Descrição do livro
No desfecho da série Os heróis do Olimpo, os tripulantes gregos e romanos do Argo II têm feito progresso em suas constantes missões, mas ainda não estão nem perto de vencer a sanguinária Mãe Terra, Gaia. Os gigantes estão de volta mais fortes do que nunca , e os semideuses precisam impedi-los antes da Festa de Spes, momento em que Gaia planeja despertar, derramando o sangue do Olimpo.
Para piorar, visões frequentes da terrível batalha no Acampamento Meio-Sangue assombram os sete semideuses. A legião romana do Acampamento Júpiter, comandada por Octavian, está se aproximando das fronteiras do acampamento grego. Por mais que seja tentador usar a Atena Partenos como arma secreta contra os gigantes, eles sabem que a estátua é necessária em Long Island, onde talvez consiga impedir uma guerra entre os acampamentos.
A Atena Partenos irá para o oeste, enquanto o Argo II segue para o leste. Os deuses, ainda sofrendo com a dupla personalidade, não podem ajudar. Como os jovens conseguirão vencer sozinhos um exército de gigantes? A viagem para Atenas é perigosa, mas não há outra opção. Eles já sacrificaram muito para chegar onde estão. E se Gaia despertar, será o fim.
DADOS DE COPYRIGHT
Sobre a obra: A presente obra é disponibilizada pela equipe Le Livros e seus diversos parceiros, com o objetivo de oferecer conteúdo para uso parcial em pesquisas e estudos acadêmicos, bem como o simples teste da qualidade da obra, com o fim exclusivo de compra futura.
É expressamente proibida e totalmente repudíavel a venda, aluguel, ou quaisquer uso comercial do presente conteúdo
Sobre nós: O Le Livros e seus parceiros disponibilizam conteúdo de dominio publico e propriedade intelectual de forma totalmente gratuita, por acreditar que o conhecimento e a educação devem ser acessíveis e livres a toda e qualquer pessoa. Você pode encontrar mais obras em nosso site: LeLivros.club ou em qualquer um dos sites parceiros apresentados neste link. "Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."
RICK RIORDAN
Tradução de Edmundo Barreiros
Copyright © 2014 by Rick Riordan Edição em português negociada por intermédio de Nancy Gallt Literary Agency e Sandra Bruna Agencia Literaria, SL. TÍTULO ORIGINAL The Blood of Olympus REVISÃO Carolina Rodrigues Eduardo Carneiro ARTE DE CAPA Joann Hill ILUSTRAÇÃO DE CAPA © 2014 John Rocco ADAPTAÇÃO DE CAPA Julio Moreira REVISÃO DE EPUB Juliana Pitanga GERAÇÃO DE EPUB Intrínseca E-ISBN 978-85-8057-596-5 Edição digital: 2014 Todos os direitos desta edição reservados à EDITORA INTRÍNSECA LTDA. Rua Marquês de São Vicente, 99, 3º andar 22451-041 – Gávea Rio de Janeiro – RJ Tel./Fax: (21) 3206-7400 www.intrinseca.com.br
» » »
»
Sumário
Capa Folha de rosto Créditos Mídias sociais Dedicatória Epígrafe
I II III IV V VI VII VIII IX X XI XII XIII XIV XV XVI XVII XVIII XIX XX XXI XXII XXIII XXIV XXV XXVI
XXVII XXVIII XXIX XXX XXXI XXXII XXXIII XXXIV XXXV XXXVI XXXVII XXXVIII XXXIX XL XLI XLII XLIII XLIV XLV XLVI XLVII XLVIII XLIX L LI LII LIII LIV LV LVI LVII LVIII Glossário
Não perca a próxima série de Rick Riordan Sobre o autor Saiba mais sobre as séries do autor
Para meus maravilhosos leitores. Perdão pelas desculpas por aquele último suspense na história. Vou tentar evitar suspenses neste livro. Bem, talvez eu mantenha alguns… Porque eu amo vocês.
Sete meios-sangues responderão ao chamado. Em tempestade ou fogo, o mundo terá acabado. Um juramento a manter com um alento final, E inimigos com armas às Portas da Morte afinal.
I
JASON
JASON DETESTAVA SER VELHO. Suas juntas doíam. Suas pernas tremiam. Enquanto ele tentava subir a colina, seus pulmões chiavam como um motor velho. Ele não podia ver o próprio rosto, mas os dedos estavam retorcidos e ossudos. Veias azuis e inchadas formavam teias nas costas de suas mãos. Ele tinha até aquele cheiro de velho: naftalina e canja de galinha. Como isso era possível? Ele tinha ido dos dezesseis aos setenta anos em questão de segundos, mas o cheiro de velho chegara em um instante, tipo bum. Parabéns! Você fede! — Estamos quase lá. — Piper sorriu para ele. — Você está indo muito bem. Era fácil falar. Piper e Annabeth estavam disfarçadas de lindas jovens criadas gregas. Mesmo com o vestido branco sem mangas e as sandálias estilo gladiador, elas não tinham problemas em seguir pela trilha rochosa. O cabelo cor de mogno de Piper estava trançado e preso em um coque. Braceletes de prata enfeitavam seus braços. Ela parecia uma estátua antiga de sua mãe, Afrodite, que Jason achava um pouco intimidadora. Namorar uma garota bonita já era bem estressante. Namorar uma garota que era filha da deusa do amor… Bem, Jason sempre ficava com medo de cometer algum deslize que deixasse a mãe de Piper com raiva a ponto de, do alto do Monte Olimpo, transformá-lo em um porco selvagem. Jason olhou para o alto da colina. Ainda faltavam uns cem metros até o cume. — Isso foi uma péssima ideia. — Ele se apoiou no tronco de um cedro e enxugou o suor da testa. — A magia de Hazel é boa demais. Se precisarmos lutar, não vou servir para nada. — Não vai chegar a esse ponto — prometeu Annabeth. Ela parecia desconfortável em seu traje de criada. Não parava de levantar os ombros para evitar que o vestido escorregasse. O coque no alto de sua cabeça tinha se desfeito, e seu cabelo louro caía por suas costas como compridas pernas de aranha. Sabendo de seu ódio pelos aracnídeos, Jason achou melhor não comentar isso. — Vamos nos infiltrar no palácio — disse ela —, conseguir a informação que queremos e cair fora. Piper pôs no chão sua ânfora, o grande jarro de vinho de cerâmica em que sua espada estava escondida. — Podemos descansar um segundo. Recupere o fôlego, Jason.
Sua cornucópia, o chifre mágico da fartura, estava presa à cintura; sua adaga, Katoptris, enfiada em algum lugar entre as dobras de sua roupa. Piper não parecia perigosa, mas, em caso de necessidade, poderia lutar com duas lâminas de bronze celestial ou atirar mangas maduras na cara de seus inimigos. Annabeth tirou sua ânfora dos ombros. Ela também levava uma espada escondida; mas, mesmo sem ter uma arma visível, parecia mortal. Seus olhos cinzentos e tempestuosos examinavam o local, alertas a qualquer ameaça. Se algum sujeito convidasse Annabeth para sair, Jason achava mais provável que levasse um chute no bifurcum. Ele tentou controlar a respiração. Lá embaixo, a Baía de Afales brilhava, a água tão azul que parecia tingida de corante. Lá estava o Argo II, ancorado a algumas centenas de metros da orla. De longe, suas velas brancas pareciam selos; seus noventa remos, palitos de dente. Jason imaginou os amigos no convés acompanhando seu progresso, se revezando com a luneta de Leo, tentando não rir ao ver o vovô Jason se arrastando colina acima. — Ítaca idiota — murmurou ele. Aquele lugar devia ser muito bonito. Havia uma serra com picos cobertos de florestas que serpenteava pelo meio da ilha. Penhascos de calcário mergulhavam no mar. Pequenas baías formavam praias rochosas e enseadas onde casas de telhados vermelhos e igrejas de estuque branco se aninhavam à beira-mar. As encostas eram pontilhadas de papoulas, açafrão e cerejeiras silvestres. A brisa tinha o cheiro de murtas em flor. Tudo muito lindo… exceto a temperatura de quase quarenta graus e o ar úmido como o de uma casa de banho romana. Teria sido fácil para Jason controlar os ventos e subir a colina voando, mas nãããão. Para evitar chamar atenção, tinha que se arrastar como um velho com joelhos fracos e fedor de canja de galinha. Ele pensou sobre sua última escalada, duas semanas antes, quando ele e Hazel tinham enfrentado o vilão Círon nos penhascos da Croácia. Pelo menos na época Jason contava com toda a sua força. O que estavam prestes a enfrentar seria muito pior que um bandido. — Tem certeza de que esta é a colina certa? — perguntou ele. — Parece tudo meio… não sei… quieto. Piper observou o cume. Havia uma pena de harpia azul-clara trançada em seu cabelo, uma lembrança do ataque da noite anterior. A pena não combinava muito com seu disfarce, mas Piper a havia conquistado ao derrotar sozinha um bando inteiro de senhoras-galinhas demoníacas durante seu turno de guarda. Piper minimizara o feito, mas Jason sabia que ela estava orgulhosa do que fizera. A pena era um lembrete de que ela não era a mesma garota do inverno anterior, quando eles chegaram pela primeira vez ao Acampamento Meio-Sangue.
— As ruínas estão lá em cima. Eu vi na lâmina da Katoptris. E vocês ouviram o que Hazel disse: “A maior…” — “A maior reunião de espíritos malignos que eu já senti” — completou Jason. — É. Parece bem legal. Depois de tudo por que tinham passado para atravessar o templo subterrâneo de Hades, a última coisa que Jason queria era lidar com mais espíritos malignos. Mas a missão estava em risco. A tripulação do Argo II precisava tomar uma decisão muito importante. Se tomassem a decisão errada, iriam fracassar, e o mundo inteiro seria destruído. A adaga de Piper, os sentidos mágicos de Hazel e os instintos de Annabeth concordavam: a resposta estava ali em Ítaca, no antigo palácio de Odisseu, onde uma horda de espíritos malignos tinha se reunido para aguardar as ordens de Gaia. O plano era se infiltrar entre eles, descobrir o que estava acontecendo e decidir o que fariam a seguir. Depois sair dali, de preferência vivos. Annabeth reajustou seu cinto dourado. — Espero que nossos disfarces funcionem. Os pretendentes eram figuras asquerosas quando estavam vivos. Se descobrirem que somos semideuses… — A magia de Hazel vai funcionar — afirmou Piper. Jason tentava acreditar. Os pretendentes: cem dos homens mais perversos, cruéis e gananciosos que já existiram. Quando Odisseu, rei de Ítaca, desapareceu após a Guerra de Troia, esse bando de príncipes de segunda classe invadiu seu palácio e se recusou a sair. Todos eles tinham esperanças de se casar com a rainha Penélope e assumir o reino. Odisseu conseguiu regressar em segredo e matar todos eles — uma festa básica de boas-vindas. Mas, se as visões de Piper estivessem certas, os pretendentes estavam de volta, assombrando o palácio onde haviam morrido. Jason não podia acreditar que estava prestes a visitar o verdadeiro palácio de Odisseu, um dos heróis gregos mais famosos de todos os tempos. Mas, afinal, toda aquela missão consistia em um acontecimento extraordinário atrás do outro. Annabeth tinha acabado de voltar das profundezas do Tártaro. Levando isso em conta, Jason achou que deveria parar de reclamar por ser um velho. — Bem… — Ele se firmou com seu cajado. — Se eu estiver parecendo tão velho quanto me sinto, meu disfarce deve estar perfeito. Vamos continuar. Enquanto subiam, o suor escorria por seu pescoço. Suas panturrilhas latejavam. Apesar do calor, ele começou a tremer. E por mais que tentasse, não conseguia parar de pensar em seus sonhos recentes. Desde a Casa de Hades, os sonhos haviam se tornado mais vívidos. Às vezes Jason estava parado no templo subterrâneo em Épiro, com o gigante Clítio assomando sobre ele, falando em um coral de vozes: Foi preciso todos vocês juntos para me derrotar. O que farão quando a Mãe Terra despertar?
Outras vezes Jason estava no cume da Colina Meio-Sangue e Gaia se erguia do solo, uma figura formada por um turbilhão de terra, folhas e pedras. Pobre criança. A voz dela ressoava ao longe, fazendo trepidar o chão. Seu pai é o primeiro entre os deuses, mas mesmo assim você está sempre em segundo lugar — em relação aos seus camaradas romanos, aos seus amigos gregos e até mesmo em sua família. Como pretende provar seu valor? Seu pior sonho começava no pátio da Casa dos Lobos, em Sonoma. Juno estava parada diante dele, reluzindo com o brilho de prata derretida. Você me pertence, trovejou a voz da deusa. Um presente de Zeus. Jason sabia que não deveria olhar, mas não conseguia fechar os olhos enquanto Juno virava uma supernova, revelando sua verdadeira forma divina. A dor cauterizava a mente de Jason. Seu corpo ia se desintegrando em camadas, como se fosse uma cebola. A cena mudava. Jason ainda estava na Casa dos Lobos, mas era um garotinho de no máximo dois anos. Havia uma mulher ajoelhada a sua frente e um perfume de limão familiar. Seus traços eram indefinidos, mas ele reconhecia sua voz: clara e delicada, como a mais fina camada de gelo sobre um riacho. Vou voltar para buscar você, querido, dizia ela. Logo, logo estaremos juntos. Sempre que Jason despertava desse pesadelo, seu rosto estava coberto de suor. E lágrimas ardiam em seus olhos. Nico di Angelo tinha avisado: a Casa de Hades iria fazê-los reviver suas piores lembranças, os faria ver e ouvir coisas do passado. Seus fantamas ficariam inquietos. Jason tinha esperado que aquele fantasma em especial permanecesse escondido, mas a cada noite o sonho ficava pior. Agora ele estava subindo até as ruínas de um palácio onde um exército de fantasmas havia se reunido. Isso não significa que ela estará lá, disse Jason a si mesmo. Mas suas mãos não paravam de tremer. Cada passo parecia mais difícil que o anterior. — Estamos quase lá — disse Annabeth. — Vamos… BUM! A encosta tremeu. Em algum lugar além do cume, uma multidão comemorou, como espectadores em um coliseu. O som fez a pele de Jason se arrepiar. Não fazia muito tempo que ele havia lutado pela própria vida em um coliseu romano diante de uma empolgada plateia fantasmagórica. Ele não tinha a menor vontade de repetir a experiência. — O que foi essa explosão? — Não sei — disse Piper. — Mas parece que eles estão se divertindo. Vamos lá fazer amizade com alguns mortos.
II
JASON
NATURALMENTE, A SITUAÇÃO ERA PIOR do que Jason havia esperado. Do contrário, não teria graça. Espiando através de oliveiras, no alto da colina, ele viu o que parecia uma festa muito louca de uma fraternidade de zumbis. As ruínas em si não eram muito impressionantes: alguns muros de pedra, um pátio interno coberto de mato, uma escadaria escavada na rocha e que não levava a lugar algum. Tábuas de compensado cobriam um poço e um andaime de metal sustentava um arco com uma rachadura. Mas sobreposta às ruínas havia outra camada de realidade: uma miragem espectral do palácio tal como devia ter sido em seu auge. Paredes brancas de estuque, com sacadas em toda a sua extensão, erguiam-se a uma altura equivalente a três andares. Pórticos com colunas cercavam o átrio central, que tinha uma fonte enorme e braseiros de bronze. Em doze mesas de banquete, ghouls riam, comiam e provocavam uns aos outros. Jason esperava cerca de cem espíritos, mas havia o dobro ali, todos dando em cima das criadas espectrais que serviam às mesas, quebrando pratos e taças e basicamente fazendo uma grande bagunça. A maioria se parecia com os Lares do Acampamento Júpiter — espectros transparentes roxos, de túnica e sandálias —, mas alguns tinham corpos em decomposição com carne cinzenta, chumaços emaranhados de cabelo e feridas horríveis. Outros pareciam mortais comuns, em togas, ternos bem-cortados ou uniformes militares. Jason chegou a ver um vestindo a camiseta roxa do Acampamento Júpiter e uma armadura de legionário romano. No centro do átrio, um ghoul de pele cinza vestindo uma túnica grega esfarrapada desfilava pelo grupo segurando um busto de mármore acima da cabeça como se fosse o troféu de uma competição esportiva. Os outros fantasmas aplaudiam e lhe davam tapinhas nas costas. À medida que o ghoul se aproximava, Jason percebeu que ele tinha uma flecha na garganta — a haste com penas projetava-se de seu pomo de adão. Havia algo ainda mais perturbador: o busto que ele carregava… aquele era Zeus? Era difícil ter certeza. A maioria das estátuas de deuses gregos era parecida. Mas o rosto barbado e rabugento lembrava demais o Zeus hippie gigante do chalé 1 do Acampamento Meio-Sangue. — Nossa próxima oferenda! — gritou o ghoul, sua voz saindo aguda por causa da flecha em sua garganta. — Vamos alimentar a Mãe Terra!
Os outros gritaram e bateram suas taças na mesa. O ghoul abriu caminho até a fonte central. A multidão lhe deu passagem, e Jason percebeu que a fonte não estava cheia de água. Do pedestal de um metro de altura jorrava para o alto um gêiser de areia, que se abria em arco e caía como uma cortina de partículas brancas na base circular. O ghoul jogou o busto de mármore na fonte. Assim que a cabeça de Zeus atravessou a ducha de areia, a rocha se desintegrou como se estivesse passando por um triturador. A areia brilhou como ouro, a cor do icor, o sangue divino. Então a montanha inteira trovejou com um BUM abafado, como se estivesse arrotando após uma refeição. Os mortos vibraram em aprovação. — Sobrou alguma estátua? — gritou o ghoul para os outros. — Não? Então acho que vamos ter que esperar chegarem deuses de verdade para sacrificarmos! Seus camaradas riram e aplaudiram enquanto o ghoul se sentava à mesa à mais próxima. Jason apertou seu cajado. — Esse cara acabou de desintegrar meu pai. Quem ele pensa que é? — Se eu fosse chutar, diria que é Antínoo — disse Annabeth. — Um dos líderes dos pretendentes. Se me lembro bem, foi Odisseu quem acertou aquela flecha no pescoço dele. Piper estremeceu. — E a gente achando que esse tipo de coisa mata. E os outros? Por que são tantos? — Não sei — admitiu Annabeth. — Talvez sejam novos recrutas de Gaia. Devem ter conseguido voltar à vida antes que fechássemos as Portas da Morte. Alguns são apenas espíritos. — Alguns são ghouls — disse Jason. — Os que têm feridas abertas e pele cinzenta, como Antínoo… Já lutei contra outros como ele. Piper deu um leve puxão em sua pena de harpia. — Eles podem ser mortos? Jason se lembrou de uma missão que ele tinha cumprido para o Acampamento Júpiter anos antes, em San Bernardino. — Não com facilidade. Eles são fortes, rápidos e inteligentes. E comem carne humana. — Fantástico — murmurou Annabeth. — Não vejo opção além de seguirmos o plano. Vamos nos separar, nos infiltrar e descobrir por que eles estão aqui. Se as coisas não correrem bem… — Recorremos ao plano B — completou Piper. Jason odiava o plano B.
Antes de deixarem o barco, Leo tinha dado a cada um deles um sinalizador do tamanho de uma vela de aniversário. Supostamente, se os jogassem para cima, os sinalizadores subiriam no ar em um facho de luz branca que alertaria o Argo II de que o grupo estava com problemas. Naquele instante, Jason e as garotas teriam alguns segundos para se abrigar antes que as catapultas do navio abrissem fogo sobre o palácio, envolvendo tudo em fogo grego e estilhaços de bronze celestial. Não era um plano muito tranquilo, mas pelo menos Jason sentia satisfação em saber que podia convocar um ataque aéreo sobre aquele grupinho de mortos barulhentos se a situação ficasse complicada. Claro, isso se os três conseguissem escapar a tempo. E supondo que as velas do juízo final de Leo não disparassem acidentalmente — isso às vezes acontecia com as invenções dele —, o que faria o clima esquentar bastante, com noventa por cento de risco de um apocalipse calcinante. — Cuidado lá embaixo — disse ele a Piper e Annabeth. Piper seguiu pelo lado esquerdo do cume. Annabeth foi pelo direito. Jason se levantou com seu cajado e saiu mancando na direção das ruínas.
* * *
Ele se lembrou da última vez em que mergulhara em uma multidão de espíritos malignos, na Casa de Hades. Se não tivesse sido por Frank Zhang e Nico di Angelo… Pelos deuses… Nico. Durante os últimos dias, sempre que Jason sacrificava uma porção de sua refeição para Júpiter, rezava ao pai para que ajudasse Nico. Aquele garoto tinha passado por muita coisa, e mesmo assim se oferecera para o trabalho mais difícil: transportar a Atena Partenos até o Acampamento Meio-Sangue. Se ele não conseguisse, os semideuses romanos e gregos entrariam em guerra. Aí, independentemente do que acontecesse na Grécia, o Argo II não teria um lar para o qual voltar. Jason passou pelo fantasmagórico pórtico do palácio. Percebeu bem a tempo que uma seção do piso de mosaico à sua frente era apenas uma ilusão que cobria um poço de escavação de três metros de profundidade. Ele desviou e chegou ao pátio. Os dois níveis de realidade lhe lembravam a fortaleza dos titãs no Monte Otris, um labirinto de mármore negro com paredes que se transformavam aleatoriamente em sombras para então se solidificarem outra vez. Mas durante aquela luta Jason estava com cem legionários. Agora, tudo o que tinha era o corpo de um velho, um cajado e duas amigas em vestidos provocantes.
Quinze metros à frente dele, Piper se movia em meio à multidão, sorrindo e enchendo taças de vinho para os convivas fantasmagóricos. Se ela estava com medo, não demonstrava. Até aquele momento, os fantasmas não estavam prestando muita atenção nela. A magia de Hazel devia estar funcionando. À direita dele, Annabeth recolhia pratos e taças vazios. Ela não estava sorrindo. Jason se lembrou da conversa que tivera com Percy antes de deixar o navio. Percy permanecera no Argo II para protegê-los de ameaças vindas do mar, mas não tinha gostado da ideia de Annabeth participar daquela expedição sem ele, ainda mais porque seria a primeira vez que iriam se separar desde que tinham voltado do Tártaro. Ele tinha puxado Jason para um canto. — Ei, cara… Annabeth ia me matar se eu sugerisse que ela precisa da proteção de alguém. Jason rira. — É, ia mesmo. — Mas tome conta dela, está bem? Jason apertara o ombro do amigo. — Vou cuidar para que ela volte sã e salva para você. Jason agora se perguntava se conseguiria manter essa promessa. Ele se aproximou da multidão. Uma voz rouca gritou: — IRO! — Antínoo, o ghoul com a flecha na garganta, olhava diretamente para ele. — É você, seu mendigo velho? A magia de Hazel estava fazendo seu trabalho. Uma brisa fria ondulou pelo rosto de Jason conforme a Névoa alterava sutilmente sua aparência, mostrando aos pretendentes o que eles esperavam ver. — Eu mesmo! — disse Jason. — Iro! Doze fantasmas se viraram para ele. Alguns fecharam a cara e levaram a mão ao cabo de suas roxas e reluzentes espadas. Só então Jason se perguntou se Iro era inimigo deles, mas agora ele já havia assumido o papel. Ele avançou com dificuldade, fazendo sua melhor expressão de velho malhumorado. — Acho que estou atrasado para a festa. Espero que tenham guardado um pouco de comida para mim. Um dos fantasmas olhou para ele com desprezo. — Mendigo ingrato. Posso matá-lo, Antínoo? Os músculos do pescoço de Jason se retesaram. Antínoo olhou para ele por alguns segundos, depois riu. — Hoje estou de bom humor. Venha, Iro, junte-se a nós.
Jason não tinha muita escolha. Sentou-se de frente para Antínoo, enquanto mais fantasmas se aglomeravam ao redor deles, observando-os como se esperassem ver uma disputa bem violenta de queda de braço. De perto, os olhos de Antínoo eram amarelos. Seus lábios, finos como papel, se abriam sobre dentes afiados. De início, Jason achou que o cabelo negro encaracolado do ghoul estava se decompondo. Então percebeu que um fluxo permanente de terra escorria do couro cabeludo de Antínoo, caindo sobre seus ombros. Placas de lama enchiam feridas antigas na pele cinzenta do ghoul. Mais terra escorria da base da ferida de flecha em sua garganta. O poder de Gaia, pensou Jason. A terra é o que está mantendo esse cara em pé. Antínoo colocou uma taça dourada e um prato cheio de comida na frente de Jason. — Eu não esperava vê-lo aqui, Iro. Mas até um mendigo pode querer sua vingança. Beba. Coma. Um líquido vermelho espesso balançava no interior da taça. No prato havia um pedaço fumegante de carne de origem duvidosa. O estômago de Jason se embrulhou. Mesmo que a comida dos ghouls não o matasse, sua namorada vegetariana ficaria um mês sem beijá-lo. Ele se lembrou do que Noto, o Vento Sul, lhe dissera: Um vento que sopra à toa não serve para nada. Toda a carreira de Jason no Acampamento Júpiter tinha sido construída com base em escolhas cuidadosas. Ele mediava brigas entre semideuses, ouvia todos os lados de uma discussão, firmava acordos. Até quando contrariava as tradições romanas, pensava antes de agir. Não era do tipo impulsivo. Noto o avisara que essa hesitação acabaria por matá-lo. Jason tinha que parar de ponderar e começar a tomar atitudes. Se ele era um mendigo ingrato, tinha que agir como um. Ele arrancou um naco de carne com os dedos e o enfiou na boca. Bebeu avidamente o líquido vermelho, que felizmente tinha sabor de vinho aguado, não era sangue nem veneno. Jason lutou contra a ânsia de vômito, mas não morreu nem explodiu. — Hummm! — Ele esfregou a boca. — Agora me contem sobre essa… como vocês chamaram mesmo? Vingança? Onde eu me inscrevo? Os fantasmas riram. Um lhe deu um empurrão no ombro, e Jason ficou alarmado por poder realmente senti-lo. No Acampamento Júpiter, Lares não tinham substância física. Aparentemente, aqueles espíritos tinham, o que significava mais inimigos que podiam golpeá-lo, esfaqueá-lo ou decapitá-lo. Antínoo debruçou-se para a frente.
— Conte-me, Iro, o que você tem a oferecer? Não precisamos mais de você para enviar nossas mensagens, como nos velhos tempos. Com certeza você não é um guerreiro. Pelo que me lembro, Odisseu quebrou seu maxilar e o jogou no chiqueiro junto com os porcos. Os neurônios de Jason se incendiaram. Iro… o velho que levava mensagens para os pretendentes em troca de restos de comida. Iro tinha sido uma espécie de sem-teto de estimação. Quando Odisseu voltou para casa, disfarçado de mendigo, Iro achou que ele estava invadindo seu território. Os dois começaram a discutir… — Você fez Iro… — Jason hesitou. — Você me fez lutar contra Odisseu. Apostou dinheiro nisso. Mesmo quando Odisseu tirou a camisa e você viu como ele era musculoso… mesmo assim você me fez lutar com ele. Não se importava se eu ia viver ou morrer! Antínoo exibiu os dentes pontudos. — É claro que eu não me importava. E continuo sem me importar! Mas você está aqui, então Gaia deve ter tido uma razão para permitir que você voltasse ao mundo mortal. Conte-me, Iro, por que acha que merece uma parte de nosso espólio? — Que espólio? Antínoo abriu os braços. — O mundo inteiro, meu amigo. Quando nos conhecemos, queríamos apenas as terras, o dinheiro e a esposa de Odisseu. — Principalmente a esposa dele! — Um fantasma careca vestindo roupas esfarrapadas cutucou Jason nas costelas com o cotovelo. — Aquela Penélope era muito gostosa, um piteuzinho! Jason viu Piper servindo bebidas na mesa ao lado. Ela levou discretamente o dedo à boca, como se fosse vomitar, depois voltou a flertar com os homens mortos. Antínoo soltou um riso de escárnio. — Eurímaco, seu covarde chorão. Você não tinha a menor chance com Penélope. Eu me lembro de você se debulhando em lágrimas e implorando a Odisseu por sua vida, botando a culpa de tudo em mim! — Como se isso tivesse ajudado. — Eurímaco levantou a camisa esfarrapada, revelando um buraco espectral de uns três centímetros de diâmetro no meio do peito. — Odisseu me acertou no coração, só porque eu queria me casar com a mulher dele! — De qualquer modo… — Antínoo se virou para Jason — …agora estamos visando a um prêmio muito maior. Quando Gaia destruir os deuses, vamos dividir entre nós os restos do mundo mortal! — Eu quero Londres! — berrou um ghoul sentado à mesa ao lado. — Montreal! — gritou outro.
— Duluth! — berrou um terceiro, o que interrompeu a conversa por um momento, pois os fantasmas olhavam confusos para ele. A carne e o vinho se transformaram em chumbo no estômago de Jason. — E o resto desses… convidados? Contei pelo menos duzentos. Metade deles eu não reconheço. Os olhos amarelos de Antínoo brilharam. — Todos desejam os favores de Gaia. Todos têm reclamações e ressentimentos contra os deuses ou seus heróis de estimação. Aquele patife ali é Hípias, antigo tirano de Atenas. Foi deposto e se aliou com os persas para atacar o próprio povo. Não tem nenhum princípio moral. Faria qualquer coisa por poder. — Obrigado! — retrucou Hípias. — Aquele canalha com a coxa de peru na boca — prosseguiu Antínoo — é Asdrúbal de Cartago. Ele tem contas a acertar com Roma. — Aham — concordou o cartaginês. — E Michael Varus… Jason engasgou. — Quem? Do outro lado da fonte de areia, o cara de cabelo negro com camiseta e armadura de legionário se virou a fim de olhar para eles. Seus traços estavam borrados, esfumaçados e indefinidos, então Jason achou que ele fosse algum tipo de espírito, mas a tatuagem da legião em seu antebraço era bem nítida: SPQR, a cabeça com duas faces do deus Jano e seis marcas por anos de serviço. Sobre o peitoral pendiam a medalha de pretor e o emblema da Quinta Coorte. Jason não chegara a conhecer Michael Varus; o pretor infame havia morrido nos anos oitenta. Mesmo assim, Jason se arrepiou todo quando seu olhar cruzou com o de Varus. Aqueles olhos sombrios pareciam penetrar pelo disfarce de Jason. Antínoo fez um gesto desdenhoso. — É um semideus romano. Perdeu a águia de sua legião no… Alasca, não foi? Não importa. Gaia deixa que ele fique por aqui. O garoto insiste em dizer que sabe como derrotar o Acampamento Júpiter. Mas você, Iro, ainda não respondeu a minha pergunta. Por que devemos aceitá-lo em nosso grupo? Os olhos mortos de Varus tinham deixado Jason nervoso. Ele podia sentir a Névoa se dissipando a sua volta, como consequência de sua incerteza. De repente, Annabeth surgiu junto ao ombro de Antínoo. — Mais vinho, meu senhor? Ops! Ela derramou o conteúdo de um jarro de prata na nuca dele. — Argh! — O ghoul arqueou as costas. — Garota tola! Quem a deixou voltar do Tártaro? — Um titã, meu senhor. — Annabeth baixou a cabeça em um gesto de desculpas. — Posso lhe trazer algumas toalhas úmidas? Sua flecha está pingando.
— Suma daqui! Annabeth encarou Jason, em uma mensagem silenciosa de apoio, e em seguida desapareceu na multidão. O ghoul se secou, o que deu a Jason a oportunidade de organizar seus pensamentos. Ele era Iro… ex-mensageiro dos pretendentes. Por que deveria estar ali? Por que eles deveriam recebê-lo? Jason pegou a faca mais próxima e a fincou na mesa, dando um susto nos fantasmas a sua volta. — Por que devem me aceitar? — resmungou ele. — Porque eu ainda levo mensagens, suas criaturas estúpidas! Acabei de vir da Casa de Hades para ver o que vocês estão tramando! Essa última parte era verdade, e pareceu fazer Antínoo hesitar. O ghoul olhou para ele, o vinho ainda escorrendo da haste da flecha cravada em sua garganta. — Quer que eu acredite que Gaia mandou logo você, um mendigo, para nos espionar? Jason riu. — Eu fui um dos últimos a deixar Épiro antes que as Portas da Morte se fechassem! Vi a sala onde Clítio mantinha guarda sob um teto abobadado revestido de lápides. Caminhei pelo chão de joias e ossos do Necromanteion! Isso também era verdade. Em torno da mesa, os fantasmas se agitaram e murmuraram. — Então, Antínoo… — Jason cutucou o ghoul com o indicador. — Talvez você devesse me explicar por que é digno dos favores de Gaia. Tudo o que vejo é um bando de gente morta preguiçosa que não faz nada além de se divertir, sem ajudar no esforço de guerra. O que devo dizer à Mãe Terra? Pelo canto do olho, Jason viu Piper abrir um sorriso de aprovação. Depois ela voltou sua atenção para um sujeito grego roxo reluzente que tentava fazê-la sentar em seu colo. Antínoo segurou a faca que Jason cravara na mesa. Ele a arrancou e observou a lâmina. — Se você é enviado de Gaia, deve saber que estamos aqui cumprindo ordens. Fomos mandados por Porfírion. — Antínoo passou a faca na palma da própria mão. Em vez de sangue, escorreu terra do corte. — Você conhece Porfírion, não? Jason lutou para manter a náusea sob controle. Ele se lembrava muito bem de Porfírion e da batalha na Casa dos Lobos. — O rei dos gigantes… pele verde, mais de dez metros de altura, olhos brancos, armas trançadas nos cabelos. É claro que eu o conheço. Ele impressiona muito mais que você.
