Mas fui eu que fiz o parto. Você já fez um parto alguma vez? — Hum… não. — Eu precisava espairecer. Foi por isso que me ofereci para esta missão. Pelos deuses do Olimpo, minhas mãos estão tremendo até agora. Olhe só! Will pegou a mão dele. Nico sentiu uma corrente elétrica percorrer sua coluna e tirou a mão rápido. — Aham — respondeu ele secamente. — Bom, não temos tempo para ficar de conversinha. Os romanos vão atacar ao amanhecer, e eu preciso…
— A gente sabe — disse Will. — Mas, se você pretende viajar nas sombras até aquela tenda, pode esquecer. Nico o olhou com hostilidade. — O quê? Ele esperava que Will ficasse assustado ou desviasse o olhar. Era o que a maioria das pessoas fazia. Mas os olhos azuis de Will permaneceram fixos nos dele, irritantemente determinados. — O treinador Hedge me contou tudo sobre as suas viagens nas sombras. Você não pode fazer isso de novo. — Acabei de fazer isso de novo, Solace. E estou ótimo. — Não, não está. Eu sou um curandeiro. Senti a escuridão nas suas mãos no mesmo instante em que toquei em você. Mesmo que conseguisse chegar àquela tenda, você não estaria em condições de lutar. Só que você não conseguiria chegar lá. Mais um mergulho e você não volta. Você não vai viajar nas sombras. Ordens médicas. — O acampamento está prestes a ser destruído… — E nós vamos deter os romanos — disse Will. — Mas vamos fazer isso do nosso jeito. Lou Ellen vai usar a Névoa. Vamos dar um jeito de andar por aí discretamente e provocar o máximo de dano possível a esses onagros. Sem viagem nas sombras. — Mas… — Não. Lou Ellen e Cecil viravam a cabeça de um lado para outro como se estivessem assistindo a uma partida de tênis muito intensa. Nico deu um suspiro de exasperação. Ele odiava trabalhar em grupo. As pessoas só sabiam tolher seu estilo, deixando-o desconfortável. E Will Solace… Nico reconsiderou a opinião que fazia do filho de Apolo. Ele sempre achara Will um cara tranquilo e despreocupado, mas, aparentemente, o garoto sabia ser teimoso e irritante também. Nico olhou lá para baixo, para o Acampamento Meio-Sangue, onde o restante dos gregos se preparava para a guerra. Mais além das tropas e das balistas, o lago de canoagem reluzia em um tom rosado às primeiras luzes do amanhecer. Nico se lembrou de quando chegara ao Acampamento Meio-Sangue pela primeira vez, aterrissando bem no carro do sol de Apolo, que tinha virado um ônibus escolar flamejante. Ele se lembrou de Apolo, sorridente e bronzeado e todo descolado com seus óculos escuros. Ao vê-lo, Thalia tinha comentado: Uau, fiquei até com calor! Ele é o deus-sol, retrucara Percy. Não é disso que estou falando.
Por que Nico estava pensando isso naquele momento? A lembrança aleatória o deixou nervoso. Ele tinha chegado ao Acampamento Meio-Sangue graças a Apolo. Agora, no que provavelmente seria seu último dia no acampamento, estava preso a um filho de Apolo. — Que seja — disse Nico. — Mas temos que correr. E eu digo o que vamos fazer. — Tudo bem — concordou Will. — Desde que você não me peça para fazer mais partos de bebês sátiros, vamos nos dar muito bem.
XLVI
NICO
ALCANÇARAM O PRIMEIRO ONAGRO JUSTO quando o caos irrompeu na legião. Gritos se ergueram da Quinta Coorte, na extremidade final das fileiras. Legionários debandavam e largavam seus pila. Uma dúzia de centauros avançava correndo através da formação de romanos, gritando e brandindo suas clavas. Uma horda de homens de duas cabeças os seguiu, batendo em tampas de lata de lixo de metal. — O que está acontecendo lá embaixo? — perguntou Lou Ellen. — É a nossa chance — disse Nico. — Vamos. Todos os guardas tinham se amontoado do lado direito do onagro, tentando ver o que acontecia lá embaixo, o que deu a Nico e aos outros caminho livre pela esquerda. Eles passaram despercebidos a pouco mais de um metro do romano mais próximo. Pelo visto, a magia da Névoa de Lou Ellen estava mesmo funcionando. Eles saltaram a trincheira de arame farpado para alcançar o onagro. — Trouxe um pouco de fogo grego — sussurrou Cecil. — Não — disse Nico. — Se provocarmos um estrago muito óbvio, nunca vamos chegar aos outros a tempo. Você consegue recalibrar a mira? Tipo, fazer esta máquina mirar na direção da trajetória dos outros onagros? Cecil abriu um sorriso malicioso. — Ah, gostei dessa sua linha de raciocínio. Saiba que eles me mandaram porque estragar as coisas é minha especialidade. E lá foi ele iniciar os trabalhos. Nico e os outros ficaram vigiando. Enquanto isso, a Quinta Coorte se digladiava com os homens de duas cabeças. A Quarta chegou para ajudar; as outras três coortes ficaram em suas posições, mas os oficiais estavam com dificuldades para manter a ordem. — Tudo bem — anunciou Cecil. — Vamos em frente. Eles seguiram pela encosta até outro onagro. Dessa vez, a Névoa não funcionou tão bem. Um dos homens que protegiam o onagro gritou: — Ei! — Deixem comigo — disse Will. Ele saiu correndo (a distração mais idiota que Nico podia imaginar), e seis guardas foram em seu encalço.
Os outros romanos partiram para cima de Nico, mas Lou Ellen surgiu da Névoa, gritando: — Ei, pensem rápido! Ela jogou para o alto uma bola branca do tamanho de uma maçã, que o romano no centro do grupo pegou instintivamente. Uma explosão se seguiu, fazendo subir no ar uma esfera de seis metros de poeira. Quando a poeira baixou, todos os seis romanos tinham virado leitõezinhos rosados a guinchar. — Muito bom — disse Nico. Lou Ellen corou. — Bem, era a única bola de porco que eu tinha. Por isso, não peçam bis. — E, hã… — Cecil apontou. — É melhor alguém ajudar Will. Mesmo com as pesadas armaduras que vestiam, os romanos começavam a se aproximar de Will. Nico xingou e saiu correndo atrás deles. Se pudesse evitar, ele preferia não matar mais semideuses. E, felizmente, isso não foi necessário. Ele derrubou o romano retardatário, e os outros se viraram. Nico saltou no meio do grupo, chutando-os na virilha, batendo no rosto de todos com a lateral da espada e amassando seus elmos com o cabo. Em dez segundos, todos os romanos estavam no chão gemendo, atordoados. Will deu um soquinho no ombro de Nico. — Obrigado pela ajuda. Seis de uma vez não é nada mau. — Nada mau? — Nico olhou com raiva para ele. — Da próxima vez vou deixar pegarem você, Solace. — Ah, eles nunca iam conseguir me pegar. Cecil acenou para eles do onagro, avisando que tinha terminado. Todos seguiram na direção da terceira máquina de cerco. Nas fileiras da legião, o caos continuava reinando, mas os oficiais começavam a retomar o controle. A Quarta e a Quinta Coortes se reagruparam enquanto a Segunda e a Terceira atuavam como tropa de choque, empurrando centauros, cinocéfalos e homens de duas cabeças de volta para os respectivos acampamentos. A Primeira Coorte permaneceu perto do onagro — perto demais para o gosto de Nico —, mas todos pareciam estar prestando atenção em dois oficiais que desfilavam diante deles gritando ordens. Nico esperava que eles conseguissem chegar sem ser vistos à terceira máquina de cerco. Com mais um onagro sabotado, talvez eles tivessem uma chance. Infelizmente, porém, os guardas os avistaram a vinte metros de distância. Um deles gritou: — Ali! Lou Ellen xingou. — Eles agora estão esperando um ataque. A Névoa não funciona bem contra inimigos alertas. Vamos fugir?
— Não — disse Nico. — Vamos dar a eles o que estão esperando. Ele estendeu as mãos. O chão em frente aos romanos pareceu explodir, e cinco esqueletos irromperam, arrastando-se para fora da terra. Cecil e Lou Ellen avançaram, para ajudar no ataque. Nico tentou ir também, mas teria caído de cara no chão se Will não o tivesse segurado. — Seu idiota. — Will passou um braço em torno dele para ajudá-lo a se firmar. — Eu avisei para você não usar mais magia do Mundo Inferior. — Eu estou bem. — Cale a boca. Que bem o quê. Will tirou do bolso um pacote de chiclete. Nico queria se soltar; odiava contato físico. Mas Will era muito mais forte do que parecia. Nico se viu sustentado por ele, confiando em seu apoio. — Tome — disse Will. — Você quer que eu masque chiclete? — É medicinal. Deve manter você vivo e alerta por mais algumas horas. Nico enfiou um chiclete na boca. — Tem gosto de piche e terra. — Pare de reclamar. — Ei. — Cecil se aproximou mancando; parecia ter distendido um músculo. — Vocês dois meio que perderam a luta. Lou Ellen chegou em seguida, sorrindo. Atrás deles, todos os guardas romanos estavam presos em uma mistura bizarra de cordas e ossos. — Obrigada pelos esqueletos — disse ela. — Grande truque. — Que ele não vai fazer outra vez — disse Will. Nico percebeu que ainda estava apoiado em Will. Ele se afastou e se manteve de pé sozinho. — Eu vou fazer o que for necessário. Will revirou os olhos. — Tudo bem, Garoto da Morte. Se você quer se matar… — Não me chame de Garoto da Morte! Lou Ellen limpou a garganta. — Ei, pessoal… — LARGUEM AS ARMAS! Nico se virou. A luta próxima ao terceiro onagro não tinha passado despercebida. Toda a Primeira Coorte avançava sobre eles, lanças em punho e escudos em posição. Octavian marchava à frente, com um manto roxo sobre a armadura, joias de ouro imperial reluzindo no pescoço e nos braços e, na cabeça, uma coroa de louros, como se já tivesse vencido a batalha. Ao lado dele estava o porta-estandarte da legião, Jacob, levando a águia dourada, e seis imensos
cinocéfalos, arreganhando os caninos, suas espadas emitindo um brilho vermelho. — Ora, ora — disse Octavian —, sabotadores graeci. — Ele se virou para seus guerreiros com cabeça de cachorro. — Acabem com eles.
XLVII
NICO
NICO NÃO SABIA SE QUERIA socar a si mesmo ou Will Solace. Se não tivesse se distraído discutindo bobagens com o filho de Apolo, nunca teria permitido que o inimigo chegasse tão perto. Quando os homens com cabeça de cachorro avançaram, Nico ergueu a espada. Ele duvidava que ainda lhe restasse alguma força para vencer, mas antes que pudesse atacá-los, Will soltou um assovio muito alto. Todos os seis homens-cão largaram as armas, levaram as mãos às orelhas e caíram em agonia. — Cara. — Cecil abriu a boca para reduzir a pressão nos ouvidos. — Que barulho do Hades! Da próxima vez, avise. — É ainda pior para os cachorros. — Will deu de ombros. — Um dos meus poucos talentos musicais. Um assovio ultrassônico horrível. Nico não reclamou. Ele avançava com dificuldade entre os homens-cão, cravando neles sua espada. Os monstros se dissolviam em sombras. Os romanos, entre eles Octavian, estavam sem ação, assombrados com o que viam. — Minha… minha guarda de elite! — Octavian olhou ao redor em busca de compreensão, de piedade. — Vocês viram o que ele fez com a minha guarda de elite? — Alguns cães precisam ser sacrificados. — Nico deu um passo à frente. — Como você. Por um belo momento, toda a Primeira Coorte hesitou. Mas então eles voltaram a si e ergueram seus pila. — Vocês serão destruídos! — ameaçou Octavian, em um grito estridente. — Vocês, graeci, ficam aí se infiltrando pelo acampamento, sabotando nossas armas, matando nossos homens… — As armas que vocês estavam prestes a disparar contra nós, você quer dizer — corrigiu Cecil. — E os homens que estavam prestes a queimar nosso acampamento — completou Lou Ellen. — Típico dos gregos! — berrou Octavian. — Tentando distorcer as coisas! Pois saibam que não vai funcionar! — Ele apontou para os legionários mais próximos. — Você, você, você e você. Verifiquem todos os onagros. Vejam se estão todos em boas condições. Quero que sejam disparados assim que possível. Vão!
Os quatro romanos saíram correndo. Nico tentou manter a expressão inalterada. Por favor, não verifiquem a trajetória de tiro, pensou. Nico só torcia para que Cecil tivesse feito tudo direito. Uma coisa era sabotar uma arma grande; outra era sabotar de maneira tão sutil que só percebessem quando já fosse tarde demais. Mas se alguém tinha essa habilidade, esse alguém seria um filho de Hermes, o deus das trapaças. Octavian marchou até Nico. Para seu crédito, o áugure não parecia estar com medo, embora portasse apenas uma adaga. Ele parou tão perto que Nico podia ver as veias injetadas em seus olhos pálidos e vidrados. Seu rosto estava abatido. Seu cabelo era da cor de macarrão cozido demais. Nico sabia que Octavian era um legado — um descendente de Apolo com muitas gerações de distância do deus. Agora ele não conseguia evitar pensar que Octavian parecia uma versão diluída e doentia de Will Solace, como uma foto que tivesse sido copiada vezes demais. Octavian não tinha nada do que quer que tornava um filho de Apolo especial. — Então me diga, filho de Plutão — sibilou o áugure —, por que está ajudando os gregos? O que eles já fizeram algum dia por você? Nico estava louco de vontade de enfiar a espada no peito de Octavian. Vinha sonhando com isso desde que Bryan Lawrence os atacara na Carolina do Sul. Mas, agora que estavam cara a cara, Nico hesitava. Ele não tinha dúvida de que podia matar Octavian antes que a Primeira Coorte interviesse. E não se importava em morrer por conta de seus atos. Valeria a pena. Mas depois do fim que Bryce tivera, a ideia de matar outro semideus a sangue-frio, mesmo Octavian, não lhe caía bem. Além do mais, não lhe parecia certo condenar Cecil, Lou Ellen e Will a morrer com ele. Não parece certo?, perguntava-se outra parte dele. Desde quando eu me preocupo com o que é certo? — Estou ajudando os gregos e os romanos — disse Nico. Octavian riu. — Não tente me enrolar. O que ofereceram a você? Um lugar no acampamento deles? Pois saiba que não vão cumprir o acordo. — Eu não quero um lugar no acampamento deles — respondeu Nico com raiva. — Nem no de vocês. Quando esta guerra terminar, vou deixar os dois acampamentos para sempre. Will Solace fez um som como se tivesse levado um soco. — Por que você faria isso? Nico franziu a testa. — Não é da sua conta, mas eu não pertenço a nenhum desses lugares. Isso é óbvio. Ninguém me quer. Sou filho de…
— Ah, por favor. — Will deixou transparecer uma raiva que não lhe era usual. — Ninguém no Acampamento Meio-Sangue nunca afastou você. Você tem amigos, ou pelo menos há quem gostaria de ser seu amigo. Você é que se afastou. Se tirasse a cabeça dessa sua nuvem de ressentimento pelo menos uma vez na vida… — Basta! — interrompeu Octavian. — Di Angelo, cubro qualquer oferta que os gregos possam fazer. Sempre achei que você daria um aliado poderoso. Vejo crueldade em você e gosto disso. Posso garantir seu lugar em Nova Roma. Basta que você saia do caminho e deixe os romanos vencerem. O deus Apolo me mostrou o futuro… — Não! — Will Solace empurrou Nico para o lado e avançou, ficando cara a cara com Octavian. — Eu sou filho de Apolo, seu perdedor anêmico. Meu pai não mostrou o futuro a ninguém, porque o poder da profecia não está funcionando. Mas isto… — Ele fez um gesto amplo, indicando a legião reunida, as hordas de exércitos monstruosos espalhadas pela encosta. — Isto não é o que Apolo desejaria! Octavian franziu os lábios. — É mentira. O deus me disse pessoalmente que eu seria lembrado como o salvador de Roma. Vou conduzir a legião à vitória, e vou começar… Nico sentiu o som antes mesmo de ouvi-lo: tum-tum-tum, reverberando pela terra, como as engrenagens gigantes de uma ponte móvel. Todos os onagros dispararam simultaneamente, e seis cometas dourados subiram aos céus. — … destruindo os gregos! — concluiu Octavian, em uma exclamação de alegria. — Os dias do Acampamento Meio-Sangue estão contados!
* * *
Nico não conseguia pensar em nada mais bonito que um projétil fora de curso. As cargas das três máquinas sabotadas fizeram um desvio para o lado ao serem lançadas, subindo em um arco na direção das cargas disparadas pelos outros três onagros. As bolas de fogo não colidiram diretamente. Nem precisavam. Assim que os mísseis se aproximaram uns dos outros, todas as seis ogivas detonaram em pleno ar, abrindo uma abóbada de ouro e fogo que queimou o oxigênio do céu. O calor atingiu com força o rosto de Nico. A grama soltou um chiado. As copas das árvores fumegaram. Mas, quando os fogos de artifício se apagaram, nenhum dano sério resultara da explosão. Octavian foi o primeiro a reagir. Batendo os pés no chão, ele gritou: — NÃO, NÃO, NÃO! RECARREGAR!
Ninguém na Primeira Coorte se mexeu. Nico ouviu o som de botas à direita. A Quinta Coorte estava em marcha acelerada na direção deles, liderada por Dakota. Mais abaixo na encosta, o restante da legião tentava entrar em formação, mas a Segunda, a Terceira e a Quarta Coortes estavam agora cercadas por um mar de monstros em péssimo humor. As forças auxiliares não pareciam satisfeitas com as explosões ocorridas no céu. Sem dúvida esperavam que o Acampamento Meio-Sangue se incendiasse para que pudessem ter semideuses carbonizados para o café da manhã. — Octavian! — chamou Dakota. — Temos novas ordens. O olho esquerdo de Octavian se contraía tão violentamente que parecia prestes a explodir. — Ordens? De quem? Não de mim! — De Reyna — disse Dakota, alto o suficiente para que todos na Primeira Coorte ouvissem. — Ela ordenou uma retirada. — Reyna? — Octavian riu, embora parecesse que ninguém tinha entendido a piada. — A fora da lei que eu mandei você prender? A ex-pretora que conspirou para trair o próprio povo com esse graecus? — Ele enfiou o dedo no peito de Nico. — Está obedecendo a ordens dela? A Quinta Coorte assumiu posição de combate atrás de Octavian, encarando desconfortavelmente seus companheiros da Primeira. Dakota cruzou os braços; determinado, disse: — Reyna é a pretora até que o Senado vote o contrário. — Estamos em guerra! — berrou Octavian. — Eu os trouxe à iminência da vitória definitiva, e vocês querem desistir? Primeira Coorte: prenda o centurião Dakota e qualquer um que concorde com ele. Quinta Coorte: lembrem-se do juramento que fizeram a Roma e à legião. Vocês obedecerão a mim! Will Solace interveio: — Não faça isso, Octavian. Não obrigue seu povo a escolher. Esta é sua última chance. — Minha última chance? — Octavian sorriu, a loucura brilhando em seus olhos. — Eu vou SALVAR ROMA! Agora, romanos, sigam minhas ordens! Prendam Dakota. Prendam essa escória graeca. E recarreguem os onagros! Nico não sabia o que os romanos teriam feito se tivessem sido deixados para decidir segundo a própria consciência. Mas ele não contara com os gregos. Naquele momento, todo o exército do Acampamento Meio-Sangue surgiu no topo da Colina Meio-Sangue. Clarisse La Rue vinha à frente, em uma biga vermelha puxada por cavalos de metal. Cem semideuses a seguiam, com duas vezes esse número de sátiros e espíritos da natureza, liderados por Grover
Underwood. Tyson avançava pesadamente, ao lado de outros seis ciclopes. Quíron vinha no modo garanhão branco completo, o arco a postos. Era uma visão impressionante, mas Nico só conseguia pensar: Não. Agora, não. Clarisse gritou: — Romanos, vocês investiram contra nosso Acampamento! Retirem-se, ou serão destruídos! Octavian virou-se para suas tropas. — Viram? Era tudo um plano! Eles nos dividiram para poder lançar um ataque-surpresa. Legião, cuneum formate! ATACAR!
XLVIII
NICO
NICO QUERIA GRITAR EI, VOCÊS! Parem já com isso! Tipo JÁ! Mas ele sabia que não ia adiantar nada. Depois de semanas de espera, agonia e raiva acumulada, gregos e romanos queriam sangue. Tentar impedir a batalha naquele momento seria como tentar impedir uma inundação depois do rompimento de uma represa. E então Will Solace salvou o dia. Ele botou os dedos na boca e deu um assovio ainda mais horrível que o último. Vários gregos largaram suas espadas. Uma onda varreu as fileiras romanas como se toda a Primeira Coorte estivesse tremendo. — NÃO SEJAM IDIOTAS! — gritou Will. — VEJAM! Ele apontou para o norte, e Nico abriu um sorriso de orelha a orelha. Porque, afinal, existia algo mais bonito que um projétil fora de curso: a Atena Partenos reluzindo ao amanhecer, em pleno ar, suspensa pelos cabrestos de seis cavalos alados. Águias romanas voavam em círculos acima dela, mas não atacaram. Algumas até chegaram a se aproximar, segurar os cabos e ajudar a carregar a estátua. Nico ficou preocupado por não ver Blackjack, mas lá estava Reyna RamírezArellano, montada em Guido, a espada erguida bem alto. Seu manto roxo cintilava de um modo estranho à luz do sol. Sob o olhar fixo e atônito dos dois exércitos, a estátua de doze metros de altura, toda em ouro e marfim, se aproximava para aterrissar. — SEMIDEUSES GREGOS! — A voz de Reyna ribombou como se fosse projetada pela própria estátua, como se a Atena Partenos tivesse se transformado em um grande alto-falante, daqueles usados em shows. — Eis sua estátua mais sagrada, a Atena Partenos, que foi levada injustamente pelos romanos. Eu a devolvo a vocês agora, como um gesto de paz! A estátua pousou no topo da colina, a cerca de cinco metros do pinheiro de Thalia. Imediatamente, uma luz dourada começou a irradiar pelo chão, descendo pelo vale do Acampamento Meio-Sangue e alcançando as fileiras romanas. Nico sentiu o calor penetrando seus ossos, uma sensação reconfortante e de paz como ele não sentia desde… nem se lembrava. Uma voz dentro dele parecia sussurrar: Você não está sozinho. Você faz parte da família olimpiana. Os deuses não o abandonaram. — Romanos! — continuou Reyna. — Faço isto pelo bem da legião, pelo bem de Roma. Precisamos nos unir a nossos irmãos gregos!
— Escutem o que ela diz! — bradou Nico, adiantando-se. Ele não sabia por que tinha falado aquilo. Por que o ouviriam? Ele não tinha crédito com nenhum dos dois lados. Era o pior orador, o pior embaixador de todos. Mas, mesmo assim, Nico foi avançando entre as linhas de combate, a espada negra na mão. — Reyna arriscou a vida por todos vocês! Trouxemos essa estátua do outro lado do mundo, um grego e um romano trabalhando juntos, porque precisamos unir forças. Gaia está despertando. Se não nos unirmos… VOCÊS MORRERÃO. A voz abalou a terra. A sensação de paz e segurança que invadira Nico desapareceu no mesmo instante. Um vento varreu a encosta da colina. O próprio solo se tornou fluido e grudento, e a grama começou a se agarrar às botas de Nico. UM GESTO INÚTIL. Nico sentiu como se estivesse pisando na garganta da deusa — como se toda a extensão de Long Island ressonasse com as cordas vocais dela. MAS VOCÊS PODEM MORRER JUNTOS, SE ISSO OS CONSOLA. — Não… — Octavian recuou, cambaleando. — Não, não… Ele entrou em pânico e saiu correndo, abrindo caminho entre as próprias tropas. — CERRAR FILEIRAS! — gritou Reyna. Gregos e romanos se juntaram e ficaram ombro a ombro enquanto, em toda a volta deles, a terra tremia. As tropas auxiliares de Octavian avançaram e cercaram os semideuses. Os dois acampamentos reunidos eram um ponto minúsculo em um mar de monstros. A resistência final seria ali na Colina Meio-Sangue, tendo na Atena Partenos o ponto de mobilização das tropas. Mesmo ali, no entanto, eles estavam em território inimigo. Porque Gaia era a terra, e a terra tinha despertado.
XLIX
JASON
JASON TINHA OUVIDO FALAR SOBRE a vida de uma pessoa passar diante de seus olhos. Mas ele não imaginou que seria daquele jeito. De pé com os amigos em um círculo defensivo, cercado por gigantes, depois olhando para algo impossível no céu… Jason viu a si mesmo, muito claramente, cinquenta anos no futuro. Ele estava sentado em uma cadeira de balanço no pórtico de uma casa no litoral da Califórnia. Piper servia limonada. O cabelo dela era grisalho. Rugas profundas marcavam os cantos de seus olhos, mas ela ainda estava bonita como sempre. Com os netos sentados aos seus pés, Jason tentava explicar a eles o que tinha acontecido naquele dia em Atenas. Não, é sério, dizia ele. Éramos só seis semideuses no chão, e mais um em um navio em chamas acima da Acrópole. Estávamos cercados por gigantes de dez metros de altura prestes a nos matar. Aí o céu se abriu, e os deuses desceram! Vovô, diziam as crianças, você é muito mentiroso. Não estou mentindo!, protestava ele. Os deuses do Olimpo desceram dos céus em suas bigas ao som de clarins e com espadas em chamas. E seu bisavô, o rei dos deuses, liderava o ataque, com uma lança de eletricidade pura crepitando na mão! Seus netos riam dele. E Piper olhava para ele e ria, como quem dizia Será que você acreditaria se não tivesse estado lá? Mas Jason estava lá. Ele olhou para o alto quando as nuvens se abriram acima da Acrópole, e quase duvidou dos óculos de grau que Asclépio tinha dado a ele. Em vez de céus azuis, ele viu um espaço negro pontilhado de estrelas, com os palácios do Monte Olimpo brilhando prateados e dourados ao fundo. E um exército de deuses desceu lá do alto. Era muita coisa para processar. E provavelmente foi melhor para sua saúde não ver tudo. Só mais tarde Jason conseguiria se lembrar de detalhes isolados. Havia Júpiter em tamanho gigante — não, aquele era Zeus, sua forma original — entrando na batalha com uma biga dourada e um raio do tamanho de um poste crepitando na mão. Quatro cavalos feitos de vento puxavam a biga, todos mudando da forma equina para a humana a todo momento, tentando escapar. Por uma fração de segundo, um deles assumiu a imagem sombria de Bóreas. Outro usava a coroa de fogo e vapor de Noto. Um terceiro exibia o sorriso
presunçoso e preguiçoso de Zéfiro. Zeus tinha amarrado e selado os quatro deuses do vento. No fundo do Argo II, as portas de vidro do porão se abriram. A deusa Nice saiu de lá, livre de sua rede de bronze. Ela abriu as asas douradas e voou para o lado de Zeus, assumindo seu lugar de direito como condutora de sua biga. — MINHA MENTE ESTÁ CURADA! — gritou ela. — VITÓRIA AOS DEUSES! Hera vinha à esquerda de Zeus. Sua biga era puxada por pavões enormes com uma plumagem multicolorida tão brilhante que deixou Jason tonto. Ares gritava de alegria enquanto descia estrondosamente montado em um cavalo que cuspia fogo. Sua lança brilhava, vermelha. No último segundo, antes que os deuses chegassem ao Partenon, eles desapareceram, como se tivessem saltado pelo hiperespaço. As bigas sumiram. De repente, Jason e seus amigos viram-se cercados pelos olimpianos, agora em tamanho humano, pequenos perto dos gigantes, mas reluzindo de poder. Jason gritou e atacou Porfírion. Seus amigos se juntaram à carnificina. A luta tomou todo o Partenon e se espalhou pela Acrópole. Pelo canto do olho, Jason viu Annabeth lutando contra Encélado. Ao lado dela havia uma mulher de cabelo preto comprido e armadura dourada sobre uma túnica branca. A deusa enfiou a lança no gigante, depois ergueu o escudo com a assustadora imagem em bronze de Medusa. Juntas, Atena e Annabeth fizeram Encélado recuar até o andaime de metal mais próximo, que então desmoronou sobre ele. Do outro lado do templo, Frank Zhang e o deus Ares se lançaram contra uma falange inteira de gigantes, Ares com a lança e o escudo, Frank (na forma de um elefante africano) com a tromba e as patas. O deus da guerra ria, golpeava e estripava como uma criança destruindo piñatas. Hazel corria pelo campo de batalha montada em Arion, desaparecendo na Névoa sempre que um gigante se aproximava, para em seguida reaparecer atrás dele e golpeá-lo nas costas. A deusa Hécate seguia em seu rastro, ateando fogo a seus inimigos com duas tochas flamejantes. Jason não viu Hades, mas sempre que um gigante caía, o chão se abria e o engolia por inteiro. Percy combatia os gigantes gêmeos, Oto e Efialtes, tendo a seu lado um homem barbado com um tridente e uma camisa havaiana berrante. Os gigantes gêmeos cambalearam. O tridente de Poseidon se transformou em uma mangueira de incêndio, e, com um jato ultrapoderoso na forma de cavalos selvagens, o deus lançou os gigantes para fora do Partenon. Piper talvez fosse a mais impressionante. Ela duelava com a giganta Peribeia, espada contra espada. Apesar de sua adversária ser cinco vezes maior, Piper parecia estar se saindo bem. A deusa Afrodite flutuava em torno delas em uma
pequena nuvem branca, jogando pétalas de rosa nos olhos da giganta e dizendo palavras de estímulo para Piper: — Ótimo, querida. Isso, muito bem. Acerte-a de novo! Sempre que Peribeia tentava atacar, pombas surgiam do nada e acertavam a cara da giganta. Quanto a Leo, ele corria pelo convés do Argo II disparando balistas, jogando martelos na cabeça dos gigantes e incinerando suas túnicas. Atrás dele, ao timão, um sujeito barbado e musculoso de macacão de mecânico mexia nos controles, tentando furiosamente evitar que o barco caísse. A imagem mais estranha era o velho gigante Toas, que estava sendo surrado até a morte por três velhas com maças de latão, as Parcas, armadas para a guerra. Jason achou que não havia nada no mundo mais assustador do que uma gangue de vovós armadas com porretes. Ele percebeu todas essas coisas e mais uma dezena de outros confrontos em andamento, mas a maior parte de sua atenção estava concentrada no inimigo à sua frente, Porfírion, o rei dos gigantes, e no deus que lutava ao seu lado, Zeus. Meu pai, pensou Jason, sem conseguir acreditar. Porfírion não deu a ele muita oportunidade de saborear o momento. O gigante usou sua lança em um turbilhão de estocadas, giros e cortes. Ficar vivo era o máximo que Jason podia fazer. Mesmo assim… a presença de Zeus era tranquilizadoramente familiar. Apesar de Jason nunca ter conhecido pessoalmente o pai, ele se lembrou de todos os seus momentos mais felizes: seu piquenique de aniversário com Piper em Roma; o dia em que Lupa lhe mostrara o Acampamento Júpiter pela primeira vez; as brincadeiras de esconde-esconde com Thalia na casa deles, quando era pequeno; uma tarde na praia quando sua mãe o pegara, o beijara e lhe mostrara uma tempestade que se aproximava. Nunca tema uma tempestade, Jason. É seu pai dizendo que o ama. Zeus tinha cheiro de chuva e vento fresco. Ele fazia o ar queimar de energia. De perto, seu raio parecia uma vara de bronze de um metro afiada nas duas pontas, com lâminas de energia se projetando dos dois lados de maneira a formar uma lança de eletricidade branca. Com um golpe, ele bloqueou o caminho do gigante, e Porfírion caiu em seu trono improvisado, que desmoronou sob seu peso. — Não há trono para você — disse Zeus com raiva. — Nem aqui, nem nunca. — Você não pode nos impedir! — gritou o gigante. — Já está feito! A Mãe Terra despertou! Em resposta, Zeus explodiu o trono. O rei dos gigantes voou de costas para fora do templo, e Jason correu até ele, com o pai logo atrás. Eles encurralaram Porfírion na beira da colina, com a Atenas moderna inteira abaixo deles. O raio tinha derretido todas as armas no cabelo do gigante. Bronze
celestial derretido escorria por seus dreadlocks como caramelo. Sua pele soltava fumaça e estava cheia de bolhas. Porfírion rosnou de raiva e ergueu sua lança. — Sua causa está perdida, Zeus. Mesmo se me derrotar, a Mãe Terra vai simplesmente me trazer de volta outra vez! — Então talvez — disse Zeus — você não deva morrer nos braços de Gaia. Jason, meu filho… Jason nunca tinha se sentido tão bem, tão reconhecido, como ao ouvir o pai dizer seu nome. Foi como no inverno anterior, no Acampamento Meio-Sangue, quando suas lembranças finalmente voltaram. Por fim, Jason entendeu outro nível de sua existência, uma parte de sua identidade que antes estivera nublada. Agora ele não tinha dúvida: era filho de Júpiter, o deus do céu. Ele era o filho de seu pai. Jason avançou. Porfírion golpeava alucinadamente com a lança, mas Jason a cortou ao meio com seu gládio. Então cravou a espada no peitoral do gigante, depois invocou os ventos e lançou Porfírion no precipício. Enquanto o gigante caía gritando, Zeus apontou seu raio. Um arco de puro calor branco desintegrou Porfírion em pleno ar. Suas cinzas desceram lentamente em uma nuvem delicada que cobriu de poeira o topo das oliveiras na encosta da Acrópole. Zeus virou-se para Jason. Seu raio se apagou, e ele prendeu a vara de bronze celestial no cinto. Os olhos do deus eram cinza e tempestuosos. Seu cabelo e sua barba grisalhos pareciam nuvens. Jason achou estranho que o senhor do universo, o rei do Olimpo, fosse apenas alguns centímetros mais alto que ele. — Meu filho. — Zeus segurou o ombro de Jason. — Há tanta coisa que eu gostaria de dizer a você. O deus respirou fundo, fazendo o ar crepitar e os óculos de Jason embaçarem. — Infelizmente, como rei dos deuses, não posso demonstrar favoritismos. Quando nos unirmos aos outros olimpianos, não vou poder elogiá-lo tanto quanto eu gostaria, nem lhe dar o crédito que você merece. — Eu não quero elogios — disse Jason, com a voz trêmula. — Só um pouco de tempo juntos já seria bom. Quer dizer, eu nem conheço você. O olhar de Zeus estava tão distante quanto a camada de ozônio. — Estou sempre com você, Jason. Acompanhei seu progresso com orgulho, mas nunca vai ser possível sermos… — Ele fez um gesto como se estivesse tentando pegar a palavra certa no ar. Próximos. Normais. Verdadeiros pai e filho. — Desde seu nascimento você foi destinado a ser de Hera, para apaziguar sua ira. Até seu nome, Jason, foi escolha dela. Você não pediu por isso. Eu não queria isso. Mas quando eu o entreguei a ela… não tinha ideia do homem que você iria se tornar. Você foi formado por sua jornada, que o tornou bom e grandioso. O
que quer que aconteça quando voltarmos ao Partenon, saiba que eu não considero você responsável. Você provou ser um verdadeiro herói. As emoções de Jason estavam uma confusão em seu peito. — O que quer dizer com… o que quer que aconteça? — O pior ainda está por vir — avisou Zeus. — E alguém deve levar a culpa pelo que aconteceu. Venha.