Ele achou melhor não mencionar que na última vez que vira o rei dos gigantes, arrebentara sua cabeça com um raio. Pela primeira vez Antínoo pareceu não saber o que dizer, mas seu amigo fantasma careca passou o braço ao redor dos ombros de Jason. — Ora, ora, amigo! — Eurímaco cheirava a vinho azedo e a fios elétricos queimados. Seu toque fantasmagórico fez as costelas de Jason formigarem. — Tenha certeza de que não era nossa intenção questionar suas credenciais! É só que, bem, se você falou com Porfírion em Atenas, sabe por que estamos aqui. Garanto que estamos fazendo exatamente o que ele mandou! Jason tentou esconder a surpresa. Porfírion em Atenas. Gaia prometera acabar com os deuses destruindo suas raízes. Para Quíron, mentor de Jason no Acampamento Meio-Sangue, isso significava que os gigantes iriam tentar despertá-la da terra no Monte Olimpo original. Mas agora… — A Acrópole — disse Jason. — Os mais antigos templos dedicados aos deuses ficam lá, no meio de Atenas. É onde Gaia vai despertar. — É claro! — disse Eurímaco, rindo. A ferida em seu peito soltou um estalo, como o respiradouro de um golfinho. — E, para chegar lá, aqueles semideuses intrometidos vão ter que viajar pelo mar, certo? Eles sabem que é perigoso voar sobre a terra. — O que significa que vão ter que passar por esta ilha — concluiu Jason. Eurímaco assentiu com ansiedade. Ele tirou o braço dos ombros de Jason e enfiou o dedo em sua taça de vinho. — Nesse momento, eles terão que fazer uma escolha, certo? Em cima da mesa, o fantasma traçou a linha de uma costa, o vinho tinto brilhando de forma destacada sobre a madeira. Ele desenhou a Grécia como uma ampulheta deformada — uma bolha grande e tremida para a parte norte do continente, depois outra bolha abaixo, quase do mesmo tamanho, para a região conhecida como Peloponeso. As duas eram divididas por uma linha estreita de mar, o Canal de Corinto. Jason não precisava do desenho. Ele e o restante da tripulação haviam passado o dia anterior estudando mapas. — A rota mais direta — disse Eurímaco — seria rumar para o leste a partir daqui, pelo Canal de Corinto. Mas se eles tentarem ir por lá… — Chega — interrompeu Antínoo. — Você fala demais, Eurímaco. O fantasma fez um ar de ofendido. — Eu não ia contar tudo a ele! Só sobre os exércitos de ciclopes estacionados nas duas margens. E os espíritos da tempestade furiosos no ar. E aqueles monstros marinhos terríveis que Ceto mandou para infestar as águas. E, é claro, se o navio conseguir chegar a Delfos… — Idiota!
Antínoo se esticou por cima da mesa e agarrou o pulso do fantasma. Uma crosta fina de terra se espalhou a partir da mão do ghoul e subiu pelo braço espectral de Eurímaco. — Não! — exclamou Eurímaco. — Por favor! Eu… eu só queria… O fantasma gritava enquanto a terra cobria seu corpo como uma carapaça, que depois se despedaçou, não deixando nada além de um montinho de poeira. Eurímaco havia desaparecido. Antínoo se recostou em seu assento e esfregou as mãos para limpá-las. Os outros pretendentes à mesa o observavam em um silêncio apreensivo. — Desculpe, Iro. — O ghoul deu um sorriso frio. — O que você precisa saber é que os caminhos para Atenas estão bem protegidos, como prometemos. Os semideuses terão que se arriscar no canal, que é intransponível, ou navegar em torno do Peloponeso, o que também não é lá muito seguro. De qualquer modo, é improvável que eles sobrevivam por tempo suficiente para fazer essa escolha. Assim que chegarem a Ítaca, nós saberemos. Vamos detê-los aqui, e Gaia vai ver nosso valor. Pode levar essa mensagem de volta para Atenas. O coração de Jason martelava no peito. Ele nunca havia visto nada como a carapaça de terra que Antínoo invocara para destruir Eurímaco. E não queria descobrir se aquele poder funcionava em semideuses. Além disso, o ghoul parecia confiante em sua capacidade de detectar o Argo II. A magia de Hazel estava, pelo visto, escondendo o navio, mas não havia como dizer quanto tempo isso ia durar. Jason tinha a informação que eles haviam ido buscar. O objetivo era chegarem a Atenas. A rota mais segura, ou pelo menos a rota menos impossível, era dar a volta pela costa sul da Grécia. Era dia vinte de julho. Eles só tinham doze dias até o planejado despertar de Gaia: em primeiro de agosto, no antigo Banquete da Esperança. Jason e as garotas precisavam partir enquanto tinham chance. Havia, porém, mais alguma coisa que o incomodava, uma sensação gelada de mau pressentimento, como se ele ainda não tivesse ouvido as piores notícias. Eurímaco mencionara Delfos. Jason tinha a esperança de visitar o antigo local do oráculo de Apolo e talvez conseguir alguma informação sobre seu futuro, mas se o lugar fora tomado por monstros… Ele empurrou o prato de comida fria para o lado. — Parece que está tudo sob controle aqui. Para o seu bem, Antínoo, espero que esteja mesmo. Esses semideuses são muito sagazes. Eles fecharam as Portas da Morte. Não íamos querer que eles passassem despercebidos por vocês, talvez com a ajuda de Delfos. Antínoo gargalhou. — Não tem como. Delfos não está mais sob o controle de Apolo.
— E-eu entendo. Mas e se os semideuses fizerem o caminho mais longo e derem a volta no Peloponeso? — Você se preocupa demais. Essa viagem nunca foi segura para semideuses, e é muito longa. Além disso, Vitória está fora de controle em Olímpia. Enquanto isso continuar, não há como os semideuses vencerem esta guerra. Jason também não entendeu o que ele queria dizer com isso, mas assentiu. — Muito bom. Vou relatar tudo ao rei Porfírion. Obrigado pela… hum, pela refeição. Mas Michael Varus, junto à fonte, disse: — Espere. Jason engoliu um palavrão. Ele estava tentando ignorar o pretor morto, mas naquele momento Varus se aproximou, envolto por uma aura branca enevoada. Seus olhos sombrios pareciam poços. Ele trazia pendurado na cintura um gládio de ouro imperial. — Você precisa ficar — disse Varus. Antínoo lançou um olhar irritado para o fantasma. — Qual o problema, legionário? Se Iro quer ir embora, deixe que vá. Ele fede! Os outros fantasmas deram risadas nervosas. Do outro lado do pátio, Piper olhou preocupada para Jason. Um pouco mais longe, Annabeth discretamente pegou uma faca da travessa de carne mais próxima. Varus levou a mão ao cabo de sua espada. Apesar do calor, seu peitoral estava coberto de gelo. — Perdi minha coorte duas vezes no Alasca, uma vez em vida, uma na morte para um graecus chamado Percy Jackson. Mesmo assim, vim aqui atender ao chamado de Gaia. Sabe por quê? Jason engoliu em seco. — Teimosia? — Este é um lugar de desejos — disse Varus. — Todos nós fomos atraídos para cá, sustentados não só pelo poder de Gaia, mas também pelos nossos maiores anseios. A ambição de Eurímaco. A crueldade de Antínoo… — Você me lisonjeia — murmurou o ghoul. — O ódio de Asdrúbal — prosseguiu Varus. — A amargura de Hípias. Minha ambição. E você, Iro? O que o trouxe até aqui? O que um mendigo mais deseja? Seria uma casa? Um formigamento desconfortável surgiu na nuca de Jason, a mesma sensação que ele tinha quando uma grande tempestade elétrica estava prestes a começar. — Eu preciso ir — disse ele. — Tenho mensagens para entregar. Michael Varus sacou a espada.
— Meu pai é Jano, o deus de duas faces. Estou acostumado a ver através de máscaras e ilusões. Sabe, Iro, por que temos tanta certeza de que os semideuses não vão passar por nossa ilha sem serem notados? Jason repassou mentalmente todo o seu repertório de palavrões em latim. Tentou calcular quanto tempo levaria para pegar seu sinalizador de emergência e dispará-lo. Com sorte, conseguiria ganhar tempo suficiente para que as garotas encontrassem abrigo antes que aquele bando de caras mortos o matasse. Ele se virou para Antínoo. — Você está no comando aqui ou não? Talvez deva amordaçar seu romano. O ghoul respirou fundo. A flecha vibrou em sua garganta. — Ah, mas isso pode ser divertido. Continue, Varus. O pretor morto levantou a espada. — Nossos desejos nos revelam. Eles mostram quem realmente somos. Alguém está aqui por sua causa, Jason Grace. A multidão atrás de Varus se afastou. O fantasma tremeluzente de uma mulher se aproximou, e Jason achou que seus ossos estavam virando gelatina. — Querido — disse o fantasma de sua mãe. — Você voltou para casa.
III
JASON
DE ALGUM MODO ELE A conhecia. Reconheceu seu vestido — um vestido transpassado florido, todo em verde e vermelho, como toalhas de ceia de Natal. Ele reconheceu os braceletes de plástico coloridos em seus pulsos, que se afundaram nas costas de Jason quando ela o abraçara para se despedir na Casa dos Lobos. Reconheceu seu cabelo, os cachos pintados de louro e o penteado volumoso, e seu aroma de limão e laquê. Os olhos eram azuis como os de Jason, mas brilhavam com uma luz refratada estranha, como se ela tivesse acabado de sair de um abrigo após uma guerra nuclear — avidamente em busca de detalhes familiares em um mundo mudado. — Querido. Ela estendeu os braços. O restante do mundo desapareceu. Os fantasmas e ghouls não importavam mais. O disfarce de Névoa se esvaiu. Ele voltou a ter uma postura ereta. As juntas pararam de doer. O cajado se transformou novamente em um gládio de ouro imperial. A sensação de queimação não parou. Ele sentia como se camadas de sua vida estivessem sendo queimadas, seus meses no Acampamento Meio-Sangue, seus anos no Acampamento Júpiter. Ele era novamente um garotinho de dois anos assustado e vulnerável. Até a cicatriz em seu lábio, de quando ele tentara comer um grampeador quando bebê, doía como uma ferida recente. — Mãe? — Sim, querido. — A imagem dela tremeluzia. — Venha. Venha me dar um abraço. — Você… você não é real. — É claro que ela é real. — A voz de Michael Varus soava distante. — Você acha que Gaia ia deixar um espírito tão importante se deteriorar no Mundo Inferior? É sua mãe, Beryl Grace, estrela da tevê, namorada do rei do Olimpo, que a rejeitou não apenas uma, mas duas vezes, tanto sob o aspecto romano quanto o grego. Ela merece justiça tanto quanto qualquer um de nós. O coração de Jason vacilou. Os pretendentes se aglomeravam a sua volta, assistindo a tudo. Sou a diversão deles, percebeu Jason. Os fantasmas provavelmente achavam aquilo ainda mais interessante do que dois mendigos brigando até a morte. A voz de Piper surgiu em meio ao zunido em sua cabeça:
— Jason, olhe para mim. Ela se encontrava a pouco mais de cinco metros de distância, segurando sua ânfora de cerâmica. Não estava mais sorrindo. Seu olhar era duro e autoritário, tão impossível de ignorar quanto a pena azul de harpia em seu cabelo. — Essa não é sua mãe. A voz dela está lançando alguma magia sobre você, como o charme, só que mais perigoso. Não está sentindo? — Ela tem razão. — Annabeth subiu na mesa mais próxima e chutou uma travessa, chamando a atenção de uma dezena de fantasmas. — Jason, isso é só um resquício da sua mãe, como uma ara, talvez, ou… — Um resquício! — O fantasma de Beryl Grace começou a chorar. — Sim, veja a que eu me reduzi. É tudo culpa de Júpiter. Ele nos abandonou. Ele não me ajudou! Eu não queria deixá-lo em Sonoma, querido, mas Juno e Júpiter não me deram escolha. Eles não iam permitir que ficássemos juntos. Por que lutar por eles agora? Junte-se aos pretendentes. Lidere-os. Podemos voltar a ser uma família! Jason sentia centenas de olhos sobre si. Essa é a história da minha vida, pensou Jason com amargura. Todo mundo sempre o observando, esperando que ele os liderasse. Desde o momento em que chegara ao Acampamento Júpiter, os semideuses romanos o trataram como um príncipe. Apesar de suas tentativas de alterar seu destino, se juntar à pior coorte, tentar mudar as tradições do acampamento, assumir as missões menos glamorosas e fazer amizade com os semideuses menos populares, ainda assim ele se tornara pretor. Como filho de Júpiter, seu futuro tinha sido garantido. Ele se lembrou do que Hércules lhe dissera no Estreito de Gibraltar: Não é fácil ser filho de Zeus. É muita pressão. Isso pode fazer um cara surtar. Agora Jason estava ali, tenso como a corda de um arco. — Você me abandonou — disse ele à mãe. — Isso não foi Júpiter nem Juno. Foi você. Beryl Grace deu um passo à frente. As rugas de preocupação em torno de seus olhos e a rigidez aflitiva em sua boca lembraram a Jason sua irmã, Thalia. — Querido, eu disse que ia voltar. Foram minhas últimas palavras para você. Não se lembra? Jason estremeceu. Nas ruínas da Casa dos Lobos, sua mãe o havia abraçado pela última vez, sorrindo, mas com os olhos cheios de lágrimas. Está tudo bem, garantira ela. Mas mesmo muito pequeno Jason soubera que nada estava bem. Espere aqui. Vou voltar para buscar você. Logo, logo estaremos juntos. Ela não voltou. Em vez disso, Jason ficou andando sem rumo pelas ruínas, chorando, sozinho, chamando pela mãe e por Thalia, até que os lobos foram buscá-lo. A promessa não cumprida de sua mãe estava no âmago de quem ele era.
Jason construíra toda a sua vida em torno da inflamação gerada por aquelas palavras, como o grão de areia no centro de uma pérola. As pessoas mentem. Promessas são quebradas. Era por essa razão, por mais que isso o aborrecesse, que Jason seguia as regras. Ele cumpria suas promessas. Não desejava abandonar ninguém, repetir o que haviam feito a ele: mentido e o abandonado. Agora sua mãe estava de volta, apagando a única certeza que Jason tinha sobre ela: que havia partido para sempre. Do outro lado da mesa, Antínoo ergueu sua taça. — É um grande prazer conhecê-lo, filho de Júpiter. Escute sua mãe. Os deuses cometeram muitas injustiças contra você. Por que não se junta a nós? Imagino que essas duas criadas sejam suas amigas. Vamos poupá-las. Quer que sua mãe permaneça neste mundo? Podemos fazer isso. Você deseja ser um rei… — Não. — A mente de Jason girava. — Não, meu lugar não é com vocês. Michael Varus o encarou com olhos frios. — Tem certeza, meu colega pretor? Mesmo que derrote os gigantes e Gaia, você voltaria para casa, como fez Odisseu? Onde é seu lar agora? Com os gregos? Com os romanos? Ninguém vai aceitá-lo. E, se você conseguir voltar, quem garante que não vai encontrar ruínas como estas? Jason observou o pátio do palácio. Sem as varandas e colunatas, não havia nada além de uma pilha de pedras no alto de uma montanha estéril. Só a fonte parecia real, jorrando areia como um lembrete do poder ilimitado de Gaia. — Você era um oficial da legião — disse ele a Varus. — Um líder de Roma. — Você também era — retrucou Varus. — Nossas lealdades mudam. — Você acha que eu pertenço a este grupo? — perguntou Jason. — Um bando de perdedores mortos esperando alguma esmola de Gaia e choramingando que o mundo deve alguma coisa a eles? Por todo o pátio, fantasmas e ghouls ficaram de pé e sacaram suas armas. — Cuidado! — berrou Piper para a multidão. — Os homens neste palácio são seus inimigos. Cada um deles os esfaquearia pelas costas na primeira oportunidade! Nas semanas anteriores, o charme de Piper tinha ficado ainda mais poderoso. Ela agora tinha falado a verdade, e a multidão acreditava. Todos olharam de soslaio uns para os outros, as mãos ainda no cabo de suas espadas. A mãe de Jason se aproximou dele. — Querido, pense bem. Desista da missão. O Argo II nunca vai conseguir fazer a viagem até Atenas. E mesmo que consiga, há o problema da Atena Partenos. Seu corpo estremeceu. — O que quer dizer com isso?
— Não finja ignorância, querido. Gaia sabe sobre sua amiga Reyna, sobre o filho de Hades, Nico, e o sátiro Hedge. Para matá-los, a Mãe Terra enviou seu filho mais perigoso: o caçador que nunca descansa. Mas você não precisa morrer. Os ghouls e fantasmas se aproximaram, todos os duzentos encarando Jason com expectativa, como se ele fosse puxar um coro do hino nacional a qualquer momento. O caçador que nunca descansa. Jason não sabia quem era esse caçador, mas precisava alertar Reyna e Nico. Ou seja: tinha que sair dali vivo. Ele olhou para Annabeth e Piper. As duas estavam prontas, à espera de seu sinal. Ele se obrigou a encarar os olhos da mãe. Ela parecia a mesma mulher que o havia abandonado nas florestas de Sonoma catorze anos antes. Mas Jason não era mais uma criancinha. Era um veterano de guerra, um semideus que tinha enfrentado a morte inúmeras vezes. E o que ele viu diante de si não era sua mãe, pelo menos não o que ela era: amorosa, carinhosa, protetora. Um resquício, foi como Annabeth a chamou. Michael Varus dissera que os espíritos ali eram sustentados pelos seus maiores desejos. O espírito de Beryl Grace literalmente brilhava de necessidade. Os olhos dela imploravam pela atenção de Jason. Ela estendeu os braços, desesperada para possuí-lo. — O que você quer? — perguntou ele. — O que a trouxe até aqui? — Eu quero viver! — exclamou ela. — Juventude! Beleza! Seu pai poderia ter me tornado imortal. Poderia ter me levado para o Olimpo, mas me abandonou. Você pode consertar isso, Jason. Você é meu valente guerreiro! O aroma de limão amargou, como se ela estivesse começando a queimar. Jason se lembrou de uma coisa que Thalia dissera: que a mãe deles fora ficando cada vez mais instável, até que seu desespero a levara à loucura. Ela havia morrido em um acidente de carro por dirigir embriagada. O vinho aguado no estômago de Jason se revirou. Ele decidiu que, se sobrevivesse àquele dia, nunca mais beberia álcool de novo. — Você é uma mania — concluiu Jason. A palavra lhe vinha à mente de seus estudos no Acampamento Júpiter, muito tempo antes. — Um espírito da insanidade. Você foi reduzida a isso. — Sim — concordou Beryl Grace. A imagem dela cintilou através de um espectro de cores. — Me abrace, filho. Sou tudo o que restou a você. A voz do Vento Sul surgiu em sua mente: Você não pode controlar a sua ascendência, mas pode escolher sua herança.
Jason sentiu como se estivesse sendo remontado, uma camada de cada vez. Seu coração se acalmou. O frio deixou seus ossos. Sua pele se aqueceu ao sol da tarde. — Não — declarou ele, e olhou para Annabeth e Piper. — Minhas lealdades não mudaram. Minha família apenas aumentou. Sou filho da Grécia e de Roma. — Ele encarou a mãe pela última vez. — Não sou seu filho. Ele fez um sinal antigo para afastar o mal, três dedos partindo do coração, ao que o fantasma de Beryl Grace desapareceu com um chiado suave, como um suspiro de alívio. O ghoul Antínoo jogou sua taça para o lado, avaliando Jason com uma expressão de nojo preguiçoso. — Bem… — disse ele. — Acho que está na hora de matar vocês. Os inimigos se aproximaram por todos os lados.
IV
JASON
E ESTAVA INDO TUDO MUITO bem, até ele ser apunhalado. Jason desenhou um grande arco com sua espada, vaporizando os pretendentes mais próximos, depois pulou para cima da mesa e dali saltou sobre a cabeça de Antínoo. Em pleno ar, desejou que sua espada se transformasse em uma lança, um truque que nunca havia tentado com aquela arma mas que por algum motivo ele sabia que iria funcionar. Caiu de pé com um pilum de quase dois metros de comprimento nas mãos. Quando Antínoo se virou para enfrentá-lo, Jason enfiou a ponta de ouro imperial no peito do ghoul. Antínoo olhou para baixo sem poder acreditar. — Você… — Divirta-se nos Campos de Punição. Quando Jason puxou o pilum, Antínoo se desfez em terra. Jason então continuou a lutar, girando sua lança, fazendo-a atravessar fantasmas, derrubando ghouls. Do outro lado do pátio, Annabeth lutava como um demônio. Sua espada de osso de drakon cortava e derrubava qualquer pretendente burro o bastante para enfrentá-la. Perto da fonte de areia, Piper também havia sacado sua espada, a lâmina denteada de bronze celestial que ela roubara do Boreada Zetes. Ela golpeava e se defendia com a mão direita e de vez em quando atirava tomates da cornucópia com a esquerda, gritando para os pretendentes: — Salvem-se! Eu sou perigosa demais! Isso devia ser exatamente o que eles queriam ouvir, porque todos saíam correndo para logo depois pararem, confusos, alguns metros morro abaixo, e voltarem para a luta. O tirano grego Hípias avançou sobre Piper com sua adaga erguida, mas ela o acertou em cheio no peito com uma bela carne assada. Ele caiu de costas na fonte e gritou enquanto se desintegrava. Uma flecha foi zunindo na direção do rosto de Jason. Ele a desviou com um sopro de vento, depois atravessou uma linha de ghouls armados com espadas e percebeu uma dezena de pretendentes se reagrupando perto da fonte para atacar Annabeth. Ele levantou a lança para o céu. Um raio ricocheteou da ponta e explodiu os fantasmas em íons, deixando uma cratera fumegante onde antes ficava a fonte.
Durante os últimos meses, Jason tinha lutado muitas batalhas, mas havia se esquecido de como era se sentir bem durante o combate. Claro que ele ainda tinha medo, mas um peso enorme fora tirado de seus ombros. Pela primeira vez desde que acordara no Arizona sem suas lembranças, Jason se sentia completo. Ele sabia quem era. Escolhera sua família, e ela nada tinha a ver com Beryl Grace nem mesmo com Júpiter. Incluía todos os semideuses que lutavam ao seu lado, romanos e gregos, amigos novos e velhos. Ele não ia deixar ninguém destruir sua família. Jason invocou os ventos e arremessou três ghouls encosta abaixo como se fossem bonecos de pano. Ele perfurou um quarto, depois desejou que a arma encolhesse e se transformasse outra vez em espada e golpeou através de outro grupo de espíritos. De repente, não havia mais inimigos. Os fantasmas remanescentes começaram a desaparecer sozinhos. Annabeth acertou Asdrúbal, o cartaginês, e Jason cometeu o erro de embainhar sua espada. Uma dor queimou na base de suas costas, tão forte e gelada que ele achou que a deusa da neve, Quione, o havia tocado. Perto de seu ouvido, Michael Varus disse com raiva: — Nasceu como romano, morra como romano. A ponta de uma espada de ouro surgia pela frente da camisa de Jason, logo abaixo de suas costelas. Jason caiu de joelhos. O grito de Piper parecia soar a quilômetros de distância. Ele sentiu como se tivesse sido mergulhado em água salgada: o corpo sem peso, a cabeça balançando. Piper correu em sua direção. Ele viu como que anestesiado a espada dela passar por cima de sua cabeça e atravessar a armadura de Michael Varus com um som metálico. Uma brisa fria balançou o cabelo de Jason. Pó caiu a sua volta, e um capacete vazio de legionário rolou sobre as pedras. O semideus do mal estava acabado, mas tinha deixado uma última impressão antes de partir. — Jason! Piper o segurou pelos ombros quando ele começou a tombar para o lado. Ele soltou um gemido de dor quando ela puxou a espada de suas costas. Então ela o deitou no chão e apoiou sua cabeça em uma pedra. Annabeth vinha correndo para perto deles. Ela tinha um corte feio na lateral do pescoço. — Pelos deuses. — Annabeth não tirava os olhos da ferida na barriga de Jason. — Ah, meus deuses. — Obrigado — disse Jason, com a voz fraca. — Eu estava com medo de que a coisa fosse feia.
Os braços e pernas dele começaram a formigar enquanto seu corpo entrava em “modo crise”, concentrando o sangue em seu tronco. A dor era entorpecente, o que o surpreendeu, mas sua camisa estava ensopada de sangue. A ferida fumegava. Ele tinha quase certeza de que ferimentos de espada não soltavam fumaça. — Você vai ficar bem. — Piper pronunciou as palavras como se fosse uma ordem. Seu tom de voz normalizou a respiração dele. — Annabeth, ambrosia! A garota pareceu despertar de seu torpor. — É. É. Eu tenho. Annabeth abriu sua bolsa de suprimentos e desembrulhou um pedaço do alimento dos deuses. — Precisamos estancar o sangramento. Piper usou a adaga para cortar um pedaço da barra de seu vestido. Ela rasgou o tecido e fez ataduras. Jason se perguntou vagamente onde ela tinha aprendido tanto sobre primeiros socorros. Ela envolveu os ferimentos nas costas e na barriga de Jason enquanto Annabeth botava pedacinhos de ambrosia na boca dele. Os dedos de Annabeth tremiam. Depois de tudo pelo que havia passado, Jason achava estranho que ela fosse surtar naquele momento, quando Piper parecia tão calma. Então ele entendeu: Annabeth podia se dar ao luxo de ficar preocupada com ele. Piper, não. Ela estava completamente concentrada em salvá-lo. Annabeth deu outro pedaço de ambrosia para ele comer. — Jason, eu… eu sinto muito. Pela sua mãe. Mas o jeito como você lidou com a situação… foi tão corajoso. Jason tentava não fechar os olhos. Sempre que fazia isso, via o espírito da mãe se desintegrando. — Não era ela — disse ele. — Pelo menos, nenhuma parte dela que eu pudesse salvar. Não havia escolha. Annabeth respirou fundo, abalada. — Nenhuma escolha certa, talvez, mas… Um amigo meu, Luke. A mãe dele… teve um problema parecido. Ele não lidou tão bem com a situação. A voz dela estava embargada. Jason não conhecia muito do passado de Annabeth, mas Piper olhou preocupada para ela. — Já fiz o que podia pelo ferimento — disse Piper. — Mas ainda está sangrando. E não entendo o porquê da fumaça. — Ouro imperial — disse Annabeth, com a voz trêmula. — É mortal para semideuses. É só questão de tempo até que… — Ele vai ficar bem — insistiu Piper. — Precisamos levá-lo de volta ao navio. — Não me sinto tão mal — disse Jason. E era verdade. A ambrosia tinha clareado seus pensamentos. O calor aos poucos voltava para seus membros. — Talvez eu possa voar…
Ele se sentou. Sua visão ganhou um tom pálido de verde. — Ou talvez não… Piper o segurou pelos ombros quando ele ameaçou tombar. — Eita, espertinho. Precisamos entrar em contato com o Argo II e conseguir ajuda. — Você não me chama de espertinho faz muito tempo. Piper o beijou na testa. — Fique comigo que ofendo você quanto quiser. Annabeth examinou as ruínas. A realidade mágica tinha desaparecido, deixando apenas paredes destruídas e poços de escavação. — Podíamos usar os sinalizadores de emergência, mas… — Não — disse Jason. — Leo iria destruir o cume da montanha com fogo grego. Talvez se vocês duas me ajudarem, eu consiga andar… — De jeito nenhum — opôs-se Piper. — Ia levar tempo demais. — Ela abriu a bolsa presa a seu cinto e tirou de lá um espelhinho. — Annabeth, você sabe código Morse? — É claro. — Leo também. — Piper entregou o espelho a ela. — Ele estará vendo do navio. Vá até o cume… — E saio piscando para ele! — Annabeth corou. — Não era bem isso o que eu queria dizer. Mas entendi a ideia. Ela correu até a extremidade das ruínas. Piper pegou um frasquinho de néctar e o ofereceu a Jason. — Aguente firme. Você não vai morrer por causa de uma apunhaladinha qualquer. Jason conseguiu dar um leve sorriso. — Pelo menos dessa vez não foi na cabeça. Fiquei consciente durante a luta inteira. — Você derrotou, tipo, uns duzentos inimigos — disse Piper. — Isso foi assustadoramente fantástico. — Vocês ajudaram. — Pode ser, mas… Ei, não durma… A cabeça de Jason começou a cair para a frente. As rachaduras nas pedras ficaram mais nítidas. — Estou um pouco tonto — murmurou ele. — Tome mais néctar — ordenou Piper. — Está gostoso? — Está. Está, sim. Na verdade, o néctar estava com gosto de serragem líquida. Desde a Casa de Hades, quando ele renunciara à sua pretoria, a ambrosia e o néctar não tinham mais o gosto de seus pratos favoritos do Acampamento Júpiter. Era como se a lembrança de sua velha casa não tivesse mais o poder de curá-lo.
Nasceu como romano, morra como romano, dissera Michael Varus. Ele olhou para a fumaça que subia do curativo. Tinha coisas piores com que se preocupar do que perda de sangue. Annabeth estava certa sobre o ouro imperial. Aquilo era mortal tanto para semideuses quanto para monstros. A ferida de Varus faria o possível para drenar a força vital de Jason. Ele já vira um semideus morrer daquela forma antes. Não tinha sido rápido nem bonito. Não posso morrer, disse para si mesmo. Meus amigos dependem de mim. As palavras de Antínoo ecoavam em seus ouvidos: sobre os gigantes em Atenas, a viagem impossível que aguardava o Argo II, o caçador misterioso que Gaia enviara para interceptar a Atena Partenos. — Reyna, Nico e o treinador Hedge estão em perigo — disse ele. — Precisamos avisá-los. — Vamos cuidar disso quando voltarmos para o barco — prometeu Piper. — O que você tem que fazer agora é descansar. — O tom de voz dela era leve e confiante, mas seus olhos estavam cheios de lágrimas. — Além disso, eles são um grupo cascudo. Vão ficar bem. Jason torceu para que ela estivesse certa. Reyna havia arriscado muito para ajudá-los. O treinador Hedge às vezes era chato, mas tinha sido um protetor leal para toda a tripulação. E Nico… Jason estava especialmente preocupado com ele. Piper passou o polegar pela cicatriz no lábio dele. — Quando a guerra terminar… vai dar tudo certo para Nico. Você já está ajudando como pode sendo amigo dele. Jason não sabia bem o que dizer. Ele não havia contado nada a Piper sobre sua conversa com Nico. Tinha guardado o segredo de Di Angelo. Mesmo assim… Piper parecia sentir que algo estava errado. Como filha de Afrodite, talvez ela conseguisse perceber quando alguém estava sofrendo por amor. Mas ela não tinha forçado Jason a falar sobre o assunto. Ele gostou disso. Outra onda de dor; Jason fez uma careta. — Concentre-se em minha voz. — Piper beijou sua testa. — Pense em alguma coisa boa. Bolo de aniversário no parque em Roma… — Aquilo foi bom. — No inverno passado — sugeriu ela —, a guerra de marshmallows em volta da fogueira. — Eu venci. — Você ficou com marshmallows no cabelo por dias! — Mentira. A mente de Jason viajou para épocas melhores. Ele só queria ficar ali, conversando com Piper, segurando a mão dela, sem se preocupar com gigantes, Gaia ou a loucura de sua mãe.
Jason sabia que eles tinham que voltar direto para o navio. Ele estava muito mal. Eles tinham a informação que tinham ido buscar. Mas, deitado ali nas pedras frias, Jason sentiu que eles estavam se esquecendo de alguma coisa. A história dos pretendentes e da rainha Penélope… seus pensamentos sobre família… seus sonhos recentes. Tudo isso girava em sua cabeça. Havia algo mais naquele lugar… alguma coisa que ele não percebera. Annabeth voltou mancando da beira da colina. — Você está ferida? — perguntou Jason a ela. Annabeth olhou para o tornozelo. — Tudo bem. Só uma fratura antiga de quando eu estava nas cavernas romanas. Às vezes, quando estou estressada… Isso não é importante. Avisei Leo. Frank vai mudar de forma, voar até aqui e levar você de volta ao navio. Preciso fazer uma maca para mantê-lo estável. Jason teve uma visão aterrorizante de si mesmo em uma rede balançando entre as garras de Frank, a águia gigante, mas achou que aquilo era melhor que morrer. Annabeth começou a trabalhar. Recolheu restos deixados para trás pelos pretendentes (um cinto de couro, uma túnica rasgada, tiras de sandálias, uma manta vermelha e algumas hastes de lança quebradas). As mãos dela trabalhavam rapidamente com esse material, rasgando, tecendo, amarrando e trançando. — Como você está fazendo isso? — perguntou Jason, impressionado. — Aprendi durante minha missão no subterrâneo de Roma. — Annabeth não tirava os olhos do trabalho. — Nunca tive razão para aprender tecelagem antes, mas é útil para certas coisas, como escapar de aranhas… Ela deu um nó no último pedaço de couro e voilà: uma maca grande o suficiente para Jason, que podia ser carregada pelas hastes das lanças e com amarras de segurança no centro. Piper deu um assovio de aprovação. — Na próxima vez que eu precisar ajustar um vestido, vou pedir sua ajuda. — Cale a boca, McLean — disse Annabeth, mas seus olhos brilhavam de satisfação. — Agora vamos colocá-lo com cuidado… — Esperem — interrompeu Jason. O coração dele batia acelerado. Ver Annabeth tecer o leito improvisado fizera Jason se lembrar da história de Penélope, que havia resistido aos avanços dos pretendentes por vinte anos enquanto aguardava a volta do marido, Odisseu. — Uma cama — disse Jason. — Havia uma cama especial neste palácio. Piper pareceu preocupada. — Jason, você perdeu muito sangue. — Não estou delirando — insistiu ele. — O leito nupcial era sagrado. Se houvesse algum lugar onde você pudesse conversar com Juno… — Ele respirou
fundo e chamou: — Juno! Silêncio. Talvez Piper tivesse razão. Ele não estava pensando com clareza. Então, a cerca de dois metros de distância, o chão rachou. Ramos abriram caminho através da terra, crescendo a uma velocidade espantosa até que uma oliveira adulta surgiu no pátio. Sob um dossel de folhas verde-acinzentadas estava uma mulher de vestido branco, com um manto de pele de cabra jogado sobre os ombros. Na ponta de seu bastão havia uma flor de lótus branca. A expressão dela era tranquila e nobre. — Meus heróis — disse a deusa. — Hera — falou Piper. — Juno — corrigiu Jason. — Tanto faz — resmungou Annabeth. — O que está fazendo aqui, Sua Majestade bovina? Os olhos de Juno cintilaram perigosamente. — Annabeth Chase. Simpática como sempre. — É, bem… — disse Annabeth. — Acabei de voltar do Tártaro, então minhas maneiras estão um pouco enferrujadas, ainda mais quando falo com deusas que apagaram a memória do meu namorado, o fizeram desaparecer por meses e depois… — Sério, criança. Vai começar com isso outra vez? — Não era para você estar sofrendo de dupla personalidade? — perguntou Annabeth. — Quer dizer… mais que o normal? — Calma — interveio Jason. Ele tinha muitas razões para odiar Juno, mas havia outros problemas com que se preocupar. — Juno, precisamos de sua ajuda. Nós… Jason tentou sentar, mas se arrependeu imediatamente. Suas entranhas pareciam estar sendo revolvidas por um garfo de espaguete gigante. Piper impediu que ele caísse. — Depois pensamos nisso — disse ela. — Jason está ferido. Cure-o! A deusa franziu as sobrancelhas. Sua forma tremeluziu, vacilante. — Há coisas que nem os deuses podem curar — disse ela. — Essa ferida atinge tanto a alma quanto o corpo. Você tem que lutar contra ela, Jason Grace… Você precisa sobreviver. — É, valeu — disse ele, com a boca seca. — Estou tentando. — O que quer dizer com isso? A ferida atingiu a alma dele? — perguntou Piper. — Por que você não pode… — Meus heróis, temos pouco tempo juntos — disse Juno. — Estou grata por terem me chamado. Passei semanas em estado de dor e confusão… meus aspectos grego e romano lutando um contra o outro. Pior, fui obrigada a me
esconder de Júpiter, que está furioso sem razão e procurando por mim, pois acredita que eu provoquei essa guerra com Gaia. — Nossa — disse Annabeth, irônica. — Por que ele acharia isso? Juno olhou irritada para ela. — Felizmente este local é sagrado para mim. Ao expulsar aqueles fantasmas, vocês o purificaram e me deram um momento de clareza. Poderei conversar com vocês, mesmo que por pouco tempo. — Por que este lugar é sagrado? — Piper arregalou os olhos. — Ah, o leito nupcial! — Leito nupcial? Onde? — perguntou Annabeth. — Não estou vendo nenhum… — A cama de Penélope e Odisseu — explicou Piper. — Um dos pés da cama era o tronco de uma oliveira viva, para que ela nunca pudesse ser movida. — É verdade. — Juno passou a mão pelo tronco da oliveira. — Um leito nupcial imóvel. Que símbolo lindo! Como Penélope, a mais fiel das esposas, resistindo, dispensando cem pretendentes arrogantes por anos porque sabia que o marido ia voltar. Odisseu e Penélope… o epítome do casamento perfeito! Mesmo atordoado, Jason se lembrava muito bem de histórias sobre Odisseu se encantando por outras mulheres durante suas viagens, mas resolveu não tocar no assunto. — A senhora pode pelo menos nos aconselhar? — perguntou ele. — Nos dizer o que fazer? — Deem a volta no Peloponeso — respondeu a deusa. — Como já devem desconfiar, é a única rota possível. Quando estiverem a caminho, procurem a deusa da vitória em Olímpia. Ela está fora de controle. A menos que consigam detê-la, as diferenças entre gregos e romanos jamais serão resolvidas. — Está falando de Nice? — perguntou Annabeth. — Como assim, ela está fora de controle? Um trovão ribombou no céu, fazendo a montanha tremer. — Explicar ia demorar demais — disse Juno. — Preciso ir antes que Júpiter me encontre. Quando eu partir, não vou poder ajudar vocês de novo. Jason segurou uma resposta atravessada: E quando você ajudou a gente? — O que mais precisamos saber? — perguntou ele. — Como souberam, os gigantes se reuniram em Atenas. Alguns deuses vão poder ajudar vocês em sua viagem, mas eu não sou a única olimpiana que não está nas graças de Júpiter. Os gêmeos também são vítimas de sua ira. — Ártemis e Apolo? — perguntou Piper. — Por quê? A imagem de Juno começou a desaparecer. — Se alcançarem a ilha de Delos, eles podem estar ávidos em ajudá-los. Estão desesperados o suficiente para tentar o que for para consertar as coisas.
Agora, vão. Talvez tornemos a nos encontrar em Atenas, se vocês conseguirem chegar lá. Senão… A deusa desapareceu, ou talvez os olhos de Jason tenham simplesmente falhado. A dor o tomava por inteiro. Sua cabeça pendeu para trás. Ele viu uma águia gigante voando em círculos no céu. Então tudo ficou negro, e Jason não viu mais nada.
V
REYNA
MERGULHAR DE CABEÇA EM UM vulcão não estava na lista de tarefas de Reyna para aquele dia. Ela se encontrava a mil e quinhentos metros de altura quando avistou pela primeira vez o sul da Itália. A leste, acompanhando a meia-lua do Golfo de Nápoles, as luzes das cidades adormecidas cintilavam na escuridão que antecedia o amanhecer. A trezentos metros abaixo de Reyna, uma caldeira de quase um quilômetro de diâmetro bocejava no alto de uma montanha, uma coluna de vapor branco subindo de sua boca escancarada. A desorientação levou um momento para se dissipar. As viagens nas sombras sempre a deixavam tonta e enjoada, como se ela tivesse sido retirada das águas geladas de um frigidário e levada direto para a sauna de uma casa de banhos romana. Só então ela se deu conta de que estava suspensa em pleno ar. A gravidade entrou em ação, e ela começou a cair. — Nico! — gritou Reyna. — Pelas flautas de Pã! — exclamou Gleeson Hedge. Nico se sacudia todo a ponto de quase se soltar de Reyna. — Uáááááááá! — fez ele. Mas ela o segurou firme. Reyna pegou o treinador Hedge pelo colarinho da camisa quando o impulso da queda começou a levá-lo para longe. Se eles se separassem naquele momento, estariam mortos. Os três despencavam a toda, direto para o vulcão. Atrás deles vinha a maior bagagem que traziam: a Atena Partenos de doze metros de altura, presa por correias às costas de Nico como um paraquedas nem um pouco eficiente. — Vejam lá embaixo, o Vesúvio! — gritou Reyna, mais alto que o ruído do vento. — Nico, nos transporte daqui! Os olhos dele estavam arregalados e desfocados de pavor. Seu cabelo negro bagunçado estapeava todo o seu rosto como um corvo surgido do nada no céu. — Eu… eu não consigo! Não tenho força! O treinador Hedge gritou: — Saiba de uma coisa, garoto: bodes não voam! Então tire a gente daqui ou vamos virar omelete de Atena Partenos! Reyna tentou pensar. Ela podia aceitar a morte se necessário, mas, se a Atena Partenos fosse destruída, seria o fracasso da missão. Isso ela não podia aceitar.
— Nico, faça a viagem — ordenou ela. — Eu empresto minha força a você. Ele a olhou sem entender. — Como…? — Agora! Ela apertou a mão dele com ainda mais força. O símbolo de Belona tatuado em seu antebraço ficou dolorosamente quente, como se estivesse sendo marcado em sua pele naquele momento. Nico arfou. A cor voltou ao seu rosto. Quando estavam prestes a alcançar a coluna de vapor que se erguia do vulcão, mergulharam nas sombras. O ar ficou gélido. O ruído do vento foi substituído por uma cacofonia de vozes sussurrando em mil línguas. Reyna sentiu como se suas entranhas fossem uma raspadinha doce: xarope de fruta sobre gelo triturado, sua sobremesa preferida quando era criança em Viejo San Juan. Por que aquela lembrança tinha ressurgido justo naquele momento, quando estava à beira da morte? Então sua visão clareou: seus pés estavam firmes no chão. O céu a leste tinha começado a clarear. Por um instante Reyna achou que estivesse de volta a Nova Roma: colunas dóricas circundavam um átrio do tamanho de um campo de beisebol; à frente dela, um fauno de bronze erguia-se no meio de uma fonte d’água rebaixada e decorada com mosaicos. Delicadas murtas e roseiras floresciam em um jardim ali perto. Palmeiras e pinheiros projetavam-se em direção ao céu. Caminhos calçados com pedras levavam dali do pátio em várias direções; vias retas e regulares de boa construção romana, ao longo das quais se viam casas baixas de pedra com pórticos sustentados por colunatas. Reyna se virou. Atrás dela estava a Atena Partenos, intacta e imponente e enorme, como um enfeite de jardim ridiculamente grande. O pequeno fauno de bronze na fonte tinha os dois braços levantados e estava de frente para Atena, de forma que parecia estar recuando de medo dos recém-chegados. O Monte Vesúvio assomava no horizonte, uma forma escura e encurvada como um corcunda, agora a quilômetros de distância. Colunas espessas de vapor subiam do cume. — Estamos em Pompeia — reconheceu Reyna. — Hum, isso não é bom… — disse Nico, para logo em seguida desmaiar. — Epa! — exclamou o treinador Hedge, pegando-o antes que ele caísse no chão. O sátiro então o colocou apoiado nos pés de Atena e soltou as correias que prendiam o menino à estátua. Reyna também sentia as pernas bambas. Já esperava alguma reação adversa. Acontecia sempre que ela transmitia força. Mas ela não imaginava que Nico di
Angelo carregasse uma angústia assim tão brutal. Reyna se sentou pesadamente, mal conseguindo se manter consciente. Pelos deuses de Roma. Se aquilo era apenas uma parte da dor de Nico… como ele conseguia suportar? Ela tentou recuperar o fôlego enquanto o treinador Hedge verificava suas provisões. As pedras rachavam em torno das botas de Nico. A escuridão parecia irradiar dele como uma rajada de tinta, como se o corpo de Nico estivesse tentando expelir todas as sombras através das quais ele tinha viajado. No dia anterior tinha sido pior: um campo inteiro murchando, esqueletos se erguendo da terra. Reyna não fazia a menor questão de que aquilo tornasse a acontecer. — Beba alguma coisa. Ela ofereceu a Nico um cantil de poção de unicórnio: pó de chifre com água santificada do Pequeno Tibre. Haviam descoberto que a mistura funcionava com Nico melhor que néctar, ajudando a limpar a fadiga e a escuridão de seu organismo com menos risco de combustão espontânea. Nico bebeu com avidez. Ainda parecia péssimo. Sua pele tinha uma coloração azulada, suas bochechas estavam encovadas. Preso ao cinto do menino, o cetro de Diocleciano brilhava em um furioso roxo, como um hematoma radioativo. Ele olhou para Reyna intrigado. — Como você fez isso… essa onda de energia? Reyna virou o antebraço. A tatuagem ainda queimava como cera quente: o símbolo de Belona, SPQR, com quatro linhas por seus anos de serviço. — Não gosto de falar sobre isso. Mas é um poder que vem da minha mãe. Posso transmitir parte da minha força, compartilhá-la. O treinador Hedge ergueu os olhos de sua mochila. — Sério? E por que não fez isso comigo, garota romana? Eu quero supermúsculos! Reyna fez uma cara feia. — Não funciona assim, treinador. Só posso fazer isso em casos de vida ou morte, e é mais útil em grupos grandes. Quando estou no comando em uma batalha, posso transmitir qualquer atributo que eu tenha, seja força, coragem ou resistência, multiplicado pelo tamanho das minhas tropas. Nico ergueu uma sobrancelha. — Bem útil para uma pretora romana. Reyna não respondeu. Ela preferia não mencionar seu poder exatamente por essa razão. Não queria que semideuses sob seu comando achassem que ela os estava controlando, ou que ela havia se tornado líder porque tinha algum poder mágico especial. Na verdade, ela só podia transmitir, ou “emprestar”, qualidades que já possuísse e não podia ajudar ninguém que não fosse digno de ser um herói.
O treinador Hedge resmungou: — Que pena. Seria legal ter supermúsculos. E voltou a remexer em sua mochila, que parecia conter uma infinidade de utensílios de cozinha, itens de sobrevivência e equipamentos esportivos diversos. Nico tomou mais um gole da poção de unicórnio. Seus olhos estavam pesados de cansaço, mas Reyna percebia que ele se esforçava para permanecer acordado. — Você quase caiu agora há pouco — observou ele. — Quando usa esse seu poder, você recebe algum… hã… retorno de mim? — Não é como ler mentes — explicou ela. — Ou uma ligação empática. É só… uma onda temporária de exaustão. Emoções primais. Sou inundada pela sua dor. Tomo para mim uma parte do seu fardo. Nico assumiu uma expressão receosa. Ele girou o anel de caveira de prata no dedo, do mesmo modo que Reyna fazia com o próprio anel de prata quando estava pensando. Ter o mesmo hábito que o filho de Hades a deixou desconfortável. Ela havia sofrido mais por Nico durante a breve conexão entre eles do que por toda a sua legião durante a batalha contra o gigante Polibotes. Aquilo a havia exaurido mais do que a última vez em que ela havia usado o poder, para sustentar seu pégaso, Cipião, durante sua viagem através do Atlântico. Ela tentou afastar a lembrança. Seu corajoso amigo alado, morrendo envenenado, com o focinho em seu colo, olhando para ela com confiança enquanto ela erguia a adaga para acabar com seu sofrimento… Pelos deuses, não. Não podia ficar remoendo a situação, ou isso a destruiria. Mas a dor que havia sentido por causa de Nico era mais forte. — Você precisa descansar — disse Reyna a ele. — Depois de dois saltos seguidos, mesmo com uma ajudinha… você tem sorte de estar vivo. Vamos precisar que esteja pronto de novo antes do anoitecer. Ela se sentiu mal por pedir a ele algo impossível. Infelizmente, no entanto, ela tinha muita prática em forçar semideuses além de seus limites. Nico cerrou os dentes e assentiu. — Estamos presos aqui. — Ele observou as ruínas a sua volta. — Pompeia é o último lugar que eu teria escolhido para aterrissar. Este lugar está cheio de lemures. — Lêmures? — O treinador Hedge parecia estar fazendo uma espécie de armadilha com linha de pipa, uma raquete de tênis e uma faca de caça. — Está se referindo àquelas criaturinhas peludas? — Não. — Nico respondeu com um tom aborrecido, como se lhe fizessem aquela pergunta muitas vezes. — Lemures. Fantasmas raivosos. Eles existem em todas as cidades romanas, mas em Pompeia…
— A cidade inteira foi arrasada — lembrou Reyna. — Em 79 EC. O Vesúvio entrou em erupção e cobriu a cidade de cinzas. — Uma tragédia como essa cria muitos espíritos raivosos. O treinador Hedge lançou um olhar desconfiado para o vulcão a distância. — Está soltando fumaça. Isso é um mau sinal? — Humm… não sei. — Nico mexia distraidamente em um furo de sua calça jeans preta, na altura do joelho. — Os deuses da montanha, os ourae, sentem quando há algum filho de Hades por perto. Talvez tenha sido por isso que fomos desviados do curso. O espírito do Vesúvio podia estar intencionalmente tentando nos matar. Mas duvido que a montanha possa nos fazer algum mal dessa distância. Produzir uma erupção completa demoraria demais. A ameaça imediata está à nossa volta. Reyna sentiu a nuca formigar. Ela se acostumara aos Lares, os espíritos amistosos do Acampamento Júpiter, mas até eles a deixavam desconfortável. Não tinham muita noção de espaço pessoal. Às vezes passavam direto através dela, deixando-a com vertigem. Estar em Pompeia dava a Reyna a mesma sensação, como se a cidade inteira fosse um grande fantasma que a tivesse engolido inteira. Ela não podia contar aos amigos quanto temia os fantasmas nem por que tinha medo deles. Todo o motivo que levara Reyna e sua irmã a fugir de San Juan, tantos anos antes… Ela precisava manter esse segredo. — Você consegue impedir que eles nos alcancem? — perguntou ela. Nico virou as palmas das mãos para cima. — Já enviei a mensagem: fiquem longe. Mas é só eu dormir que isso não vai mais adiantar muito. O treinador Hedge deu umas batidinhas com seu equipamento improvisado a partir de uma faca com raquete de tênis. — Não se preocupe, garoto. Vou cercar este lugar com alarmes e armadilhas. E vou estar de vigia com meu taco de beisebol, cuidando de você o tempo todo. Isso não foi suficiente para tranquilizar Nico, mas o menino já estava fechando os olhos. — Está bem. Mas… vá com calma, hein. Não queremos repetir o episódio da Albânia. — Não mesmo — concordou Reyna. A primeira experiência dos três juntos viajando nas sombras, dois dias antes, tinha sido um fiasco completo, possivelmente o episódio mais humilhante na longa carreira de Reyna. Talvez um dia, se sobrevivessem, eles dessem boas risadas ao se lembrar da situação, mas não agora. Os três tinham concordado em nunca falar no assunto. O que tinha acontecido na Albânia era para ficar na Albânia. O treinador Hedge pareceu magoado.
— Está bem, como quiserem. Só descanse, garoto. Estamos lhe dando cobertura. — Tudo bem. Talvez um pouco… — disse Nico e chegou a tirar a jaqueta de aviador e dobrá-la para servir de travesseiro, justo antes de se virar para o lado e já começar a roncar. Como ele parecia em paz, observou Reyna, impressionada. As rugas de preocupação sumiram. Seu rosto se tornou estranhamente angelical… como seu sobrenome, di Angelo. Ela quase podia acreditar que ele era um garoto normal de catorze anos, não um filho de Hades que tinha sido arrancado dos anos quarenta e obrigado a encarar mais tragédias e perigos do que a maioria dos semideuses enfrentaria em toda uma vida. Reyna não confiava em Nico no início, logo que ele chegara ao Acampamento Júpiter. Tinha sentido que a história dele não se resumia a atuar como embaixador do pai, Plutão. Agora, é claro, ela sabia a verdade. Ele era um semideus grego, o único dos últimos tempos (e talvez o único que já existira) a transitar entre os acampamentos grego e romano sem contar a um grupo da existência do outro. Estranhamente, isso só fazia com que Reyna confiasse mais em Nico. Claro, ele não era romano. Nunca havia caçado com Lupa nem passara pelo brutal treinamento na legião. Mas Nico tinha provado seu valor de outras maneiras. Ele havia mantido em segredo a existência dos acampamentos pela melhor das razões: por temer uma guerra. Tinha mergulhado sozinho no Tártaro, voluntariamente, para encontrar as Portas da Morte. Tinha sido capturado e preso por gigantes. Tinha comandado a tripulação do Argo II até a Casa de Hades… e agora tinha aceitado mais uma missão terrível: arriscar a própria vida para levar a Atena Partenos de volta ao Acampamento Meio-Sangue. O ritmo da jornada era de uma lentidão enlouquecedora. Eles só podiam viajar nas sombras algumas centenas de quilômetros por noite e precisavam descansar durante o dia, para que Nico se recuperasse. E mesmo nesse ritmo lento, a viagem exigia uma energia de Nico que Reyna imaginava impossível. Ele carregava tamanha tristeza e solidão, tanto sofrimento, mas mesmo assim a missão era sua prioridade. Ele perseverava. Reyna respeitava isso. Entendia isso. Ela nunca tinha sido do tipo sensível e sentimental, mas agora teve o estranhíssimo impulso de tirar o próprio manto para cobrir Nico. Reprovou-se mentalmente pela ideia. Ele era um companheiro de batalhas, não seu irmão mais novo. Nico não iria gostar do gesto. — Ei! — exclamou o treinador Hedge, interrompendo seus pensamentos. — Você também precisa dormir. Vou assumir o posto de vigia e depois vocês revezam comigo. Enquanto isso, preparo alguma coisa para a gente comer. Aqueles fantasmas não devem ser tão perigosos agora que o sol está nascendo.
Reyna não havia percebido que estava clareando. Nuvens em tons de cor-derosa e turquesa riscavam o horizonte a leste. A sombra do pequeno fauno de bronze se projetava sobre a fonte seca. — Já li sobre este palácio — lembrou-se Reyna. — É uma das villas mais bem-preservadas de Pompeia. É chamada de A Casa do Fauno. Gleeson lançou um olhar de repulsa para a estátua. — Bem, hoje vai ser a Casa do Sátiro. Reyna se permitiu um sorriso. Estava começando a apreciar as diferenças entre sátiros e faunos. Se ela dormisse enquanto um fauno ficasse de vigia, acordaria com toda a sua comida roubada, um bigode desenhado na cara e o fauno já muito longe. O treinador Hedge era diferente; em quase tudo, diferente para o bem, apesar de sua obsessão doentia por artes marciais e tacos de beisebol. — Muito bem — concordou ela. — Você é o primeiro a ficar de vigia. Vou botar Aurum e Argentum de guarda com você. Hedge fez menção de protestar, mas Reyna logo deu um assovio curto e alto. Seus cães metálicos se materializaram no meio das ruínas e foram correndo até ela, de diferentes direções. Mesmo depois de tantos anos, Reyna ainda não sabia de onde eles vinham nem para onde iam quando ela os dispensava, mas era reanimador vê-los. Hedge pigarreou. — Tem certeza de que não são dálmatas? Eles parecem dálmatas. — São apenas galgos, treinador. — Reyna não fazia ideia do porquê de Hedge ter medo de dálmatas, mas estava cansada demais para perguntar. — Aurum e Argentum, fiquem de guarda enquanto eu durmo. Obedeçam a Gleeson Hedge. Os cães deram a volta no pátio, mantendo distância da Atena Partenos, que irradiava hostilidade por tudo que era romano. A própria Reyna só agora estava se acostumando à presença da estátua, que, ela tinha quase certeza, não devia ter gostado nem um pouco de ter sido levada para uma antiga cidade romana. Ela deitou e se cobriu com o manto roxo. Levou a mão à bolsa presa no cinto, na qual guardava a moeda de prata que Annabeth lhe dera antes de se separarem em Épiro. É um sinal de que as coisas podem mudar, tinha dito Annabeth. A Marca de Atena agora é sua. Talvez a moeda lhe traga sorte. Reyna não tinha tanta certeza. Ela deu uma última olhada no fauno de bronze se encolhendo diante do amanhecer e na Atena Partenos. Então fechou os olhos e deixou-se mergulhar nos sonhos.
VI
REYNA
REYNA QUASE SEMPRE CONSEGUIA CONTROLAR seus pesadelos. Tinha treinado a mente para começar todos os sonhos em seu lugar preferido: o Jardim de Baco, localizado na colina mais alta de Nova Roma. Lá, Reyna sentia-se em segurança e tranquila. Quando visões invadiam seu sono, como sempre acontecia com semideuses, ela as continha imaginando serem apenas reflexos na fonte do jardim. Assim conseguia dormir em paz e evitava despertar suando frio. Naquela noite, entretanto, não teve a mesma sorte. O sonho começou muito bem. Ela estava no jardim, em uma tarde quente, sob o caramanchão coberto de madressilvas em flor. Na fonte central, a pequena estátua de Baco cuspia água na bacia. À sua frente ela via as cúpulas douradas e os telhados vermelhos de Nova Roma; menos de um quilômetro a oeste, as fortificações do Acampamento Júpiter. Mais além, o Pequeno Tibre fazia uma curva suave em torno do vale, traçando os limites de uma enevoada e dourada Berkeley Hills sob a luz do verão. Reyna segurava uma xícara de chocolate quente, sua bebida preferida. Soltou um suspiro de satisfação. Valia a pena defender aquele lugar, por ela, por seus amigos, por todos os semideuses. Os quatro anos no Acampamento Júpiter não tinham sido fáceis, mas foram a melhor época em sua vida. De repente, o horizonte escurecia. Reyna pensava que talvez fosse uma tempestade, mas logo percebia que uma enorme onda de terra preta varria as colinas, virando do avesso a pele da terra, sem deixar nada para trás. Reyna via, horrorizada, a enxurrada de terra alcançar o topo do vale. A barreira mágica que o deus Término mantinha em torno do acampamento apenas reduzia por um instante a destruição. Uma luz roxa jorrava para o alto como vidro estilhaçado, e então a onda de terra prosseguia, destroçando árvores, destruindo estradas, varrendo do mapa o Pequeno Tibre. É uma visão, pensava Reyna. Eu posso controlar isso. Ela tentava mudar o sonho. Imaginava que a destruição fosse apenas um reflexo na fonte, uma imagem de vídeo inofensiva, mas o pesadelo continuava, de maneira completamente real. A terra engolia o Campo de Marte. Destruía todo traço de fortes e trincheiras dos jogos de guerra. O aqueduto da cidade desmoronava como peças de dominó. O próprio Acampamento Júpiter caía: torres de vigia desabavam, muros e
barreiras se desintegravam. Os gritos dos semideuses eram silenciados, e a terra seguia em frente. Então um soluço se formava na garganta de Reyna. Os reluzentes santuários e monumentos da Colina dos Templos desmoronavam. O coliseu e o hipódromo eram completamente arrasados. A onda de terra alcançava a Linha Pomeriana e atravessava brutalmente a cidade. Famílias corriam pelo fórum. Crianças gritavam de pavor. O Senado implodia. Villas e jardins desapareciam como plantações sendo ceifadas por uma máquina. A onda crescia e subia a colina na direção do Jardim de Baco, o último remanescente do mundo de Reyna. Você os deixou indefesos, Reyna Ramírez-Arellano, dizia uma voz de mulher, vinda do terreno negro. Seu acampamento será destruído. Sua missão é uma busca infrutífera. Meu caçador está atrás de você. Reyna se soltava da murada do jardim. Corria até a fonte, agarrava a beirada e ficava olhando fixamente para a água, em desespero. Ali, ela desejava que o pesadelo se transformasse em um reflexo inofensivo. TUM. Então a bacia da fonte se quebrava ao meio, fendida por uma flecha do tamanho de um ancinho. Reyna olhava chocada para as penas de corvo na extremidade do cabo pintado de vermelho, amarelo e preto, como uma cobracoral. A ponta de ferro estígio estava cravada em suas entranhas. Ela erguia os olhos em meio a uma névoa de dor. Vindo da outra extremidade do jardim, uma figura sombria se aproximava, a silhueta de um homem cujos olhos brilhavam como faróis em miniatura, cegando Reyna. Ela ouvia o som de ferro contra couro quando ele pegava mais uma flecha da aljava. Então seu sonho mudava. O jardim e o caçador desapareciam, assim como a flecha na barriga de Reyna. Ela se via em um vinhedo abandonado. Diante dela estendiam-se hectares e mais hectares de parreiras mortas, pendendo, em fileiras, de treliças de madeira, como minúsculos esqueletos retorcidos. Na extremidade mais distante dos campos havia uma casa de fazenda, com um pátio no centro circundado por colunas. Mais além, a terra mergulhava no mar. Reyna reconhecia o lugar: a Adega Goldsmith, na margem norte de Long Island. Seus grupos de batedores o haviam assegurado como base avançada para o ataque da legião ao Acampamento Meio-Sangue. Ela havia ordenado que a maior parte da legião ficasse em Manhattan até segunda ordem, mas, obviamente, Octavian lhe havia desobedecido. Toda a Décima Segunda Legião estava acampada no campo mais ao norte. Eles haviam escavado com sua precisão militar habitual: fossos de três metros de profundidade, paredes de terra com pontas de madeira em torno do perímetro e
uma torre de vigia em cada canto armada com uma balista. No interior, as tendas estavam dispostas em bem-organizadas fileiras brancas e vermelhas. Os estandartes de todas as cinco coortes tremulavam ao vento. Reyna deveria ter se animado ao ver a legião. Embora fosse uma força pequena, mal chegando a duzentos semideuses, eram todos bem-treinados e bem-organizados. Se Júlio César voltasse dos mortos, não teria dificuldades para reconhecer as tropas de Reyna como soldados valorosos de Roma. Mas eles não tinham o que fazer ali tão perto do Acampamento Meio-Sangue. A insubordinação de Octavian fazia Reyna cerrar os punhos de raiva. Ele provocava os gregos intencionalmente, querendo dar início a uma batalha. No sonho, sua visão dava um zoom até o pórtico da casa da fazenda, onde Octavian estava sentado em uma cadeira dourada que, suspeitosamente, parecia um trono. Além de sua habitual toga de senador com ornamentos roxos, da medalha de centurião e da adaga de áugure, ele havia adotado para si uma nova honraria: um manto com capuz branco sobre a cabeça, que o identificava como pontifex maximus, sumo sacerdote dos deuses. Reyna tinha vontade de estrangulá-lo. Nenhum semideus de que se tinha lembrança havia assumido o título de pontifex maximus. Ao fazer isso, Octavian se elevava quase ao nível de imperador. À direita dele, viam-se relatórios e mapas espalhados sobre uma mesa baixa. À esquerda, um altar de mármore estava carregado de frutas e oferendas de ouro, sem dúvida para os deuses, mas para Reyna parecia um altar para o próprio Octavian. Ao lado de Octavian estava o portador da águia da legião, Jacob, parado em posição de sentido, suando em sua capa de pele de leão e segurando o mastro com o estandarte da águia dourada da Décima Segunda Legião. Octavian estava no centro de uma plateia. No pé da escada estava ajoelhado um garoto de calça jeans com um moletom de capuz amarfanhado. Mais para o lado de Octavian estava Mike Kahale, um dos centuriões da Primeira Coorte, parado de braços cruzados com uma expressão de evidente descontentamento. — Muito bem — dizia Octavian, dando uma olhada em um pergaminho. — Vejo aqui que você é um legado, descendente de Orco. O garoto de moletom levantava a cabeça, e Reyna arfava de susto. Bryce Lawrence. Ela reconhecia sua cabeleira castanha, o nariz quebrado, os olhos cruéis e o sorriso presunçoso e mau. — Sim, meu senhor — confirmava Bryce. — Ora, eu não sou um senhor. — Octavian apertava os olhos. — Apenas um centurião, um áugure e um humilde sacerdote servindo aos deuses o melhor que pode. Sei que você foi dispensado da legião por… bem, questões disciplinares. Reyna tentava gritar, mas não conseguia emitir nenhum som. Octavian sabia muito bem por que Bryce tinha sido expulso. Tal qual seu antepassado divino,
Orco, o deus das punições do Mundo Inferior, Bryce não tinha remorso algum. O pequeno psicopata tinha sobrevivido a suas provas com Lupa muito bem, mas, assim que chegara ao Acampamento Júpiter, tornara-se evidente que era impossível treiná-lo. Ele tinha tentado atear fogo a um gato por pura diversão. Esfaqueara um cavalo e o mandara a galope pelo meio do fórum. Desconfiavase até de que tinha sabotado um equipamento de cerco e matado seu próprio centurião durante os jogos de guerra. Se Reyna tivesse conseguido provar isso, a punição de Bryce teria sido a morte. Mas, como as provas eram circunstanciais, e como a família de Bryce era rica e poderosa, com muita influência em Nova Roma, ele havia escapado com uma sentença mais leve: exílio. — Sim, pontifex — dizia Bryce, devagar. — Mas, se me permite, aquelas acusações nunca foram provadas. Sou um romano leal. Mike Kahale parecia estar fazendo um grande esforço para não vomitar. Octavian sorria. — Acredito em segundas chances. Você atendeu a meu chamado por recrutas. Tem as credenciais e cartas de recomendação certas. Jura se submeter a minhas ordens e servir à legião? — Plenamente — respondia Bryce. — Então você está reintegrado, in probatio — dizia Octavian. — Até que possa se provar em combate. Ele então fazia um gesto para Mike, que enfiava a mão em sua bolsa e pegava lá de dentro um cordão de ouro com uma placa de identificação de probatio. Então colocava o cordão no pescoço de Bryce. — Apresente-se à Quinta Coorte — dizia Octavian. — Eles podem precisar de um pouco de sangue novo, alguma perspectiva nova. Se Dakota, seu centurião, tiver algum problema com isso, diga a ele para vir falar comigo. Bryce sorria como se tivesse acabado de ganhar uma faca afiada. — É um grande prazer. — E, Bryce… — O rosto de Octavian parecia quase fantasmagórico sob seu capuz branco: olhos penetrantes demais, faces magras demais, os lábios muito finos e sem cor. — Por mais que a família Lawrence tenha dinheiro, poder e prestígio entre a legião, lembre-se de que minha família tem mais. Sou seu patrono pessoal, como sou patrono de todos os outros recrutas novos. Siga as minhas ordens, e você subirá rápido. Logo posso ter um trabalhinho para você, uma oportunidade para provar seu valor. Mas se me trair não serei tão leniente quanto Reyna. Entendeu? O sorriso de Bryce desaparecia. Ele parecia querer dizer algo, mas então mudava de ideia. Apenas assentia. — Ótimo — completava Octavian.— Ah, e corte esse cabelo. Mais parece um maldito graecus. Está dispensado.