L
JASON
NÃO SOBROU NADA DOS GIGANTES além de pilhas de pó, algumas lanças e um punhado de dreadlocks em chamas. O Argo II ainda estava no ar, mas por pouco, atracado no topo do Partenon. Quase todos os remos tinham sido arrancados ou estavam emaranhados. Saía fumaça de várias rachaduras no casco. As velas estavam pontilhadas de furos em chamas. Leo tinha um aspecto quase tão ruim quanto o barco. Ele estava no meio do templo junto dos outros membros da tripulação, o rosto coberto de fuligem e as roupas flamejando. Os deuses se dispersaram em um semicírculo quando Zeus se aproximou. Nenhum deles parecia muito satisfeito com a vitória. Apolo e Ártemis estavam juntos à sombra de uma coluna, como se estivessem tentando se esconder. Hera e Poseidon discutiam intensamente com uma deusa que vestia uma túnica verde e dourada, talvez Deméter. Nice tentou botar uma coroa de louros na cabeça de Hécate, mas a deusa da magia a afastou. Hermes se aproximou discretamente de Atena, tentando passar o braço em torno dela, mas Atena virou o escudo Aegis na direção dele, e Hermes se afastou, aborrecido. O único olimpiano que parecia de bom humor era Ares, que ria e fingia cortar um inimigo enquanto Frank escutava, com expressão educada mas constrangida. — Irmãos — começou Zeus —, estamos curados graças ao trabalho destes semideuses. A Atena Partenos, que antigamente ficava neste templo, agora está no Acampamento Meio-Sangue. Ela uniu nossa descendência e, com isso, nossos aspectos. — Senhor Zeus — disse Piper tomando a palavra. — Reyna está bem? E Nico e o treinador Hedge? Jason quase não podia acreditar que Piper estivesse preocupada com Reyna, mas ficou satisfeito com isso. Zeus franziu as sobrancelhas cor de nuvem. — Eles foram bem-sucedidos em sua missão. E, até o momento, estão vivos. Se estão bem ou não… — Ainda há trabalho a ser feito — interrompeu a rainha Hera. Ela abriu os braços como se quisesse um abraço coletivo. — Mas, meus heróis… vocês triunfaram sobre os gigantes, como eu sabia que fariam. Meu plano foi lindamente bem-sucedido.
Zeus virou-se para a esposa. Um trovão abalou a Acrópole. — Hera, não ouse ficar com o crédito! Você causou pelo menos tantos problemas quanto resolveu! A rainha dos céus ficou lívida. — Meu marido, certamente você agora vê… que esse era o único modo. — Nunca há apenas um modo! — berrou Zeus. — É por isso que há três Parcas, não uma. Correto? Junto aos destroços do trono do rei dos gigantes, as três velhas assentiram em silêncio. Jason percebeu que os outros deuses preferiram ficar bem longe das Parcas e de suas reluzentes maças de latão. — Por favor, meu marido. — Hera tentou sorrir, mas estava tão nitidamente amedrontada que Jason quase sentiu pena dela. — Eu só fiz o que… — Silêncio! — interrompeu-a Zeus. — Você desobedeceu às minhas ordens. Mesmo assim… reconheço que teve boas intenções. O valor destes sete heróis provou que você não agiu de forma completamente ignorante. Hera pareceu querer discutir, mas manteve a boca fechada. — Apolo, entretanto… — Zeus olhou para as sombras onde estavam os gêmeos. — Meu filho, venha cá. Apolo avançou bem devagar, como se estivesse caminhando para a forca. Chegava a ser enervante quanto ele parecia um semideus adolescente: cerca de dezessete anos, usando calça jeans e camiseta do Acampamento Meio-Sangue, com um arco no ombro e uma espada presa no cinto. Com o cabelo louro despenteado e os olhos azuis, podia ser irmão de Jason tanto pelo lado mortal quanto pelo divino. Jason se perguntou se o deus tinha assumido aquela forma para não chamar atenção ou para inspirar piedade no pai. O medo no rosto de Apolo com certeza parecia real, e também muito humano. As três Parcas cercaram o deus, as mãos enrugadas erguidas. — Você me desafiou duas vezes — disse Zeus. Apolo umedeceu os lábios. — Meu… meu senhor… — Você não cumpriu com seus deveres. Você sucumbiu à lisonja e à vaidade. Você encorajou seu filho, Octavian, a seguir um caminho perigoso, e revelou prematuramente uma profecia que ainda pode destruir a todos. — Mas… — Basta! — interrompeu Zeus. — Depois conversaremos sobre sua punição. Por enquanto, você vai esperar no Olimpo. Zeus agitou a mão. Apolo se transformou em uma nuvem de purpurina. As Parcas giraram em torno dele para então se dissolverem no ar, e o redemoinho de purpurina subiu para o céu.
— O que vai acontecer com Apolo? — perguntou Jason. Os deuses olharam para ele, mas Jason não ligou. Depois de conhecer Zeus pessoalmente, ele sentia certa simpatia por Apolo. — Não é da sua conta — disse Zeus. — Temos outros problemas com que nos preocupar. Um silêncio insuportável se abateu sobre o Partenon. Não parecia certo simplesmente deixar o assunto para depois. Jason não via a razão de apenas Apolo ser castigado. Alguém deve levar a culpa, dissera Zeus. Mas por quê? — Pai — disse Jason —, eu jurei cultuar todos os deuses. Prometi a Cimopoleia que, quando esta guerra terminasse, nenhum deus ficaria sem um templo nos acampamentos. Zeus franziu a testa. — Está bem. Mas… Cimo quem? Poseidon pigarreou, cobrindo a boca com a mão. — Ela é uma das minhas. — O que estou dizendo — continuou Jason — é que culpar uns aos outros não vai resolver nada. Foi assim que começou a rixa entre gregos e romanos. O ar ficou perigosamente ionizado. O couro cabeludo de Jason formigou. Ele percebeu que estava se arriscando a sofrer a ira do pai. Podia ser transformado em purpurina ou jogado para longe da Acrópole. Ele conhecera Zeus havia cinco minutos e tinha causado uma boa impressão. Agora estava jogando isso fora. Um bom romano ficaria calado. Jason continuou: — Apolo não foi o problema. Castigá-lo pelo despertar de Gaia é… — ele queria dizer burrice, mas se segurou — não seria sábio. — Não seria sábio… — A voz de Zeus era quase um sussurro. — Diante de todos os deuses, você diz que eu não sou sábio. Os amigos de Jason observavam, totalmente alertas. Percy parecia pronto para interferir e se juntar a ele. Então Ártemis saiu das sombras: — Pai, esse herói lutou muito e por muito tempo pela nossa causa. Seus nervos estão abalados. Devemos levar isso em conta. Jason ia protestar, mas Ártemis o impediu com um olhar. A expressão dela mandava uma mensagem tão clara que era como se estivesse falando com ele mentalmente. Obrigada, semideus. Mas não abuse. Vou conversar com Zeus quando ele estiver mais calmo. — E sem dúvida, pai — prosseguiu a deusa —, como o senhor observou, devemos nos ater a nossos problemas mais urgentes.
— Gaia — reforçou Annabeth, nitidamente ansiosa para mudar de assunto. — Ela despertou, não foi? Zeus virou-se para ela. Em volta de Jason, as moléculas do ar pararam de vibrar. Seu crânio parecia ter acabado de sair do micro-ondas. — Isso mesmo — disse Zeus. — O sangue do Olimpo foi derramado. Ela está totalmente consciente. — Ah, qual é! — reclamou Percy. — Eu sangro um pouquinho pelo nariz e acordo a terra inteira? Isso não é justo! Atena pôs Aegis no ombro. — Reclamar de injustiça é como culpar alguém, Percy Jackson: não faz bem a ninguém. — Ela lançou um olhar de aprovação para Jason. — Agora vocês têm que se apressar. Gaia está se preparando para destruir seu acampamento. Poseidon se apoiou em seu tridente. — Desta vez, Atena tem razão. — Desta vez? — protestou Atena. — Por que Gaia voltaria ao acampamento? — perguntou Leo. — Percy sangrou aqui. — Cara — disse Percy —, primeiro de tudo, você ouviu Atena: não culpe meu nariz. Segundo: Gaia é a terra. Ela pode aparecer onde quiser. Além do mais, ela nos contou que ia fazer isso. Disse que a primeira coisa em sua lista era destruir nosso acampamento. A pergunta é: como vamos impedi-la? Frank olhou para Zeus. — Hã… senhor, Sua Majestade, vocês não podem simplesmente ir lá com a gente? Vocês têm as bigas e os poderes mágicos e tudo o mais. — Isso! — disse Hazel. — Nós derrotamos os gigantes juntos em dois segundos. Vamos todos até lá… — Não — disse Zeus, secamente. — Não? — perguntou Jason. — Mas, pai… Os olhos de Zeus cintilaram de poder, e Jason percebeu que tinha levado o pai ao limite naquele dia… e talvez pelos séculos seguintes. — Esse é o problema com as profecias — resmungou Zeus. — Quando Apolo permitiu que a Profecia dos Sete fosse pronunciada, e quando Hera tomou a decisão de interpretar suas palavras, as Parcas teceram o futuro de uma maneira que ele tinha apenas determinado número de resultados, determinado número de soluções. Vocês sete, os semideuses, estão destinados a derrotar Gaia. Nós, deuses, não podemos. — Não entendo — disse Piper. — Qual é o sentido em vocês serem deuses se precisam contar com a ajuda de simples mortais para fazerem o que querem? Todos os deuses trocaram olhares sombrios. Entretanto, Afrodite riu com carinho e beijou a filha.
— Piper, querida, você não acha que nós nos fazemos essa pergunta há milhares de anos? Mas é isso o que nos une, o que nos torna eternos. Precisamos de vocês, mortais, tanto quanto vocês precisam de nós. Por mais irritante que isso seja, é a verdade. Frank se remexia, desconfortável, como se sentisse falta de ser um elefante. — Então como podemos chegar ao Acampamento Meio-Sangue a tempo de salvá-lo? Levamos meses para vir até a Grécia. — Os ventos — disse Jason. — Pai, você pode fazer com que os ventos mandem nosso navio de volta? Zeus fechou a cara. — Eu podia mandá-los de volta a Long Island com um tapa. — Hã… isso foi uma piada, uma ameaça ou…? — Não — disse Zeus. — Estou falando bem literalmente. Eu podia dar um tapa em seu barco e mandá-lo de volta para o Acampamento Meio-Sangue, mas a força envolvida nisso… Perto do trono em ruínas do gigante, o deus desgrenhado com macacão de mecânico balançou a cabeça. — O meu menino Leo construiu um bom navio, mas o Argo II não vai suportar tamanha força. Vai se desfazer assim que chegar, talvez antes. Leo ajeitou seu cinto de ferramentas. — O Argo II aguenta. Ele só precisa ficar inteiro até chegarmos em casa. Depois, podemos abandonar o navio. — É perigoso — alertou Hefesto. — Talvez até fatal. A deusa Nice girava uma coroa de louros no dedo. — A vitória é sempre arriscada. E muitas vezes exige um sacrifício. Leo Valdez e eu já discutimos isso. Ela olhou diretamente para Leo. Jason não gostou nada daquilo. Ele se lembrou da expressão grave de Asclépio quando o médico examinou Leo. Minha nossa. Ah, estou vendo… Jason sabia o que eles precisavam fazer para derrotar Gaia. Conhecia os riscos. Mas ele queria correr esses riscos sozinho, não jogá-los sobre Leo. Piper está com a cura do médico, disse ele a si mesmo. Ela vai cuidar de nós dois. — Leo, do que Nice está falando? — perguntou Annabeth. Leo fez pouco caso da pergunta com um aceno. — O de sempre. Vitória. Sacrifício. Blá-blá-blá. Não importa. Nós podemos fazer isso, gente. Nós temos que fazer isso. Jason foi tomado por um medo súbito. Zeus estava certo sobre uma coisa: o pior ainda estava por vir.
Quando tiver que escolher, dissera Noto, o Vento Sul, entre tempestade ou fogo, não entre em pânico. Jason tomou a decisão: — Leo tem razão. Todos a bordo para uma última viagem.
LI
JASON
UMA DESPEDIDA CALOROSA ERA PEDIR demais. A última visão que Jason teve do pai foi Zeus com trinta metros de altura segurando o Argo II pela proa. Ele gritou: SEGUREM FIRME! Então jogou o barco para o alto e bateu nele no ar como um jogador de vôlei dando um saque. Se Jason não estivesse preso ao mastro com um dos cintos de segurança de vinte pontos de Leo, teria se desintegrado. Do jeito que foi, seu estômago tentou ficar para trás, na Grécia, e todo o ar foi sugado de seus pulmões. O céu ficou negro. O navio chacoalhava e rangia. Rachaduras se espalharam pelo convés como se Jason estivesse sobre gelo fino, e, com um estrondo sônico, o Argo II saiu em alta velocidade das nuvens. — Jason! — gritou Leo. — Depressa! Mesmo sentindo os dedos como se fossem plástico derretido, ele conseguiu soltar as correias. Leo estava preso ao painel de controle, tentando desesperadamente estabilizar o navio enquanto eles mergulhavam em queda livre. As velas estavam em chamas. Festus crepitava em alarme. Uma catapulta se soltou e subiu no ar. A força centrífuga arremessou os escudos presos às amuradas como se fossem frisbees de metal. Rachaduras maiores se abriram no convés enquanto Jason cambaleava na direção do porão, usando os ventos para se manter de pé. Se ele não conseguisse chegar até os outros… Então a portinhola se abriu. Frank e Hazel saíram com dificuldade por ali, puxando a corda que eles tinham amarrado no mastro. Piper, Annabeth e Percy surgiram logo depois, todos parecendo desorientados. — Vão! — berrou Leo. — Vão, vão, vão! Pela primeira vez, o tom de Leo estava mortalmente sério. Eles haviam discutido o plano de evacuação, mas aquele tapa para o outro lado do mundo tinha deixado a mente de Jason lenta. A julgar pela expressão dos outros, eles não estavam em condições muito melhores. Buford os salvou. A mesa veio chacoalhando pelo convés com seu Hedge holográfico gritando: — VAMOS! MEXAM-SE! PAREM COM ISSO! Então o tampo da mesa se abriu em hélices de helicóptero, e Buford alçou voo.
Frank mudou de forma. Em vez de um semideus atordoado, ele agora era um dragão cinza atordoado. Hazel subiu em suas costas. Frank agarrou Percy e Annabeth com as patas da frente, depois abriu as asas e saiu voando. Jason segurou Piper pela cintura, pronto para levantar voo, mas cometeu o erro de olhar para baixo. O que viu foi um caleidoscópio giratório de céu, terra, céu, terra. O chão estava ficando terrivelmente próximo. — Leo, você não vai conseguir! — gritou Jason. — Venha com a gente. — Não! Saiam daqui! — Leo! — pediu Piper. — Por favor… — Poupe o charme, Pipes! Eu já disse que tenho um plano. Agora sumam! Jason deu uma última olhada no navio que se desfazia. O Argo II tinha sido a casa deles por muito tempo. Agora o estavam abandonando para sempre, e deixando um amigo para trás. Jason odiava aquilo, mas viu a determinação nos olhos de Leo. Tal como no encontro com seu pai, Zeus, não havia tempo para uma despedida adequada. Jason domou os ventos, e ele e Piper se lançaram aos céus.
* * *
A situação lá no chão não era menos caótica. Enquanto caíam, Jason viu um enorme exército de monstros espalhado pelos montes — cinocéfalos, homens de duas cabeças, centauros selvagens, ogros e outros cujos nomes ele nem sabia —, cercando dois pequenos grupos de semideuses. No alto da Colina Meio-Sangue, a principal força do Acampamento Meio-Sangue estava reunida aos pés da Atena Partenos junto com a Primeira e a Quinta Coortes, agrupadas em torno da águia dourada da legião. As outras três coortes romanas estavam em formação defensiva a centenas de metros de distância e pareciam estar recebendo a pior parte do ataque. Águias gigantes rodearam Jason, piando com urgência, como se aguardassem ordens. Frank, o dragão cinza, e seus passageiros voavam ao seu lado. — Hazel! — gritou Jason. — Aquelas três coortes estão com sérios problemas! Se elas não conseguirem se juntar ao restante dos semideuses… — Estou vendo! — disse Hazel. — Vamos lá, Frank! O dragão Frank deu uma guinada para a esquerda, com Annabeth gritando em uma de suas garras: — Vamos pegá-los! E Percy, na outra garra, berrando: — Eu odeio voar! Piper e Jason seguiram bruscamente para a direita, rumo ao topo da Colina Meio-Sangue.