Depois que Bryce saía, Mike Kahale reclamava: — Agora, com ele, já são duas dúzias. — Isso é ótimo, meu amigo — garantia Octavian. — Nós precisamos da força extra desses homens. — Assassinos. Ladrões. Traidores. — Semideuses leais — retrucava Octavian. — Que devem sua posição a mim. Mike franzia a testa, contrariado. Tinha bíceps tão grossos quanto canos de bazuca, traços largos, pele cor de amêndoa torrada, cabelo de ônix e imponentes olhos escuros, como os antigos reis havaianos. Reyna não sabia como um jogador de futebol americano de Hilo podia ser filho de Vênus, mas ninguém na legião lhe criava problema por causa disso, não depois que o tinham visto esmagar rochas apenas com as mãos. Reyna sempre gostara de Mike Kahale. Infelizmente, porém, Mike era muito leal a seu patrono. E seu patrono era Octavian. O pontifex se levantou e se espreguiçou. — Não se preocupe, meu velho amigo. Nossas tropas já cercaram o acampamento grego. Nossas águias têm superioridade total no ar. Os gregos não vão a lugar algum até que estejamos prontos para atacar. Em onze dias, todas as minhas forças estarão em posição. Minhas surpresinhas estarão prontas. Em primeiro de agosto, na Festa de Spes, o acampamento grego vai cair. — Mas Reyna disse que… — Já discutimos isso. — Ao dizer isso, Octavian puxava a adaga de ferro do cinto e a arremessava na mesa, onde a lâmina empalava um mapa do Acampamento Meio-Sangue. — Reyna abriu mão de sua posição. Foi para as terras antigas, o que é contra a lei. — Mas a Mãe Terra… — Anda agitada por causa da guerra entre os acampamentos grego e romano, certo? Os deuses estão incapacitados, certo? E como resolvemos esse problema, Mike? Eliminamos a divisão. Acabamos com os gregos. Fazemos os deuses retomarem seu devido aspecto, como romanos. Assim que todo o poder dos deuses for restaurado, Gaia não vai ousar se erguer. Vai cair novamente no sono. Nós, semideuses, ficaremos fortes e unidos, como nos velhos tempos do império. Além disso, o primeiro dia de agosto é muito auspicioso, o mês em homenagem a meu ancestral Augusto. E você sabia que ele uniu os romanos? — Ele tomou o poder e se tornou imperador — resmungava Mike em resposta. — Bobagem — dizia Octavian, desdenhando o comentário com um aceno. — Ele salvou Roma ao se tornar o Primeiro Cidadão. Augusto queria paz e prosperidade, não poder! Acredite em mim, Mike. Pretendo seguir o exemplo
dele. Vou salvar Nova Roma, e, quando fizer isso, vou me lembrar de meus amigos. Mike transferia seu peso considerável de uma perna para outra. — Você parece ter tanta certeza. O seu dom de profetizar… Octavian erguia a mão em alerta e olhava para Jacob, o portador da águia, que continuava ali parado em posição de sentido atrás dele. — Jacob, está dispensado. Por que não vai polir a águia ou alguma coisa assim? Ao ouvir isso, Jacob deixava os ombros caírem em alívio. — Sim, áugure. Quer dizer, centurião! Quer dizer, pontifex! Quer dizer… — Vá. — Já estou indo. Assim que Jacob saiu, o rosto de Octavian se fechou. — Mike, já lhe avisei para não falar do meu… hã… problema. Mas respondendo a sua pergunta: não. Parece que o dom habitual que recebo de Apolo continua sofrendo alguma interferência. — Ele olhou com ressentimento para uma pilha de bichos de pelúcia mutilados e amontoados no canto do pórtico. — Não consigo ver o futuro. Talvez aquele oráculo falso do Acampamento MeioSangue esteja fazendo alguma espécie de feitiçaria. Mas, como eu já lhe expliquei antes, em segredo absoluto, Apolo falou comigo claramente no ano passado, no Acampamento Júpiter! Abençoou minhas iniciativas. Prometeu que eu seria lembrado como o salvador dos romanos. Octavian estendia os braços, revelando a tatuagem de harpa, símbolo de seu antepassado divino. Sete riscos representavam seus anos de serviço, mais que qualquer outro oficial, mais até mesmo que Reyna. — Nunca tema, Mike. Vamos esmagar os gregos. Vamos deter Gaia e seus servos. Depois vamos pegar aquela harpia que os gregos estão criando, a que memorizou nossos livros sibilinos, e vamos forçá-la a nos dar a sabedoria de nossos ancestrais. Quando isso acontecer, tenho certeza de que Apolo vai restaurar meu dom de profetizar. O Acampamento Júpiter será mais forte que nunca. Vamos governar o futuro. A expressão de preocupação de Mike não diminuía, mas ele erguia o punho em saudação. — Você é o chefe. — Sim, sou. — Octavian arrancava a adaga da mesa. — Agora vá dar uma olhada naqueles dois anões que você capturou. Quero eles devidamente aterrorizados quando eu for interrogá-los outra vez e mandá-los para o Tártaro. Nesse ponto, o sonho se desfez. — Ei, acorde. — Os olhos de Reyna se abriram lentamente. Gleeson Hedge estava debruçado sobre ela, sacudindo seu ombro. — Temos problemas. O tom grave da voz dele fez o sangue de Reyna se agitar.
— O que houve? — Ela ergueu o corpo com dificuldade, colocando-se sentada. — Fantasmas? Monstros? Hedge fechou a cara. — Pior: turistas.
VII
REYNA
AS HORDAS TINHAM CHEGADO. Em grupos de vinte ou trinta, turistas andavam por toda parte nas ruínas, perambulando pelas villas, caminhando pelas ruas de calçamento de pedra, contemplando com fascínio os afrescos e mosaicos cheios de cores. Reyna tinha ficado tensa, imaginando como os turistas reagiriam a uma estátua de doze metros de altura no meio do pátio, mas a Névoa devia estar fazendo hora extra para obscurecer a visão dos mortais. Toda vez que um grupo se aproximava, os turistas paravam na entrada do pátio e olhavam desapontados na direção da estátua. Um guia de turismo britânico anunciou: — Ah, andaimes. Parece que esta área está em restauração. Que pena. Vamos em frente. E lá se foram eles. Pelo menos a estátua não rugia “MORRAM, INFIÉIS!” nem transformava mortais em pó. Reyna uma vez tivera que lidar com uma estátua de Diana que fazia esse tipo de coisa. Não tinha sido um dia muito relaxante. Ela se lembrou do que Annabeth tinha lhe dito sobre a Atena Partenos: sua aura mágica tanto atraía monstros quanto os mantinha afastados. Reyna agora comprovava isso por si mesma, pois vez ou outra avistava, pelo canto do olho, reluzentes espíritos brancos em trajes romanos flutuando em meio às ruínas, fechando a cara para a estátua, consternados. — Isto aqui está cheio de lemures — murmurou Gleeson. — Agora estão mantendo distância, mas, quando cair a noite, é melhor estarmos prontos para dar o fora. Fantasmas são sempre piores à noite. Reyna não precisava que a lembrassem disso. Um casal de idade, ambos vestindo camisa em tom pastel e bermudas, passeava lentamente por um jardim próximo. Ela ficou aliviada por eles não se aproximarem mais que isso. O treinador Hedge tinha armado, em torno do acampamento, todo tipo de armadilhas com arames e cordas e ratoeiras gigantes. Artefatos incapazes de deter monstros com o mínimo de respeito próprio, mas que podiam muito bem derrubar um idoso. Apesar do clima quente aquela manhã, Reyna tremia, por conta dos sonhos que tivera. Ela não saberia dizer o que era mais assustador: a destruição iminente de Nova Roma ou o fato de Octavian estar envenenando a legião por dentro. Sua missão é uma busca infrutífera.
O Acampamento Júpiter precisava dela. A Décima Segunda Legião precisava dela. E no entanto ali estava Reyna, do outro lado do mundo, vendo um sátiro espetar waffles congelados em um galho para assá-los em uma fogueira. Ela queria falar sobre os pesadelos que tivera aquela noite, mas achou melhor esperar que Nico acordasse. Não sabia se teria coragem de descrevê-los duas vezes. Nico continuava aos roncos. Reyna tinha descoberto que, depois que ele pegava no sono, era muito difícil acordá-lo. O treinador podia sapatear com seus cascos de bode em torno da cabeça de Nico que ele nem se mexia. — Tome. Hedge estava oferecendo a ela um prato de waffles assados na fogueira, com rodelas de kiwis e abacaxis frescos. Tudo parecia surpreendentemente bom. — Onde você consegue tudo isso? — perguntou Reyna, maravilhada. — Ha! Eu sou um sátiro. E sátiros são ótimos em se preparar para viagens. — Ele deu uma mordida em um waffle. — Também sabemos explorar os frutos da terra como ninguém! Enquanto Reyna comia, o treinador Hedge pegou um bloco de papel e começou a escrever. Quando terminou, dobrou o papel e fez um aviãozinho que lançou no ar. Uma brisa o levou embora. — Uma carta para sua esposa? — perguntou Reyna. Ela notou que, por baixo da viseira do boné de beisebol, os olhos de Hedge estavam vermelhos. — Mellie é uma ninfa das nuvens. Espíritos do ar costumam mandar coisas por aviõezinhos de papel o tempo todo. Com sorte, seus primos vão fazer a carta atravessar o oceano e chegar até ela. Não é tão rápido quanto uma mensagem de Íris, mas, bem, quero que nosso filho tenha alguma lembrança minha, caso eu… vocês sabem… — Vamos levá-lo para casa — prometeu Reyna. — Você vai ver seu garoto. Hedge cerrou os dentes e não disse nada. Reyna era muito boa em fazer as pessoas falarem. Considerava essencial conhecer seus companheiros de armas. Mas tivera muita dificuldade em convencer Hedge a se abrir sobre sua esposa, Mellie, que estava prestes a dar à luz no Acampamento Meio-Sangue. Reyna não conseguia imaginar o treinador como pai, mas entendia como era crescer sem pais. E não ia deixar que isso acontecesse com o filho de Hedge. — É, bem… — O sátiro deu mais uma mordida no waffle, mastigando junto um pedaço do galho em que o tinha espetado. — Eu só queria que fosse possível avançarmos mais rápido. — Ele apontou para Nico com o queixo. — Esse menino não tem condições de fazer nem mais um salto. E quantos mais serão necessários para voltarmos?
Reyna tinha a mesma preocupação. Os gigantes planejavam despertar Gaia dali a apenas onze dias. Octavian planejava atacar o Acampamento MeioSangue no mesmo dia. Isso não podia ser coincidência. Talvez Gaia estivesse sussurrando no ouvido de Octavian, influenciando inconscientemente suas decisões. Ou pior: Octavian podia estar ativamente aliado à deusa da terra. Mesmo sendo Octavian, Reyna não queria acreditar que ele trairia a legião de propósito, mas, depois do que tinha visto nos sonhos, já não sabia mais o que pensar. Ela terminou de comer enquanto um grupo de turistas chineses passava tranquilamente pelo pátio. Estava acordada fazia menos de uma hora e já não conseguia mais aguentar a ansiedade para continuar logo a jornada. — Obrigada pelo café da manhã, treinador. — Reyna se levantou e se espreguiçou. — Agora, se me der licença… Onde há turistas, há banheiros. Preciso usar a casinha dos pretores. — Vá lá. — O treinador balançou o apito que carregava pendurado no pescoço. — Se alguma coisa acontecer, eu apito. Reyna deixou Aurum e Argentum de vigia e foi andando pelo meio da multidão de mortais até encontrar um centro de visitantes com banheiros. Limpou o corpo o melhor que pôde, mas achou irônico estar em uma verdadeira cidade romana e não poder desfrutar um bom banho romano quente. Teve que se contentar com toalhas de papel, uma saboneteira quebrada e um secador de mãos elétrico asmático. Quanto aos vasos sanitários… melhor nem comentar. Quando estava voltando, passou por um pequeno museu com expositores de vidro, atrás do qual se via uma fileira de figuras de gesso, todas congeladas em seus espasmos de morte. Havia uma menininha encolhida em posição fetal; uma mulher retorcida em agonia, a boca aberta em um grito, os braços jogados para o alto; um homem ajoelhado e de cabeça baixa, como se rendido ao inevitável. Reyna ficou olhando com uma mistura de horror e repulsa. Já havia lido sobre essas figuras, mas nunca as tinha visto pessoalmente. Com a erupção do Vesúvio, uma massa de cinza vulcânica havia soterrado a cidade, e essa massa, ao endurecer, transformara-se em um casulo de rocha sobre os cadáveres dos habitantes de Pompeia. À medida que os corpos se desintegravam ali, eram produzidas bolsas de ar em formato humano. Os primeiros arqueólogos que exploraram a área após a tragédia derramaram gesso nos buracos e assim fizeram aqueles moldes, réplicas bizarras de romanos ancestrais. Reyna achava perturbador, errado, que o momento da morte daquelas pessoas estivesse em exibição como roupas em uma vitrine, mas não conseguia desviar o olhar. Por toda a sua vida ela sonhara em ir à Itália. E achava que isso nunca ia acontecer. As terras antigas eram proibidas para semideuses modernos, pois a área era simplesmente perigosa demais. Mesmo assim, ela queria seguir as
pegadas de Enéas, filho de Afrodite, o primeiro semideus a se estabelecer ali após a Guerra de Troia. Queria ver o Rio Tibre original, onde Lupa, a deusa-loba, salvara Rômulo e Remo. Mas Pompeia? Nunca havia tido vontade de conhecer. O cenário da maior tragédia de Roma, uma cidade inteira engolida pela terra… Depois dos seus últimos pesadelos, aquilo era parecido demais com o que estava acontecendo agora em seu mundo. Até o momento, Reyna tinha visto apenas um lugar das terras antigas que figurava em sua lista de desejos: o palácio de Diocleciano, em Split, e mesmo essa visita tinha sido bem diferente do que havia imaginado. Antes, ela sonhava em ir lá com Jason, para admirarem a casa do imperador preferido deles. Imaginava passeios românticos pela cidade, piqueniques ao pôr do sol no parapeito das tão antigas construções. Só que Reyna chegara à Croácia não com ele, mas com doze espíritos do vento em seu rastro. Tivera que abrir caminho pelo palácio lutando contra fantasmas. Quando estava saindo, grifos atacaram seu pégaso, causando-lhe a morte. O mais perto que ela chegara de Jason tinha sido um bilhete, escrito por ele, que ela encontrara embaixo de um busto de Diocleciano. Ela só teria lembranças dolorosas daquele lugar. Afaste essa amargura, repreendeu a si mesma. Enéas também sofreu. Assim como Rômulo, Diocleciano e todos os outros. Romanos não são de ficarem se lamentando. Ali, contemplando as figuras de gesso na vitrine do museu, ela se perguntou o que teria passado pela mente daquelas pessoas quando se encolheram para morrer sob as cinzas. Duvidava muito que tivesse sido algo como: Ora, somos romanos! Não devemos reclamar! Uma lufada de vento soprou pelas ruínas emitindo um gemido vazio. A luz do sol se refletiu no vidro, cegando-a momentaneamente. Reyna levou um susto e olhou para o alto. O sol estava diretamente acima dela. Como podia já ser meio-dia? Ela havia deixado a Casa do Fauno logo após o café da manhã. Estava ali parada fazia apenas alguns minutos… ou não? Forçando-se a afastar-se da vitrine do museu, Reyna saiu correndo, tentando se livrar da sensação de que os mortos de Pompeia sussurravam às suas costas.
* * *
O restante da tarde decorreu em uma tranquilidade enervante. Reyna ficou de vigia enquanto o treinador Hedge dormia, mas não havia muito do que se proteger. Turistas passeavam de um lado para outro. Também harpias e espíritos do vento passavam de vez em quando, voando; sempre que
isso acontecia, os cães de Reyna começavam a rosnar em alerta, mas os monstros não paravam para lutar. Fantasmas ficavam à espreita em torno dos limites do pátio, aparentemente intimidados pela Atena Partenos. Compreensível. Quanto mais a estátua ficava em Pompeia, mais raiva parecia irradiar. Reyna ficava arrepiada, com os nervos à flor da pele. Finalmente, logo depois que o sol se pôs, Nico acordou. Devorou um sanduíche de queijo com abacate, a primeira vez que demonstrou um apetite decente desde a Casa de Hades. Reyna odiava ter que arruinar o jantar dele, mas não tinham muito tempo. À medida que a luz do dia se esvaía, os fantasmas começavam a se aproximar e a crescer em número. Ela contou a Nico sobre os sonhos que tivera aquela noite: a terra engolindo o Acampamento Júpiter, Octavian cercando o Acampamento Meio-Sangue, o caçador de olhos brilhantes que lhe acertara uma flecha na barriga. Nico ficou encarando o prato vazio. — Esse caçador… seria um gigante, talvez? O treinador Hedge resmungou: — Prefiro não descobrir. É melhor irmos embora. A boca de Nico se retorceu em zombaria. — Logo você, sugerindo que a gente fuja de uma luta? — Escute, docinho, gosto de uma boa pancadaria como todo mundo, mas já temos muitos monstros com que nos preocupar, não precisamos de um caçador de recompensas nos seguindo por aí. Não gosto do som dessas flechas grandes. — Pela primeira vez — disse Reyna — eu concordo com Hedge. Nico desdobrou sua jaqueta e enfiou o dedo em um furo de flecha na manga. — Posso pedir alguns conselhos. — Nico parecia relutante. — Talvez Thalia Grace… — A irmã de Jason — disse Reyna. Ela não a conhecia. Na verdade, nem sabia que Jason tinha uma irmã até bem pouco tempo. Segundo Jason, Thalia era uma semideusa grega, filha de Zeus. Liderava um grupo de seguidoras de Diana… quer dizer, de Ártemis. Só a ideia disso tudo fazia a cabeça de Reyna girar. Nico assentiu. — As Caçadoras de Ártemis são… bem, caçadoras. Se alguém sabe alguma coisa sobre esse tal caçador gigante, esse alguém é Thalia. Eu podia tentar enviar uma mensagem de Íris para ela. — Você não parece muito empolgado com a ideia — comentou Reyna. — Vocês estão… brigados? — Está tudo bem entre a gente.
A alguns metros deles, Aurum rosnou baixinho, o que significava que Nico estava mentindo. Reyna achou melhor não pressioná-lo. — E eu podia tentar entrar em contato com minha irmã, Hylla — disse ela. — O Acampamento Júpiter não conta com boas defesas. Se Gaia atacar lá, talvez as amazonas possam ajudar. O treinador Hedge fez cara feia para a ideia. — Sem querer ofender, mas… hã… o que um exército de amazonas poderia fazer contra uma onda de terra? Reyna sufocou o pavor que crescia dentro de si. Temia que Hedge tivesse razão. Contra o que ela havia visto em seus sonhos, a única defesa seria evitar que os gigantes despertassem Gaia. Para isso, ela tinha que confiar na tripulação do Argo II. A luz do dia se esgotara quase por completo. Em torno do pátio, os fantasmas começaram a se agrupar, centenas de romanos reluzentes carregando pedras ou clavas espectrais. — Podemos conversar melhor depois de completarmos o salto — decidiu Reyna. — No momento, precisamos é dar o fora daqui. — Com certeza. — Nico se levantou. — Acho que desta vez podemos chegar à Espanha se dermos sorte. Só preciso… A multidão de fantasmas desapareceu, como uma grande quantidade de velinhas de bolo apagadas com um único sopro. Reyna levou a mão à sua adaga. — Para onde eles foram? Os olhos de Nico percorreram rapidamente as ruínas. Sua expressão não era tranquilizadora. — Eu não… não sei, mas duvido que seja um bom sinal. Fiquem alertas. Vou prender as correias. Um segundo. Gleeson Hedge ficou na ponta dos cascos. — Você não tem um segundo. Reyna sentiu o estômago se encolher em um nó pequenininho. Hedge tinha falado em uma voz de mulher, a mesma que Reyna ouvira em seu pesadelo. Ela sacou a adaga. Hedge se virou para ela, o rosto sem expressão. Seus olhos estavam completamente negros. — Alegre-se, Reyna Ramírez-Arellano. Você morrerá como uma romana. Logo estará entre os fantasmas de Pompeia. O chão tremeu. Por toda a volta, espirais de cinzas foram lançadas no ar, para então se solidificarem em figuras humanas grosseiras, carapaças de terra como
as do museu. As figuras encaravam Reyna com olhos que eram buracos rasgados em rostos de rocha. — A terra a engolirá — prosseguiu Hedge na voz de Gaia. — Assim como engoliu a eles.
VIII
REYNA
— ELES SÃO MUITOS. Reyna se perguntou com amargura quantas vezes tinha dito isso em sua carreira de semideusa. Seria mais fácil fazer um button com essa frase e usá-lo por aí. Quando morresse, estas palavras provavelmente estariam gravadas em sua lápide: Eles eram muitos. Ela estava cercada por seus cães, que rosnavam para os fantasmas de terra solidificada. Reyna contou pelo menos vinte, e vinham de todas as direções. O treinador Hedge continuava falando com voz de mulher: — Os mortos estão sempre em maior número que os vivos. Esses espíritos esperaram por séculos, incapazes de expressar sua raiva. Agora eu lhes dei corpos de terra. Os fantasmas avançavam lentamente, mas seus passos eram tão pesados que rachavam o calçamento antigo. — Nico? — chamou Reyna. — Não consigo controlá-los — disse ele, desemaranhando freneticamente as correias. — Há alguma coisa nessas carapaças de terra. Preciso me concentrar por alguns segundos para fazer o salto nas sombras. Se não, posso acabar nos transportando para outro vulcão. Reyna xingou baixinho. Sozinha, não tinha como dar conta de tantos e deixar Nico livre para preparar a fuga, ainda mais com Hedge sem poder ajudar. — Use o cetro — disse ela. — Invoque uns zumbis. — Não vai adiantar — avisou a voz que falava através do treinador Hedge. — Saia do caminho, pretora. Deixe que os fantasmas de Pompeia destruam essa estátua grega. Um verdadeiro romano saberia que é melhor não resistir. Os fantasmas de terra avançavam lentamente. Pelo buraco que tinham no lugar da boca, emitiam silvos graves, como alguém soprando no gargalo de garrafas de vidro vazias. Um deles pisou na armadilha que Hedge improvisara com a raquete, deixando-a em pedacinhos. Nico puxou o cetro de Diocleciano do cinto. — Reyna, se eu invocar mais romanos mortos, quem garante que eles não vão se juntar a esse grupo aí? — Eu. Sou uma pretora. Só preciso que me arranje uns legionários; deixe que eu os controlo. — Você há de perecer — disse o treinador. — Nunca conseguirá…
Reyna acertou a cabeça de Hedge com o cabo da adaga. O sátiro desabou no chão. — Desculpe, treinador — murmurou ela. — Isso estava ficando chato. Nico: zumbis! Depois se concentre em nos tirar daqui. Nico ergueu o cetro, e o chão começou a tremer. Naquele momento, os fantasmas de terra resolveram atacar. Aurum saltou no mais próximo e, com suas presas de metal, arrancou-lhe a cabeça. O casulo de terra caiu para trás e se despedaçou. Argentum não teve a mesma sorte. Ao saltar sobre um outro fantasma, foi atingido na cabeça por um golpe do pesado braço de terra da criatura e foi lançado pelos ares. Com dificuldade, tentou ficar de pé. Sua cabeça estava virada quarenta e cinco graus para a direita e faltava um de seus olhos de rubi. Reyna sentiu a raiva pulsar no peito como uma estaca quente. Já havia perdido seu pégaso. Ela não perderia seus cães também. Cravou a adaga no peito do fantasma, depois sacou o gládio. Estritamente falando, lutar com duas armas não era muito romano, mas, no tempo que havia passado com piratas, Reyna tinha aprendido mais que alguns poucos truques. As carapaças de terra se desfaziam com facilidade, mas tinham a força de uma marreta. Reyna não entendia como, mas sabia que não podia se dar o luxo de levar nem um só golpe. Ao contrário de Argentum, ela não sobreviveria se sua cabeça fosse deslocada. — Nico! — Ela se agachou entre dois fantasmas, deixando que um arrebentasse a cabeça do outro. — Agora! O chão se abriu no centro do pátio. Dezenas de soldados esqueléticos começaram a rastejar para a superfície. Os escudos pareciam velhas moedas de um centavo corroídas. Suas espadas eram mais ferrugem que metal. Mas Reyna nunca se sentira tão aliviada em ver reforços. — Legião! — gritou ela. — Ad aciem! Em resposta, os zumbis puseram-se a abrir caminho por entre os fantasmas, formando uma linha de batalha. Alguns caíram, esmagados por punhos de terra. Outros conseguiram cerrar fileiras e erguer os escudos. Atrás de Reyna, Nico soltou um palavrão. Ela arriscou uma rápida olhada para trás. O cetro de Diocleciano estava fumegando nas mãos de Nico. — Ele está lutando contra mim! — gritou o garoto. — Acho que ele não gosta de invocar romanos para combater outros romanos! Reyna sabia que, nos tempos antigos, os romanos passavam pelo menos metade do tempo lutando uns contra os outros, mas achou melhor não comentar nada. — Então cuide do treinador. E se prepare para o salto! Vou tentar ganhar um tempinho para…
Nesse momento, o menino soltou um gemido alto. O cetro de Diocleciano explodiu em pedaços. Aparentemente, Nico não tinha sido ferido, mas olhava em choque para Reyna. — Eu não… não sei o que aconteceu. Você tem alguns minutos, no máximo. Nossos zumbis vão desaparecer já, já. — Legião! — gritou Reyna mais uma vez. — Orbem formate! Gladium signe! Os zumbis cercaram a Atena Partenos, suas espadas prontas para um combate corpo a corpo. Argentum arrastou um inconsciente treinador Hedge para perto de Nico, que prendia as correias ao corpo com uma pressa desesperada. Aurum permanecia de guarda, lançando-se sobre qualquer fantasma de terra que avançasse sobre a linha de batalha. Reyna lutava lado a lado com seus legionários mortos, transmitindo sua força para eles. Mas ela sabia que aquilo não seria suficiente. Os fantasmas de terra caíam com facilidade, mas outros continuavam a se erguer do solo em redemoinhos de cinza vulcânica. Cada vez que seus punhos de terra acertavam um golpe, mais um zumbi caía. Enquanto isso, a Atena Partenos erguia-se acima da batalha: majestosa, soberba e indiferente. Uma ajudinha cairia bem, pensou Reyna. Quem sabe um raio fulminante? Ou um bom e velho soco, à moda antiga mesmo. A estátua não fazia nada além de irradiar ódio, que parecia dirigido igualmente a Reyna e aos fantasmas que a atacavam. Quer me arrastar para Long Island, é?, parecia dizer a estátua. Boa sorte aí, sua escória romana. Aquele era o destino de Reyna: morrer defendendo a estátua de uma deusa grega passivo-agressiva. Reyna lutava sem parar, irradiando mais e mais de sua determinação para suas tropas de mortos-vivos. Em troca, elas a bombardeavam com desespero e ressentimento. Sua luta é por nada, sussurravam em sua mente. O império acabou. — Por Roma! — gritou Reyna, com a voz rouca. Ela atacou um fantasma de terra com o gládio, ao mesmo tempo em que cravava a adaga no peito de outro. — Décima Segunda Legião Fulminata! Ao seu redor, os zumbis caíam. Alguns esmagados em batalha, outros se desintegrando sozinhos à medida que a força residual do cetro de Diocleciano finalmente se esvaía. Os fantasmas de terra fechavam o cerco, um mar de rostos desfigurados com olhos ocos. — Reyna, agora! — gritou Nico. — Vamos! Ela olhou para trás: Nico tinha se atrelado à Atena Partenos e levava Gleeson Hedge nos braços, como se o sátiro fosse uma donzela em apuros. Aurum e
Argentum tinham desaparecido; talvez tivessem sofrido golpes demais para que continuassem a lutar. Reyna cambaleou. Um fantasma de terra tinha acertado um soco em sua caixa torácica. Ela sentiu a lateral do corpo explodir de dor. Sua cabeça girou. Tentou respirar, mas era como inspirar facas. — Reyna! — insistiu Nico. A Atena Partenos tremeluziu, prestes a desaparecer. Um fantasma de terra tentou acertar Reyna na cabeça. Ela conseguiu se abaixar, mas a dor em suas costelas ameaçava fazê-la desmaiar. Desista, diziam as vozes em sua mente. O legado de Roma está morto e enterrado, assim como Pompeia. — Não — murmurou ela para si mesma. — Não enquanto eu estiver viva. Nico estendeu a mão enquanto mergulhava nas sombras. Com o que restava de suas forças, Reyna saltou na direção dele.
IX
LEO
LEO NÃO QUERIA SAIR DO casco. Ele tinha mais três presilhas para fixar, e nenhum dos outros era magro o suficiente para entrar naquele espaço apertado. (Uma das muitas vantagens de ser magrelo.) Enfiado entre as camadas do casco que protegiam o encanamento e a fiação elétrica, Leo podia ficar sozinho com seus pensamentos. Quando batia a frustração, o que acontecia a cada cinco segundos mais ou menos, ele podia bater nas coisas com seu martelo, e os amigos iam achar que ele estava trabalhando, não tendo um acesso de raiva. Havia um problema com seu santuário: só cobria até a cintura. Sua bunda e suas pernas ainda podiam ser vistas pelo público em geral, o que tornava difícil ficar escondido. — Leo! — A voz de Piper veio de algum lugar atrás dele. — Precisamos de você. A argola de bronze celestial escorregou do alicate de Leo e deslizou para as profundezas do espaço dentro do casco. Leo soltou um suspiro. — Fale com as pernas, porque as mãos estão ocupadas! — Não quero saber. Reunião no refeitório. Estamos quase em Olímpia. — Tudo bem. Chego lá em um segundo. — Afinal, o que você está fazendo? Está remexendo aí dentro há dias. Leo passou a lanterna pelas placas e pistões de bronze celestial que ele havia instalado ao longo dos dias. — Manutenção de rotina. Silêncio. Piper era boa demais em saber quando ele estava mentindo. — Leo… — Ei, enquanto você está aí fora, me faz um favor? Estou com uma coceira bem embaixo do meu… — Está bem, eu vou embora! Leo precisou de mais alguns minutos para ajustar a presilha. Seu trabalho não tinha terminado — nem perto disso —, mas estava progredindo. Claro, ele estabelecera as diretrizes do projeto secreto desde que construíra o Argo II, mas não o tinha revelado a ninguém. Leo mal tinha sido honesto consigo mesmo sobre o que estava fazendo.
Nada dura para sempre, seu pai tinha lhe dito uma vez. Nem mesmo as melhores máquinas. É, tudo bem, talvez isso fosse verdade. Mas Hefesto concluíra: Tudo pode ser reciclado. Leo pretendia testar essa teoria. Era extremamente arriscado. Se desse errado, ele seria esmagado. E não só emocionalmente. Seria fisicamente esmagado. Essa ideia o deixou claustrofóbico. Ele se agitou para sair de dentro do casco e voltou para sua cabine. Bem… tecnicamente era sua cabine, mas ele não dormia lá. A cama estava coberta de fios, pregos e mecanismos de várias máquinas de bronze desmontadas. Seus três enormes armários de ferramentas com rodinhas — Chico, Harpo e Groucho — ocupavam a maior parte do quarto. Havia dezenas de ferramentas elétricas penduradas nas paredes. A bancada de trabalho estava repleta de fotocópias dos projetos detalhados em Sobre a construção de esferas, o livro perdido de Arquimedes que Leo encontrara em uma oficina no subsolo de Roma. Mesmo que quisesse dormir em sua cabine, ela era atulhada e perigosa demais. Ele preferia ficar na casa de máquinas, onde o zunido constante o ajudava a dormir. Além disso, desde que passara um tempo na ilha de Ogígia, ele tinha pegado gosto por acampar ao ar livre. Um saco de dormir no chão era tudo de que precisava. Sua cabine servia apenas para guardar coisas… e trabalhar em seus projetos mais complexos. Ele pegou um chaveiro do cinto de ferramentas. Na verdade, não tinha tempo, mas destrancou a gaveta do meio de Groucho e olhou para os dois objetos preciosos em seu interior: um astrolábio de bronze que pegara em Bolonha e um pedaço de cristal de Ogígia do tamanho de seu punho. Leo ainda não havia descoberto um modo de juntar as duas coisas, e isso o estava deixando louco. Ele esperava conseguir algumas respostas quando visitassem Ítaca. Afinal de contas, era o lar de Odisseu, o sujeito que construíra aquele astrolábio. Mas, a julgar pelo que Jason dissera, aquelas ruínas não ofereciam nenhuma resposta para ele, só um bando de fantasmas e ghouls mal-humorados. Enfim, Odisseu nunca conseguira fazer o astrolábio funcionar. Mas ele não tinha um cristal para usar como guia. Leo tinha. Ele teria que triunfar onde o semideus mais inteligente de todos os tempos havia falhado. Era a típica sorte de Leo. Uma garota imortal supergostosa estava esperando por ele em Ogígia, mas Leo não conseguia descobrir como conectar um pedaço idiota de pedra ao instrumento de navegação de três mil anos. Alguns problemas não podiam ser solucionados com fita adesiva. Leo fechou e trancou a gaveta.
Seus olhos se dirigiram para um mural acima de sua bancada de trabalho, na qual havia duas folhas fixadas lado a lado. A primeira era o velho desenho a lápis de cera que fizera aos sete anos — um diagrama de um navio voador que ele vira em sonhos. A segunda era um desenho a carvão que Hazel fizera recentemente para ele. Hazel Levesque… aquela garota era demais. Assim que Leo se reuniu com a tripulação em Malta, ela soube imediatamente que o garoto estava sofrendo por dentro. Na primeira chance que teve, depois de toda a confusão na Casa de Hades, ela foi até a cabine dele e disse: — Desembucha. Hazel era uma boa ouvinte. Leo contou toda a história. Na mesma noite, mais tarde, Hazel voltou com seu bloco de desenho e um lápis. — Descreva como ela é — insistiu ela. — Cada detalhe. Parecia um pouco estranho, ajudar Hazel a fazer um retrato de Calipso, como se ele estivesse falando com um desenhista da polícia: Sim, policial, essa é a garota que roubou meu coração! Parecia letra de música sertaneja. Mas descrever Calipso fora fácil. Leo não conseguia fechar os olhos sem vêla. Agora a imagem dela o encarava do mural, seus olhos amendoados, o biquinho dos lábios, o cabelo comprido e liso jogado sobre um ombro do vestido sem mangas. Ele quase podia sentir seu aroma de canela. O cenho franzido e o canto da boca virado para baixo pareciam dizer: Leo Valdez, você é um fanfarrão. Droga, ele amava aquela mulher. Leo prendera o retrato dela ao lado do desenho do Argo II para se lembrar de que às vezes as visões se realizam. Quando era pequeno, ele sonhava com um navio voador. Com o tempo, acabou por construí-lo. Agora ele ia encontrar um meio de voltar para Calipso. O zunido dos motores do navio mudou para um tom mais grave. Pelo altofalante da cabine, a voz de Festus estalou e guinchou. — É, obrigado, parceiro — disse Leo. — Já estou indo. O navio estava descendo, o que significava que os projetos de Leo teriam que ficar para depois. — Espere por mim, querida — disse ele para o retrato de Calipso. — Vou voltar para você, exatamente como prometi. Leo podia imaginar a resposta dela: Não vou esperar você, Leo Valdez. Eu não estou apaixonada por você. E não acredito nem um pouco em suas promessas tolas! O pensamento o fez sorrir. Ele guardou as chaves de volta no cinto de ferramentas e foi para o refeitório.
* * *
Os outros seis semideuses tomavam café da manhã. Algum tempo antes, Leo teria se preocupado por todos eles estarem sob o convés, deixando o timão sem ninguém, mas desde que Piper despertara Festus permanentemente com o charme, um feito que Leo ainda não entendia direito, a figura de proa tornara-se mais do que capaz de controlar o Argo II sozinha. Festus podia navegar, checar o radar, fazer uma vitamina de mirtilo e lançar jatos de fogo branco nos invasores — tudo simultaneamente — sem queimar nem um circuito. Além disso, eles tinham Buford, a Mesa Maravilhosa, de reserva. Depois que o treinador Hedge partira em sua expedição de viagem nas sombras, Leo havia decidido que aquela mesa de três pernas podia fazer um trabalho tão bom quanto o “acompanhante adulto” do navio. Ele forrara o tampo de Buford com um pergaminho que projetava uma simulação holográfica em miniatura do treinador Hedge. O mini-Hedge andava de um lado para outro no tampo, gritando aleatoriamente coisas como: “CALE ESSA BOCA!”, “VOU MATAR VOCÊ” e o sempre popular “VISTA ALGUMA COISA!”. Naquele momento, Buford estava ao timão. Se as chamas de Festus não espantassem os monstros, o Hedge holográfico de Buford dava conta disso. Leo parou à porta do refeitório, examinando a cena que se desenrolava na mesa. Não era sempre que ele conseguia ver todos os seus amigos juntos. Percy estava comendo uma pilha enorme de panquecas azuis (qual o problema dele com comidas azuis?), enquanto Annabeth o repreendia por botar calda demais. — Você vai afogá-las! — reclamou ela. — Ei, eu sou filho de Poseidon — retrucou ele. — Não posso me afogar, nem minhas panquecas. À esquerda deles, Frank e Hazel usavam suas tigelas de cereal para manter aberto um mapa da Grécia, que os dois observavam com as cabeças juntas. De vez em quando a mão de Frank cobria a dela de forma tão natural e carinhosa que eles pareciam ser casados fazia muito tempo, e Hazel nem corava, o que era um progresso para uma garota dos anos quarenta. Até recentemente, se alguém dissesse merda perto dela, ela quase desmaiava. Jason estava sentado à cabeceira da mesa com a camiseta enrolada até a altura do peito e parecia bem desconfortável enquanto a Enfermeira Piper trocava seus curativos. — Fique parado — disse ela. — Eu sei que dói. — É só frio. Leo ouvia a dor na voz dele. Jason tinha sido atravessado de um lado a outro por aquela lâmina estúpida de ouro imperial. O ferimento de entrada nas suas
costas estava com uma tonalidade feia de roxo e soltava fumaça. Isso provavelmente não era bom sinal. Piper se esforçava para manter o otimismo, mas em particular tinha dito a Leo quanto estava preocupada. Não havia mais nada que ambrosia, néctar e medicina mortal pudessem fazer. Um corte profundo de bronze celestial ou ouro imperial podia literalmente dissolver a essência de um semideus de dentro para fora. Era possível que Jason melhorasse. Ele dizia estar se sentindo melhor. Mas Piper não tinha tanta certeza. Infelizmente seu melhor amigo não era um autômato de metal. Aí, pelo menos ele teria alguma ideia de como ajudá-lo. Mas com humanos… Leo se sentia impotente. Eles quebravam com muita facilidade. Ele amava os amigos. Faria qualquer coisa por eles. Mas ao olhar para aqueles seis, três casais, cada um concentrado no próprio mundinho, ele pensou sobre o alerta de Nêmesis, a deusa da vingança: Você não encontrará um lugar entre seus irmãos. Você sempre será a sétima vela. Ele estava começando a achar que Nêmesis estava certa. Supondo que Leo vivesse tempo suficiente, supondo que seu plano secreto maluco funcionasse, o destino dele era com outra pessoa, em uma ilha que nenhum homem jamais havia encontrado duas vezes. Mas, por enquanto, o melhor que ele podia fazer era seguir sua velha regra: Não pare nunca. Não fique empacado. Não pense nas coisas ruins. Sorria e faça piadas mesmo sem ter vontade. Principalmente quando não tiver vontade. — E aí, gente? — Ele entrou no refeitório. — Ah, que bom, brownies! Ele pegou o último, feito com uma receita especial com sal marinho que eles pegaram com Afros, o peixe-centauro, nas profundezas do Atlântico. Os alto-falantes emitiram um chiado. Então o mini-Hedge de Buford gritou: — VISTA ALGUMA COISA! Todo mundo pulou de susto. Hazel foi parar a um metro e meio de Frank. Percy derramou calda em seu suco de laranja. Jason se contorceu todo para vestir a camiseta e Frank virou um buldogue. — Achei que você fosse se livrar desse holograma idiota — disse Piper. — Ei, Buford só está dando bom-dia. Ele adora seu holograma! Além disso, todos nós sentimos saudades do treinador. E Frank virou um buldogue fofo. Frank se transformou de volta em um sino-canadense forte e mal-humorado. — Leo, sente-se. Temos uns assuntos para discutir. Leo se espremeu entre Jason e Hazel. Achou que aqueles dois seriam menos propensos a lhe dar um tapa se ele fizesse piadas ruins. Deu uma mordida no brownie e apanhou um pacote de salgadinhos italianos — Fonzies — para completar seu café da manhã balanceado. Ele tinha ficado viciado naquele troço desde a primeira vez que provara alguns, em Bolonha. Eram sabor queijo e vagabundos, duas de suas qualidades favoritas.
— Então… — Jason fez uma careta ao se debruçar para a frente. — Vamos permanecer no ar e descer o mais perto possível de Olímpia. É mais para o interior do que eu gostaria, cerca de dez quilômetros, mas não temos escolha. Segundo Juno, temos que encontrar a deusa da vitória e, hum… detê-la. Fez-se um silêncio desconfortável em torno da mesa. Com cortinas cobrindo as paredes holográficas, o refeitório estava mais escuro e sombrio do que deveria, mas eles não podiam fazer nada. Desde que os anões gêmeos cêrcopes deram curto-circuito nas paredes, as imagens em tempo real do Acampamento Meio-Sangue costumavam sair do ar e mudar para fotos de closes muito próximos dos anões: suíças ruivas, narinas e dentes maltratados. Não era muito agradável quando se estava tentando comer ou ter uma conversa séria sobre o destino do mundo. Percy bebeu seu suco de laranja adoçado com calda. Ele pareceu gostar. — Não tenho problemas em combater uma deusa de vez em quando, mas Nice não é uma das deusas legais? Quer dizer, eu, pessoalmente, gosto da vitória. Para mim ela nunca é demais. Annabeth tamborilou os dedos na mesa. — Isso é estranho. Eu entendo por que Nice está em Olímpia, berço dos Jogos Olímpicos e tudo o mais. Os competidores faziam sacrifícios para ela. Gregos e romanos a cultuaram ali por uns mil e duzentos anos, não é? — Quase até o fim do Império Romano — concordou Frank. — Os romanos a chamavam de Vitória, mas era a mesma coisa. Todo mundo a amava. Quem não gosta de ganhar? Não entendi por que devemos detê-la. Jason franziu a testa. Um pouco de fumaça saiu da ferida sob sua camiseta. — O ghoul Antínoo disse que “a Vitória está fora de controle em Olímpia”. Juno nos alertou que nunca conseguiríamos acabar com a rivalidade entre gregos e romanos a menos que derrotássemos a vitória. — Como se derrota a vitória? — questionou Piper. — Parece um desses enigmas insolúveis. — Como fazer pedras voarem — disse Leo. — Ou comer só um salgadinho. Ele jogou um punhado na boca. Hazel torceu o nariz. — Esse negócio ainda vai matar você. — Você acha? Estas coisas têm tantos conservantes que eu vou viver para sempre. Mas, ei, sobre essa deusa da vitória ser poderosa e popular… Vocês não se lembram de como são os filhos dela no Acampamento Meio-Sangue? Hazel e Frank nunca tinham ido ao Acampamento Meio-Sangue, mas os outros assentiram com pesar. — É verdade — disse Percy. — Os semideuses do chalé 17… Eles são supercompetitivos. Nos jogos de capturar a bandeira, são quase piores do que os filhos de Ares. Quer dizer, com todo o respeito, Frank.
Frank deu de ombros. — Você está dizendo que Nice tem um lado sombrio? — Os filhos dela com certeza têm — disse Annabeth. — Nunca recusam um desafio. Têm que ser os primeiros em tudo. Se a mãe for tão intensa quanto eles… — Opa. — Piper espalmou as mãos na mesa como se o navio estivesse balançando. — Gente, todos os deuses estão divididos entre seus aspectos grego e romano, certo? Se Nice é assim, e ela é a deusa da vitória… — Deve estar em grande conflito — concordou Annabeth. — Ela provavelmente quer que um de seus aspectos vença para que ela possa declarar um campeão. Deve estar literalmente lutando contra si mesma. Hazel empurrou sua tigela de cereal por cima do mapa da Grécia. — Mas nós não queremos que nenhum dos lados vença. Precisamos que gregos e romanos fiquem do mesmo lado. — Talvez esse seja o problema — disse Jason. — Se a deusa da vitória está fora de controle, dividida entre gregos e romanos, ela pode tornar impossível a união dos dois acampamentos. — Como? — perguntou Leo. — Começando uma discussão no Twitter? Percy espetou o garfo em uma panqueca. — Talvez ela seja como Ares. Aquele cara consegue provocar uma briga só de entrar em uma sala cheia de gente. Se Nice irradia vibrações competitivas ou algo assim, ela poderia agravar seriamente a rivalidade entre gregos e romanos. Frank olhou para Percy. — Lembra-se daquele velho deus do mar em Atlanta, Fórcis? Ele disse que os planos de Gaia têm várias camadas. Isso pode ser parte da estratégia dos gigantes: manter os dois acampamentos divididos, manter os deuses divididos. Se esse for o caso, não podemos deixar que Nice nos jogue uns contra os outros. Deveríamos mandar uma equipe de quatro a Olímpia, dois gregos e dois romanos. O equilíbrio pode ajudar a manter também a ela equilibrada. Enquanto ouvia Zhang, Leo não pôde deixar de se espantar. Não conseguia acreditar no quanto o cara tinha mudado em poucas semanas. Frank não estava apenas mais alto e musculoso. Também parecia mais confiante, mais disposto a assumir o comando. Talvez fosse porque o graveto que controlava sua vida estava guardado em segurança em uma bolsa à prova de fogo, ou talvez porque tinha comandado uma legião de zumbis e sido promovido a pretor. Qualquer que fosse o motivo, Leo tinha dificuldade em vê-lo como o mesmo cara estabanado que uma vez escapara de algemas chinesas se transformando em uma iguana. — Acho que Frank tem razão — disse Annabeth. — Uma equipe de quatro. Vamos ter que escolher com cuidado quem vai. Não queremos deixar a deusa…
hum… ainda mais instável. — Eu vou — disse Piper. — Posso tentar usar o charme. Rugas de preocupação ficaram mais proeminentes em volta dos olhos de Annabeth. — Dessa vez não, Piper. Nice só pensa em competição. E Afrodite… bem, ela também, a seu modo. Acho que Nice pode ver você como uma ameaça. Se fosse antes, Leo talvez fizesse uma piada com isso. Piper, uma ameaça? A garota era como uma irmã, mas, se precisasse de ajuda para bater em uma gangue de bandidos ou subjugar uma deusa da vitória, não seria a primeira pessoa a quem ele pediria ajuda. Ultimamente, porém… bem, Piper podia não ter mudado de modo tão óbvio quanto Frank, mas tinha mudado. Ela apunhalara Quione, a deusa da neve, no peito. Derrotara os Boreadas. Derrotara um bando de harpias selvagens sozinha. E, em relação ao charme, tinha ficado tão poderosa que deixava Leo nervoso. Se Piper o mandasse comer suas verduras, era capaz de ele obedecer. As palavras de Annabeth não pareceram abalá-la. Piper apenas assentiu e olhou em volta. — Então quem deveria ir? — Jason e Percy não devem ir juntos — disse Annabeth. — Júpiter e Poseidon, combinação ruim. Nice poderia facilmente fazê-los começar a brigar. Percy deu um meio sorriso. — É, não podemos ter outro incidente como o do Kansas. Eu poderia matar meu parceiro Jason. — Ou eu poderia matar meu parceiro Percy — comentou Jason amistosamente. — O que apenas confirma o que eu falei — disse Annabeth. — Eu e Frank também não podemos ir juntos. Marte e Atena… seria ruim do mesmo jeito. — Está bem — interveio Leo. — Então Percy e eu pelos gregos. Frank e Hazel pelos romanos. Essa é ou não é a equipe menos competitiva de todas? Annabeth e Frank trocaram olhares dignos de deuses da guerra. — Pode funcionar — concluiu Frank. — Quer dizer, nenhuma combinação vai ser perfeita, mas Poseidon, Hefesto, Plutão e Marte… Não vejo nenhuma grande rivalidade aí. Hazel traçou uma linha com o dedo pelo mapa da Grécia. — Ainda preferia que tivéssemos ido pelo Golfo de Corinto. Queria visitar Delfos, talvez receber algum conselho. Além disso, o caminho em torno do Peloponeso é muito longo. — É. — Leo ficou deprimido quando viu a distância que ainda teriam que percorrer. — Já é dia vinte e dois de julho. A partir de hoje, temos só dez dias até…
— Eu sei — disse Jason. — Mas Juno foi clara. O caminho mais curto teria sido suicídio. — E em relação a Delfos… — Piper debruçou-se sobre o mapa. A pena azul de harpia em seu cabelo balançou como um pêndulo. — O que está acontecendo por lá? Se Apolo não tem mais seu oráculo… Percy resmungou: — Provavelmente tem algo a ver com aquele cretino do Octavian. Talvez ele seja tão ruim em prever o futuro que anulou os poderes de Apolo. Jason conseguiu dar um sorriso, apesar de seus olhos estarem nublados de dor. — Com sorte vamos achar Apolo e Ártemis. Aí você mesmo pode perguntar a ele. Juno disse que talvez os gêmeos estejam dispostos a nos ajudar. — Muitas perguntas sem resposta — murmurou Frank. — E muitos quilômetros a navegar até Atenas. — Vamos começar pelo começo — disse Annabeth. — Vocês têm que encontrar Nice e descobrir como detê-la… Ou seja lá o que Juno quis dizer com isso. Ainda não entendo como se derrota uma deusa que controla a vitória. Parece impossível. Leo abriu um sorriso. Não conseguiu evitar. Claro, eles só tinham dez dias para impedir que os gigantes despertassem Gaia. Claro, ele podia morrer antes da hora do jantar. Mas ele adorava quando lhe diziam que algo era impossível. Era como se alguém lhe desse uma torta de merengue de limão e lhe dissesse para não jogá-la. Ele simplesmente não conseguia resistir ao desafio. — Isso a gente vai ver. — Leo ficou de pé. — Vou buscar minha coleção de granadas e encontro vocês no convés!
X
LEO
— VOCÊ MANDOU MUITO BEM — DISSE Percy — quando escolheu um lugar com ar-condicionado. Ele e Leo tinham acabado de fazer uma busca no museu. Agora estavam sentados em uma ponte que cruzava o Rio Kladeos, ambos com os pés balançando acima da água enquanto esperavam que Frank e Hazel terminassem de procurar nas ruínas. À esquerda deles, o vale de Olímpia tremeluzia ao sol da tarde. À direita, o estacionamento de visitantes estava lotado de ônibus de turismo. Ainda bem que eles tinham ancorado o Argo II trinta metros acima do chão, porque senão nunca teriam encontrado uma vaga. Leo jogou uma pedra no rio. Queria que Hazel e Frank voltassem. Ele se sentia meio constrangido andando com Percy. Um motivo era não saber como puxar conversa com um cara que tinha acabado de voltar do Tártaro. Viu o último episódio de Doctor Who? Ah, verdade. Você estava passeando pelo Poço da Condenação Eterna! Percy já era bem intimidante antes: invocando furacões, lutando contra piratas, matando gigantes no Coliseu… Agora… Bem, depois do que havia acontecido no Tártaro, parecia que Percy pertencia a um nível totalmente diferente de herói. Leo não conseguia nem acreditar que eles faziam parte do mesmo acampamento. Os dois nunca haviam estado ao mesmo tempo no Acampamento Meio-Sangue. O colar de couro de Percy tinha quatro contas por quatro verões completos. O colar de couro de Leo tinha exatamente nenhuma. A única coisa que eles tinham em comum era Calipso, e sempre que Leo se lembrava disso, tinha vontade de dar um soco na cara de Percy. Ele não parava de pensar que deveria tocar no assunto, só para esclarecer as coisas, mas nunca parecia o momento certo. E, à medida que os dias passavam, ficava cada vez mais difícil falar sobre isso. — O que foi? — perguntou Percy. Leo levou um susto. — Hã? — Você estava me encarando, tipo, com raiva. — Estava? — Leo pensou em fazer uma piada, ou pelo menos dar um sorriso, mas não conseguiu. — Hum, desculpe. Percy olhou para o rio.
— Eu acho que a gente precisa conversar. Ele abriu a mão, e a pedra que Leo havia jogado saiu voando do rio e foi parar direto na mão de Percy. Ah, pensou Leo, agora é a hora de se exibir? Ele teve vontade de lançar uma coluna de fogo no ônibus de turismo mais próximo e explodir o tanque de gasolina, mas achou que isso seria um pouco exagerado demais. — Talvez a gente deva conversar. Mas… — Ei, vocês! Frank estava parado na outra extremidade do estacionamento, acenando para eles. Ao seu lado, Hazel estava montada em seu cavalo, Arion, que aparecera sem aviso assim que eles aterrissaram. Salvo pelo Zhang, pensou Leo. Ele e Percy foram correndo se juntar aos amigos.
* * *
— Este lugar é enorme — explicou Frank. — As ruínas se estendem desde o rio até a base daquela montanha, a cerca de meio quilômetro daqui. — Quanto dá isso em medidas normais, como milhas? — perguntou Percy. Frank revirou os olhos. — Essa é uma medida normal no Canadá e no resto do mundo. Só vocês, americanos… — Cerca de cinco ou seis campos de futebol americano — interveio Hazel, alimentando Arion com um grande pedaço de ouro. Percy abriu os braços. — Era só você dizer isso. — Enfim — prosseguiu Frank. — Lá do alto eu não vi nada suspeito. — Nem eu — disse Hazel. — Dei uma volta completa pelo perímetro com Arion. Muitos turistas, mas nenhuma deusa maluca. O grande garanhão relinchou e remexeu a cabeça, contraindo os músculos do pescoço sob a pelagem castanha. — Cara, ele sabe mesmo xingar. — Percy balançou a cabeça. — E não gosta muito de Olímpia. Pelo menos daquela vez, Leo concordava com o cavalo. Ele não era fã da ideia de caminhar por campos cheios de ruínas sob um sol escaldante, abrindo caminho através de hordas de turistas suados para tentar encontrar uma deusa da vitória com dupla personalidade. Além disso, Frank já sobrevoara todo o vale na forma de águia. Se seus olhos aguçados não haviam visto nada, talvez não houvesse nada para ser visto. Por outro lado, o cinto de ferramentas de Leo estava cheio de brinquedos
perigosos. Ele ia odiar voltar para casa sem explodir alguma coisa. — Então vamos passear por aí — disse ele. — Esperar que o problema nos encontre. Isso sempre funcionou antes. Eles procuraram por um tempo, evitando grupos de turistas e pulando de uma faixa de sombra para outra. Leo ficou impressionado, e não pela primeira vez, ao ver como a Grécia era parecida com seu estado natal, o Texas: as colinas baixas, os arbustos, o canto das cigarras e o calor opressivo no verão. Se as colunas e os templos em ruínas fossem trocados por vacas e arame farpado, ele se sentiria em casa. Frank achou um panfleto turístico (sério, o cara devia ler até os ingredientes no rótulo de uma lata de sopa) e deu a eles uma explicação rápida sobre o que era o quê. — Aquilo ali é o Propileu. — Ele gesticulou na direção de uma trilha de pedras margeada por colunas desmoronadas. — Um dos principais portões de entrada para o vale olímpico. — Pedras! — disse Leo. — E ali… — Frank apontou para uma fundação quadrada que parecia o pátio de um restaurante mexicano — fica o templo de Hera, uma das estruturas mais antigas daqui. — Mais pedras! — disse Leo. — E aquele negócio redondo que parece um coreto… é o Filipeu, dedicado a Filipe da Macedônia. — E ainda mais pedras! Pedras de primeira categoria! Hazel, ainda montada em Arion, deu um chute no braço de Leo. — Não tem nada que impressione você? Leo olhou para ela. Seu cabelo encaracolado cor de canela e seus olhos mel combinavam tão bem com seu elmo e sua espada que ela parecia ser feita de ouro imperial. Leo duvidava que Hazel considerasse isso um elogio, mas, no que dizia respeito a humanas, Hazel era um produto de primeira qualidade. Leo se lembrou da travessia que fizeram juntos pela Casa de Hades. Hazel o conduzira por aquele assustador labirinto de ilusões. Ela fizera a feiticeira Pasifae desaparecer através de um buraco imaginário no chão. Lutara contra Clítio enquanto Leo sufocava na massa de trevas do gigante. Havia cortado as correntes que prendiam as Portas da Morte. Enquanto isso, Leo tinha feito… bem, basicamente nada. Ele não estava mais apaixonado por Hazel. Seu coração estava longe, na ilha de Ogígia. Mas mesmo assim Hazel Levesque o impressionava, até quando estava montada em um cavalo imortal supersônico que cuspia palavrões como um estivador. Ele não disse nada disso, mas Hazel deve ter percebido algo em sua expressão, porque desviou os olhos, envergonhada.
Alheio a tudo, Frank continuou seu tour guiado: — E ali… ah. — Ele olhou para Percy. — Hum, aquela depressão semicircular na colina, perto dos nichos… é um ninfeu, construído no período romano. O rosto de Percy ficou da cor de limonada. — Tenho uma ideia: não vamos lá. Leo ouvira tudo sobre a experiência de quase morte de Percy no ninfeu em Roma, com Jason e Piper. — Adorei essa ideia. Eles continuaram andando. De vez em quando, Leo levava a mão ao cinto de ferramentas. Desde que os cêrcopes o roubaram em Bolonha, ele tinha medo de ser furtado outra vez, apesar de duvidar que houvesse algum monstro capaz de ser um ladrão tão bom quanto aqueles anões. Ele se perguntou como aqueles macaquinhos imundos estavam se saindo em Nova York. Torceu para que ainda estivessem se divertindo perturbando romanos, roubando muitos zíperes brilhantes e fazendo com que as calças dos legionários caíssem. — Aqui é o Pelopion — disse Frank, apontando para outra fascinante pilha de pedras. — Ah, por favor, Zhang — disse Leo. — Pelopion nem é uma palavra de verdade. O que era isso? Uma homenagem a pessoas peludas? Frank pareceu ofendido. — É o túmulo de Pêlops. Toda essa parte da Grécia, o Peloponeso, tem esse nome por causa dele. Leo segurou a vontade de jogar uma granada na cara de Frank. — Eu deveria saber quem foi Pêlops? — Foi um príncipe. Ganhou sua esposa em uma corrida de bigas. Supostamente, ele organizou os primeiros Jogos Olímpicos em homenagem a isso. Hazel fungou. — Que romântico. “Que bela esposa você tem, príncipe Pêlops.” “Obrigado. Eu a ganhei em uma corrida de bigas.” Leo não conseguia ver como aquilo os ajudaria a encontrar a deusa da vitória. Naquele momento, a única vitória que ele queria era devorar uma bebida supergelada e talvez uns nachos. Ainda assim… quanto mais eles avançavam nas ruínas, mais desconfortável ele se sentia. Leo relembrou uma de suas recordações mais antigas, sua babá, Tía Callida, também conhecida como Hera, o estimulando a cutucar uma cobra venenosa com um galho, quando ele tinha quatro anos. A deusa psicopata dissera a ele que aquele era um bom treinamento para ser herói, e talvez tivesse razão. Ultimamente, Leo passava a maior parte do tempo procurando confusão.
Ele observava as multidões de turistas, se perguntando se eram mortais normais ou monstros disfarçados, como aqueles eidolons que os perseguiram em Roma. De vez em quando achava ter visto um rosto familiar — seu primo violento, Raphael; seu professor malvado do terceiro ano, o Sr. Bornquin; sua malvada mãe adotiva, Teresa —, todo tipo de gente que tinha tratado Leo como lixo. Provavelmente, ele tinha apenas imaginado seus rostos, mas isso o deixou nervoso. Ele pensou em como a deusa Nêmesis havia tomado a forma de sua tia Rosa, a pessoa de quem Leo guardava mais rancor e de quem mais queria se vingar. Ele se perguntou se Nêmesis estaria por ali em algum lugar, observando para ver o que Leo ia fazer. Ele ainda não tinha certeza de ter pagado sua dívida com aquela deusa, e desconfiava que ela quisesse mais sofrimento dele. Talvez aquele fosse o dia. Os quatro pararam em uma escadaria larga que levava a outra construção em ruínas, o templo de Zeus, segundo Frank. — Costumava haver uma enorme estátua de Zeus em ouro e marfim no interior — disse Zhang. — Uma das sete maravilhas do mundo antigo. Feita pelo mesmo cara que esculpiu a Atena Partenos. — Por favor, não me diga que temos que encontrá-la — disse Percy. — Já tive o suficiente de estátuas mágicas para uma viagem. — Concordo. Hazel deu um tapinha no lombo de Arion, pois o garanhão estava ficando impaciente. Leo também sentiu vontade de relinchar e bater os cascos. Estava com calor, agitado e com fome. Parecia que tinham provocado a cobra venenosa ao máximo, e ela estava prestes a contra-atacar. Ele queria encerrar as buscas do dia por ali e voltar para o navio antes que isso acontecesse. Infelizmente, porém, quando Frank mencionou templo de Zeus e estátua, o cérebro de Leo fez uma conexão. Contrariando o bom senso, ele a compartilhou com os outros: — Ei, Percy, se lembra da estátua de Nice no museu? A que estava toda quebrada? — O quê que tem? — Ela não ficava aqui, no templo de Zeus? Fique à vontade para me dizer que estou errado. Eu adoraria estar errado. Percy levou a mão ao bolso e pegou sua caneta Contracorrente. — Você tem razão. Então, se Nice estiver em algum lugar… este é perfeito. Frank observou os arredores. — Não estou vendo nada. — E se começássemos a fazer propaganda de, sei lá, tênis Adidas? — perguntou Percy. — Afinal, a Nike se inspirou em Nice. Será que isso a deixaria
com raiva o suficiente para aparecer? Leo soltou uma risadinha nervosa. Talvez ele e Percy compartilhassem outra coisa: um senso de humor idiota. — É, aposto que isso seria totalmente contra o contrato de patrocínio dela. ESSES NÃO SÃO OS TÊNIS OFICIAIS DOS OLÍMPICOS! VOCÊS VÃO MORRER AGORA! Hazel revirou os olhos. — Vocês dois são impossíveis. Atrás de Leo, uma voz trovejante abalou as ruínas: — VOCÊS VÃO MORRER AGORA! Leo quase pulou para fora de seu cinto de ferramentas. Ele se virou… e se repreendeu na hora. Ele tinha que invocar Adidas, a deusa dos tênis de segunda opção. A deusa Nice assomou diante deles em uma biga dourada, e tinha uma lança apontada para o coração dele.
XI
LEO
AS ASAS DOURADAS ERAM UM pouquinho demais. Leo até que gostou da biga e dos dois cavalos brancos. Achou legal o vestido cintilante sem mangas que Nice usava (Calipso arrasava naquele estilo, mas isso não era relevante) e seu cabelo preto trançado e preso por uma coroa de louros dourados. Ela tinha os olhos arregalados e cara de maluca, como se tivesse acabado de beber vinte espressos e andado de montanha-russa, mas isso também não incomodou Leo. Ele podia aceitar até a lança de ponta de ouro apontada para seu peito. Mas aquelas asas… Eram de ouro polido, até a última pena. Leo podia admirar o trabalho intrincado, mas aquilo era demais — brilhante demais, ofuscante demais. Se as asas dela fossem painéis solares, Nice produziria energia suficiente para abastecer Miami. — Senhora — disse ele —, poderia, por favor, dobrar suas asas? Sua luz está me queimando. — O quê? — A cabeça de Nice se virou na direção dele como a de uma galinha assustada. — Ah… minha plumagem brilhante. Está bem. Imagino que você não possa morrer em glória se estiver cego e queimado. Ela recolheu as asas. A temperatura caiu para os cinquenta graus normais de uma tarde de verão. Leo olhou para os amigos. Frank estava totalmente imóvel, avaliando a deusa. Sua mochila ainda não havia se transformado em arco e aljava de flechas, o que provavelmente era prudente. Ele não devia ter ficado tão assustado, já que não se transformara em um peixinho dourado gigante. Hazel estava tendo problemas com Arion. O garanhão castanho relinchou e empinou, evitando contato visual com os cavalos brancos que puxavam a biga de Nice. Quanto a Percy, ele segurava sua caneta mágica como se estivesse tentando decidir se dava alguns golpes de espada ou autografava o meio de transporte de Nice. Ninguém tomou a iniciativa de falar com a deusa. Leo meio que sentia falta de Piper e Annabeth com eles. Elas eram boas nisso de se comunicar. Ele achou melhor alguém fazer alguma coisa antes que todos morressem em glória.