Jason se animou quando viu Nico di Angelo na linha de frente ao lado dos gregos, abrindo caminho com sua espada em meio a uma multidão de homens de duas cabeças. A poucos metros dele, Reyna, com a espada em punho, estava montada em um novo pégaso. Ela gritava ordens para a legião, e os romanos lhe obedeciam sem questionar, como se ela nunca tivesse se afastado deles. Jason não viu Octavian em lugar algum. Ótimo. Ele também não viu nenhuma colossal deusa da terra devastando o mundo. Melhor ainda. Talvez Gaia tivesse despertado, dado uma olhada no mundo moderno e resolvido voltar a dormir. Jason desejou que eles pudessem ter tal sorte, mas duvidava disso. Quando ele e Piper pousaram na colina, com as espadas desembainhadas, os gregos e romanos deram vivas. — Já estava na hora! — gritou Reyna. — Que bom que você conseguiu se juntar a nós! Surpreso, Jason percebeu que ela se dirigia a Piper, não a ele. Piper sorriu. — Tivemos que matar uns gigantes! — Excelente! — Reyna devolveu o sorriso. — Agora pode se servir de alguns bárbaros. — Ora, obrigada! As duas partiram para a batalha lado a lado. Nico cumprimentou Jason com um aceno de cabeça como se eles tivessem se visto apenas cinco minutos antes, depois voltou a transformar homens de duas cabeças em cadáveres sem cabeça. — Chegaram bem na hora. Onde está o navio? Jason apontou. O Argo II despencou pelo céu em uma bola de fogo; pedaços dos mastros, do casco e armamentos caíam em chamas. Jason não sabia como mesmo o Leo à prova de fogo poderia sobreviver àquilo, mas ele precisava ter esperança. — Pelos deuses — disse Nico. — Está todo mundo bem? — Leo… — A emoção era perceptível na voz de Jason. — Ele disse que tinha um plano. O cometa desapareceu atrás das montanhas. Jason esperou, com apreensão, o som de uma explosão, mas não ouviu nada em meio ao clamor da batalha. Nico o encarou. — Ele vai ficar bem. — Com certeza. — Mas por via das dúvidas… Por Leo. — Por Leo — concordou Jason. E eles se lançaram juntos no meio da batalha. A raiva de Jason deu a ele forças renovadas. Os gregos e romanos aos poucos forçavam os inimigos a recuar. Centauros selvagens caíam. Homens com cabeça
de lobo uivavam ao serem golpeados com espadas e transformados em pó. Mais monstros continuavam a aparecer: karpoi, espíritos dos grãos, que subiam da grama em turbilhão, grifos que mergulhavam do céu e formas humanoides de barro que lembravam a Jason bonecos de massa de modelar malvados. — São fantasmas com carapaças de terra! — alertou Nico. — Não deixem que acertem vocês! Obviamente, Gaia tinha guardado alguns truques na manga. Em determinado momento, Will Solace, líder do chalé de Apolo, correu até Nico e disse alguma coisa em seu ouvido. Em meio aos gritos e ao ruído das espadas, Jason não conseguiu distinguir as palavras. — Preciso ir! — disse Nico. Ele não entendeu direito, mas assentiu, e Will e Nico foram correndo para o meio do confronto. No momento seguinte, Jason se viu cercado por um grupo de filhos de Hermes que apareceram ali sem nenhum motivo aparente. Connor Stoll sorriu. — E aí, Grace? — Tudo bem — disse Jason. — E você? Connor se esquivou da clava de um ogro e enfiou a espada em um espírito dos grãos, que explodiu em uma nuvem de trigo. — É, não posso reclamar. Um dia como outro qualquer. — Eiaculare flammas! — berrou Reyna. Uma saraivada de flechas incendiárias traçou um arco acima da parede de escudos da legião e destruiu um pelotão de ogros. As fileiras romanas avançaram, empalaram centauros e passaram por cima de ogros feridos com suas botas com ponta de bronze. De algum ponto na base da colina, Jason ouviu Frank berrar em latim: — Repellere equites! Um enorme bando de centauros disparou em pânico enquanto os soldados das outras três coortes da legião avançavam em formação perfeita, suas lanças reluzindo com sangue de monstros. Frank marchava à frente deles. No flanco esquerdo, montada em Arion, Hazel estava radiante de orgulho. — Ave, pretor Zhang! — saudou Reyna. — Ave, pretora Ramírez-Arellano! — disse Frank. — Vamos lá. Legião, FORMAÇÃO ÚNICA! Os romanos deram vivas, e as cinco coortes se uniram em uma máquina mortífera maciça. Frank apontou a espada para a frente, e, do estandarte da águia dourada, raios dourados se lançaram sobre o inimigo, fritando várias centenas de monstros. — Legião, cuneum formate! — gritou Reyna. — Avançar!
Jason ouviu mais gritos de comemoração a sua direita quando Percy e Annabeth se juntaram às forças do Acampamento Meio-Sangue. — Gregos! — gritou Percy. — Vamos… hã… matar uns monstros aí! Eles gritaram como loucos e atacaram. Jason sorriu. Ele adorava os gregos. Eles não tinham nenhuma organização, mas compensavam com entusiasmo. Jason estava com um bom pressentimento em relação àquela batalha, exceto por duas grandes perguntas: onde estava Leo? E onde estava Gaia? Infelizmente, a segunda resposta veio primeiro. Sob seus pés, a terra começou a ondular como se a Colina Meio-Sangue tivesse se transformado em um colchão de água gigante. Semideuses tombaram. Ogros escorregaram. Centauros caíram de cara na grama. DESPERTA, trovejou uma voz em torno deles. A cem metros de distância, no topo de um monte, a grama e a terra se ergueram em um redemoinho como se fosse a broca de uma furadeira gigante. A coluna de terra ficou mais espessa e se transformou em uma figura feminina de seis metros de altura usando um vestido de folhas de grama, com pele branca como quartzo e cabelo castanho emaranhado como raízes de árvore. — Tolinhos. — Gaia, a Mãe Terra, abriu seus olhos verdes. — A magia fraca dessa estátua não pode me deter. Enquanto ela dizia isso, Jason entendeu por que Gaia não tinha aparecido até então. A Atena Partenos estava protegendo os semideuses, contendo a ira da terra, mas nem o poder de Atena podia durar tanto contra uma deusa primordial. Um medo tão palpável quanto uma frente fria passou por todos os semideuses. — Mantenham-se firmes! — gritou Piper com o charme. — Gregos e romanos: juntos, nós podemos vencê-la! Gaia riu. Ela abriu os braços, e a terra foi atraída em sua direção: árvores se inclinando, o leito de rocha rangendo, o solo se movendo em ondas. Jason se elevou com o vento, mas, a sua volta, monstros e semideuses começaram a afundar na terra. Um dos onagros de Octavian tombou e desapareceu na encosta da colina. — A terra inteira é meu corpo — trovejou Gaia. — Como podem lutar contra a deusa da… TUUUUMP! Com um reluzir de bronze, Gaia foi varrida da encosta, arrancada dali pelas garras de um dragão de metal de cinquenta toneladas. Festus, renascido, subiu aos céus com as asas reluzentes, cuspindo fogo em triunfo. Enquanto subia, a pessoa montada em suas costas ficava cada vez menor e mais difícil de identificar, mas o sorriso de Leo era inconfundível. — Pipes! Jason! — gritou ele, olhando para baixo. — Vocês não vêm? A batalha é aqui em cima!
LII
JASON
ASSIM QUE GAIA DECOLOU, O chão se solidificou. Semideuses pararam de afundar, apesar de muitos ainda estarem enterrados até a cintura. Infelizmente, os monstros pareciam se desenterrar mais depressa. Eles atacaram os exércitos gregos e romanos, tirando vantagem da desorganização dos semideuses. Jason abraçou Piper pela cintura. Ele estava prestes a levantar voo quando Percy gritou: — Espere! Frank pode nos levar lá para cima! Podemos… — Não, cara — disse Jason. — Eles precisam de você aqui. Ainda tem monstros para serem derrotados. Além disso, a profecia… — Ele tem razão. — Frank segurou o braço de Percy. — Você precisa deixar que eles façam isso, Percy. É como a missão de Annabeth em Roma. Ou a de Hazel nas Portas da Morte. Temos que confiar neles. Percy obviamente não gostou, mas, naquele instante, uma onda de monstros avançou sobre as forças gregas. — Ei! Estamos com problemas aqui! — gritou Annabeth. Percy correu para ajudá-la. Frank e Hazel se viraram para Jason e ergueram os braços fazendo a saudação romana, depois foram reagrupar a legião. Jason e Piper subiram em espiral com o vento. — Eu tenho a cura — murmurou Piper como um mantra. — Vai ficar tudo bem. Eu tenho a cura. Jason percebeu que de algum modo ela tinha perdido a espada, mas ele duvidava que isso fosse fazer alguma diferença. Contra Gaia, uma espada não era nada. Tudo agora se resumia a fogo e tempestade… e um terceiro poder, o charme de Piper, que os manteria juntos. No inverno anterior, Piper tinha tornado o poder de Gaia mais lento na Casa dos Lobos, ajudando a libertar Hera de uma cela feita de terra. Agora ela teria uma tarefa ainda maior. Enquanto subiam, Jason reuniu o vento e as nuvens ao seu redor. O céu respondeu com uma velocidade espantosa. Logo eles estavam no olho de um redemoinho de tempestade. Raios queimavam seus olhos. Trovões faziam seus pés vibrarem. Bem acima deles, Festus lutava com a deusa da terra. Gaia ficava se desintegrando, tentando voltar para o chão, mas os ventos a mantinham no ar. Festus lançava chamas sobre ela, o que parecia forçá-la a continuar na forma
sólida. Enquanto isso, das costas do dragão, Leo também lançava chamas sobre a deusa e a cobria de insultos: — Sujismunda! Cara de lama! ESSA É PELA MINHA MÃE, ESPERANZA VALDEZ! Leo estava totalmente envolto em chamas. A chuva que caía no ar tempestuoso apenas fervilhava e evaporava em volta dele. Jason foi direto na direção deles. Gaia se transformou em areia branca e fina, mas Jason invocou um esquadrão de venti que rodopiou em volta dela, prendendo-a em um casulo de vento. Gaia reagiu. Quando não estava se desintegrando, atacava com explosões de pedra e terra das quais Jason mal conseguia se defender. Controlar a tempestade, conter Gaia e manter a si mesmo e a Piper no ar… Jason nunca tinha feito nada tão difícil assim. Ele se sentia coberto de pesos de chumbo, tentando nadar apenas com as pernas enquanto segurava um carro na cabeça. Mas ele precisava manter Gaia longe da terra. Esse era o segredo sobre o qual Leia tinha dado uma pista quando eles conversaram no fundo do mar. Muito tempo atrás, Urano, o deus do céu, foi enganado por Gaia e os titãs para descer à terra, onde o prenderam ao chão para que não pudesse escapar. Só assim — Urano com seus poderes enfraquecidos por estar distante de seu território — eles conseguiram matá-lo. Agora, Jason, Leo e Piper tinham que inverter essa situação. Precisavam manter Gaia longe de sua fonte de poder, a terra, e enfraquecê-la até que ela pudesse ser derrotada. Eles subiram juntos. Festus rangeu e estalou com o esforço, mas continuou a ganhar altitude. Jason ainda não entendia como Leo tinha conseguido refazer o dragão. Então se lembrou de todas as horas que Leo passara trabalhando dentro do casco do navio nas últimas semanas. O garoto devia estar planejando aquilo havia muito tempo, construindo um corpo novo para Festus usando a própria estrutura do navio. No fundo, ele devia saber que o Argo II ia acabar sendo destruído. Um navio se transformando em dragão… Jason achou aquilo tão impressionante quanto aquela vez em Quebec em que o dragão se transformara em mala. Entretanto, tinha acontecido, e Jason ficou animado ao ver seu velho amigo novamente em ação. — VOCÊS NÃO PODEM ME DERROTAR! — Gaia se desfez em areia, só para ser atingida por mais chamas. Seu corpo derreteu em um bloco de vidro, se estilhaçou e depois voltou a tomar forma humana. — EU SOU ETERNA! — Eternamente chata! — berrou Leo, e fez com que Festus fosse ainda mais alto.
Jason e Piper subiram com eles. — Me leve para mais perto — pediu Piper, ansiosa. — Preciso estar perto dela. — Piper, as chamas e os estilhaços… — Eu sei. Jason se aproximou até chegarem ao lado de Gaia. Os ventos envolviam a deusa, mantendo-a sólida, mas era tudo o que Jason podia fazer para conter as explosões de areia e solo. Os olhos dela eram de um verde profundo, como se toda a natureza tivesse sido condensada em algumas poças de matéria orgânica. — CRIANÇAS TOLAS! Terremotos e deslizamentos de terra em miniatura contorciam o rosto de Gaia. — Você está tão cansada — disse Piper para a deusa, sua voz irradiando bondade e compaixão. — Eras de sofrimento e decepção pesam sobre você. — QUIETA! O poder da raiva de Gaia era tão grande que Jason perdeu momentaneamente o controle do vento. Ele teria mergulhado em queda livre se não fosse por Festus, que segurou ambos — ele e Piper — com sua outra pata enorme. Surpreendentemente, Piper não perdeu a concentração. — Milênios de tristeza — continuou ela. — Seu marido, Urano, era violento. Seus netos, os deuses, expulsaram seus filhos amados, os titãs. Seus outros filhos, os ciclopes e os centímanos, foram jogados no Tártaro. Você está cansada de tanta tristeza. — MENTIRAS! Gaia se desfez em um furacão de terra e grama, mas sua essência parecia se agitar mais lentamente. Se eles subissem mais, o ar ficaria rarefeito demais para respirar. Jason ficaria muito fraco para controlá-lo. A fala de Piper sobre exaustão também o afetava, minando sua força, fazendo com que sentisse o corpo pesado. — O que você quer — continuou Piper —, mais que a vitória, mais que vingança… você quer descansar. Você está tão abatida, tão absurdamente cansada dos mortais e imortais ingratos… — EU… NÃO FALE POR MIM… VOCÊ NÃO PODE… — Você só quer uma coisa — disse Piper em tom tranquilizador, sua voz ressonando pelos ossos de Jason. — Uma palavra. Você quer permissão para fechar os olhos e esquecer todos os seus problemas. Você… quer… DORMIR. Gaia se solidificou em forma humana. Sua cabeça pendia, seus olhos estavam fechados e seu corpo pendia inerte nas garras de Festus. Infelizmente, Jason começou a apagar também. O vento estava diminuindo. A tempestade se dissipou. Pontos escuros dançavam na visão dele.
— Leo! — Piper não estava conseguindo respirar. — Só temos alguns segundos. — O charme não vai… — Eu sei! — Leo parecia feito de fogo. Chamas queimavam sob sua pele, iluminando seu crânio. Festus fumegava e brilhava, suas garras queimando através da camisa de Jason. — Não posso segurar o fogo por muito mais tempo. Eu vou vaporizá-la. Não se preocupem. Vocês dois precisam ir embora. — Não! — gritou Jason. — Temos que ficar com você. Piper tem a cura. Leo, você não pode… — Ei. — Leo sorriu, o que em meio às chamas dava nervoso, pois seus dentes pareciam feitos de prata derretida. — Eu disse a vocês que tinha um plano. Quando vão confiar em mim? E por falar nisso… eu amo vocês. A pata de Festus se abriu, e Piper e Jason caíram. Jason não teve forças para impedir. Ele se agarrou a Piper enquanto ela gritava o nome de Leo, e eles mergulharam em direção à terra. Festus se transformou em uma bola de fogo indistinta no céu, um segundo sol, cada vez menor e mais quente. Então Jason viu pelo canto do olho um cometa flamejante subir do solo com um som agudo, como um grito. Pouco antes de Jason apagar, o cometa interceptou a bola de fogo acima deles. A explosão deixou o céu inteiro dourado.