— Então! — Ele apontou os indicadores para Nice. — Eu não recebi o memorando e tenho quase certeza de que a informação não constava no folheto de Frank. Pode nos dizer o que está acontecendo aqui? Os olhos arregalados de Nice deixavam Leo nervoso. Será que seu nariz estava pegando fogo? Isso às vezes acontecia quando ele ficava estressado. — Nós precisamos da vitória! — gritou a deusa. — É necessário decidir a disputa! Vocês vieram aqui para determinar um vencedor, certo? Frank pigarreou. — A senhora é Nice ou Vitória? — Aaaarghh! A deusa segurou a cabeça entre as mãos. Seus cavalos empinaram, levando Arion a fazer o mesmo. Ela estremeceu e se dividiu em duas imagens separadas, que lembraram Leo — o que era ridículo — de quando ele ficava deitado no chão de seu apartamento brincando com a mola no rodapé que impedia que a porta batesse na parede. Ele puxava a mola e a soltava: Sproing! E ela ia para a frente e para trás tão rápido que parecia se transformar em duas molas. Era isso o que Nice parecia: uma mola duplicada. À esquerda estava a primeira versão: o vestido cintilante, o cabelo preto preso por uma coroa de louros, as asas de ouro dobradas às costas. À direita havia uma versão diferente, usando uma armadura romana. Pelas bordas de um elmo alto saía um cabelo curto e castanho-claro. Suas asas eram brancas e emplumadas; o vestido, roxo; e a haste da lança trazia uma insígnia romana do tamanho de um prato: um SPQR dourado dentro de uma coroa de louros. — Eu sou Nice! — exclamou a imagem da esquerda. — Eu sou Vitória! — exclamou a da direita. Pela primeira vez Leo entendeu o velho ditado que seu abuelo usava muito: falar da boca para fora. A deusa estava literalmente dizendo duas coisas completamente diferentes. Ela não parava de tremer e se dividir, o que deixou Leo tonto. Ele sentiu vontade de pegar suas ferramentas e regular a marcha lenta em seu carburador, porque aquela vibração toda ia fazer o motor dela se desmantelar. — Sou eu quem decide a vitória! — gritou Nice. — Antigamente eu ficava no templo de Zeus, era venerada por todos! Eu velava pelos jogos de Olímpia. Oferendas de todo o mundo se empilhavam aos meus pés! — Jogos são irrelevantes! — berrou Vitória. — Eu sou a deusa do sucesso em batalha! Os generais romanos me veneravam! O próprio Augusto ergueu para mim um altar no Senado! — Aaahhh! — gritaram as duas vozes, em agonia. — Precisamos decidir! Precisamos de uma vitória! Arion começou a empinar com tamanha violência que Hazel teve que desmontar para não cair. Antes que ela conseguisse acalmá-lo, o cavalo
desapareceu, deixando uma trilha de vapor pelas ruínas. — Nice — disse Hazel, dando um cauteloso passo à frente —, a senhora está confusa, como todos os deuses. Os gregos e romanos estão à beira de uma guerra. Isso está fazendo seus aspectos entrarem em conflito. — Eu sei! — A deusa sacudiu sua lança, e a extremidade pareceu vibrar. — Não suporto conflitos sem solução! Quem é mais forte? Quem é o vencedor? — Senhora, ninguém sairá vencedor — disse Leo. — Se essa guerra acontecer, todos vão perder. — Ninguém vencerá? — Nice pareceu tão chocada que Leo teve quase certeza de estar com o nariz em chamas. — Sempre há um vencedor! Um vencedor. Todos os outros são perdedores! Do contrário, a vitória não significa nada. Você quer que eu distribua certificados para todos os competidores? Dê um troféu de plástico para cada atleta e soldado, como prêmio de participação? Será que devemos todos nos enfileirar, apertar as mãos e dizer uns para os outros: Bom jogo? Não! A vitória tem que ser real. Deve ser merecida. Isso significa que precisa ser rara e difícil, contra todas as probabilidades, e a derrota é a única alternativa. Os dois cavalos da deusa começaram a se morder, como se estivessem entrando no espírito da coisa. — Hum… está bem — disse Leo. — Entendi que a senhora já tem uma opinião formada sobre o assunto. Mas a verdadeira guerra é contra Gaia. — Ele tem razão — disse Hazel. — Nice, a senhora conduziu a biga de Zeus na última guerra contra os gigantes, não foi? — É claro! — Então sabe que Gaia é o verdadeiro inimigo. Precisamos de sua ajuda para derrotá-la. A guerra não é entre gregos e romanos. — Os gregos devem morrer! — exclamou Vitória. — Vitória ou morte! — gritou Nice. — Um lado deve prevalecer! — Eu já estou cheio dessa conversa. É a mesma coisa que meu pai fica gritando na minha cabeça — resmungou Frank. Vitória olhou para ele. — Você é filho de Marte, não é? — disse a deusa. — Um pretor de Roma? Nenhum romano verdadeiro pouparia os gregos. Eu não posso tolerar ficar dividida e confusa, não consigo pensar direito! Mate-os! Vença! — Não vai rolar — disse Frank, apesar de Leo perceber que o olho direito de Zhang tremia. Leo também estava lutando. Nice emanava ondas de tensão, inflamando seus nervos. Ele sentia como se estivesse agachado e em posição na linha de largada esperando que alguém gritasse: “Vai!” Estava com o desejo irracional de apertar
o pescoço de Frank, o que era estupidez, já que suas mãos não conseguiriam nem envolver todo o pescoço dele. — Olhe, dona Vitória… — Percy tentou sorrir. — Não queremos interromper sua loucura. Talvez a senhora possa simplesmente terminar essa conversa consigo mesma, e nós voltamos depois, com… hum… algumas armas maiores e talvez uns sedativos. A deusa brandiu sua lança. — Vocês vão resolver essa questão de uma vez por todas! Hoje, agora, vocês vão decidir quem será vitorioso! Estão em quatro? Excelente! Faremos duplas. Talvez garotas contra garotos! Hazel disse: — Hum… não. — Com camisa contra sem camisa! — Não mesmo — disse Hazel. — Gregos contra romanos! — gritou Nice. — Sim, é claro! Dois e dois. O último semideus de pé será coroado vencedor. Os outros morrerão de maneira gloriosa. Um desejo de competir pulsava pelo corpo de Leo. Ele teve que se esforçar muito para não pegar um martelo em seu cinto de ferramentas e acertar Frank e Hazel na cabeça. Então ele entendeu por que Annabeth não quisera mandar ninguém cujos pais tivessem rivalidades inatas. Se Jason estivesse ali, ele e Percy provavelmente já estariam no chão querendo arrancar a cabeça um do outro. Ele se obrigou a relaxar. — Olhe, dona, nós não vamos começar os Jogos vorazes aqui. Não vai rolar. — Mas você receberá honrarias fabulosas! — Nice pegou, de uma cesta ao seu lado, uma coroa espessa de folha de louros. — Esta coroa de folhas pode ser sua! Você pode usá-la na cabeça! Pense na glória! — Leo tem razão — disse Frank, apesar de estar com os olhos fixos na coroa. Tinha uma expressão um pouco cobiçosa demais para o gosto de Leo. — Nós não lutamos uns contra os outros. Nós lutamos contra os gigantes. A senhora deveria nos ajudar. — Muito bem! A deusa ergueu a coroa de louros em uma das mãos e a lança na outra. Percy e Leo se entreolharam. — Hum… isso significa que a senhora vai nos ajudar? — perguntou Percy. — Vai combater os gigantes? — Isso será parte do prêmio — disse Nice. — Quem vencer, eu vou considerar meu aliado. Vamos lutar juntos contra os gigantes, e eu vou conceder a vitória a vocês. Mas só pode haver um vencedor. Os outros devem ser derrotados, mortos, totalmente destruídos. Então, o que decidem, semideuses?
Vocês terão sucesso em sua missão ou vão se apegar a ideias tolas de amizade e prêmios de participação nos quais todos vencem? Percy destampou sua caneta. Contracorrente cresceu e se transformou em uma espada de bronze celestial. Leo teve medo de que Percy a usasse contra eles. Era difícil demais resistir à aura de Nice. Em vez disso, porém, Percy apontou sua lâmina para a deusa. — E se nós a enfrentássemos? — Há! — Os olhos de Nice brilharam. — Caso se recusem a lutar uns contra os outros, vocês serão persuadidos! Nice abriu as asas, e quatro penas de metal caíram, rodopiando como ginastas, crescendo e desenvolvendo pernas e braços até tocarem o solo como quatro réplicas metálicas em tamanho humano da deusa, cada uma armada com uma lança de ouro e uma coroa de louros de bronze celestial que se parecia sinistramente com um frisbee de arame farpado. — Para o estádio! — gritou Nice. — Vocês têm cinco minutos para se preparar. Depois teremos derramamento de sangue!
* * *
Leo estava prestes a dizer: E se nos recusarmos a ir para o estádio? Ele nem precisou fazer a pergunta. — Corram! — berrou Nice. — Vão para o estádio, ou minhas Niceias vão matá-los aí onde estão! As mulheres de metal abriram as mandíbulas e emitiram um som que parecia a torcida do Superbowl com eco. Elas brandiram as lanças e investiram contra os semideuses. Não foi o melhor momento de Leo. Ele foi tomado pelo pânico e saiu correndo. O único consolo foi que seus amigos fizeram a mesma coisa, e eles não eram nada covardes. As quatro mulheres de metal os seguiram formando um semicírculo espaçado. Todos os turistas haviam desaparecido. Talvez tivessem escapado para o conforto do ar-condicionado do museu, ou talvez Nice os tivesse de algum modo forçado a sair dali. Os semideuses correram, tropeçando em pedras, saltando paredes desmoronadas, desviando de colunas e de placas de informação. Atrás deles, as rodas da biga de Nice faziam um estrondo e seus cavalos relinchavam. Sempre que Leo pensava em reduzir a velocidade, as mulheres de metal gritavam de novo (do que Nice as havia chamado mesmo? Niceias? Nicetes?), deixando-o apavorado.
Ele odiava ficar apavorado. Era vergonhoso. — Por aqui! — Frank acelerou na direção de uma espécie de abertura entre dois muros de terra encimados por uma arcada de pedra. Aquilo lembrou Leo dos túneis pelos quais os jogadores de futebol americano entram correndo no campo. — Esta é a entrada do antigo estádio olímpico. É chamada de “A cripta”! — Não é um bom nome! — berrou Leo. — Por que estamos indo para lá? — perguntou Percy, arfante. — Se é onde ela nos quer… As Nicetes gritaram de novo, e todo pensamento racional abandonou Leo. Ele correu para o túnel. Quando chegaram ao arco, Hazel gritou: — Esperem! Eles pararam aos solavancos. Percy se inclinou para a frente, com dificuldade para respirar. Leo percebeu que ele parecia estar perdendo o fôlego com mais facilidade do que antes, provavelmente por causa do terrível ar ácido que tinha sido forçado a respirar no Tártaro. Frank olhou para trás. — Não as vejo mais. Elas desapareceram. — Será que desistiram? — perguntou Percy, cheio de esperança. Leo examinou as ruínas. — Não. Só nos conduziram até onde queriam que chegássemos. Mas o que, afinal, eram aquelas coisas? As Nicetes… — Nicetes? — Frank coçou a cabeça. — Acho que eram Niceias. — É. — Hazel parecia mergulhada em pensamentos enquanto passava a mão pelo arco de pedra. — Em algumas lendas, Nice tinha um exército de pequenas vitórias que podia enviar a qualquer lugar do mundo. — Como os duendes do Papai Noel — disse Percy. — Só que do mal. E de metal. E muito barulhentas. Hazel pressionou os dedos contra o arco, como se estivesse sentindo sua pulsação. Depois do túnel estreito, as paredes de terra se abriam em um descampado amplo com elevações suaves dos dois lados, como arquibancadas. Leo achou que, naqueles tempos, o estádio devia ser ao ar livre e grande o suficiente para arremesso de disco, lançamento de dardo, arremesso de peso nu ou o que mais aqueles gregos malucos costumassem fazer para ganhar um monte de folhas. — Este lugar é assombrado — murmurou Hazel. — As pedras estão embebidas em muito sofrimento. — Por favor, me diga que você tem um plano — pediu Leo. — De preferência, um que não envolva embeber meu sofrimento nessas pedras. Os olhos de Hazel estavam tempestuosos e distantes, do jeito que tinham ficado na Casa de Hades, como se ela estivesse olhando para outra realidade.
— Essa era a entrada dos competidores. Nice disse que nós temos cinco minutos para nos preparar. Depois ela espera que passemos pela arcada e comecemos os jogos. Não temos permissão para deixar o campo até que um de nós saia vitorioso. Percy se apoiou em sua espada. — Tenho quase certeza de que lutas até a morte não eram um esporte olímpico. — Bem, hoje são — murmurou Hazel. — Mas posso garantir alguma vantagem para nós. Quando passarmos, vou erguer alguns obstáculos no campo… esconderijos para ganharmos tempo. Frank franziu a testa. — Como no Campo de Marte… trincheiras, túneis, esse tipo de coisa? Você consegue fazer isso com a Névoa? — Acho que sim. Nice provavelmente iria gostar de ver uma pista de obstáculos. Posso usar essas expectativas contra ela mesma. Mas seria mais do que isso. Posso utilizar qualquer passagem subterrânea, até mesmo este túnel, para acessar o Labirinto. Posso trazer parte dele para a superfície. — Ei, ei, ei. — Percy fez um sinal pedindo tempo. — O Labirinto é do mal. Já discutimos isso. — Hazel, ele tem razão. — Leo se lembrava muito bem de como ela o conduzira pelo labirinto ilusório na Casa de Hades. Eles quase morriam a cada dois metros. — Quer dizer, eu sei que você é boa com magia. Mas já temos quatro Nicetes histéricas com que nos preocupar… — Vocês vão ter que confiar em mim — disse ela. — Agora só temos dois minutos. Quando passarmos pelos arcos, poderei pelo menos manipular o terreno em nosso favor. Percy soltou um suspiro. — Já é a segunda vez que sou forçado a lutar em estádios; uma em Roma e, antes disso, no próprio Labirinto. Odeio participar de joguinhos para a diversão dos outros. — Nenhum de nós gosta — afirmou Hazel. — Mas temos que surpreender Nice. Vamos fingir lutar até conseguir neutralizar aquelas Nicetes… Nossa, esse nome é horroroso. Então deteremos Nice, como Juno disse. — Faz sentido — concordou Frank. — Vocês sentiram como ela estava poderosa, tentando fazer com que pulássemos na garganta um do outro. Se Nice estiver emanando essas vibrações para todos os gregos e romanos, não teremos como impedir uma guerra. Precisamos detê-la. — E como vamos fazer isso? — perguntou Percy. — Batemos na cabeça dela e a jogamos em um saco? As engrenagens mentais de Leo começaram a girar.
— Na verdade — disse ele —, é mais ou menos isso. Tio Leo trouxe brinquedos para todos vocês, pequenos semideuses.
XII
LEO
DOIS MINUTOS NÃO FORAM SUFICIENTES. Leo esperava ter dado a todo mundo os equipamentos certos e explicado corretamente o que todos os botões faziam. Do contrário, a coisa ia ficar feia. Enquanto ele explicava mecânica arquimediana a Frank e Percy, Hazel olhava para a arcada de pedra e murmurava baixinho. Nada parecia diferente no grande campo gramado adiante, mas Leo estava certo de que Hazel tinha algum belo truque da Névoa guardado na manga. Ele estava acabando de explicar a Frank como não ser decapitado por sua própria esfera de Arquimedes quando o som de trombetas ecoou pelo estádio. A biga de Nice surgiu no campo, as Nicetes posicionadas em frente, com as lanças e coroas de louros erguidas. — Comecem! — gritou a deusa. Percy e Leo passaram correndo pela arcada. Imediatamente o campo tremeluziu e se transformou em um labirinto de muros de tijolos e trincheiras. Eles se agacharam atrás do muro mais próximo e foram para a esquerda. Atrás, nos arcos, Frank gritou: — Hã… morra, graecus nojento! Uma flecha muito sem mira passou voando por cima da cabeça de Leo. — Mais violência! — berrou Nice. — Mate com mais vontade! Leo olhou para Percy. — Pronto? Percy pegou uma granada de bronze. — Espero que você tenha identificado isso direito. — Então ele gritou: — Morram, romanos! E arremessou a granada por cima do muro. BUM! Leo não conseguiu ver a explosão, mas o cheiro de pipoca amanteigada encheu o ar. — Ah, não! — gemeu Hazel. — Pipoca! Nosso ponto fraco! Frank lançou outra flecha acima da cabeça deles. Leo e Percy correram para a esquerda, desaparecendo em um labirinto de muros que parecia mudar e fazer curvas por conta própria. Leo ainda conseguia ver o céu, mas começou a se sentir claustrofóbico, com a respiração difícil. De algum lugar atrás deles, Nice gritou: — Esforcem-se mais! Essa pipoca não era fatal!
Pelo barulho que as rodas da biga faziam, Leo calculou que ela estivesse dando a volta no perímetro do campo. A perfeita volta olímpica em Olímpia. Outra granada explodiu acima das cabeças dos dois. Eles mergulharam atrás de uma trincheira quando as chamas verdes do fogo grego queimaram as pontas do cabelo de Leo. Felizmente, Frank tinha mirado alto o bastante para que a explosão apenas impressionasse. — Assim é melhor! — exclamou Nice. — Mas onde está sua pontaria? Você não quer esta coroa de folhas? — Queria que o rio fosse mais perto — murmurou Percy. — Eu estou com vontade de afogá-la. — Seja paciente, garoto da água. — Não me chame de garoto da água. Leo apontou para o outro lado do estádio. Os muros tinham mudado de posição, revelando uma das Nicetes a cerca de trinta metros de distância, parada de costas para eles. Hazel devia estar fazendo seu trabalho, manipulando o labirinto para isolar seus alvos. — Eu distraio — disse Leo. — Você ataca. Pronto? Percy assentiu. — Vai. Ele saiu correndo para a esquerda enquanto Leo puxava um martelo de seu cinto de ferramentas e gritava: — Ei, bundona de bronze! A Nicete se virou quando Leo arremessou a ferramenta. O martelo bateu inofensivamente no peito de metal da mulher, mas isso deve tê-la aborrecido. Ela foi na direção dele, erguendo sua coroa de louros de arame farpado. — Ops. Leo se agachou quando o aro de metal passou girando acima de sua cabeça. A coroa acertou um muro atrás dele, abrindo um buraco nos tijolos, depois fez uma volta em arco e voltou pelo ar como um bumerangue. Quando a Nicete levantou o braço para pegá-la, Percy surgiu da trincheira atrás dela e golpeou com Contracorrente, cortando a Nicete ao meio. A coroa de metal passou por ele e se cravou em uma coluna de mármore. — Falta! — gritou a deusa. Os muros mudaram de lugar, e Leo a viu correr na direção deles em sua biga. — Não se ataca as Niceias! A menos que você queira morrer! Uma trincheira surgiu no caminho da deusa, fazendo seus cavalos refugarem. Leo e Percy correram para se abrigar. A uns cinquenta metros de distância, Leo viu pelo canto do olho Frank, o urso-pardo, pular do alto de um muro e esmagar uma Nicete. Duas bundonas de bronze a menos; faltavam duas. — Não! — gritou Nice, furiosa. — Não, não, não! Vocês estão perdidos! Niceias, ataquem!
Leo e Percy se esconderam atrás de um muro. Ficaram ali por um segundo, tentando recuperar o fôlego. Leo estava com dificuldade para se localizar, mas ele achava que isso era parte do plano de Hazel. Ela fazia o terreno mudar em torno deles, abrindo novas trincheiras, mudando a inclinação do solo, erguendo novos muros e colunas. Com sorte, ela iria tornar mais difícil para as Nicetes encontrá-los. Avançar apenas dez metros podia custar a elas vários minutos. Mesmo assim, o garoto odiava ficar desorientado. Isso lhe lembrava sua impotência na Casa de Hades, a forma como Clítio o havia aprisionado na escuridão, apagando seu fogo, tomando posse de sua voz. Lembrava-lhe Quione, arrancando-o do convés do Argo II com uma lufada de vento e o lançando do outro lado do Mediterrâneo. Já era bem ruim ser magro e fraco. Se Leo não pudesse controlar os próprios sentidos, a própria voz, o próprio corpo… não sobrava muita coisa na qual ele pudesse confiar. — Ei — disse Percy. — Se a gente não conseguir sair dessa… — Cale a boca, cara. Nós vamos conseguir. — Se não, eu quero que você saiba… que me sinto mal por causa de Calipso. Eu vacilei com ela. Leo olhou para ele, pasmo. — Você sabre sobre mim e… — O Argo II é um barco pequeno. — Percy deu um sorriso sem graça. — As pessoas comentam. Eu só… bem, quando estava no Tártaro, fui lembrado de que não tinha cumprido a promessa que havia feito a Calipso. Eu pedi aos deuses que a libertassem, e então… simplesmente achei que eles fossem fazer isso. Aí tive amnésia, fui mandado para o Acampamento Júpiter e tudo o mais, e não pensei muito em Calipso depois de tudo isso. Não estou inventando desculpas. Eu deveria ter garantido que os deuses cumprissem sua promessa. Enfim, fico feliz que você a tenha encontrado. Você prometeu descobrir um modo de voltar para ela, e eu só queria dizer que se sobrevivermos a isso tudo, vou fazer o que puder para ajudar você. Esta é uma promessa que eu vou cumprir. Leo ficou sem palavras. Lá estavam os dois, escondidos atrás de um muro no meio de uma zona de guerra mágica, com granadas e ursos-pardos e Nicetes bundonas de bronze com que se preocupar, e lá vinha Percy com aquela história para cima dele. — Cara, qual é o seu problema? — resmungou Leo. Percy ficou mudo por alguns segundos. — Então… acho que as coisas não estão bem entre nós, não é? — Claro que não! Você é tão ruim quanto Jason! Estou tentando ficar com raiva de você por ser todo perfeito e heroico e tudo o mais. Aí você vai e faz uma
coisa legal. Como eu posso odiar alguém que pede desculpas e promete ajudar e fazer o que puder? Um sorriso surgiu no canto da boca de Percy. — Desculpe por isso. O chão tremeu quando outra granada explodiu, lançando jatos de chantilly no ar. — É o sinal de Hazel — disse Leo. — Eles pegaram outra Nicete. Percy espiou do outro lado do muro. Até aquele momento, Leo não havia percebido quanto rancor ele sentia de Percy. O cara sempre o intimidara. Saber que Calipso tinha sido apaixonada por ele tornava o sentimento dez vezes pior. Mas o nó de raiva em suas entranhas começava a se desfazer. Leo não conseguia não gostar dele. Percy parecia sincero ao se dizer arrependido e disposto a ajudar. Além disso, Leo finalmente tinha a confirmação de que Percy Jackson estava fora da jogada com Calipso. A área estava limpa. Tudo o que Leo precisava fazer era encontrar o caminho de volta para Ogígia. E ele ia fazer isso. Desde que sobrevivesse aos próximos dez dias. — Só falta uma Nicete — disse Percy. — O que será que… Em algum lugar próximo, Hazel soltou um grito de dor. Leo ficou de pé instantaneamente. — Ei, espere! — gritou Percy, mas Leo saiu pelo labirinto com o coração acelerado. Muros desmoronavam por todos os lados. Leo se viu em uma faixa de campo aberto. Frank estava na extremidade oposta do estádio, lançando flechas de fogo na biga de Nice enquanto a deusa berrava insultos e tentava encontrar um caminho até ele através da rede móvel de trincheiras. Hazel estava mais perto, talvez a uns vinte metros de distância. A quarta Nicete obviamente a havia apanhado de surpresa. Hazel estava fugindo mancando de sua agressora, a calça jeans rasgada e a perna esquerda sangrando. Ela se defendia da lança da mulher de metal com sua grande espada de cavalaria, mas estava prestes a ser derrotada. Por toda a sua volta, a Névoa tremeluzia como um estroboscópio se apagando. Hazel estava perdendo o controle sobre o labirinto mágico. — Eu vou ajudá-la — disse Percy. — Siga o plano. Concentre-se na biga de Nice. — Mas o plano era eliminar todas as quatro Nicetes primeiro! — Então mude o plano e depois o siga! — Isso não faz o menor sentido, mas vá! Vá ajudá-la! Percy correu em defesa de Hazel. Leo correu na direção de Nice, gritando: — Ei! Eu quero um prêmio de participação!
— Argh! — A deusa puxou as rédeas e virou a biga na direção dele. — Vou destruir você! — Ótimo! — gritou Leo. — Perder é muito melhor que vencer! — O QUÊ? Nice arremessou sua lança poderosa, mas errou a pontaria devido ao movimento da biga. A arma caiu sobre a grama. Infelizmente, uma nova lança surgiu em suas mãos. Ela tocou os cavalos a toda a velocidade. As trincheiras desapareceram, deixando um espaço aberto, perfeito para atropelar pequenos semideuses latinos. — Ei! — gritou Frank, do outro lado do estádio. — Eu também quero um prêmio de participação! Todo mundo ganha! Ele lançou uma flecha bem-mirada que acertou a traseira da biga de Nice e começou a queimar. Nice a ignorou. Seus olhos estavam fixos em Leo. — Percy…? A voz de Leo soou como o guincho de um hamster. Ele pegou uma esfera de Arquimedes de seu cinto de ferramentas e girou os anéis concêntricos para armá-la. Percy ainda enfrentava a última mulher de metal. Leo não podia esperar. Ele lançou a esfera na trajetória da biga. A esfera caiu no chão e se enterrou, mas Leo precisava que Percy disparasse a armadilha. Se Nice havia pressentido qualquer ameaça, não dera muita importância. Ela continuava em rota de colisão com o filho de Hefesto. A biga estava a uns seis metros da granada. Cinco metros. — Percy! — gritou Leo. — Operação balão d’água! Infelizmente, o garoto estava um pouco ocupado levando uma surra. A Nicete o empurrou para trás com a haste da lança. Ela lançou sua coroa com tanta força que arrancou a espada da mão de Percy. Ele tropeçou. A mulher metálica avançou para matá-lo. Leo gritou. Ele sabia que a distância era muito grande. Sabia que se não saísse do caminho naquele instante, Nice iria atropelá-lo. Mas isso não importava. Seus amigos estavam prestes a virar espetinho. Ele estendeu a mão e lançou um jato de fogo branco causticante direto na Nicete. Aquilo literalmente derreteu o rosto da Nicete, que cambaleou com a lança ainda em punho. Antes que ela conseguisse recuperar o equilíbrio, Hazel golpeou com sua spatha, enfiando-a no peito da mulher de metal. A Nicete caiu na grama. Percy se virou para a deusa da vitória. No momento em que os enormes cavalos brancos estavam prestes a atropelar Leo, a biga passou por cima da granada enterrada, que explodiu em um gêiser de alta pressão. Um jato de água jorrou para cima e virou o veículo, com cavalo, deusa e tudo o mais.
Em Houston, Leo morava com a mãe perto de uma saída da Autoestrada Gulf. Ele ouvia acidentes de carro pelo menos uma vez por semana, mas aquele som foi pior: bronze celestial amassando, madeira quebrando, garanhões relinchando e uma deusa gritando em duas vozes distintas, ambas muito surpresas. Hazel tombou. Percy a segurou. Frank correu na direção deles, vindo lá do outro lado do estádio. Leo estava por conta própria enquanto a deusa Nice se livrava dos destroços e se levantava para encará-lo. Seu penteado agora parecia um monte de esterco de vaca pisado. Uma coroa de louros estava presa em volta de seu tornozelo esquerdo. Os cavalos se ergueram e fugiram galopando em pânico, arrastando os destroços encharcados e chamuscados da biga atrás deles. — VOCÊ! — Nice encarava Leo com olhos mais quentes e brilhantes que suas asas de metal. — Como ousa? Leo não se sentia muito corajoso, mas forçou um sorriso. — Eu sei, sou fantástico! Eu ganho um chapéu de folhas agora? — Você vai morrer! A deusa levantou a lança. — Espere um pouco! — Leo apalpou seu cinto de ferramentas à procura de algo. — Você ainda não viu meu melhor truque. Tenho uma arma capaz de vencer qualquer disputa! Nice hesitou. — Que arma? O que você quer dizer com isso? — Minha arma de raios automática definitiva! — Ele pegou uma segunda esfera de Arquimedes, a que ele tinha passado trinta segundos modificando antes de entrarem no estádio. — Quantas coroas de louros você tem? Porque eu vou ganhar todas elas. Ele ajustou os anéis, torcendo para ter feito os cálculos corretamente. Leo estava fazendo esferas melhores, mas elas ainda não eram completamente confiáveis. Estavam mais para vinte por cento confiáveis. Seria bom ter a ajuda de Calipso para tecer os filamentos de bronze celestial. Ela tecia muito bem. Ou Annabeth. Que também não era nenhuma amadora. Mas Leo fizera o melhor possível, reprogramando a esfera para realizar duas funções completamente diferentes. — Observe! Leo acertou o último anel. A esfera se abriu. Um lado se alongou para formar o cabo de um revólver. O outro se desdobrou em uma antena em miniatura feita de espelhos de bronze celestial. — O que isso aí deveria ser? — perguntou Nice, franzindo o cenho. — Um raio da morte de Arquimedes! — disse Leo. — Eu finalmente o aperfeiçoei. Agora me dê todos os prêmios.
— Essas coisas não funcionam! — gritou Nice. — Eles testaram na televisão! Além disso, eu sou uma deusa imortal. Você não pode me destruir. — Preste atenção — disse Leo. — Está vendo? Nice podia tê-lo desintegrado em uma mancha de gordura ou o perfurado com a lança como se ele fosse uma fatia de queijo, mas sua curiosidade falou mais alto. Ela olhou diretamente para a antena quando Leo girou o botão. Ele sabia que deveria desviar os olhos. Mesmo assim, o raio extremamente forte de luz o deixou vendo pontinhos pretos. — Argh! — A deusa cambaleou. Ela deixou a lança cair e levou as mãos aos olhos. — Estou cega! Estou cega! Leo apertou outro botão em seu raio da morte, que voltou a se transformar em uma esfera e começou a emitir um zunido. Leo contou em silêncio até três, então jogou a esfera aos pés da deusa. PUF! Filamentos de metal foram arremessados para o alto e envolveram Nice em uma rede de bronze. Ela gritou e caiu no chão conforme a rede a esmagava como uma jiboia, juntando à força seus dois aspectos, grego e romano, em uma única forma trêmula e fora de foco. — Trapaceiro! — Suas vozes duplicadas zumbiam como despertadores abafados. — Seu raio da morte nem mesmo me matou! — Eu não preciso matá-la — disse Leo. — Eu a derrotei para valer. — Vou simplesmente mudar de forma! — exclamou ela. — Vou destruir essa sua rede idiota! Vou destruir você! — É… bem, sabe, você não pode. — Leo torcia para estar certo. — Isso é uma rede de bronze celestial de alta qualidade, e eu sou filho de Hefesto. Ele é meio que especialista em prender deusas em redes. — Não. Nãããooooo! Leo a deixou esperneando e xingando e foi ver como estavam seus amigos. Percy parecia bem, só dolorido e cheio de hematomas. Frank levantou Hazel e lhe deu um pouco de ambrosia. O corte na perna dela tinha parado de sangrar, apesar de sua calça jeans estar destruída. — Eu estou bem — disse ela. — Foi só magia demais. — Você foi incrível, Levesque. — Leo fez sua melhor imitação da voz de Hazel: — Pipoca! Nosso ponto fraco! Ela deu um sorriso cansado. Juntos, os quatro foram até Nice, que ainda se contorcia e agitava as asas dentro da rede, como uma galinha dourada. — O que fazemos com ela? — perguntou Percy. — Vamos levá-la para o Argo II — disse Leo — e enfiá-la em uma das baias. Hazel arregalou os olhos. — Você vai prender a deusa da vitória no estábulo?
— Por que não? Quando resolvermos as coisas entre os gregos e romanos, os deuses vão voltar ao normal. Aí poderemos libertá-la, e ela vai poder… vocês sabem… nos conceder a vitória. — Conceder a vitória a vocês? — gritou a deusa. — Nunca! Vocês irão sofrer por esse ultraje! Seu sangue será derramado! Um de vocês quatro está destinado a morrer lutando contra Gaia! Os intestinos de Leo se enrolaram e deram um nó. — Como você sabe? — Eu posso prever vitórias! — exclamou Nice. — Vocês não terão sucesso sem morte! Soltem-me e lutem uns contra os outros! É melhor morrerem aqui do que encarar o que está por vir! Hazel pressionou a ponta de sua spatha no pescoço de Nice. — Explique. — A voz dela estava mais dura do que Leo jamais havia ouvido. — Quem de nós vai morrer? Como evitamos isso? — Ah, uma filha de Plutão! Sua magia ajudou a trapacear nesta competição, mas você não pode trapacear o destino. Um de vocês vai morrer. Um de vocês precisa morrer! — Não — insistiu Hazel. — Há outra maneira. Sempre há outra maneira. — Hécate lhe ensinou isso? — Nice riu. — Talvez você também conte com a cura do médico. Mas é impossível. Há muita coisa em seu caminho: o veneno de Pilos, os batimentos do deus acorrentado em Esparta, a maldição de Delos! Não, vocês não podem enganar a morte. Frank se ajoelhou e puxou a rede na altura do queixo de Nice, aproximando o rosto dela do dele. — De que você está falando? Como encontramos essas coisas? — Não vou ajudar vocês — resmungou Nice. — Vou amaldiçoá-los com meu poder, com ou sem rede! Ela começou a murmurar em grego antigo. Frank olhou para os outros, sério. — Ela pode mesmo fazer magia através desta rede? — Como é que eu vou saber? — respondeu Leo. Frank largou a deusa. Ele descalçou um de seus sapatos, tirou a meia e a enfiou na boca de Nice. — Cara — disse Percy —, isso é nojento. — Hummmmmphhhh! — reclamou Nice. — Hummmmmphhhh! — Leo — disse Frank, com seriedade —, você tem fita adesiva? — Nunca saio de casa sem. Ele tirou um rolo de seu cinto de ferramentas, e na mesma hora Frank enrolou a fita em volta da cabeça de Nice, amordaçando-a com firmeza. — Bem, não é uma coroa de louros — disse Frank. — Mas é um novo tipo de símbolo da vitória: a mordaça de fita adesiva.
— Zhang — disse Leo —, você tem estilo. Nice esperneava e grunhia, até que Percy a cutucou com a ponta do pé. — Ei, cale a boca. Ou se comporta, ou a gente vai trazer Arion de volta e deixar que ele coma as suas asas. Ele adora ouro. Nice soltou um guincho agudo, depois ficou quieta e imóvel. — Então… — Hazel pareceu um pouco nervosa. — Temos uma deusa amarrada. E agora? Frank cruzou os braços. — Vamos procurar a cura desse médico… seja lá o que for. Porque, pessoalmente, eu gosto de enganar a morte. Leo sorriu. — Veneno em Pilos? Os batimentos do deus acorrentado em Esparta? Uma maldição em Delos? Tudo bem. Isso vai ser divertido!