LIII
NICO
NICO JÁ HAVIA PRESENCIADO MUITAS formas de morte. Achava que mais nada poderia surpreendê-lo. Mas estava enganado. No meio da batalha, Will Solace correu até ele e disse uma palavra em seu ouvido: — Octavian. Toda a sua atenção se voltou para isso. Ele havia hesitado quando tivera a chance de matar Octavian, mas nunca ia deixar aquele sujeitinho desprezível escapar impune. — Onde ele está? — Venha — disse Will. — Depressa. Nico se virou para Jason, que lutava ao seu lado, e avisou: — Preciso ir! Então ele se embrenhou no caos, seguindo Will. Passaram por Tyson e seus ciclopes, que berravam “Cachorro mau! Cachorro mau!” enquanto golpeavam as cabeças dos cinocéfalos. Grover Underwood e um grupo de sátiros dançavam ao redor com suas flautas de Pã, tocando harmonias tão dissonantes que os fantasmas com carapaças de terra se despedaçavam. Travis Stoll passou correndo, discutindo com o irmão: — Como assim nós instalamos as minas terrestres na colina errada? Nico e Will tinham descido metade da encosta quando o chão começou a tremer. Como todo mundo, monstros ou semideuses, eles ficaram paralisados de choque. Diante de seus olhos, uma coluna de terra explodiu em um turbilhão no alto da colina seguinte, e Gaia se ergueu em toda a sua glória. Então algo grande e de bronze cruzou o céu. TUUUUMP! O dragão de bronze Festus apanhou a Mãe Terra e saiu voando com ela. — Mas o que… como…? — balbuciou Nico. — Não sei — disse Will. — Mas, quanto a isso, não há muito o que a gente possa fazer. Temos outros problemas. Will correu na direção do onagro mais próximo. Quando chegaram mais perto, Nico viu Octavian reajustando furiosamente os controles de mira da máquina. O braço de lançamento já estava posicionado com uma carga completa de ouro imperial e explosivos. O áugure corria de um lado para outro,
tropeçando em engrenagens e estacas de fixação, se enrolando com as cordas. De vez em quando olhava para Festus, lá no alto. — Octavian! — gritou Nico. O áugure se virou, depois recuou acuado contra a grande esfera de munição. Seu belo manto roxo prendeu na corda do gatilho, mas Octavian não percebeu. Da carga escapavam fios de fumaça, que contornavam sinuosamente seu corpo, como se atraídos pelas joias de ouro imperial que ele usava nos braços e no pescoço e pela coroa de louros de ouro que ornava seu cabelo. — Ah, entendi! — O riso de Octavian foi seco e consideravelmente insano. — Tentando roubar minha glória, hein? Não, não, filho de Plutão. Eu sou o salvador de Roma, como me foi prometido! Will levantou as mãos como se tentasse aplacá-lo. — Octavian, afaste-se desse onagro. É perigoso. — Claro que é! Vou derrotar Gaia com esta máquina! Pelo canto do olho, Nico viu Jason Grace disparar rumo ao céu com Piper nos braços, voando direto na direção de Festus. Nuvens de tempestade se acumulavam em volta do filho de Júpiter, girando e formando um furacão. Um trovão ribombou. — Está vendo!? — exclamou Octavian. Agora o ouro em seu corpo definitivamente soltava fumaça, atraído pela carga da catapulta como se ela fosse um ímã gigante. — Os deuses aprovam meus atos! — É Jason que está criando esta tempestade — disse Nico. — Se você disparar o onagro, vai matá-lo, e a Piper, e… — Ótimo! — gritou Octavian. — Eles são traidores mesmo! Todos traidores! — Por favor, me escute — tentou Will novamente. — Apolo não desejaria isso. Além do mais, seu manto está… — Você não sabe de nada, graecus! — Octavian levou a mão à alavanca de disparo. — Preciso agir antes que eles subam ainda mais. Só um onagro assim pode acertar esse tiro. Eu vou, sozinho, fazer… — Centurião — chamou uma voz atrás dele. Era Michael Kahale, que surgira de trás da máquina de cerco. Ele exibia na testa um enorme galo vermelho, resultado do golpe de Tyson que o havia deixado inconsciente. Michael cambaleava. Mas, sabe-se lá como, tinha conseguido vir desde a praia até ali, e no caminho ainda arranjara uma espada e um escudo. — Michael! — exclamou Octavian, em um gritinho de alegria. — Excelente! Proteja-me enquanto eu disparo este onagro. Depois vamos juntos matar esses graeci! Michael Kahale observou a cena à sua frente: o manto de Octavian emaranhado nas cordas de torção do onagro, suas joias soltando fumaça devido à proximidade com a munição de ouro imperial. Ele olhou para o dragão, agora
bem alto no céu, cercado por anéis de nuvens de tempestade — como os círculos de um alvo de arco e flecha. Então fechou a cara para Nico. Nico ergueu a espada. Era óbvio que Michael Kahale alertaria Octavian para que se afastasse do onagro. Era óbvio que atacaria. — Tem certeza, Octavian? — perguntou o filho de Vênus. — Tenho! — Certeza absoluta? — Sim, seu idiota! Serei lembrado como o salvador de Roma. Agora mantenha esses garotos longe enquanto eu destruo Gaia. — Octavian, não — implorou Will. — Não podemos permitir que você… — Will — interveio Nico —, não podemos impedi-lo. Will Solace olhou para ele sem acreditar, mas Nico se lembrou das palavras que ouvira do pai na Capela dos Ossos: Algumas mortes não podem ser evitadas. Os olhos de Octavian brilhavam. — Isso mesmo, filho de Plutão. Você não tem condições de me impedir! Esse é o meu destino! Kahale, fique de guarda! — Como quiser. — Michael se colocou em frente à máquina, entre Octavian e os dois semideuses gregos. — Centurião, faça o que deve fazer. Octavian se virou para fazer o disparo. — Um amigo fiel até o fim. Nico estava entre a cruz e a espada. Se o tiro do onagro seguisse a mira original… se acertasse o dragão Festus, Nico seria cúmplice da morte ou do ferimento dos próprios amigos… Mas ele ficou onde estava. Decidiu, pela primeira vez, confiar na sabedoria do pai. Algumas mortes não devem ser evitadas. — Adeus, Gaia! — gritou Octavian. — Adeus, Jason Grace, seu traidor! Octavian cortou o cabo de liberação do braço lançador com sua adaga de áugure. E desapareceu. O braço da catapulta se projetou para o alto mais rápido do que os olhos de Nico conseguiam acompanhar, lançando Octavian com a munição. O grito do áugure foi diminuindo até Octavian se tornar uma mera parte do cometa flamejante que subia velozmente na direção do céu. — Adeus, Octavian — disse Michael Kahale. Ele olhou para Will e Nico pela última vez, um olhar feroz, como se estivesse desafiando os dois a falar. Depois lhes deu as costas e se afastou, caminhando com dificuldade. Nico podia ter vivido com o fim de Octavian. Podia até ter dito Já vai tarde.
Mas ficou apreensivo ao ver o cometa continuar a ganhar altura até desaparecer nas nuvens de tempestade, e o céu explodir em uma abóbada de fogo.
LIV
NICO
NO DIA SEGUINTE, NÃO HAVIA muitas respostas. Depois da explosão, Piper e Jason, em queda livre e inconscientes, foram apanhados em pleno ar por águias gigantes e levados para um local seguro, mas Leo desapareceu. O chalé de Hefesto inteiro fez buscas no vale e encontrou restos do casco destruído do Argo II, mas nenhum sinal nem do dragão Festus nem de seu mestre. Todos os monstros foram destruídos ou expulsos. As baixas gregas e romanas foram muitas, mas nem de perto tão numerosas quanto poderiam ter sido. À noite, os sátiros e as ninfas desapareceram na mata para uma reunião do Conselho dos Anciãos de Casco Fendido. Pela manhã, Grover Underwood reapareceu para anunciar que eles não podiam sentir a presença da Mãe Terra. A natureza estava mais ou menos de volta ao normal. Aparentemente, o plano de Jason, Piper e Leo tinha funcionado. Gaia havia sido separada de sua fonte de poder, levada a dormir pelo charme de Piper e depois desintegrada pela explosão combinada do fogo de Leo e do cometa improvisado de Octavian. Imortais não morriam, mas agora Gaia seria como seu marido, Urano. A terra continuaria a funcionar normalmente, assim como o céu, mas agora o poder de Gaia estava tão disperso que nunca mais poderia voltar a formar uma consciência. Ou pelo menos assim eles esperavam… Octavian seria lembrado por ter salvado Roma ao se lançar ao céu em uma bola de chamas mortal. Mas Leo Valdez é quem havia feito o verdadeiro sacrifício. A celebração da vitória no acampamento foi embotada pelo pesar — não só por Leo, mas também pelos muitos outros que morreram em batalha. Semideuses envoltos em mortalhas, gregos e romanos, foram queimados na fogueira do acampamento. Quíron pediu a Nico que cuidasse dos ritos funerários. O garoto concordou imediatamente. Era bom ter a oportunidade de homenagear os mortos. Ele nem se incomodou com as centenas de espectadores. A parte mais difícil veio depois, quando Nico e os seis semideuses do Argo II se encontraram no pórtico da Casa Grande. Jason estava cabisbaixo. Até seus óculos pareciam melancólicos. — Era para estarmos lá. Podíamos ter ajudado Leo. — Não é justo — concordou Piper, secando as lágrimas. — Tanto trabalho para conseguir essa cura do médico, e para nada.
Hazel irrompeu no choro. — Piper, pegue a cura. Surpresa, Piper levou a mão ao bolso do cinto e pegou o embrulho. Quando o abriu, porém, estava vazio. Todos os olhos se viraram para Hazel. — Como? — perguntou Annabeth. Frank passou o braço em torno de Hazel. — Em Delos, Leo implorou para que o ajudássemos. Em meio às lágrimas, Hazel explicou que tinha trocado a cura do médico por uma ilusão, um truque da Névoa, para que Leo pudesse ficar com o frasco de verdade. Frank contou a eles sobre o plano de Leo: destruir Gaia quando ela estivesse enfraquecida com uma enorme explosão de fogo. Depois da conversa com Nice e Apolo, Leo estava convencido de que uma explosão desse tipo seria capaz de aniquilar qualquer mortal em um raio de quinhentos metros, por isso sabia que teria que se afastar de todo mundo. — Ele queria fazer isso sozinho — disse Frank. — Achava que havia uma chance mínima de sobreviver ao fogo, por ser filho de Hefesto, mas se houvesse outra pessoa junto… Ele disse que Hazel e eu, como romanos, entenderíamos a ideia de sacrifício. Mas que vocês nunca aceitariam. No início, os outros demonstraram raiva, como se fossem começar a gritar e jogar objetos na parede, mas, à medida que Frank e Hazel falavam, a fúria do grupo pareceu se dissipar. Era difícil ficar com raiva de Frank e Hazel quando os dois estavam chorando. Além disso… aquilo era exatamente o tipo de plano sorrateiro, perverso e ridiculamente irritante e nobre que Leo Valdez faria. Por fim, Piper emitiu um som que ficava entre um soluço de choro e um riso. — Se ele estivesse aqui agora, eu mataria aquele garoto. Como ele pretendia tomar a cura? Ele estava sozinho! — Talvez ele tenha encontrado um jeito — disse Percy. — Estamos falando de Leo. Ele pode voltar a qualquer minuto. Aí faremos fila para estrangulá-lo. Nico e Hazel trocaram olhares. Os dois sabiam que isso não ia acontecer, mas não disseram nada.
* * *
No dia seguinte, o segundo desde a batalha, romanos e gregos trabalhavam lado a lado para limpar a zona de guerra e cuidar dos feridos. Blackjack se recuperava muito bem do ferimento. Guido tinha decidido adotar Reyna como sua humana. Muito a contragosto, Lou Ellen concordou em transformar seus leitõezinhos de estimação em romanos outra vez. Will Solace não falava com Nico desde aquele momento junto ao onagro, no dia da batalha em si. O filho de Apolo passava a maior parte do tempo na
enfermaria, mas sempre que Nico o via correndo pelo acampamento para buscar mais material médico ou visitar algum semideus ferido em seu chalé, sentia uma pontada estranha de melancolia. Sem dúvida Will Solace agora o via como um monstro, por ter deixado Octavian se matar. Os romanos tinham se instalado provisoriamente perto dos campos de morango, onde insistiram em montar seu acampamento militar padrão. Os gregos foram ajudá-los a erguer os muros de terra e cavar os fossos. Nico nunca tinha visto nada mais estranho e, ao mesmo tempo, tão legal. Dakota compartilhava seu refresco açucarado com os campistas do chalé de Dioniso; os filhos de Hermes e Mercúrio riam, contavam histórias e roubavam descaradamente coisas de praticamente todo mundo; Reyna, Annabeth e Piper eram agora um trio inseparável, circulando pelo acampamento para verificar o andamento dos reparos; Quíron, acompanhado por Frank e Hazel, inspecionava as tropas romanas e as elogiava por sua bravura. Quando chegou a noite, o clima geral tinha melhorado um pouco. O salão de refeições nunca havia ficado tão lotado. Os romanos foram recebidos como velhos amigos. O treinador Hedge circulava entre os semideuses, exultante com o filho recém-nascido no colo, dizendo: — Ei, querem conhecer o Chuck? Este é o meu garoto, Chuck! As meninas de Afrodite e Atena ficavam todas bobas em torno do pequeno bebê sátiro enfezado que agitava os punhos gorduchos, esperneava os casquinhos e balia: — Béééééé! Béééééé! Clarisse, que tinha sido escolhida como madrinha do menino, seguia atrás do treinador como um guarda-costas, volta e meia murmurando: — Ok, ok, deem um pouco de espaço para a criança. Na hora dos anúncios e informes, Quíron se adiantou e ergueu seu cálice. — De toda tragédia — começou ele — surge força nova. Hoje, agradecemos aos deuses por esta vitória. Aos deuses! Todos os semideuses brindaram, mas o entusiasmo que demonstravam parecia desbotado. Nico compreendia aquele sentimento: Salvamos os deuses de novo e agora devemos agradecer a eles? Então Quíron acrescentou: — E aos novos amigos! — AOS NOVOS AMIGOS! Centenas de vozes de semideuses ecoaram pelas colinas. Em torno da fogueira, ninguém tirava os olhos das estrelas, como se esperassem que Leo voltasse em uma espécie de surpresa de última hora. Quem sabe ele não surgisse no céu, pulasse das costas de Festus e começasse a contar piadas infames? Mas não aconteceu.
Depois de algumas canções, Reyna e Frank foram chamados à frente para receberem uma retumbante salva de palmas, tanto de gregos quanto de romanos. No alto da Colina Meio-Sangue, a Atena Partenos reluzia ainda mais sob o luar, como se sinalizasse Tudo deu certo no final. — Amanhã — disse Reyna —, nós, romanos, voltaremos para casa. Agradecemos pela hospitalidade, ainda mais considerando que quase matamos vocês… — Nós é que quase matamos vocês — corrigiu Annabeth. — Sei. Uuuuuuuhhhhhhh, fez a multidão em uma só voz, em zombaria. Então todos começaram a rir e a se empurrar. Até Nico teve que abrir um sorriso. — Enfim — disse Frank, assumindo a palavra. — Reyna e eu concordamos que isso marca uma nova era de amizade entre os acampamentos. Reyna deu um tapinha nas costas dele. — Isso mesmo. Por centenas de anos os deuses tentaram nos separar, para evitar que entrássemos em guerra. Mas existe uma forma melhor de se manter a paz: pela cooperação. Piper se levantou do meio da plateia. — Tem certeza de que sua mãe é a deusa da guerra? — Tenho, McLean — disse Reyna. — Ainda pretendo lutar muitas batalhas. Mas, a partir de agora, vamos fazer isso juntos! Muitos aplausos. Frank levantou a mão, pedindo silêncio. — Todos vocês serão bem-vindos no Acampamento Júpiter. Fizemos um acordo com Quíron, de um intercâmbio livre entre os acampamentos: visitas nos fins de semana, programas de treinamento e, é claro, ajuda de emergência em casos de necessidade… — E quanto a festas? — perguntou Dakota. — Isso mesmo! Festas! — exclamou Connor Stoll, em apoio. Reyna abriu os braços. — Mas isso a gente nem precisa falar. Nós, romanos, inventamos as festas. Mais um grande Uuuuuuuhhhhhhh. — Bom, obrigada — concluiu Reyna. — A todos vocês. Nós podíamos ter escolhido ódio e guerra. Em vez disso, encontramos aceitação e amizade. Então Reyna fez algo tão inesperado que Nico mais tarde achou que tinha sido apenas um sonho. Ela foi até Nico, que, como sempre, estava parado um tanto afastado do grupo, nas sombras. Reyna o pegou pela mão e o puxou carinhosamente para a luz da fogueira. — Nós tínhamos um lar — disse ela. — Agora, temos dois.
E deu um forte abraço em Nico. A multidão deu vivas e aplaudiu em grande balbúrdia. Pela primeira vez Nico não teve vontade de se afastar. Ele afundou o rosto no ombro de Reyna e tentou segurar as lágrimas.