XIII
NICO
A ÚLTIMA COISA QUE NICO ouviu foi o resmungo do treinador Hedge: — Hum. Isso não é bom. O menino se perguntou o que tinha feito de errado dessa vez. Talvez os houvesse transportado para um antro de ciclopes ou tivessem ido parar trezentos metros acima de outro vulcão. Mas não havia nada que ele pudesse fazer. Tinha perdido a visão. Seus outros sentidos estavam se embotando. Então seus joelhos cederam, e ele desmaiou. Nico tentou aproveitar ao máximo sua inconsciência. Sonhos e morte eram velhos amigos. Ele sabia como navegar pela sombria fronteira entre ambos. Assim, enviou seus pensamentos à procura de Thalia Grace. Passou depressa pelos habituais fragmentos de lembranças dolorosas: a mãe sorrindo para ele, o rosto iluminado pelo sol que se refletia no Grande Canal de Veneza; a irmã Bianca rindo enquanto o arrastava por um shopping de Washington, D.C., com seu chapéu verde cobrindo os olhos e as sardas do nariz. Também viu Percy Jackson em um penhasco coberto de neve em frente à Westover Hall, protegendo Nico e Bianca do manticore, enquanto Nico, segurando a estatueta de Mitomagia, murmurava: Estou com medo. Viu Minos, seu antigo mentor fantasma, conduzindo-o pelo Labirinto. O sorriso de Minos era frio e cruel. Não se preocupe, filho de Hades. Você terá sua vingança. Era impossível, para ele, evitar que as recordações aflorassem, que inundassem seus sonhos como os fantasmas de Asfódelos, uma multidão triste e sem destino implorando por atenção. Salve-me, pareciam sussurrar eles. Lembrese de mim. Ajude-me. Conforte-me. Ele não se atrevia a parar e ficar remoendo lembranças, não podia perder tempo. De que lhe serviriam? Só o deixariam arrasado, imerso em desejos e arrependimentos. O melhor a se fazer era manter o foco e seguir em frente. Sou o filho de Hades, pensou. Vou a qualquer lugar que desejar. As trevas são meu direito inato. Nico seguiu, penosamente, por um terreno cinza e negro, procurando os sonhos de Thalia Grace, filha de Zeus. Em vez disso, porém, o chão se dissolveu a seus pés e ele caiu em um lugar distante, mas familiar: o chalé de Hipnos, no Acampamento Meio-Sangue. Semideuses ressonavam nos beliches, debaixo de pilhas de edredons. De um galho escuro posicionado logo acima da cornija da lareira gotejava a água leitosa
do Rio Lete, coletada em uma grande bacia. Um fogo agradável crepitava na lareira. Em uma poltrona de couro diante do fogo cochilava o conselheiro-chefe do chalé 15, um sujeito barrigudo com cabelo louro despenteado e rosto apático. — Clovis — resmungou Nico —, pelo amor dos deuses, pare de sonhar com tanta energia! Clovis abriu os olhos devagar. Virou-se e olhou para Nico, apesar de Nico saber que isso era apenas parte do sonho de Clovis. O verdadeiro Clovis ainda estava roncando em sua poltrona lá no acampamento. — Ah, oi… — Clovis escancarou a boca em um bocejo. Parecia capaz de engolir um deus menor. — Desculpe. Desviei você do seu caminho de novo? Nico rangeu os dentes. Não adiantava se aborrecer. O chalé de Hipnos era como a Estação Grand Central das atividades dos sonhos: não dava para viajar a lugar algum sem passar por lá de vez em quando. — Já que estou aqui… — disse Nico. — Transmita uma mensagem minha. Diga a Quíron que estou a caminho com alguns amigos. Estamos levando a Atena Partenos. Clovis esfregou os olhos. — Então é verdade? Mas como vocês vão carregá-la? Alugaram uma van ou algo do tipo? Nico explicou do modo mais conciso possível. Mensagens enviadas por sonhos geralmente apresentavam detalhes difusos, ainda mais quando o interlocutor era Clovis. Quanto mais simples, melhor. — Estamos sendo seguidos por um caçador — explicou Nico. — Acho que é um dos gigantes de Gaia. Pode transmitir esse recado a Thalia Grace? Você é melhor do que eu em encontrar pessoas nos sonhos. Preciso da ajuda dela. — Vou tentar. — Clovis tateou a mesinha ao lado da poltrona, à procura de uma caneca de chocolate quente. — Ah, antes que você vá, tem um segundo? — Clovis, isto é um sonho — lembrou-o Nico. — O tempo é fluido. Mesmo ao dizer isso, Nico ficou preocupado com o que estaria acontecendo no mundo real. Seu corpo físico talvez estivesse mergulhando em direção à morte ou cercado por monstros. Mas ele não podia se forçar a despertar, não depois da quantidade de energia que havia despendido para viajar nas sombras várias vezes. Clovis assentiu. — É verdade… Bem, acho que você deveria ver o que aconteceu hoje no conselho de guerra. Eu dormi durante algumas partes, mas… — Me mostre — pediu Nico. A cena mudou. Nico se viu na sala de recreação da Casa Grande, com todos os líderes do acampamento reunidos à mesa de pingue-pongue. O centauro Quíron estava a uma das cabeceiras, a parte equina de seu corpo encolhida na cadeira de rodas mágica, o que fez com que ele parecesse um
humano normal. Sua barba e seu cabelo castanhos e cacheados tinham mais fios brancos do que alguns meses antes, rugas profundas marcavam seu rosto. — …coisas que não podemos controlar — dizia ele. — Agora vamos repassar nossas defesas. Qual é a nossa situação? Clarisse, do chalé de Ares, sentou-se mais para a frente na cadeira. Ela era a única de armadura completa, o que era a cara dela: Clarisse devia dormir de uniforme de combate. Enquanto falava, gesticulava com a adaga, levando os outros conselheiros a se inclinarem para longe dela. — Nossa linha de defesa é bastante sólida — disse ela. — Os campistas estão prontos para lutar como nunca antes. Nós controlamos a praia. Nossas trirremes não têm rivais no Estreito de Long Island, mas aquelas idiotas daquelas águias gigantes dominam nosso espaço aéreo. No interior, em todas as três direções, os bárbaros nos isolaram completamente. — Eles são romanos — opinou Rachel Dare, rabiscando com uma caneta pilot na calça jeans —, não bárbaros. Clarisse apontou a adaga para Rachel. — E os aliados deles? Você não viu aquela tribo de homens de duas cabeças que chegou ontem? Ou ainda os caras com cabeça de cachorro vermelhosangue, com uns machados de guerra enormes? Eles me parecem bastante bárbaros. Teria sido bom se você tivesse previsto alguma dessas coisas, se o seu poder de oráculo não tivesse falhado quando mais precisávamos! O rosto de Rachel ficou tão vermelho quanto seu cabelo. — Não tenho culpa nenhuma nisso. Tem alguma coisa errada com o dom de profecia de Apolo. Se eu soubesse como resolver… — Ela tem razão. — Will Solace, conselheiro-chefe do chalé de Apolo, pôs a mão com delicadeza no pulso de Clarisse. Poucos membros do acampamento poderiam fazer isso sem ser esfaqueados, mas Will levava jeito para neutralizar a raiva das pessoas. E assim ele a fez baixar a adaga. — Todos do nosso chalé foram afetados. Não foi só Rachel. O cabelo louro despenteado e os olhos azul-claros de Will lembravam a Nico Jason Grace, mas as semelhanças paravam por aí. Jason era um lutador. Dava para ver isso na intensidade de seu olhar, seu estado de alerta constante, a energia acumulada em seu corpo. Will Solace parecia mais um gato espreguiçando-se ao sol. Seus movimentos eram relaxados e inofensivos, o olhar tranquilo e distante. Com uma camiseta desbotada em que se lia SURF BARBADOS, uma calça transformada em short e chinelos, ele não parecia nem um pouco agressivo para um semideus, mas Nico sabia que, na hora da verdade, ele era corajoso. Nico o tinha visto em ação durante a Batalha de Manhattan, o melhor curandeiro do acampamento, arriscando a própria vida para salvar campistas feridos.
— Não sabemos o que está acontecendo em Delfos — prosseguiu Will. — Meu pai não atendeu a nenhuma oração nem apareceu em nenhum sonho… Quer dizer, todos os deuses estão em silêncio, mas isso não faz muito o gênero de Apolo. Tem alguma coisa errada. Do outro lado da mesa, Jake Mason resmungou: — Aposto que é coisa desse romano imundo que está liderando o ataque. Octavian, acho que é esse o nome dele. Se eu fosse Apolo e meu descendente estivesse agindo desse jeito, morreria de vergonha. — Concordo — disse Will. — Ah, se eu fosse um arqueiro melhor… Não me importaria em acertar meu parente romano e derrubá-lo do alto daquele cavalo enorme dele. Na verdade, bem que eu queria poder usar qualquer um dos dons do meu pai para impedir essa guerra. — Ele baixou os olhos para as mãos, desgostoso. — Mas, infelizmente, sou apenas um curandeiro. — Seus talentos são essenciais — disse Quíron. — E, infelizmente, acho que em breve serão necessários. Quanto a ver o futuro… e a harpia Ella? Ela não nos deu nenhum conselho dos livros sibilinos? Rachel balançou a cabeça em negativa. — A coitada mal se aguenta de tanto medo. Harpias odeiam ficar presas. Desde que os romanos nos cercaram… bem, ela se sente aprisionada. Ela sabe que Octavian quer capturá-la, então Tyson e eu somos obrigados a fazer isso para evitar que ela saia voando. — O que seria suicídio. — Butch Walker, filho de Íris, cruzou os musculosos braços. — Com essas águias romanas pelo ar, não é seguro voar. Já perdi dois pégasos. — Pelo menos Tyson trouxe alguns de seus amigos ciclopes para ajudar — disse Rachel. — Já é alguma coisa. À mesa de comidas e bebidas, Connor Stoll riu. Tinha uma das mãos cheia de biscoitos Ritz e a outra com um naco de queijo. — Uma dúzia de ciclopes adultos? É uma notícia muito boa, isso sim! Além do mais, Lou Ellen e o restante do chalé de Hécate andam armando barreiras mágicas, e o chalé de Hermes inteiro está espalhando pelas colinas todo tipo de arapucas, armadilhas e surpresas para os romanos! Jake Mason franziu a testa. — A maioria das quais foi roubada do bunker 9 e do chalé de Hefesto. Clarisse concordou com um resmungo. — Eles roubaram até as minas terrestres em volta do chalé de Ares. Como pode, roubar minas terrestres ativas? — Nós as confiscamos em nome do esforço de guerra. — Connor jogou na boca um pedaço do queijo. — Além do mais, vocês têm muitos brinquedos por lá. Precisam dividir com os outros!
Quíron virou-se para a esquerda, onde o sátiro Grover Underwood estava sentado em silêncio, dedilhando sua flauta de Pã. — Grover? Quais são as notícias dos espíritos da natureza? Grover deu um suspiro. — Mesmo em um dia bom, é difícil organizar ninfas e dríades. Com Gaia se movimentando, elas estão quase tão desorientadas quanto os deuses. Katie e Miranda, do chalé de Deméter, estão lá fora agora mesmo, tentando ajudar, mas se a Mãe Terra despertar… — Ele lançou um olhar nervoso para os outros à mesa. — Bem, não posso prometer que as florestas estarão seguras. Nem as montanhas. Nem as plantações de morangos. Nem… — Que ótimo. — Jake Mason deu uma cotovelada de leve em Clovis, que começava a cochilar. — E então, o que fazemos? — Atacamos — respondeu Clarisse, dando um soco na mesa e assustando todo mundo. — Os romanos estão recebendo mais reforços a cada dia. Sabemos que eles planejam invadir em primeiro de agosto. Por que deixar que eles determinem quando começar a batalha? Tudo leva a crer que eles estão esperando para reunir mais forças. Já estão em maior número. Devemos atacar agora, antes que fiquem ainda mais fortes. Faremos a batalha chegar até eles! Malcolm, o conselheiro interino do chalé de Atena, tossiu na mão fechada. — Clarisse, eu entendo seu ponto de vista. Mas você não estudou engenharia romana? O acampamento temporário deles tem defesas mais sólidas que o MeioSangue. Se atacarmos na base deles, seremos massacrados. — Então vamos sentar e esperar? — retrucou Clarisse. — Deixar que eles reúnam todas as suas forças enquanto cada vez mais se aproxima o momento de Gaia despertar? A esposa do treinador Hedge está sob minha proteção. Eu não vou deixar que nada aconteça com ela. Ela está grávida. E devo minha vida a Hedge. Além disso, tenho treinado os campistas mais que você, Malcolm. O moral deles está baixo. Todo mundo está com medo. Se ficarmos sitiados por mais nove dias… — O melhor é seguirmos o plano de Annabeth. — Connor Stoll parecia sério como sempre, apesar da boca toda suja de farelos de biscoito. — Temos que esperá-la trazer aquela estátua mágica de Atena de volta. Clarisse revirou os olhos com desdém. — Se aquela pretora romana trouxer a estátua de volta, você quer dizer. Não entendo onde Annabeth estava com a cabeça quando resolveu colaborar com o inimigo… Mesmo se a romana conseguir nos trazer a estátua, o que é impossível, por que acreditaríamos que isso vai nos trazer a paz? A estátua chega e, de repente, os romanos vão baixar as armas e começar a dançar e a jogar flores? Rachel pousou a caneta na mesa.
— Annabeth sabe o que está fazendo. Temos que buscar a paz. A menos que consigamos unir gregos e romanos, os deuses não serão curados. A menos que os deuses sejam curados, não há como matar os gigantes. E a menos que matemos os gigantes… — Gaia vai despertar — completou Connor. — Fim do jogo. Olhe, Clarisse, Annabeth me mandou uma mensagem do Tártaro. Do Tártaro. Não é pouca coisa, não. Se alguém consegue fazer isso… bom, eu vou dar ouvidos a esse alguém. Clarisse abriu a boca para responder, mas, quando falou, foi com a voz do treinador Hedge: — Nico, acorde. Temos problemas.
XIV
NICO
NICO ERGUEU O CORPO TÃO rápido que deu uma cabeçada no nariz do sátiro. — AI! Nossa, garoto, que cabeça mais dura! — D-desculpe, treinador. — Nico piscou repetidas vezes, tentando se situar. — O que está havendo? Ele não viu nenhum perigo imediato. Estavam acampados em um gramado ensolarado no meio de uma praça pública. Canteiros de cravos-de-defunto laranja floresciam a sua volta. Reyna dormia encolhida, os cães de metal a seus pés. Perto dali, crianças brincavam de pique em volta de uma fonte de mármore branco. Em uma cafeteria próxima, meia dúzia de pessoas tomava café diante de mesas dispostas na calçada, à sombra de guarda-sóis. Na rua, havia apenas algumas vans de entrega estacionadas em torno da praça, sem nenhum carro passando. Os únicos pedestres eram algumas famílias, provavelmente habitantes locais, aproveitando a agradável tarde de calor. A praça em si era uma área com calçamento de pedra cercada por prédios de estuque e limoeiros. No centro, havia as ruínas bem-preservadas de um templo romano. A base era quadrada, com quinze metros de comprimento por quatro de altura. A fachada de colunas coríntias, intacta, erguia-se quase dez metros mais. E no alto da colunata… Nico sentiu a boca ficar seca. — Pelo Estige… A Atena Partenos estava deitada de lado sobre a cornija, como uma cantora de boate deitada em cima de um piano. No comprimento, ela cabia quase perfeitamente, mas, com Nice na mão estendida, ficava um pouco larga demais. Parecia prestes a tombar para a frente a qualquer momento. — O que é que ela está fazendo lá em cima?!? — perguntou Nico. — Boa pergunta. — Hedge esfregou o nariz machucado. — Foi onde viemos parar. Quase morremos na queda, mas, por sorte, tenho cascos rápidos. Você estava inconsciente e preso nas correias como um paraquedista em apuros, mas conseguirmos descê-lo. Nico tentou visualizar a cena, mas depois achou melhor nem imaginar. — Estamos na Espanha? — Portugal — respondeu Hedge. — Você não aguentou a intensidade do salto. A propósito: Reyna fala espanhol, não português. Sabe, é que enquanto você dormia, descobrimos que esta cidade é Évora. A boa notícia é que é um
lugarzinho bem parado. Ninguém nos incomodou até agora. E pelo visto ninguém reparou na Atena gigante dormindo no alto do templo romano, que é o templo de Diana, caso você queira saber. E as pessoas daqui estão gostando dos meus números de rua! Já ganhei dezesseis euros. Ele pegou o boné de beisebol. As moedas tilintaram. Nico se sentia mal. — Números de rua? — Um pouco de canto — explicou o treinador. — Um pouco de artes marciais. Um pouco de dança interpretativa. — Uau. — Pois é! Os portugueses têm bom gosto. Enfim, acho que foi um bom lugar para descansarmos por uns dias. Nico olhou para ele um tanto alarmado. — Uns dias? — Sabe, garoto, não tivemos muita escolha. Caso não tenha percebido, você tem praticamente cavado a própria cova com todos esses saltos nas sombras. Tentamos acordá-lo ontem à noite. Não conseguimos. — Então eu fiquei dormindo por… — Umas trinta e seis horas. Você estava precisando. Felizmente para Nico, ele estava sentado. Se não, teria caído. Ele podia jurar que tinha dormido por apenas alguns minutos, mas, à medida que a névoa do sono foi se dissipando, percebeu que se sentia revigorado e com as ideias mais claras, como não se sentia fazia semanas — talvez desde que saíra em busca das Portas da Morte. Seu estômago roncou. O treinador Hedge ergueu as sobrancelhas. — Você deve estar com fome. Ou isso, ou seu estômago é na verdade um porco-do-mato. Um porco-do-mato esfomeado. — Seria bom comer alguma coisa — concordou Nico. — Mas primeiro me conte as más notícias… quer dizer, além dessa história da estátua deitada em cima do templo. Você disse que tínhamos problemas. — Ah, é. O treinador apontou para um portão no canto da praça. Ali, parada nas sombras, via-se uma figura vagamente humana, delineada em chamas cinzentas. A figura brilhava; seus traços eram indefinidos, mas o espírito parecia estar acenando para Nico. — O Tocha Humana apareceu faz alguns minutos — disse o treinador Hedge. — Ele fica lá, não se aproxima. Quando tentei ir até ele, o sujeito desapareceu. Não sei se é uma ameaça, mas ele parece estar chamando você.
* * *
Nico achava que era uma armadilha. E geralmente era. O treinador Hedge garantiu que ficaria mais um tempo de vigia enquanto Reyna dormia, e, considerando a remota chance de que o espírito tivesse algo útil a dizer, Nico decidiu que valia a pena correr o risco. Ele desembainhou a espada de ferro estígio e caminhou na direção do portão. Normalmente, fantasmas não o assustavam. (Supondo, é claro, que Gaia não os tivesse envolvido em carapaças de cinzas e terra solidificadas e os transformado em máquinas de matar. Aquilo foi uma novidade para ele.) Depois de sua experiência com Minos, Nico percebera que os espectros tinham tanto poder quanto você lhes permitisse ter. Eles penetravam em sua mente e usavam medo, raiva ou saudade para influenciá-lo. Nico havia aprendido a se proteger. Às vezes conseguia até virar o jogo e submeter os fantasmas a sua vontade. Conforme se aproximava da aparição cinza flamejante, Nico teve quase certeza de que aquela criatura se tratava de um espectro de jardim, uma alma perdida que morrera em sofrimento. Não seria um grande problema. Mesmo assim, ele não colocava a mão no fogo por espírito nenhum. O incidente da Croácia ainda estava vivo em sua memória. Havia se metido naquela situação todo convencido e confiante, só para depois ficar completamente sem chão — tanto literal quanto emocionalmente. Primeiro, tinha sido jogado por cima de um muro por Jason Grace; depois, dissolvido em vento pelo deus Favônio. E, para completar, aquele vilão arrogante, Cupido… Nico apertou com força a espada. Contar sobre sua paixão secreta não tinha sido o pior de tudo. Com o tempo, ele talvez fizesse mesmo isso… na hora certa, do seu jeito. Mas ser forçado a falar sobre Percy, ser tratado com crueldade, ser infernizado e maltratado só para a diversão de Cupido… Ramos de escuridão brotavam de seus pés, matando todas as plantas minúsculas e o capim que cresciam entre as pedras do calçamento. Nico tentou controlar a raiva. Quando alcançou o fantasma, viu que ele usava um hábito de monge: sandálias, túnica de lã e uma cruz de madeira no pescoço. Chamas cinzentas tremulavam a seu redor, queimando as mangas de sua veste, fazendo crescer bolhas em seu rosto, transformando suas sobrancelhas em cinzas. Ele parecia preso no momento de sua imolação, como um vídeo em preto e branco se repetindo sem parar. — Você foi queimado vivo. — Nico sentia isso. — Provavelmente na Idade Média… O rosto do fantasma se distorceu em um grito silencioso de agonia, mas seus olhos pareciam entediados, até um pouco irritados, como se o grito fosse um reflexo automático que ele não pudesse controlar. — O que quer de mim? — perguntou Nico.
Com um gesto, o fantasma indicou que Nico o seguisse. Então, se virou e cruzou o portão aberto. Nico olhou para trás, para o treinador. Hedge fez apenas um gesto indiferente, do tipo Vá. Vá lá resolver seus assuntos do Mundo Inferior. E Nico seguiu o fantasma pelas ruas de Évora.
* * *
Eles ziguezaguearam por becos estreitos com calçamento de pedras, passaram por pátios enfeitados com vasos de hibiscos e construções de estuque branco com ornamentos cor de mel e sacadas de ferro batido. Ninguém reparava no fantasma, mas Nico foi alvo de vários olhares de desconfiança. Uma garotinha com um fox terrier atravessou a rua para não ter que cruzar com ele. O cachorro rosnou, o pelo em seu dorso se eriçando todo como se fosse uma barbatana dorsal. O fantasma o conduziu até outra praça pública, em que se erguia uma grande igreja de proporções quadradas, com paredes brancas e arcos de pedra calcária. Passando pelo pórtico, o fantasma desapareceu no interior. Nico hesitou. Ele não tinha nada contra igrejas, mas daquela emanava morte. Devia haver túmulos lá dentro, talvez até algo menos agradável ainda… Ele entrou rapidamente. Seus olhos foram atraídos para uma capela lateral em cujo interior brilhava uma luz dourada lúgubre. Havia uma inscrição em português gravada acima da porta. Nico não falava a língua, mas se lembrava bem do italiano de sua infância para entender o sentido geral: Nós que aqui estamos por vós esperamos. — Alto astral — murmurou o menino. Ele entrou na capela. No altar, lá na frente, o fantasma chamejante rezava ajoelhado, mas Nico estava mais interessado no local em si. Em vez de tijolos, as paredes eram de ossos e crânios, milhares e milhares deles, cimentados juntos. Colunas de ossos sustentavam um teto abobadado decorado com imagens da morte. Pendurados em uma parede viam-se os restos esqueléticos de duas pessoas, um adulto e uma criança pequena, como casacos em um cabide. — Um belo lugar, não acha? Nico se virou. Um ano antes, teria morrido de susto se o pai aparecesse de repente ao seu lado. Agora, Nico conseguia controlar o ritmo de seus batimentos cardíacos, assim como o impulso de dar uma joelhada no saco do pai e sair correndo. Tal qual o fantasma, Hades vestia um hábito de monge franciscano, o que Nico achou um pouco perturbador. Na cintura, uma simples corda branca amarrando a túnica negra. O capuz estava baixado, revelando o cabelo escuro cortado rente ao couro cabeludo e olhos negros que brilhavam como piche. O deus exibia uma expressão de calma e satisfação, como se tivesse acabado de
chegar em casa após uma agradável noite passeando pelos Campos de Punição ao som dos gritos dos condenados. — Procurando ideias de decoração? — perguntou Nico. — Você pode montar sua sala de jantar com crânios de monges medievais. Hades ergueu uma sobrancelha. — Nunca sei se você está brincando ou não. — O que veio fazer aqui, pai? Como veio parar aqui? Hades passou os dedos pela coluna mais próxima, deixando uma trilha de marcas brancas nos ossos velhos. — Você é um mortal difícil de encontrar, meu filho. Estou há vários dias o procurando. Quando o cetro de Diocleciano explodiu… bem, isso chamou minha atenção. Nico se sentiu corar de vergonha. Mas depois ficou com raiva de si mesmo por sentir vergonha. — Quebrar o cetro não foi minha culpa. Estávamos prestes a ser destruídos… — Ah, o cetro não é importante. Uma relíquia velha daquelas… não sei nem como vocês encontraram utilidade para ele. A explosão só me deu uma luz. Foi o que me permitiu descobrir sua localização. Até pensei em ir falar com você em Pompeia, mas lá é muito… bem, romano. Esta capela foi o primeiro lugar que encontrei onde minha presença seria forte o suficiente para que eu pudesse aparecer para você como eu mesmo. E com isso quero dizer como Hades, deus dos mortos, e não dividido com aquela outra manifestação. Hades inspirou o ar úmido e parado. — Tenho muito apreço por este lugar. Usaram os restos mortais de cinco mil monges para construí-lo. A Capela dos Ossos. Serve para nos lembrar que a vida é curta e que a morte é eterna. Eu me sinto centrado aqui. Mas mesmo assim tenho pouco tempo. Para variar, pensou Nico. Você nunca tem tempo para mim. — Então me diga logo, pai. O que você quer? Hades uniu as mãos, cobertas pelas mangas do hábito. — Você não consegue nem conceber a ideia de que talvez eu tenha vindo para ajudar, e não por querer alguma coisa? Nico quase riu, mas sentia o peito quase oco de tanta fraqueza. — Posso conceber a ideia de que talvez você tenha vindo por várias razões. O deus franziu a testa. — É justo. Você busca informações sobre o caçador de Gaia. O nome dele é Órion. Nico hesitou. Não estava acostumado a respostas diretas, sem charadas, enigmas ou missões. — Órion. Como a constelação. Ele não era… amigo de Ártemis?
— Era — confirmou Hades. — Órion foi um gigante criado para se opor aos gêmeos Apolo e Ártemis, mas, assim como Ártemis, ele rejeitou seu destino, buscou viver sob as próprias regras. Primeiro tentou viver entre mortais, como um caçador para o rei de Quios. Mas ele, bem, teve uns probleminhas com a filha do rei, e ele mandou que o cegassem e o exilassem. Nico se lembrou do que Reyna lhe contara. — Minha amiga sonhou com um caçador de olhos brilhantes. Se Órion é cego… — Ele era cego — corrigiu-o Hades. — Logo depois de seu exílio, Órion conheceu Hefesto, que ficou com pena do gigante e construiu para ele olhos mecânicos, ainda melhores que os originais. Órion ficou amigo de Ártemis. Foi o primeiro homem que teve permissão para caçar com ela. Mas… as coisas não deram certo entre eles. Como, exatamente, não sei. Mas Órion foi morto. E agora voltou como um filho leal de Gaia, disposto a fazer tudo que ela ordenar. Ele é movido pela raiva e pela amargura. Você sabe como é. Nico teve vontade de gritar: E por acaso você sabe o que eu sinto? Mas o que perguntou foi: — Como podemos detê-lo? — Vocês não podem. Sua única esperança é serem mais rápidos do que ele, cumprirem sua missão antes que ele os alcance. Apolo ou Ártemis talvez pudessem matá-lo, flechas contra flechas, mas infelizmente os gêmeos não estão em condições de ajudá-los. Neste exato momento, Órion está em seu rastro, quase alcançando vocês, ele e seu grupo de caça. Vocês não podem se dar o luxo de descansar nem um minuto a mais até chegarem ao Acampamento MeioSangue. Nico sentiu seu peito ser comprimido, ficando sem ar. Ele havia deixado o treinador Hedge de vigia enquanto Reyna dormia. — Preciso voltar e falar com meus amigos. — Precisa mesmo — concordou Hades. — Mas tem outra coisa. Sua irmã… — Hades hesitou. Como sempre, o tópico Bianca pairava entre eles como uma arma carregada: mortal, ao alcance da mão, impossível de ignorar. — Refiro-me a sua outra irmã, Hazel. Ela descobriu que um dos sete vai morrer. Ela vai tentar evitar que isso aconteça, e talvez perca de vista as próprias prioridades. Nico não conseguia dizer uma só palavra. Para sua surpresa, não foi em Percy que ele pensou na hora. Preocupou-se primeiramente com Hazel, depois com Jason, depois com Percy e os outros que estavam a bordo do Argo II. Eles o haviam salvado em Roma, o haviam recebido a bordo de seu navio. Nico nunca se dera o luxo de ter amigos, mas a tripulação do Argo II era o mais perto disso que ele já tivera. A ideia de um deles morrer fez com que ele sentisse um vazio, como se estivesse de volta no jarro de bronze
do gigante, sozinho no escuro, sobrevivendo apenas de sementes de romã estragadas. Por fim, ele perguntou: — Hazel está bem? — Por enquanto. — E quanto aos outros? Quem vai morrer? — Mesmo se eu soubesse, não poderia dizer. Estou lhe contando isto porque você é meu filho. Você sabe que algumas mortes não podem ser evitadas. Algumas mortes não devem ser evitadas. Quando chegar a hora, talvez seja preciso que você entre em ação. Nico não sabia o que isso significava. E não queria saber. — Meu filho. — O tom de voz de Hades era quase carinhoso. — Aconteça o que acontecer, você conquistou meu respeito. Você trouxe honra para nossa casa quando lutamos juntos contra Cronos em Manhattan. Você se arriscou a sentir a força da minha ira para ajudar aquele garoto, guiando-o até o Rio Estige, libertando-o da minha prisão, me pedindo que reerguesse os exércitos de Érebo para ajudá-lo. Nunca antes eu havia sido tão afrontado por um dos meus filhos. Era Percy isso, Percy aquilo… Quase transformei você em cinzas. Nico de repente ficou alerta: as paredes do local começaram a tremer, poeira caindo entre os ossos. — Não foi só por ele que eu fiz tudo aquilo. Fiz porque o mundo inteiro estava em perigo. Hades se permitiu um esboço de sorriso, mas não havia crueldade em seus olhos. — Posso admitir que você tenha agido por várias razões. O que quero dizer é o seguinte: você e eu fomos em auxílio ao Olimpo porque você me convenceu a deixar de lado minha raiva. E eu gostaria que você fizesse o mesmo. Meus filhos raramente são felizes. Eu… gostaria que você fosse uma exceção. Nico encarou o pai. Não sabia o que fazer com aquela declaração. Ele aceitaria muitas coisas irreais (hordas de fantasmas, labirintos mágicos, viagens nas sombras, capelas feitas de ossos), mas palavras carinhosas do Senhor do Mundo Inferior? Não. Aquilo não fazia sentido. O fantasma em chamas se levantou do altar e se aproximou, queimando e gritando em silêncio, seus olhos transmitindo uma mensagem urgente. — Ah — disse Hades. — Este é o irmão Paloan. Ele estava entre as centenas de pessoas que foram queimadas vivas na praça do antigo templo romano. Lá ficava o quartel-general da Inquisição, sabia? Enfim: ele sugere que é hora de partir. Você agora tem pouquíssimo tempo até que cheguem os lobos. — Lobos? Quer dizer os caçadores de Órion? Hades agitou a mão, e o fantasma do irmão Paloan desapareceu.
— Meu filho, o que você está tentando fazer, viajar nas sombras pelo mundo carregando a estátua de Atena, pode muito bem destruí-lo. — Valeu pela força. Hades pôs as mãos por um momento nos ombros do filho. Nico não gostava que o tocassem, mas, por algum motivo, aquele breve contato com o pai foi reconfortante — do mesmo modo que a Capela dos Ossos era reconfortante. Assim como a morte, a presença de seu pai era fria e muitas vezes insensível, mas era real, brutalmente honesta, totalmente confiável. Nico encontrava uma espécie de liberdade em saber que, com o tempo, não importava o que acontecesse, acabaria aos pés do trono do pai. — Eu o verei outra vez — prometeu Hades. — Vou preparar um quarto para você no palácio, caso não sobreviva. Talvez seja uma boa ideia decorar seus aposentos com crânios de monges. — Agora eu é que não sei se você está brincando. Os olhos de Hades brilharam, e sua forma começou a sumir. — Então talvez tenhamos algumas semelhanças em certos aspectos importantes. O deus desapareceu. De repente a capela parecia opressiva, com milhares de globos oculares vazios olhando para Nico. Nós que aqui estamos por vós esperamos. Ele saiu correndo da igreja, torcendo para se lembrar do caminho que o levaria de volta para seus amigos.
XV
NICO
— LOBOS? — PERGUNTOU REYNA. Estavam jantando. Haviam comprado comida em uma cafeteria ali perto. Apesar do aviso de Hades para voltarem correndo, Nico não viu nenhuma grande mudança na praça onde haviam acampado. Reyna tinha acabado de acordar. A Atena Partenos continuava em cima do templo. O treinador Hedge estava divertindo alguns moradores locais com números de sapateado e de artes marciais, de vez em quando cantando em seu megafone, apesar de parecer que ninguém entendia o que ele estava dizendo. Nico desejou que o treinador não tivesse levado o megafone. Além de ser um troço barulhento e chato, de vez em quando, sem nenhuma razão aparente, o treinador disparava falas aleatórias do Darth Vader em Star Wars ou berrava “A VAQUINHA FAZ MUUU!”. Reyna parecia alerta e enérgica enquanto os três comiam sentados no gramado. Ela e o treinador Hedge ouviram Nico contar seus sonhos, depois seu encontro com Hades na Capela dos Ossos. Ele ocultou alguns detalhes mais íntimos de sua conversa com o pai, apesar de sentir que Reyna entendia muito bem o que era lutar contra os próprios sentimentos. Quando mencionou Órion e os lobos que supostamente estariam atrás deles, Reyna franziu a testa, confusa. — A maioria dos lobos é amiga dos romanos — disse ela. — Nunca ouvi falar de Órion saindo para caçar levando uma alcateia. Nico terminou seu sanduíche de presunto e olhou para o prato de doces, surpreendendo-se com o tamanho de seu apetite. — Talvez ele tenha falado no sentido figurado: pouquíssimo tempo até que cheguem os lobos. Talvez Hades não estivesse se referindo a lobos de verdade. De qualquer modo, precisamos partir assim que a escuridão começar a gerar sombras. O treinador Hedge enfiou na mochila um exemplar da revista Guns & Ammo. — O único problema é que a Atena Partenos ainda está a dez metros do chão. Vai ser divertido levar vocês e todas as nossas coisas até o alto daquele templo. Nico provou um doce. A mulher da cafeteria os havia chamado de farturas. Pareciam donuts em espiral. Eram deliciosos, a combinação exata de crocância, açúcar e manteiga, mas, quando ele ouvira o nome fartura pela primeira vez, pensou que Percy teria feito um trocadilho escatológico com a semelhança da palavra em português com o termo em inglês para “pum”: fart.