LV
NICO
NAQUELA NOITE, NICO DORMIU NO chalé de Hades. Ele nunca havia tido vontade de se instalar ali, mas agora dividia o local com Hazel, o que fazia toda a diferença. Viver novamente com uma irmã o deixava feliz, mesmo que fosse apenas por alguns dias — e mesmo com Hazel insistindo em dividir o chalé com lençóis para ter mais privacidade no seu lado do quarto, de forma que o lugar ficava parecendo uma área de quarentena. Pouco antes do toque de recolher, Frank chegou para visitar Hazel. Os dois passaram alguns minutos conversando aos sussurros. Nico tentou ignorá-los. Ficou se espreguiçando em seu beliche, que mais parecia um caixão: todo em mogno polido com barras de latão na cabeceira, além de travesseiros e cobertores de veludo em tom vermelho-sangue. Nico não tinha acompanhado a construção daquele chalé. Se tivesse, nunca teria sugerido aquelas camas. Pelo visto alguém ali achava que os filhos de Hades eram vampiros, não semideuses. Então Frank bateu na parede junto à cama de Nico. Nico ergueu o olhar. Frank agora estava muito alto. Parecia tão… romano. — Ei — disse Frank. — Vamos partir pela manhã. Eu só queria agradecer. Nico ergueu o corpo. — Você se saiu muito bem, Frank. Foi uma honra. Frank sorriu. — Sinceramente, estou meio surpreso por ter sobrevivido. Toda aquela coisa de graveto mágico… Nico assentiu. Hazel tinha contado a ele sobre o pedaço de lenha que controlava a linha da vida de Frank. Nico entendeu como um bom sinal o fato de que agora Frank conseguisse falar abertamente sobre o assunto. — Não posso ver o futuro — disse Nico —, mas geralmente sei quando as pessoas estão perto da morte. Você não está. Não sei quando aquele pedaço de lenha vai terminar de queimar. Chega um momento em que a lenha acaba para todos nós. Mas vai demorar, pretor Zhang. Você e Hazel… vocês ainda têm muitas aventuras a viver. Estão apenas começando. Cuide bem da minha irmã, ouviu? Hazel se aproximou de Frank e entrelaçou a mão na dele. — Não venha ameaçar meu namorado, hein!
Era algo bom de se ver, os dois tão à vontade juntos. Mas Nico sentiu também uma pontada no coração; uma dor fantasma, como um velho ferimento de guerra latejando por conta do frio. — Não tem por que ameaçar Frank. Ele é um cara legal. Ou um urso legal. Ou um buldogue legal. Ou… — Ah, pare com isso. — Hazel ria. Ela deu um beijo em Frank. — Vejo você de manhã. — Ok. Nico… Tem certeza de que não vem com a gente? Você sempre vai ter um lugar em Nova Roma. — Obrigado, pretor. Reyna me disse o mesmo. Mas… não. — Espero ver você de novo. — Ah, vai me ver sim — prometeu Nico. — Vou ser padrinho do casamento de vocês, não é? — Hum… Frank ficou sem graça, limpou a garganta e foi embora, esbarrando no batente da porta ao sair. Hazel cruzou os braços. — Você tinha que provocá-lo com isso. Ela se sentou na cama do irmão. Durante um tempo os dois apenas ficaram ali, em um silêncio confortável… Irmãos, filhos do passado, filhos do Mundo Inferior. — Vou sentir saudade de você — disse Nico. Ela inclinou o corpo para apoiar a cabeça no ombro dele. — E eu de você, meu irmão. Você vai me visitar. Ele deu um tapinha na nova medalha de oficial que brilhava na camisa dela. — Centuriã da Quinta Coorte. Parabéns. Não existe nenhuma regra contra centuriões namorarem pretores? — Shhh. — Fez Hazel. — Vai dar muito trabalho fazer a legião voltar a entrar em forma, consertar os estragos que Octavian causou. Regras de namoro vão ser o menor dos meus problemas. — Você cresceu muito. Não é a mesma menina que eu levei para o Acampamento Júpiter. Seu poder com a Névoa, sua confiança… — Tudo graças a você. — Não. Conseguir uma segunda chance é uma coisa; o difícil é fazê-la valer a pena. Assim que disse isso, Nico percebeu que podia estar falando também de si mesmo. Mas decidiu guardar para si essa observação. Hazel deu um suspiro. — Uma segunda chance. Eu só queria que… Ela não precisou concluir seu pensamento. Fazia dois dias que o desaparecimento de Leo vinha pairando como uma nuvem sobre todo o
acampamento. Hazel e Nico evitaram se juntar ao coro de especulações sobre o que tinha acontecido com ele. — Você sentiu a morte dele, não sentiu? — perguntou Hazel, em uma voz tímida. Seus olhos estavam marejados. — Sim — admitiu Nico. — Mas não sei. Alguma coisa dessa vez foi… diferente. — É impossível que ele tenha conseguido usar a cura do médico. Não sobrou nada daquela explosão, não tem como. Eu achei… achei que estivesse ajudando Leo. Estraguei tudo. — Não. Não é sua culpa. Mas Nico não estava pronto nem para perdoar a si próprio. Havia passado as últimas quarenta e oito horas revendo a cena com Octavian junto à catapulta, sem saber se havia feito mesmo a coisa certa. Talvez o projétil, com seu poder explosivo, tivesse ajudado a destruir Gaia. Ou talvez tivesse custado desnecessariamente a vida de Leo Valdez. — Eu só queria que Leo não tivesse morrido sozinho — murmurou Hazel. — Não tinha ninguém com ele, ninguém para dar a ele aquela cura. Não temos nem um corpo para enterrar… Ela não conseguiu continuar. Nico a abraçou. Hazel chorou nos braços dele. Até que, por fim, dormiu de exaustão. Nico a ajeitou ali na própria cama e lhe deu um beijo na testa. Depois foi até o santuário de Hades, uma mesinha no canto decorada com ossos e joias. — Para tudo há uma primeira vez — disse ele. Então se ajoelhou e rezou em silêncio pela orientação do pai.
LVI
NICO
AO AMANHECER, ELE AINDA ESTAVA acordado quando alguém bateu insistentemente na porta. Ao atender e ver diante de si um rosto com cabelo louro, por uma fração de segundo achou que fosse Will Solace. Quando percebeu que era Jason, ficou decepcionado. Então sentiu raiva de si mesmo por se sentir daquele jeito. Ele não falava com Will desde a batalha. Os filhos de Apolo ficaram ocupados demais com os feridos. Além disso, provavelmente Will o culpava pelo que tinha acontecido com Octavian. E por que não culparia? Nico tinha basicamente deixado… aquilo acontecer. Assassinato por consenso. Um suicídio medonho. Àquela altura, Will Solace já tinha percebido como Nico di Angelo era assustador e revoltante. Nico não ligava para o que ele pensava, é claro, mas… — Está tudo bem? — perguntou Jason. — Você parece… — Estou bem — respondeu Nico secamente. Depois continuou, em um tom mais suave: — Se veio falar com Hazel, ela ainda está dormindo. Jason emitiu um Ah mudo e fez um gesto para que Nico fosse com ele até lá fora. Nico saiu ao sol, piscando e desorientado. Argh… Talvez o sujeito que havia projetado o chalé estivesse certo sobre os filhos de Hades serem vampiros. Ele não era muito afeito às manhãs. Jason parecia ter dormido tão mal quanto Nico. Seu cabelo estava lambido de um lado, os óculos novos apoiados meio tortos sobre o nariz. Nico teve que se conter para não estender a mão e ajeitá-los ele próprio. Jason apontou para os campos de morango. Perto dali, os romanos desmontavam acampamento. — Foi estranho vê-los ali esses dias. Agora vai ser estranho não vê-los. — Você se arrepende por não ir com eles? — perguntou Nico. Jason deu um meio sorriso. — Um pouco. Mas vou transitar bastante entre os dois acampamentos. Tenho que erguer alguns santuários. — Eu soube. O Senado deve eleger você pontifex maximus. Jason deu de ombros. — Não ligo muito para esse título. O que me interessa é garantir que os deuses sejam lembrados. Não quero que eles continuem a lutar por ciúmes ou que descontem suas frustrações em cima de semideuses. — São deuses — disse Nico. — É a natureza deles.
— Talvez; mas posso tentar torná-los melhores. Leo diria que estou agindo como um mecânico, fazendo manutenção preventiva. Nico sentiu a tristeza de Jason como uma tempestade se aproximando. — Você sabe que não tinha como impedir Leo. Não poderia ter feito nada de diferente. Ele sabia o que precisava acontecer. — É… acho que sim. Mas não temos como afirmar se ele ainda… — Ele morreu — disse Nico. — Sinto muito. Bem que eu queria lhe dizer o contrário, mas eu senti a morte dele. Jason ficou com o olhar perdido. Nico se sentiu culpado por destruir suas esperanças. Até ficou tentado a mencionar que também tinha suas dúvidas… que a morte de Leo lhe provocara uma sensação diferente, quase como se a alma dele tivesse aberto um novo caminho para o Mundo Inferior, algo que envolvesse muitas engrenagens, alavancas e pistões a vapor. Ainda assim, Nico tinha certeza de que Leo Valdez havia morrido. E morte era morte. Não seria justo dar falsas esperanças a Jason. Ao longe, os romanos recolhiam seus equipamentos e barracas e transportavam tudo morro acima. Do outro lado, pelo que Nico ouvira, havia uma frota de utilitários pretos à espera, nos quais a legião cruzaria os Estados Unidos até a Califórnia. Seria uma viagem de carro interessante, pensou Nico, imaginando toda a Décima Segunda Legião na fila do drive-thru do Burger King, ou algum monstro desavisado aterrorizando um semideus qualquer no Kansas só para se ver cercado por várias dezenas de 4x4 cheios de romanos fortemente armados. — Sabia que a harpia Ella vai com eles? — disse Jason. — Ela e Tyson. Até Rachel Elizabeth Dare. Eles vão trabalhar juntos para tentar reconstituir os livros sibilinos. — Isso vai ser interessante. — Pode levar anos — disse Jason. — Mas com a voz de Delfos extinta… — Rachel continua sem conseguir ver o futuro? — Aham. O que será que aconteceu com Apolo em Atenas? Talvez Ártemis consiga fazer Zeus repensar sua decisão, e aí o poder da profecia volte a funcionar. Mas, por enquanto, os livros sibilinos podem ser o único jeito de obtermos orientação para nossas missões. — Pessoalmente — disse Nico —, acho que eu poderia ficar sem profecias e missões por um tempo. — Tem razão. — Jason ajeitou os óculos. — Olhe, Nico, eu queria falar com você porque… Eu sei o que você disse lá no palácio de Austro. Sei que já recusou um lugar no Acampamento Júpiter. Eu… sei que provavelmente não vou conseguir fazer você mudar de ideia e convencê-lo a continuar conosco, mas tenho que…
— Eu vou ficar. Jason ficou apenas olhando para ele por alguns instantes. — O quê? — No Acampamento Meio-Sangue. O chalé de Hades precisa de um conselheiro-chefe. E você viu a decoração? É horrível. Vou ter que reformar isso aqui. E alguém precisa fazer direito os ritos funerários, já que os semideuses insistem em morrer como heróis. — Isso é… é fantástico! Cara! — Jason abriu os braços para um abraço, mas parou no meio do movimento. — Tudo bem. Nada de contato físico. Desculpe. Nico resmungou: — Acho que podemos abrir uma exceção. Então Jason o abraçou com tanta força que Nico teve medo de que quebrasse suas costelas. — Ah, cara — disse Jason. — Espere só até eu contar para Piper. Ei, como eu também estou sozinho no meu chalé, você e eu podemos comer à mesma mesa no refeitório. Podemos também formar uma dupla para os jogos de capturar a bandeira e para os concursos de canto, e… — Você está me assustando… Quer que eu mude de ideia, é isso? — Desculpe. Desculpe. Como quiser, Nico. É só que fiquei contente. O engraçado era que Nico sentia que era sincero. Nico por acaso olhou na direção dos outros chalés e avistou alguém acenando para ele. Will Solace estava à porta do chalé de Apolo, com uma expressão séria no rosto. Ele apontou para o chão aos seus pés, como quem diz Você. Venha cá. Agora. — Jason, você me dá licença?
* * *
— E aí, por onde você andou? — perguntou Will. Ele usava um avental verde de cirurgião, calça jeans e chinelo. Esses trajes não deviam fazer parte do protocolo hospitalar. — Como assim? — Não saio da enfermaria há, tipo, dois dias. Você nem passou aqui. Não se ofereceu para ajudar. — Eu… o quê? Por que vocês iam querer um filho de Hades no mesmo ambiente com pessoas que estão tentando se curar? Por que alguém ia querer algo assim? — Você não pode ajudar um amigo? Talvez cortar ataduras? Ou me trazer um refrigerante, alguma coisa para comer? Quem sabe um simples Tudo bem por aí, Will?. Acha que para mim não seria bom ver um rosto amigo?
— O quê?… Meu rosto? As palavras simplesmente não faziam sentido juntas: Rosto amigo. Nico di Angelo. — Você é tão complicado — observou Will. — Espero que tenha parado com aquela besteira de ir embora do Acampamento Meio-Sangue. — Eu… pois é. Sim. Quer dizer, eu vou ficar. — Bom. Então você pode ser complicado, mas não é um idiota. — E você ainda fala comigo desse jeito? Não sabe que eu posso invocar zumbis e esqueletos e…? — No momento você não pode invocar nem um osso de galinha sem virar uma poça de escuridão, Di Angelo. Já falei, chega dessas coisas do Mundo Inferior. Ordens médicas. Você me deve pelo menos três dias de repouso na enfermaria. Começando agora. Nico sentiu um arrepio de felicidade, como se centenas de borboletasesqueleto ressuscitassem em seu estômago. — Três dias? É… acho que dá. — Ótimo. Ah, e… Um Uhuul! alto cortou o ar. Perto do local da fogueira, no centro da área comum, Percy exibia um sorriso enorme para alguma coisa que Annabeth tinha acabado de lhe contar. Annabeth ria e lhe dava tapinhas no braço. — Já volto — disse Nico a Will. — Juro pelo Rio Estige e tudo. Ele foi até Percy e Annabeth, que ainda riam como alucinados. — E aí, cara — disse Percy ao vê-lo. — Annabeth acabou de me dar uma boa notícia. Desculpe se exagerei na comemoração. — Vamos passar nosso último ano do ensino médio juntos — explicou Annabeth. — Aqui em Nova York. E depois da formatura… — Faculdade em Nova Roma! — Percy fez um gesto no ar como se estivesse tocando uma buzina de caminhão. — Quatro anos sem monstros para enfrentar, sem batalhas, sem profecias estúpidas. Só Annabeth e eu, estudando para ter um diploma, frequentando cafés, curtindo a Califórnia… — E depois… — Annabeth beijou Percy no rosto. — Bem, Reyna e Frank disseram que podemos morar em Nova Roma pelo tempo que quisermos. — Isso é ótimo — disse Nico. Ele ficou um pouco surpreso ao perceber que achava mesmo ótimo. — Eu também vou ficar aqui, no Acampamento MeioSangue. — Que máximo! — exclamou Percy. Nico observou o rosto dele, seus olhos verdes da cor do mar, o sorriso, o cabelo preto bagunçado. Por algum motivo, Percy Jackson agora parecia aos olhos de Nico um garoto normal, não uma figura mítica. Não alguém a idolatrar ou por quem se apaixonar.
— Então — disse Nico. — Como vamos passar pelo menos um ano nos esbarrando aqui no acampamento, acho que é melhor eu esclarecer umas coisas. O sorriso de Percy vacilou. — Como assim? — Por muito tempo eu fui a fim de você. Só queria que você soubesse. Percy olhou para Nico. Depois para Annabeth, como se quisesse confirmar que tinha ouvido direito. Depois de novo para Nico. — Você… — É — disse Nico. — Você é uma pessoa sensacional. Mas eu superei isso. Estou feliz por vocês. — Você… então quer dizer… — Isso mesmo. Os olhos cinza de Annabeth começaram a brilhar. Ela deu um sorrisinho para Nico. — Espere — disse Percy. — Então você quer dizer… — Isso mesmo — repetiu Nico. — Mas relaxe. Já passou. Quer dizer, agora eu entendo… você é bonito, mas não faz meu tipo. — Não faço seu tipo… Espere. Então… — A gente se vê por aí, Percy — disse Nico. — Annabeth. Ela levantou a mão para um high-five. Nico bateu. Depois voltou pelo gramado até onde Will Solace o esperava.
LVII
PIPER
PIPER BEM QUE GOSTARIA DE poder usar o charme para fazer a si mesma dormir. Aquilo podia ter funcionado com Gaia, mas Piper mal conseguira pregar os olhos nas últimas duas noites. Os dias eram ótimos. Ela adorava passar o tempo com Lacy e Mitchell e os outros filhos de Afrodite. Até sua segunda em comando, a chata Drew Tanaka, parecia aliviada, provavelmente porque podia deixar Piper cuidando das coisas e assim ter mais tempo para fofocar e fazer tratamentos de beleza no chalé. Piper se mantinha ocupada ajudando Reyna e Annabeth a coordenar gregos e romanos. Para surpresa de Piper, as duas garotas valorizavam suas habilidades como intermediária para apaziguar qualquer conflito — que não eram muitos, mas Piper conseguiu devolver alguns elmos romanos que tinham misteriosamente ido parar na loja do acampamento. Ela também evitou uma briga entre os filhos de Marte e os filhos de Ares sobre a melhor maneira de matar uma hidra. Na manhã prevista para a partida dos romanos, Piper estava sentada no cais do lago de canoagem, tentando aplacar as náiades. Algumas delas achavam que os romanos eram tão bonitos que elas também queriam partir para o Acampamento Júpiter. As náiades exigiam um aquário gigante e portátil para viajarem para o oeste. Piper havia concluído as negociações quando Reyna a encontrou. A pretora sentou-se ao lado dela no cais. — Muito trabalho? Piper soprou uma mecha de cabelo de sobre os olhos. — Náiades podem ser difíceis, mas acho que chegamos a um acordo. Se elas ainda quiserem ir quando o verão acabar, aí vamos acertar os detalhes. Mas as náiades… hum… geralmente esquecem as coisas em cerca de cinco segundos. Reyna passou a ponta dos dedos pela água. — Às vezes eu queria esquecer as coisas rápido assim. Piper observou o rosto da pretora. Reyna era uma semideusa que não parecia ter mudado durante a guerra contra os gigantes… pelo menos, não por fora. Ela ainda tinha o mesmo olhar forte e determinado, o mesmo rosto bonito e imponente. Usava sua armadura e seu manto roxo com a mesma naturalidade com que a maioria das pessoas usa short e camiseta.
Piper não conseguia entender como alguém conseguia suportar tanta dor, aguentar tanta responsabilidade sem fraquejar. Ela se perguntou se Reyna alguma vez já tivera alguém com quem pudesse se abrir. — Você fez tanto… — disse Piper. — Pelos dois acampamentos. Sem você, nada disso teria sido possível. — Todos nós tivemos um papel. — Claro. Mas você… Eu só queria que você tivesse recebido mais crédito. Reyna deu uma risada gentil. — Obrigada, Piper. Mas eu não quero atenção. Você entende como é isso, não é? Piper entendia. As duas eram muito diferentes, mas ela compreendia o desejo de não querer atrair atenção. Piper desejara o anonimato sua vida inteira, por causa da fama do pai, os paparazzi, as fotos e as histórias escandalosas na imprensa. Ela conhecia tanta gente que dizia: Ah, eu quero ser famoso! Seria maravilhoso! Mas essas pessoas não tinham ideia de como era na realidade. Ela vira o preço que era cobrado de seu pai. Piper não queria saber de nada daquilo. Ela também podia entender a atração do estilo de vida romano: se misturar, fazer parte da equipe, trabalhar como uma peça de uma máquina bemlubrificada. Mas mesmo assim Reyna tinha subido até o topo. Ela não podia ficar escondida. — O poder da sua mãe… Você pode emprestar sua força para os outros? Reyna contraiu os lábios. — Nico lhe contou? — Não. Eu apenas senti isso, observando você liderar a legião. Isso deve deixá-la esgotada. Como… como você recupera essa força? — Quando eu recuperá-la, conto a você. Ela disse isso como brincadeira, mas Piper sentiu a tristeza por trás das palavras. — Você é sempre bem-vinda aqui. Se precisar descansar, se afastar… E agora você tem Frank, que pode assumir mais responsabilidades por um período. Ia lhe fazer bem tirar algum tempo para você, sem ter que atuar como pretora. Os olhos de Reyna encontraram os dela, como se estivessem tentando avaliar a seriedade da oferta. — Eu teria que cantar aquela música esquisita sobre como a vovó veste a armadura? — Não, a menos que você queira muito. Mas talvez tenhamos que deixá-la de fora da captura da bandeira. Tenho a sensação de que você poderia encarar o acampamento inteiro sozinha e ainda nos derrotar. Reyna deu um sorriso malicioso. — Vou pensar na sua oferta. Obrigada.
Reyna ajeitou sua adaga, e, por um momento, Piper pensou na Katoptris, que agora estava trancada em seu baú no chalé. Desde Atenas, quando usara a arma para atingir o gigante Encélado, as visões tinham parado completamente. — Será que… — disse Reyna. — Você é filha de Vênus. Quer dizer, de Afrodite. Talvez… talvez você consiga explicar uma coisa que sua mãe me disse. — Estou honrada. Vou tentar, mas tenho que avisá-la: minha mãe não faz sentido para mim na maioria das vezes. — Uma vez, em Charleston, Vênus me contou uma coisa. Ela disse: Você não vai encontrar amor onde deseja ou espera. Nenhum semideus vai curar seu coração. Eu… eu já pensei sobre isso por… A emoção a fez ficar sem palavras. Piper lutou contra a vontade de encontrar a mãe e socá-la. Ela odiava como Afrodite podia complicar a vida de uma pessoa apenas com uma conversa rápida. — Reyna, não sei o que ela quis dizer, mas sei de uma coisa: você é uma pessoa incrível. Tem alguém aí fora para você. Talvez não seja um semideus. Talvez seja um mortal, ou… eu não sei. Mas, quando tiver que ser, será. E até lá, ei, você tem seus amigos. Muitos amigos, gregos e romanos. Como você é a fonte da força de todo mundo, às vezes pode esquecer que você também precisa buscar força nos outros. Eu estou aqui para o que precisar. Reyna olhou para a outra margem do lago. — Piper McLean, você tem jeito com as palavras. — Não estou usando o charme, juro. — Não é necessário. — Reyna estendeu a mão. — Tenho a sensação de que vamos nos ver outra vez. Elas apertaram as mãos, e, depois que Reyna foi embora, Piper soube que a outra tinha razão. Elas iam tornar a se ver, porque Reyna não era mais uma rival, não era mais uma estranha nem uma inimiga em potencial. Ela era uma amiga. Era família.
* * *
Naquela noite, o acampamento pareceu vazio sem os romanos. Piper já sentia saudade de Hazel. Sentia falta do ranger do Argo II e das constelações que o abajur projetava no teto de sua cabine no navio. Deitada em seu beliche no chalé 10, ela se sentia tão inquieta que sabia que não ia conseguir dormir. Não parava de pensar em Leo. Repassava mentalmente, várias vezes, a luta contra Gaia, tentando descobrir como podia ter falhado tanto com Leo.
Por volta das duas da madrugada, ela desistiu de tentar dormir. Sentou-se na cama e olhou pela janela. O luar deixava a floresta prateada. A brisa trazia os cheiros da maresia e das plantações de morango. Ela não podia acreditar que apenas alguns dias antes a Mãe Terra havia despertado e quase destruído tudo o que Piper amava. Aquela noite parecia tão pacífica… tão normal. Toc, toc, toc. Piper quase bateu com a cabeça no beliche de cima. Jason estava do outro lado da janela, batendo no vidro. Ele sorria. — Venha. — O que está fazendo aqui? — sussurrou ela. — Já passou do horário de recolher. As harpias da patrulha vão destroçar você! — Venha logo. Com o coração acelerado, ela segurou a mão dele e saiu pela janela. Ele a levou até o chalé 1, e eles entraram. Lá dentro, a estátua enorme do Zeus Hippie reluzia à luz fraca. — Jason, o que exatamente…? — Veja. — Ele apontou para uma das colunas de mármore que circundavam a câmara. Atrás dela, quase escondidos contra a parede, havia degraus de ferro: uma escada. — Não posso acreditar que não percebi isso antes. Espere só até ver! Ele começou a subir. Piper não sabia por que se sentia tão nervosa, mas suas mãos tremiam. Ela o seguiu. No alto, Jason abriu uma portinhola. Eles saíram em uma área plana com vista para o norte, ao lado do teto abobadado. O Estreito de Long Island se estendia até o horizonte. Eles estavam em um ponto tão alto, e em ângulo tal, que ninguém lá embaixo tinha a menor possibilidade de enxergá-los. As harpias da patrulha nunca voavam àquela altura. — Veja. Jason apontou para as estrelas, que pareciam uma explosão de diamantes no céu, joias mais bonitas do que até Hazel Levesque poderia invocar. — Lindo. — Piper se aconchegou em Jason, que a envolveu com o braço. — Mas você não vai arranjar problemas por isso? — E daí? Piper riu baixinho. — Quem é você? Ele se virou. Seus óculos reluziam em um tom bronze pálido sob as estrelas. — Jason Grace. É um prazer conhecê-la. Ele a beijou, e… tudo bem, eles já haviam se beijado antes. Mas aquele beijo foi diferente. Piper se sentiu como uma torradeira. Todas as suas resistências ficaram vermelhas de calor. Se esquentassem mais, ela ia começar a cheirar a pão queimado. Jason se afastou apenas o suficiente para olhá-la nos olhos.
— Aquela noite na Escola da Vida Selvagem, nosso primeiro beijo sob as estrelas… — A lembrança — disse Piper. — Aquele que nunca aconteceu. — Bem… agora é de verdade. — Ele fez o gesto para se proteger do mal, o mesmo que tinha usado para libertar o fantasma da mãe, e o lançou para o céu. — A partir de agora, estamos escrevendo nossa própria história, com um novo começo. E acabamos de dar nosso primeiro beijo. — Tenho medo de dizer isso depois de apenas um beijo — disse Piper. — Mas, pelos deuses do Olimpo, eu amo você. — Também amo você, Pipes. Ela não queria estragar o momento, mas não conseguia parar de pensar em Leo, e em como ele nunca poderia ter um novo começo. Jason deve ter percebido algo em sua expressão. — Ei — disse ele. — Leo está bem. — Como você pode acreditar nisso? Ele não tinha a cura. Nico confirmou que ele morreu. — Uma vez você despertou um dragão só com a voz — lembrou-a Jason. — Você acreditou que o dragão deveria estar vivo, certo? — Certo, mas… — Temos que acreditar em Leo. Ele não ia morrer assim tão fácil. Ele é um cara durão. — É verdade. — Piper tentou acalmar o coração. — Então nós acreditamos. Leo tem que estar vivo. — Lembra-se daquela vez em Detroit, quando ele esmagou Ma Gasket com um motor? — Ou aqueles anões em Bolonha. Leo acabou com eles com explosivos caseiros, feitos de pasta de dente. — McManeiro — disse Jason. — Bad boy supremo — lembrou Piper. — Chefe Leo, o especialista em tacos de tofu. Eles riram e ficaram relembrando histórias sobre Leo Valdez, seu melhor amigo. Ficaram no telhado até amanhecer, e Piper começou a acreditar que eles podiam ter um novo começo. Talvez fosse até possível contar uma história diferente, em que Leo ainda estivesse por aí. Em algum lugar…
LVIII
LEO
LEO ESTAVA MORTO. Ele tinha certeza absoluta. Só não entendia por que doía tanto. Ele sentia como se cada célula de seu corpo tivesse explodido. Agora, sua consciência estava aprisionada em um pedaço carbonizado de semideus morto. A náusea era pior do que qualquer enjoo que já sentira em uma viagem de carro. Ele não conseguia se mexer. Não conseguia ver nem ouvir. Só conseguia sentir dor. Ele começou a entrar em pânico, pensando que talvez aquilo fosse seu castigo eterno. Então alguém conectou cabos de bateria em seu cérebro e deu partida em sua vida. Ele encheu os pulmões de ar e ergueu o corpo. A primeira coisa que sentiu foi o vento no rosto, depois uma dor calcinante no braço direito. Ele ainda estava montado em Festus. Seus olhos voltaram a funcionar, e ele percebeu a grande agulha hipodérmica sendo retirada de seu antebraço. A seringa vazia vibrou, emitiu um zunido e se recolheu para o interior de um painel no pescoço de Festus. — Obrigado, parceiro. — Leo gemeu. — Cara, morrer é horrível. Mas a cura do médico? Esse troço é pior. Festus estalou e chacoalhou em código Morse. — Não, cara, é brincadeira — disse Leo. — Estou feliz por estar vivo. E, sim, eu amo você também. Você foi fantástico. Um ronronar metálico atravessou todo o corpo do dragão. Vamos às prioridades: Leo examinou o dragão à procura de sinais de dano. As asas de Festus estavam funcionando bem, apesar de a esquerda estar toda perfurada por disparos. O metal do pescoço estava parcialmente fundido, derretido pela explosão, mas o dragão não parecia prestes a cair. Leo tentou se lembrar do que acontecera. Ele tinha quase certeza de ter derrotado Gaia, mas não fazia ideia de como estavam seus amigos no Acampamento Meio-Sangue. Com sorte, Jason e Piper haviam escapado da explosão. Leo tinha uma lembrança estranha de um míssil lançado em sua direção gritando como uma garotinha… Que diabos tinha sido aquilo? Quando aterrissasse, teria que verificar a barriga de Festus. Os danos mais sérios provavelmente estariam nessa área, onde o dragão lutara corajosamente contra Gaia enquanto eles incineravam a lama que havia nela. Não tinha como saber havia quanto tempo Festus estava no ar. Eles precisavam descer logo.
O que levantou uma questão: onde estavam? Abaixo, havia uma camada branca de nuvens. O sol brilhava diretamente acima deles, em um céu azul límpido. Então devia ser cerca de meio-dia… Mas de que dia? Quanto tempo Leo tinha ficado morto? Ele abriu o painel de controle no pescoço de Festus. O astrolábio vibrava, e o cristal pulsava como um coração de neon. Leo verificou a bússola e o GPS, e um sorriso se abriu em seu rosto. — Festus, boas notícias! — gritou. — As leituras do nosso sistema de navegação estão completamente embaralhadas! Festus respondeu com um rangido metálico. — É! Vamos descer! Vamos para baixo dessas nuvens e talvez… O dragão mergulhou tão depressa que o ar foi sugado dos pulmões de Leo. Atravessaram a camada branca e lá, abaixo deles, estava uma ilha verde isolada em um vasto mar azul. Leo comemorou tão alto que provavelmente foi ouvido lá na China. — É! QUEM MORREU? QUEM VOLTOU? QUEM É O GRANDE McDA HORA AGORA, PESSOAL? AÊÊÊÊÊÊÊ! Eles desceram em espiral na direção de Ogígia, o vento quente batendo no cabelo de Leo. Ele se deu conta de que suas roupas estavam em farrapos, apesar de terem sido tecidas com magia. Seus braços estavam cobertos por uma fina camada de fuligem, como se ele tivesse acabado de morrer em um incêndio devastador… coisa que, é claro, de fato acontecera. Mas ele não conseguia se preocupar com nada disso. Ela estava ali na praia, de calça jeans e blusa branca, com o cabelo âmbar penteado para trás. Festus abriu as asas e aterrissou desajeitadamente. Uma de suas pernas devia estar quebrada. O dragão tombou para o lado e jogou Leo de cara na areia. Uma chegada nada heroica. Leo cuspiu um pedaço de alga. Festus se arrastou pela praia, fazendo ruídos metálicos que significavam: Ai, ui, ai. Leo olhou para cima. Calipso estava parada na frente dele, os braços cruzados e as sobrancelhas arqueadas. — Você está atrasado — anunciou ela. Seus olhos brilhavam. — Desculpe, flor do dia — disse Leo. — O trânsito estava de matar. — Você está coberto de fuligem — observou ela. — E conseguiu acabar com as roupas que fiz para você, que eram impossíveis de destruir. — Bem, você sabe… — Leo deu de ombros. Ele sentia como se alguém tivesse jogado cem bolas de gude dentro de seu peito. — Fazer o impossível é comigo mesmo.
Ela lhe ofereceu a mão e o ajudou a se levantar. Eles ficaram cara a cara enquanto ela observava sua aparência. Calipso cheirava a canela. Será que ela sempre tivera aquela pequena pinta perto do olho esquerdo? Leo queria muito tocá-la. Ela torceu o nariz. — Você está fedendo… — Eu sei. Cheiro de morto. Provavelmente porque eu morri. Um juramento a manter com um alento final e tudo, mas agora estou bem… Ela o interrompeu com um beijo. As bolas de gude não paravam de se mover dentro dele. Leo estava tão feliz que teve que fazer um esforço consciente para não entrar em chamas. Quando ela finalmente o soltou, seu rosto estava coberto de fuligem. Mas ela não pareceu se incomodar. Calipso passou o polegar pela bochecha dele. — Leo Valdez — disse ela. Mais nada, só o nome dele, como se fosse algo mágico. — Sou eu — disse ele, com a voz rouca. — Então, hum… você quer deixar esta ilha? Calipso deu um passo para trás. Ela ergueu a mão, e os ventos ficaram mais fortes. Seus criados invisíveis trouxeram duas malas e as puseram aos seus pés. — De onde você tirou essa ideia? Leo sorriu. — Fez as malas para uma viagem longa, hein? — Eu não tenho planos de voltar. — Calipso olhou para trás, na direção da trilha que levava a seu jardim e à caverna onde morava. — Para onde você vai me levar, Leo? — Primeiro, para algum lugar onde eu possa consertar meu dragão — decidiu ele. — E depois… para onde você quiser. Por quanto tempo eu fiquei longe? — O tempo é uma coisa complicada em Ogígia — disse Calipso. — Pareceu uma eternidade. Leo sentiu uma ponta de dúvida. Ele esperava que seus amigos estivessem bem. Esperava que não tivessem se passado cem anos enquanto ele voava morto por aí e Festus procurava Ogígia. Ele teria que descobrir. Precisava avisar a Jason, Piper e os outros que ele estava bem. Mas naquele momento não podia pensar nisso. Calipso era uma prioridade. — Quando deixar Ogígia — disse ele —, você continua imortal, ou o quê? — Não faço ideia. — E não se importa? — Nem um pouco. — Então, tudo bem! — Ele se virou para seu dragão. — Parceiro, pronto para mais um voo sem destino definido?
Festus cuspiu fogo e começou a andar cambaleante. — Então vamos decolar sem planos — disse Calipso. — Sem ideia de para onde vamos nem de que problemas nos esperam fora desta ilha. Muitas perguntas e nenhuma resposta concreta? Leo levantou as mãos. — É assim que eu voo, flor do dia. Quer que eu leve suas malas? — Claro. Cinco minutos depois, com os braços de Calipso ao redor de sua cintura, Leo fez Festus levantar voo. O dragão de bronze abriu as asas, e eles partiram para o desconhecido.
GLOSSÁRIO
Acrópole antiga cidadela de Atenas, na Grécia, onde estão localizados os templos mais antigos dos deuses Actáion caçador que viu Ártemis tomando banho. Ela ficou com tanta raiva por um mortal tê-la visto nua que o transformou em um veado Ad acien “assumir posição de batalha” em latim Afrodite deusa grega do amor e da beleza. Era casada com Hefesto, mas amava Ares, o deus da guerra. Forma romana: Vênus Afros professor de música e poesia em um acampamento submarino para sereias e tritões. É um dos meios-irmãos de Quíron Alcioneu o mais velho dos gigantes nascidos de Gaia, destinado a combater Plutão ânfora jarro de vinho feito de cerâmica Antínoo líder dos pretendentes à mão da rainha Penélope, esposa de Odisseu, o qual o matou com uma flechada no pescoço Apolo deus grego do sol, da profecia, da música e da cura; filho de Zeus e gêmeo de Ártemis. Forma romana: Apolo Áquilo deus romano do Vento Norte. Forma grega: Bóreas Ares deus grego da guerra; filho de Zeus e Hera e meio-irmão de Atena. Forma romana: Marte Ártemis deusa grega da natureza e da caça; filha de Zeus e Hera e gêmea de Apolo. Forma romana: Diana Asclepeion hospital e escola de medicina na Grécia Antiga Asclépio deus da cura; filho de Apolo. Seu templo era o centro médico da Grécia Antiga. Forma romana: Esculápio Asdrúbal de Cartago rei da Cartago Antiga, na atual Tunísia, de 530 a 510 AEC. Foi eleito “rei” onze vezes e agraciado com o triunfo quatro vezes, sendo o
único cartaginês a receber tal honra Atena deusa grega da sabedoria. Forma romana: Minerva Augusto fundador do Império Romano e seu primeiro imperador. Governou de 27 AEC até sua morte, em 14 EC. Ave Romae “Avante, romanos!” em latim Baco deus romano do vinho e da orgia. Forma grega: Dioniso Banastre Tarleton general britânico na Guerra de Independência; ficou famoso durante a Batalha de Waxhaw pelo assassinato das tropas continentais já rendidas Barrachina restaurante em San Juan, Porto Rico, onde foi criada a piña colada Belona deusa romana da guerra bifurcum “partes íntimas” em latim Bitos professor de luta no acampamento submarino para sereias e tritões; meioirmão de Quíron Bóreas deus grego do Vento Norte. Forma romana: Áquilo Briareu irmão mais velho dos titãs e ciclopes; filho de Gaia e Urano. O último centímano vivo Calipso deusa ninfa da ilha mítica Ogígia; filha do titã Atlas. Deteve o herói Odisseu por muitos anos Campo de Marte área pública na Roma Antiga; também o nome do campo de treinamento no Acampamento Júpiter Casa de Hades local no Mundo Inferior onde Hades, deus grego da morte, e sua esposa, Perséfone, reinam sobre as almas dos mortos; também é o nome de um antigo templo em Épiro, na Grécia Caverna de Nêstor local onde Hermes escondeu o gado roubado de Apolo Cécrope líder dos gemini, os homens-cobra. Foi o fundador de Atenas e julgou a disputa entre Atena e Poseidon. Escolheu Atena como patrona da cidade e
foi o primeiro a erguer um templo para a deusa centímanos filhos de Gaia e Urano, são criaturas com cem mãos e cinquenta rostos; irmãos mais velhos dos ciclopes e deuses primordiais das tempestades violentas cêrcopes anões com aparência de chimpanzé que roubam coisas brilhantes e criam o caos Ceres deusa romana da agricultura. Forma grega: Deméter Ceto antiga deusa dos monstros e das criaturas marinhas; filha de Pontos e Gaia, irmã de Fórcis ciclope membro de uma raça primordial de gigantes que tem um único olho no meio da testa Cimopoleia deusa grega menor responsável pelas tempestades violentas; ninfa e filha de Poseidon e esposa de Briareu, um centímano cinocéfalo monstro com cabeça de cachorro Circe feiticeira grega que transformou a tripulação de Odisseu em porcos Clítio gigante criado por Gaia para absorver a magia de Hécate e derrotá-la coquí nome comum a várias espécies de pequenos sapos nativos de Porto Rico Cronos o mais jovem dos doze titãs; filho de Urano e Gaia e pai de Zeus. Matou o pai por desejo de sua mãe. Titã senhor da agricultura e das colheitas, da justiça e do tempo. Forma romana: Saturno cuneum formate manobra militar romana na qual a infantaria forma uma cunha para penetrar nas linhas inimigas Cupido deus romano do amor. Forma grega: Eros Damásen gigante filho de Tártaro e Gaia. Criado para se opor a Ares; condenado ao Tártaro por matar um drakon que estava destruindo suas terras Deimos medo; gêmeo de Fobos (pânico) e filho de Ares e Afrodite Delos ilha na Grécia onde nasceram Apolo e Ártemis
Deméter deusa grega da agricultura; filha dos titãs Reia e Cronos. Forma romana: Ceres Diana deusa romana da natureza e da caça. Forma grega: Ártemis Diocleciano último grande imperador pagão e primeiro a se aposentar pacificamente; semideus (filho de Júpiter). Segundo a lenda, seu cetro era capaz de convocar um exército de mortos Dioniso deus grego do vinho e da orgia; filho de Zeus. Forma romana: Baco dracaena (pl.: dracaenae) mulheres reptilianas com caudas de serpente no lugar das pernas Efialtes gigante criado por Gaia para destruir o deus Dioniso/Baco; gêmeo de Oto eiaculare flammas “lançar flechas incendiárias” em latim Encélado gigante criado por Gaia para se opor à deusa Atena Éolo deus de todos os ventos Epidauro cidade no litoral grego onde ficava o templo do deus médico Asclépio Épiro região que é o atual noroeste da Grécia; local em que fica a Casa de Hades Erecteion templo de Atena e Poseidon em Atenas Eros deus grego do amor. Forma romana: Cupido espartanos cidadãos da cidade grega de Esparta; soldados da Esparta Antiga, especialmente de sua famosa infantaria espresso café forte feito com vapor pressurizado e grãos torrados e bem moídos Estreito de Corinto canal navegável que liga o Golfo de Corinto ao Golfo Sarônico, no Mar Egeu Eurímaco um dos pretendentes da esposa de Odisseu, a rainha Penélope Évora cidade portuguesa parcialmente cercada por muralhas medievais e com muitos monumentos históricos, entre eles um templo romano filia romana “filha de Roma” em latim
Filipe da Macedônia governou o reino grego da Macedônia de 359 AEC até seu assassinato, em 336 AEC. Pai de Alexandre, o Grande, e de Filipe III Fobos pânico; gêmeo de Deimos (medo) e filho de Ares e Afrodite Fórcis deus primordial dos perigos do mar; filho de Gaia e irmão-marido de Ceto frigidário ambiente com água fria em um banho romano Fúrias deusas romanas da vingança. Normalmente caracterizadas como três irmãs: Alectó, Tisifone e Megera; filhas de Gaia e Urano. Vivem no Mundo Inferior atormentando os mortos julgados culpados. Forma grega: Erínias Gaia deusa grega da terra; mãe dos titãs, gigantes, ciclopes e outros monstros. Forma romana: Terra Gaius Vitellius Reticulus membro da legião romana quando ela foi criada e médico militar no tempo de Júlio César; atualmente é um Lar (espírito) no Acampamento Júpiter geminus (pl.:gemini) os homens-cobra; os atenienses originais Hades deus grego da morte e das riquezas. Forma romana: Plutão Hebe deusa grega da juventude; filha de Zeus e Hera. Forma romana: Juventa Hécate deusa da magia e das encruzilhadas; controla a Névoa; filha dos titãs Perses e Astéria Hefesto deus grego do fogo, do artesanato e dos ferreiros; filho de Zeus e Hera, casado com Afrodite. Forma romana: Vulcano Hera deusa grega do casamento; esposa e irmã de Zeus. Forma romana: Juno Hermes deus grego dos viajantes; guia dos espíritos dos mortos; deus da comunicação. Forma romana: Mercúrio Hígia deusa da saúde, da limpeza e do saneamento; filha de Asclépio, deus da medicina Hípias tirano de Atenas que, após deposto, se aliou aos persas contra o próprio povo
Hipnos deus grego do sono. Forma romana: Somnus hipódromo estádio oval para corridas de cavalos e bigas na Grécia Antiga Hipólito gigante criado para derrotar Hermes Invídia deusa romana da vingança. Forma grega: Nêmesis Íris deusa do arco-íris e mensageira dos deuses Iro velho que faz pequenos serviços para os pretendentes da esposa de Odisseu, a rainha Penélope, em troca de restos de comida Ítaca ilha grega onde se localiza o palácio de Odisseu, no qual o herói grego teve que se livrar dos pretendentes de sua rainha após a Guerra de Troia Jano deus dos portais, princípios e transições. Descrito como tendo dois rostos, porque olha para o futuro e para o passado Juno deusa romana das mulheres, do casamento e da fertilidade; irmã e esposa de Júpiter; mãe de Marte. Forma grega: Hera Júpiter rei romano dos deuses, também chamado de Júpiter Optimus Maximus (o melhor e o maior). Forma grega: Zeus Juventa deusa romana da juventude; filha de Zeus e Hera. Forma grega: Hebe Licáon um rei da Arcádia que testou a onisciência de Zeus servindo-lhe um assado que era feito da carne de um hóspede seu. Zeus o puniu transformando-o em lobo Lupa loba romana sagrada que amamentou os bebês gêmeos Rômulo e Remo makhai espíritos da batalha mania espírito grego da loucura manticore criatura com cabeça humana, corpo de leão e cauda de escorpião Marte deus romano da guerra; também chamado de Marte Ultor. Patrono do império; pai divino de Rômulo e Remo. Forma grega: Ares Medusa sacerdotisa que Atena transformou em górgona quando a flagrou com o deus Poseidon no templo de Atena. Medusa tem cobras no lugar de cabelo e
transforma em pedra as pessoas que olham para seu rosto Mercúrio mensageiro romano dos deuses; deus do comércio, dos negócios e do lucro. Forma grega: Hermes Mérope uma das sete plêiades, filhas do titã Atlas Mimas gigante criado para ser o algoz de Hefesto Minerva deusa romana da sabedoria. Forma grega: Atena mofongo prato à base de banana-da-terra frita, típico de Porto Rico Mykonos ilha grega que faz parte das Cíclades; localizada entre Tinos, Siros, Paros e Naxos Nascidos da Terra monstros de seis braços que vestem apenas uma tanga; também conhecidos como “gegenes” Nêmesis deusa grega da vingança. Forma romana: Invídia nereidas cinquenta espíritos femininos do mar; protetoras dos marinheiros e pescadores e zeladoras das riquezas dos oceanos Netuno deus romano dos mares. Forma grega: Poseidon Nice deusa grega da força, da velocidade e da vitória. Forma romana: Vitória Nix deusa da noite; um dos primeiros deuses elementais antigos a nascer numina montanum deuses romanos da montanha. Forma grega: ourae Odisseu lendário rei grego de Ítaca e herói do poema épico de Homero A Odisseia. Forma romana: Ulisses ogro lestrigão monstro gigante canibal do extremo norte Olímpia o mais antigo e provavelmente mais famoso santuário da Grécia; onde se originaram os Jogos Olímpicos. Localizado na região oeste do Peloponeso onagro arma de cerco gigante Oráculo de Delfos porta-voz das profecias de Apolo. O atual oráculo é Rachel Elizabeth Dare
Orbem formate! a esse comando, legionários romanos assumiam uma formação em círculo, com arqueiros posicionados no centro e atrás para atuarem como força de apoio Orco deus da punição eterna no Mundo Inferior e dos juramentos quebrados Órion caçador gigante que se tornou o companheiro mais valoroso e leal de Ártemis. Em um acesso de ciúme, Apolo levou Órion à loucura despertando nele uma extrema sede de sangue, até que o gigante foi morto por um escorpião. Triste, Ártemis transformou seu adorado caçador em constelação, para honrar sua memória Oto gigante criado por Gaia especificamente para destruir o deus Dioniso/Baco; irmão gêmeo de Efialtes ourae “deuses da montanha” em grego. Forma romana: numina montanum panadería “padaria” em espanhol Parcas, as Três na mitologia grega, mesmo antes da existência dos deuses havia as Parcas: Cloto, que tece o fio da vida; Láguesis, a medidora, que determina a duração de uma vida; e Átropos, que corta o fio da vida com sua tesoura Partenon templo na Acrópole de Atenas, na Grécia, dedicado à deusa Atena. Sua construção começou em 447 AEC, quando o Império Ateniense estava no auge de seu poder Pégaso cavalo alado divino, gerado por Poseidon em seu papel de deus-cavalo e nascido da górgona Medusa; irmão de Crisaor Pelopion monumento funerário a Pêlops; localizado em Olímpia, na Grécia Peloponeso grande península e região geográfica no sul da Grécia, separada da parte norte do país pelo Golfo de Corinto Pêlops segundo o mito grego, filho de Tântalo e neto de Zeus. Quando menino, seu pai o cortou em pedaços, o cozinhou e o serviu em um banquete para os deuses, que, no entanto, perceberam o ardil e lhe restituíram a vida
Penélope rainha de Ítaca e esposa de Odisseu. Durante os vinte anos de ausência do marido, permaneceu fiel a ele, dispensando cem arrogantes pretendentes Pequeno Tibre rio que cruza o Acampamento Júpiter. Corre com tanto poder quanto o Rio Tibre original, em Roma, embora não seja tão grande, e pode lavar das pessoas as bênçãos gregas Peribeia uma giganta; filha mais nova de Porfírion, rei dos gigantes Pilo cidade em Messênia, no Peloponeso, Grécia Píton serpente monstruosa a que Gaia incumbiu de guardar o Oráculo de Delfos Plutão deus romano da morte e das riquezas. Forma grega: Hades Polibotes gigante filho de Gaia, a Mãe Terra; nascido para matar Poseidon Pompeia em 79 EC, essa cidade romana perto da moderna Nápoles foi destruída por uma erupção do Monte Vesúvio, que a cobriu de cinzas e matou milhares de pessoas pontifex maximus sumo sacerdote dos deuses romanos Porfírion rei dos gigantes na mitologia greco-romana Poseidon deus grego do mar; filho dos titãs Cronos e Reia, irmão de Zeus e Hades. Forma romana: Netuno propileu portal de entrada para o território de um templo Quione deusa grega da neve; filha de Bóreas Quios quinta maior das ilhas gregas, no Mar Egeu, ao longo da costa oeste da Turquia reciário gladiador romano que lutava com uma rede com pesos e um tridente Repellere equites “repelir a cavalaria” em latim; formação em quadrado usada pela infantaria romana para se defender da cavalaria Rio Flegetonte rio de fogo que corre dos domínios de Hades para o Tártaro. Ele mantém os maus vivos para que suportem mais tormentos nos Campos de Punição
Rômulo e Remo filhos gêmeos de Marte e da sacerdotisa Reia Sílvia que foram atirados no Rio Tibre por seu pai humano, Amúlio. Resgatados e criados por uma loba, fundaram Roma quando alcançaram a idade adulta Somnus deus romano do sono. Forma grega: Hipnos Spes deusa da esperança; a Festa de Spes, o Banquete da Esperança, cai no dia primeiro de agosto Tártaro marido de Gaia; espírito do abismo; na mitologia grega, pai dos gigantes. É também a região mais profunda do Mundo Inferior Término deus romano das fronteiras e dos marcos Terra deusa romana do planeta Terra. Forma grega: Gaia titãs poderosas deidades gregas, descendentes de Gaia e Urano. Governaram durante a Era de Ouro e foram derrubados por deuses mais jovens, os olimpianos Toas gigante criado para matar as Três Parcas Ulisses forma romana de Odisseu Urano pai dos titãs; deus do céu. Os titãs o derrotaram chamando-o à terra. Eles o afastaram de seu território, o emboscaram, o prenderam e o esquartejaram Vênus deusa romana do amor e da beleza. Era casada com Vulcano, mas amava Marte, o deus da guerra. Forma grega: Afrodite Vitória deusa romana da força, da velocidade e da vitória. Forma grega: Nice Vulcano deus romano do fogo, do artesanato e dos ferreiros. Filho de Júpiter e Juno, casado com Vênus. Forma grega: Hefesto Zeus deus grego do céu; rei dos deuses. Forma romana: Júpiter Zoë Doce-Amarga filha de Atlas que foi exilada e, posteriormente, juntou-se às Caçadoras de Ártemis, tornando-se a tenente da deusa
Não perca a próxima série de Rick Riordan: Magnus Chase e os deuses de Asgard Livro 1 A ESPADA DO VERÃO
Sobre o autor
© Michael Frost
Rick Riordan nasceu em 1964, nos Estados Unidos, em San Antonio, Texas, e hoje vive em Boston com a mulher e os dois filhos. Autor best-seller do New York Times, premiado pela YALSA e pela American Library Association, por quinze anos ensinou inglês e história em escolas de São Francisco, e é a essa experiência que ele atribui sua habilidade em escrever para o público jovem. Além das séries Percy Jackson e os olimpianos e Os heróis do Olimpo, inspiradas na mitologia greco-romana, Riordan assina a bem-sucedida série As crônicas dos Kane, que visita deuses e mitos do Egito Antigo.
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