Quanto mais Nico crescia, mais achava Percy infantil, apesar de Percy ser três anos mais velho que ele. Nico achava seu senso de humor ao mesmo tempo simpático e irritante. Resolveu se concentrar no irritante. Em outros momentos, porém, Percy agia todo sério: ao olhar para Nico do fundo daquele abismo em Roma — No outro lado, Nico! Leve-os para lá! Prometa! E Nico prometera. Agora parecia não importar quanto ele se ressentia de Percy Jackson. Nico faria qualquer coisa por ele. E se odiava por isso. — Então… — A voz de Reyna o arrancou de seus pensamentos. — Será que o Acampamento Meio-Sangue vai esperar o dia primeiro de agosto, ou será que eles vão atacar? — Vamos torcer para que esperem — disse Nico. — Não podemos… Eu não posso levar a estátua mais rápido que isso. Mesmo a essa velocidade, meu pai acha que eu posso morrer. Nico guardou esse pensamento para si mesmo. Bem que Hazel podia estar ali com ele. Juntos, eles haviam tirado da Casa de Hades toda a tripulação do Argo II, e fizeram isso viajando nas sombras. Quando os dois uniam seus poderes, Nico sentia como se tudo fosse possível. Com Hazel, a viagem até o Acampamento Meio-Sangue levaria metade do tempo. Além disso, ele sentira um calafrio ao ouvir as palavras de Hades sobre a morte de um membro da tripulação. Nico não podia perder Hazel. Mais uma irmã, não. De novo, não. O treinador Hedge, que contava as moedas em seu boné de beisebol, ergueu os olhos. — Então Clarisse disse que Mellie estava bem. Tem certeza? — Tenho, treinador. Clarisse está cuidando bem dela. — Isso me deixa mais tranquilo. Não gostei do que Grover disse sobre Gaia sussurrando no ouvido das ninfas e das dríades. Se os espíritos da natureza se voltarem para o mal… não vai ser nem um pouco bacana. Nico nunca tinha ouvido falar de algo desse tipo acontecendo. Mas, pensando bem, Gaia também não despertava desde o alvorecer da humanidade. Reyna deu uma mordida em um doce. Sua cota de malha reluziu ao sol da tarde. — Estou curiosa sobre esses lobos… Será que entendemos mal a mensagem? A deusa Lupa anda muito quieta. Talvez esteja nos mandando ajuda. Os lobos podem ser dela… para nos defender de Órion e seus caçadores. A esperança em sua voz era frágil como renda. Nico tentou não a destruir. — Talvez — disse ele. — Mas Lupa não estaria ocupada com a guerra entre os acampamentos? Achei que ela estivesse enviando lobos para ajudar sua legião. — Lobos não combatem na linha de frente. E não acho que ela ajudaria
Octavian. Os lobos de Lupa talvez estejam patrulhando o Acampamento Júpiter, defendendo-o na ausência da Legião, mas não sei… Ela cruzou as pernas na altura dos tornozelos; as pontas de ferro de suas botas brilharam. Nico lembrou a si mesmo de nunca enfrentar legionários romanos na base dos chutes. — Tem mais uma coisa — continuou Reyna. — Não consegui entrar em contato com minha irmã, Hylla. É meio preocupante ver que lobos e amazonas estão em silêncio. Se aconteceu alguma coisa na costa oeste… infelizmente acho que a única esperança para os dois acampamentos está conosco. Precisamos devolver logo a estátua. Isso significa que o maior fardo está sobre os seus ombros, filho de Hades. Nico engoliu em seco. Não estava com raiva de Reyna. Gostava dela, até. Mas volta e meia lhe pediam que fizesse o impossível. E, normalmente, assim que ele o fazia, era esquecido. Nico se lembrava de como os garotos do Acampamento Meio-Sangue o trataram bem depois da guerra com Cronos. Bom trabalho, Nico! Obrigado por trazer os exércitos do Mundo Inferior para nos salvar! Todo mundo sorrindo. Todos o convidando para se sentar a sua mesa. Depois de mais ou menos uma semana, a recepção a sua presença já não era mais tão calorosa. Os campistas pulavam de susto ao vê-lo aparecer atrás deles. Quando surgia das sombras perto da fogueira, alguém sempre se assustava, e Nico via o desconforto em seus olhos: Você ainda está aqui? Por que está aqui? Não ajudou muito o fato de, imediatamente após a guerra com Cronos, Annabeth e Percy terem começado a namorar… Nico deixou sua fartura pela metade. De repente, ela já não estava mais tão gostosa. Ele se lembrou de sua conversa com Annabeth em Épiro pouco antes de partir com a Atena Partenos. Ela o havia puxado para um canto, dizendo: — Ei, preciso falar com você. Nico havia sido tomado pelo pânico. Ela sabe. — Eu queria agradecer — prosseguira Annabeth. — Bob… o titã… ele só nos ajudou no Tártaro porque você foi bom para ele. Você disse que nós merecíamos ser salvos. Essa é a única razão para estarmos vivos. Ela dizia nós com muita facilidade, como se ela e Percy fossem intercambiáveis, inseparáveis. Nico uma vez tinha lido um conto de Platão. Segundo ele, antigamente todos os seres humanos eram uma combinação de homem e mulher. Todas as pessoas tinham duas cabeças, quatro braços, quatro pernas. Supostamente, o grande poder desses humanos “acoplados” incomodava os deuses, de tal forma que Zeus
os dividiu ao meio. Depois disso, os humanos ficaram se sentindo incompletos. E passaram toda a vida em busca de sua outra metade. E onde eu me encaixo nisso?, perguntou-se Nico. Essa não era sua história preferida. Ele queria odiar Annabeth, mas simplesmente não conseguia. Ela se desviara de seu caminho só para agradecer a ele, em Épiro. Era autêntica e sincera. Nunca o ignorava ou o evitava, como a maioria das pessoas fazia. Por que ela não podia ser uma pessoa horrível? As coisas seriam mais fáceis. O deus do vento, Favônio, o alertara na Croácia: Se deixar a raiva governá-lo, seu destino será ainda mais triste que o meu. Mas como seu destino seria outra coisa que não triste? Mesmo que Nico sobrevivesse àquela missão, teria que deixar os dois acampamentos para sempre. Era a única forma de encontrar a paz. Bem que Nico queria que houvesse outra opção, uma alternativa não tão dolorosa quanto as águas do Flegetonte, mas ele não via saída. Reyna o observava, provavelmente tentando ler seus pensamentos. Ela olhou rapidamente para as mãos dele, e Nico percebeu que estava girando o anel de caveira: o último presente que Bianca lhe dera. — Como podemos ajudar você, Nico? — perguntou Reyna. Outra pergunta que ele não estava acostumado a ouvir. — Não sei — admitiu ele. — Vocês já me deixaram descansar o máximo possível. Isso é importante. Talvez você possa me emprestar sua força de novo. Esse próximo salto vai ser o mais longo. Vou precisar reunir energia suficiente para cruzarmos o Atlântico. — Você vai conseguir — prometeu Reyna. — E, quando estivermos de volta aos Estados Unidos, teremos menos monstros para enfrentar. Talvez eu até consiga ajuda de legionários aposentados da costa leste. Eles são obrigados a ajudar qualquer semideus romano que os convoque. Hedge resmungou: — Se é que eles já não foram recrutados por Octavian. Nesse caso, você pode acabar presa por traição. — Treinador — repreendeu-o Reyna —, assim você não está ajudando. — Ei, só estou avisando. Por mim, ficaríamos mais tempo aqui em Évora. Comida boa, dinheiro bom… e, até agora, nenhum sinal desses lobos em sentido figurado… Os cães de Reyna se ergueram. Uivos cortaram o ar, ao longe. Antes que Nico se levantasse, surgiram lobos de todas as direções. Grandes e negras, as feras saltaram de cima dos telhados e cercaram os três. O maior dos lobos se adiantou, ficou de pé nas patas traseiras e começou a se transformar. Suas patas dianteiras viraram braços. Seu focinho se encolheu até
adquirir o formato de um nariz humano pontudo. Seu pelo cinza tornou-se uma capa de peles de animais costuradas. Antes fera, a criatura era agora um homem alto e magro com rosto emaciado e olhos de um vermelho brilhante. Uma coroa de falanges humanas adornava seu cabelo negro ensebado. — Ah, pequeno sátiro… — O homem sorriu, revelando presas afiadas. — Seu desejo foi atendido! Vocês ficarão em Évora para sempre, porque, para sua infelicidade, meus lobos em sentido figurado são lobos de verdade.
XVI
NICO
— VOCÊ NÃO É ÓRION — disparou Nico. Um comentário estúpido, mas foi a primeira coisa que lhe veio à mente. Evidentemente, o homem diante dele não era um gigante caçador. Não tinha altura para isso. Não tinha pernas de dragão. Não tinha nem arco nem aljava, muito menos os olhos de farol que Reyna afirmara ter visto em seu sonho. O homem cinza riu. — Não, não sou. Órion apenas solicitou meu auxílio nesta caçada. Eu sou… — Licáon — completou Reyna. — O primeiro lobisomem. O homem respondeu a ela com uma reverência irônica. — Reyna Ramírez-Arellano, pretora de Roma. Uma das crias de Lupa! É um prazer ser reconhecido por você. Sou parte de seus pesadelos, sem dúvida. — Parte da minha indigestão, talvez. — Da pochete atrelada a seu cinto, Reyna pegou um canivete dobrável. Quando o abriu, os lobos recuaram, rosnando. — Nunca viajo sem uma arma de prata. Licáon arreganhou os dentes. — Acha mesmo que vai deter doze lobos mais o rei da alcateia com um simples canivete? Ouvi dizer que você era corajosa, filia romana, só não imaginei que fosse imprudente. Os cães de Reyna se agacharam, prontos para saltar. O treinador agarrou seu taco de beisebol, embora, pela primeira vez, não parecesse ansioso para usá-lo. Nico levou a mão à espada. — Nem perca seu tempo — murmurou o treinador Hedge para Nico. — Estes lobos só podem ser feridos por prata ou fogo. Eu me lembro deles, de Pikes Peak. São um grupinho bem irritante. — E eu me lembro de você, Gleeson Hedge. — Os olhos do lobisomem brilharam, vermelhos como lava. — Minha alcateia vai adorar saborear uma carne de bode no jantar. Hedge riu com desdém. — Manda ver, seu bicho sarnento. As Caçadoras de Ártemis estão a caminho agora mesmo, exatamente como da última vez! Aquilo ali é um templo de Diana, seu idiota. Você está no terreno delas! Os lobos rosnaram e recuaram mais uma vez. Alguns lançaram rápidos olhares nervosos para o topo do templo. Licáon apenas encarava o treinador.
— Bela tentativa, mas, infelizmente, aquele templo está com o nome errado. Passei por aqui na época dos romanos. Na verdade, era dedicado ao imperador Augusto. Vaidade típica de semideus. De qualquer forma, fiquei muito mais cuidadoso desde nosso último encontro. Se as Caçadoras estivessem por perto, eu saberia. Nico tentou pensar em um plano de fuga. Eles estavam cercados e em menor número. A única arma eficaz que tinham era um canivete. O cetro de Diocleciano estava destruído. A Atena Partenos se encontrava ainda dez metros acima, no alto do templo, e, ainda que a alcançassem, não poderiam viajar nas sombras até que houvesse, bem, sombras. Mas ainda faltavam horas para o pôr do sol. Mesmo muito distante da coragem que gostaria de sentir, ele avançou um passo. — Então não temos saída. Está esperando o que para nos liquidar? Licáon o avaliou como se o menino fosse um tipo novo de carne no balcão do açougue. — Nico di Angelo… filho de Hades. Já ouvi falar de você. É uma pena que eu não possa matá-lo imediatamente, mas prometi a meu empregador, Órion, que o manteria sob meu controle até que ele chegasse. Não se preocupe. Ele não deve demorar. Quando ele acabar com vocês, vou derramar seu sangue e fazer deste o meu território por eras futuras! Nico rangeu os dentes. — Sangue de semideus. O sangue do Olimpo. — É claro! — exclamou Licáon. — Quando derramado no chão, ainda mais em solo sagrado, o sangue de semideuses tem muitos usos. Com os encantamentos certos, pode despertar monstros, até mesmo deuses. Pode fazer surgir vida nova ou tornar um lugar estéril por gerações. Infelizmente, o seu sangue não vai despertar Gaia. Essa honra está reservada para seus amigos a bordo do Argo II. Mas não tema. Sua morte será quase tão dolorosa quanto a deles. A grama começou a morrer em torno dos pés de Nico. Os canteiros de cravos-de-defunto murcharam. Solo estéril, pensou. Solo sagrado. Ele se lembrou dos milhares de esqueletos na Capela dos Ossos. Lembrou-se do que Hades dissera sobre aquela praça pública, onde a Inquisição havia queimado centenas de pessoas vivas. Aquela era uma cidade muito antiga. Quantos mortos jaziam no chão sob seus pés? — Treinador, você consegue escalar? — perguntou ele. Hedge deu um riso de desdém. — Eu sou meio bode. Claro que consigo escalar!
— Suba até a estátua e prenda as correias. Depois faça uma escada de corda e jogue-a para nós. — Hã… Mas e essa alcateia? — Reyna — continuou Nico —, você e seus cães vão ter que nos dar cobertura. A pretora assentiu. Sua expressão era séria, quase sombria. — Entendido. Licáon chegou a uivar de rir. — Do que está falando, filho de Hades? Não há escapatória. Você não pode nos matar! — Talvez não — disse Nico. — Mas posso retardá-los. Ao dizer isso, ele estendeu as mãos, e o chão começou a entrar em erupção.
* * *
Nico não havia imaginado que fosse funcionar tão bem. Ele já havia feito aquilo outras vezes, extrair da terra fragmentos de ossos. Tinha dado vida a esqueletos de ratos e desenterrado crânios humanos. Mas nada o havia preparado para a parede de ossos que saiu voando do chão: centenas de fêmures, costelas e fíbulas que confundiram os lobos, formando um espinheiro afiado de restos humanos. A maioria dos lobos ficou irremediavelmente presa. Alguns se contorciam e rangiam os dentes, tentando escapar de suas jaulas inesperadas. O próprio Licáon foi imobilizado em um casulo de costelas, o que, no entanto, não o impediu de ameaçá-los. — Sua criança inútil! — vociferou ele. — Vou arrancar a carne de seus membros! — Corra, treinador! — exclamou Nico. O sátiro partiu veloz rumo ao templo. Chegou ao alto da base em um único salto e pôs-se a subir pelo pilar mais à esquerda. Dois lobos escaparam do espinheiro de ossos. Reyna lançou o canivete e atingiu um no pescoço. Seus cães atacaram o outro. Aurum errou por pouco, suas presas e garras deslizando pela anca do lobo quando ele tentou agarrá-lo, mas Argentum derrubou a fera. Argentum continuava com a cabeça deslocada para o lado, por causa da luta em Pompeia, e seu olho esquerdo de rubi ainda estava faltando, mas ele conseguiu cravar as presas na nuca do lobo, que se desintegrou em uma poça de sombra. Graças aos deuses por esse cão de prata, pensou Nico. Reyna sacou o gládio. Apanhou um punhado de moedas de prata do boné de Hedge, pegou fita adesiva na mochila dele e começou a prender moedas em torno da lâmina. A garota era no mínimo criativa.
— Vá! — ordenou ela a Nico. — Eu cubro você! Os lobos tentavam avançar, fazendo o espinheiro de ossos se fragmentar e desmoronar. Licáon conseguiu soltar o braço direito e então começou a bater na muralha de costela que o aprisionava. — Vou esfolar você vivo! — prometeu ele. — Vou arrancar sua pele e costurá-la na minha capa! Nico saiu correndo, se demorando um pouco mais apenas para pegar do chão o canivete de Reyna. Ele não era um bode montanhês, mas isso não foi um problema, pois encontrou uma escadaria nos fundos do templo. Subiu às pressas. Ao chegar à base das colunas, olhou para o alto e viu o treinador Hedge lá em cima, equilibrado precariamente nos pés da Atena Partenos, desenrolando cordas e trançando uma escada. — Rápido! — gritou Nico. — Jura? — gritou o treinador em resposta. — Achei que estivéssemos aqui de bobeira! A última coisa de que Nico precisava agora era sarcasmo de sátiro. Lá embaixo, na praça, mais lobos se libertavam das prisões de ossos. Reyna os lançava para os lados com sua espada “modificada”, mas um punhado de moedas não ia segurar uma alcateia de lobisomens por muito tempo. Aurum rosnava e arreganhava os dentes em ameaça, frustrado por não conseguir ferir o inimigo. Argentum fazia o possível, cravando suas garras na garganta de um lobo, mas já estava muito danificado. Nico não teria a menor chance contra todos aqueles lobos. Licáon conseguiu soltar o outro braço e começou a puxar as pernas, tentando soltá-las das costelas que as prendiam. Em poucos segundos teria se libertado por completo. Nico já não tinha mais recursos. Invocar o muro de ossos o havia esgotado, e ele ia precisar de toda a energia que lhe restava para viajar nas sombras — isso se conseguisse achar uma sombra na qual viajar. Uma sombra. Ele olhou para o canivete de prata que segurava. Uma ideia lhe ocorreu, talvez a ideia mais estúpida e maluca desde que ele pensara: Ei, vou fazer Percy nadar no Rio Estige! Ele vai me amar por isso! — Reyna, suba aqui! — gritou ele. Ela acertou um lobo na cabeça e foi correndo até lá. No meio do caminho, agitou a espada: a arma se esticou e se transformou em uma comprida lança, que ela usou para pular, como em um salto com vara. Aterrissou ao lado de Nico. — Qual é o plano? — perguntou ela. Não tinha sequer perdido o fôlego. — Se exibir — resmungou ele.
Uma corda com nós caiu do alto. — Subam, seus não bodes! — berrou Hedge. — Vá — disse Nico a Reyna. — Quando chegar lá em cima, segure firme a corda. — Nico… — Vá! A lança de Reyna encolheu, voltando a ser uma espada. Ela a guardou e começou a subir, escalando a coluna apesar do peso da armadura e dos suprimentos. Lá embaixo, na praça, Aurum e Argentum haviam sumido de vista. Ou tinham se retirado de cena ou haviam sido destruídos. Com um uivo de triunfo, Licáon escapou da prisão de ossos que o continha. — Você sofrerá, filho de Hades! Conte outra novidade, pensou Nico. Ele empunhou o canivete. — Venha me pegar, seu vira-lata! Ou você tem que ficar aí parado como um cachorrinho até seu mestre aparecer? Licáon saltou no ar com as garras estendidas e as presas expostas. Nico enroscou a corda na mão livre e se concentrou. Uma gota de suor desceu por seu pescoço. Quando o rei dos lobos caiu sobre ele, Nico cravou o canivete de prata em seu peito. Ao redor do templo, os lobos uivaram como se fossem um só. Licáon enfiou as garras nos braços de Nico, suas presas parando a pouco mais de um centímetro do rosto do menino. Ignorando a própria dor, Nico enfiou o canivete até o cabo entre as costelas de Licáon. — Seja útil, seu animal — disse ele, com raiva. — Volte para as sombras. Os olhos de Licáon giraram nas órbitas e ele se dissolveu em uma poça de escuridão negra. Então várias coisas aconteceram ao mesmo tempo. Os lobos atacaram, furiosos. De um telhado próximo, uma voz trovejante gritou: — Detenham-nos! Nico ouviu o som inconfundível de um arco grande sendo puxado. Então ele se fundiu na poça da sombra de Licáon, levando consigo seus amigos e a Atena Partenos — e mergulhou no frio vazio, sem a menor ideia de onde iria emergir.
XVII
PIPER
PIPER NÃO PODIA ACREDITAR EM como era difícil encontrar um veneno mortal. Ela e Frank passaram a manhã inteira vasculhando o porto de Pilos. Frank permitiu que apenas Piper fosse com ele, achando que o charme poderia ser útil se eles encontrassem seus parentes que mudavam de forma. No fim, a espada dela foi mais necessária. Até ali, eles tinham matado um ogro lestrigão na padaria, lutado contra um javali gigante na praça pública e derrotado um bando de pássaros da Estinfália com alguns legumes bem-mirados da cornucópia de Piper. A garota ficou satisfeita com a distração. Evitava que ela ficasse pensando na conversa que tivera com a mãe na noite anterior, aquele vislumbre do futuro que Afrodite a fizera prometer não contar… Contudo, o maior desafio de Piper em Pilos eram os anúncios do novo filme de seu pai espalhados por toda a cidade. Os cartazes estavam em grego, mas Piper sabia o que diziam: TRISTAN MCLEAN É JAKE STEEL EM ASSINADO COM SANGUE. Pelos deuses, que título horrível. Ela desejou que seu pai nunca tivesse estrelado a franquia Jake Steel, mas aquele era um de seus papéis mais populares. Lá estava ele no pôster com a camisa rasgada revelando um abdômen sarado (eca, pai!), uma AK-47 em cada mão e um sorriso confiante e sensual no rosto de traços fortes. Do outro lado do mundo, na menor e mais fora de mão cidadezinha imaginável, lá estava seu pai. Aquilo deixou Piper triste, desorientada, com saudade de casa e irritada, tudo ao mesmo tempo. A vida seguia. E Hollywood também. Enquanto seu pai fingia salvar o mundo, Piper e seus amigos tinham que fazer isso de verdade. E só faltavam oito dias, a menos que Piper conseguisse cumprir o plano de Afrodite… Do contrário não haveria mais filmes, nem cinemas, nem gente. Por volta de uma da tarde, Piper finalmente botou o charme para funcionar. Falou com um fantasma da Grécia Antiga em uma lavanderia (numa escala de um a dez para conversas estranhas, com certeza essa era nota onze) e assim recebeu instruções para chegar a uma fortaleza antiga, onde supostamente os descendentes metamorfos de Periclimeno se reuniam. Depois de uma caminhada penosa pela ilha sob o sol da tarde, eles encontraram a entrada da caverna no meio de um penhasco à beira-mar. Frank
insistiu para que Piper esperasse na praia enquanto ele conferia o lugar. Piper não gostou nada daquilo, mas esperou obedientemente, olhando meio desconfiada para a entrada da caverna e torcendo para não ter conduzido Frank para uma armadilha mortal. Atrás dela, uma faixa de areia branca circulava o sopé das encostas. Banhistas tomavam sol deitados em toalhas. Crianças pequenas brincavam nas ondas. O mar azul reluzia, convidativo. Piper teve vontade de surfar naquelas águas. Ela havia prometido ensinar Hazel e Annabeth um dia, se elas fossem a Malibu… Isso se Malibu ainda existisse depois de primeiro de agosto. Ela olhou para o alto do penhasco. No cume, havia as ruínas de um velho castelo. Piper não sabia se faziam parte do esconderijo ou não. Não havia nenhum movimento lá em cima. A entrada da caverna ficava na face do despenhadeiro, a cerca de trinta metros do topo — um círculo negro na rocha calcária amarelada, como o buraco de um apontador de lápis gigante. A Caverna de Nêstor, como chamou o fantasma da lavanderia. Supostamente, o antigo rei de Pilos tinha escondido seu tesouro ali em tempos de crise. O fantasma também disse que Hermes escondera naquela caverna o gado roubado de Apolo. Vacas. Piper sentiu um calafrio. Quando era pequena, ela e o pai passaram de carro por um abatedouro em Chino. O cheiro foi suficiente para fazê-la virar vegetariana. Desde então, só de pensar em vacas ela passava mal. Suas experiências com Hera, a rainha bovina, os catóblepas em Veneza e as imagens das assustadoras vacas da morte na Casa de Hades também não ajudaram. Quando Piper começou a pensar que Frank estava demorando demais, ele apareceu na entrada da caverna. Vinha acompanhado de um homem alto de cabelos grisalhos em um terno de linho branco e gravata amarelo-clara. O homem colocou um objeto pequeno e brilhante — parecia uma pedra ou um pedaço de vidro — nas mãos de Frank. Ele e Frank trocaram algumas palavras. Frank assentiu, sério. Em seguida, o homem se transformou em uma gaivota e saiu voando. Frank desceu pela pedra até alcançar Piper. — Eu os encontrei — disse ele. — Percebi. Você está bem? Ele olhou para a gaivota, que voava na direção do horizonte. O cabelo bem curto de Frank apontava para a frente como uma flecha, tornando seu olhar ainda mais intenso. Suas medalhas romanas — Coroa Mural, centurião, pretor — brilhavam na gola da camisa. A tatuagem SPQR, com as lanças cruzadas de Marte, se destacava à luz forte do sol.
Ele ficou bem com a roupa nova. O javali gigante deixara as antigas muito sujas, então Piper o levara para fazer compras de emergência em Pilos. Agora Frank usava calça jeans preta, botas de couro cru e uma camisa verde-escura da Henley que se ajustava bem em seu corpo. Ele não se sentia à vontade com a camisa. Estava acostumado a se esconder em roupas largas, mas Piper lhe garantira que ele não precisava se preocupar mais com isso. Desde seu estirão de crescimento em Veneza, o corpo de Frank tinha se acomodado muito bem a seus músculos. Você não mudou, Frank, dissera Piper a ele. Você só está mais você. Era uma coisa boa que Frank Zhang ainda fosse tão meigo e falasse de modo tão doce. Do contrário, ele seria um cara assustador. — Frank? — chamou ela, delicadamente. — Oi, desculpe. — Ele se concentrou nela. — Meus, hum… primos, acho que posso chamá-los assim… eles vivem aqui há gerações. Todos descendem de Periclimeno, o argonauta. Contei a eles minha história, sobre como a família Zhang foi da Grécia para Roma, depois para a China e, por fim, para o Canadá. Contei a eles sobre o fantasma do legionário que vi na Casa de Hades, que me disse para vir a Pilos. Eles… não pareceram surpresos. Disseram que isso já aconteceu antes, parentes perdidos há muito tempo voltarem para casa. Piper percebeu a tristeza em sua voz. — Você esperava alguma coisa diferente? Ele deu de ombros. — Uma recepção mais calorosa. Uns balões. Não sei. Minha avó me contou que eu iria fechar o ciclo, restaurar a honra de nossa família, essas coisas. Mas meus primos aqui… eles foram meio frios, distantes, como se não me quisessem por perto. Acho que não gostaram de eu ser filho de Marte. Sinceramente, acho que também não gostaram de eu ser chinês. Piper olhou para o céu. A gaivota tinha desaparecido havia muito tempo, o que provavelmente era uma coisa boa. Ela ficaria tentada a derrubá-la com um presunto tender. — Se seus primos pensam assim, eles são idiotas. Não sabem como você é incrível. Frank alternava o peso do corpo de um pé para o outro. — Eles ficaram um pouco mais amistosos quando eu disse que estava só de passagem. E me deram um presente de despedida. Ele abriu a mão, revelando o brilho de um frasco metálico do tamanho de um colírio. Piper resistiu à vontade de se afastar. — Isso é o veneno? Frank assentiu.
— Eles chamam isso de menta pilosiana. Aparentemente, a planta nasceu do sangue de uma ninfa que morreu em uma montanha perto daqui muito tempo atrás. Eu não perguntei sobre os detalhes. O frasco era tão pequeno… Piper se perguntou se aquilo seria suficiente. Normalmente ela não desejaria mais veneno mortal. Nem sabia como aquele negócio iria ajudá-los a obter a cura do médico que Nice havia mencionado. Mas, se essa cura realmente fosse capaz de enganar a morte, Piper ia querer preparar seis doses, uma para cada um de seus amigos. Frank rolou o frasco na palma da mão. — Eu queria que Vitellius Reticulus estivesse aqui. Piper achou que não tinha ouvido direito. — Ridiculus quem? Um sorriso passou rapidamente pelo rosto dele. — Gaius Vitellius Reticulus, apesar de às vezes também o chamarmos de Ridiculus. Ele era um dos Lares da Quinta Coorte. Meio bobão, mas era filho de Esculápio, o deus da medicina. Se alguém soubesse alguma coisa sobre essa tal cura do médico… seria ele. — Um deus da medicina seria bom — concordou Piper. — Melhor que ter uma deusa da vitória histérica e amarrada a bordo. — Ei, você tem sorte. Minha cabine é a que fica mais perto dos estábulos. Fico a noite inteira ouvindo: PRIMEIRO LUGAR OU MORTE! NOVE E MEIO NÃO É UMA BOA NOTA! Leo precisa criar uma mordaça melhor do que a minha meia velha. Piper deu de ombros. Ela ainda não entendia por que tinha sido uma boa ideia capturar a deusa. Quanto mais cedo se livrassem de Nice, melhor. — Então seus primos… eles tinham alguma ideia do que vai acontecer agora? Ou sobre esse deus acorrentado que devemos encontrar em Esparta? Frank ficou com uma expressão sombria. — É, infelizmente eles tinham algo a dizer sobre isso. Vamos voltar para o barco e eu conto a você. Os pés de Piper a estavam matando. Ela se perguntou se conseguiria convencer Frank a se transformar em águia gigante e carregá-la, mas antes que pudesse perguntar, ouviu pegadas na areia atrás deles. — Olá, turistas simpáticos! — Um pescador magro com um chapéu de capitão branco e a boca cheia de dentes de ouro sorriu para eles. — Passeio de barco? Muito barato! Ele apontou para a água, onde um barco com motor aguardava. Piper sorriu de volta. Ela adorava quando conseguia se comunicar com os moradores locais. — Sim, por favor — disse ela, com uma boa dose de charme. — E gostaríamos que nos levasse a um lugar especial.
* * *
O capitão do barco os deixou no Argo II, que estava ancorado a cerca de quinhentos metros da praia. Piper botou uma pilha de euros nas mãos dele. Ela não era totalmente contra usar o charme em mortais, mas havia decidido ser o mais justa e cuidadosa possível. Nada mais de roubar BMWs em concessionárias de automóveis. — Obrigada — disse ela. — Se alguém perguntar, você nos levou para uma volta ao redor da ilha e nos mostrou os pontos turísticos. Depois nos deixou nas docas em Pilos. Você nunca viu um navio de guerra gigante. — Nenhum navio de guerra — concordou o capitão. — Obrigado, turistas americanos simpáticos. Eles subiram a bordo do Argo II, e Frank sorriu de um jeito estranho para ela. — Bem, foi um prazer matar javalis gigantes com você. Piper riu. — O prazer foi meu, Sr. Zhang. Ela o abraçou, o que pareceu deixá-lo sem graça, mas Piper não podia evitar gostar de Frank. Não só ele era um namorado bom e atencioso para Hazel, mas, sempre que Piper o via usando o velho emblema de pretor de Jason, ela se sentia grata por ele ter se oferecido para aquele trabalho. Frank havia tirado uma grande responsabilidade dos ombros de Jason e o liberado (ou assim Piper esperava) para buscar um futuro diferente no Acampamento Meio-Sangue… supondo, é claro, que todos eles sobrevivessem aos oito dias seguintes. A tripulação se reuniu para uma reunião rápida na proa, principalmente porque Percy estava de olho em uma serpente-marinha vermelha gigante que nadava a bombordo. — Aquela coisa é vermelha mesmo — murmurou Percy. — Será que é sabor cereja? — Por que você não nada até lá e descobre? — perguntou Annabeth. — Que tal não? — Enfim — disse Frank. — Segundo meus primos de Pilos, o deus acorrentado que estamos procurando em Esparta é meu pai… Quer dizer, a forma grega dele, Ares. Aparentemente, os espartanos tinham uma estátua dele acorrentada em sua cidade para que o espírito da guerra nunca os deixasse. — Ok — disse Leo. — Os espartanos eram esquisitos. Mas, bem, temos Vitória amarrada lá embaixo, então acho que não podemos falar nada. Jason se apoiou na balista da proa. — Então nosso próximo destino é Esparta. Mas como é que a batida do coração de um deus acorrentado pode nos ajudar a encontrar uma cura para a morte?
Pela tensão em seu rosto, Piper via que ele ainda sentia dor. Ela se lembrou do que Afrodite tinha lhe dito: Não é apenas o ferimento de espada, querida. É a verdade infeliz que ele viu em Ítaca. Se o pobre garoto não se mantiver firme, essa verdade vai devorá-lo inteiro. — Piper? — chamou Hazel. Ela se virou. — Desculpe. O que foi? — Eu perguntei sobre as visões — lembrou Hazel. — Você me disse que tinha visto alguma coisa na lâmina da sua adaga. — Ah… isso. Piper desembainhou Katoptris com relutância. Desde que ela a usara para golpear a deusa da neve, Quione, as visões na lâmina tinham se tornado mais frias e duras, como imagens gravadas em gelo. Ela vira águias voando em círculos sobre o Acampamento Meio-Sangue e uma onda de terra destruindo Nova York. Tinha visto cenas do passado: o pai surrado e amarrado no topo do Monte Diablo, Jason e Percy lutando contra gigantes no Coliseu romano, o deusrio Aqueloo estendendo a mão para ela, implorando pela cornucópia que Piper havia cortado de sua cabeça. — Eu, hum… — Ela tentou clarear os pensamentos. — Não estou vendo nada agora. Mas uma visão sempre se repete: Annabeth e eu estamos explorando umas ruínas… — Ruínas! — Leo esfregou as mãos. — Agora estamos chegando a algum lugar. Quantas ruínas pode haver na Grécia? — Fique quieto, Leo — repreendeu Annabeth. — Piper, você acha que era Esparta? — Talvez — disse Piper. — Enfim… de repente nós estamos em um lugar escuro, como uma caverna. Ficamos de frente para uma estátua de bronze de um guerreiro. Na visão, eu toco o rosto da estátua, e à nossa volta surge um turbilhão de chamas. Isso foi tudo o que vi. — Chamas. — Frank franziu a testa. — Não gosto dessa visão. — Nem eu. — Percy não tirava o olho da serpente-marinha vermelha, que ainda deslizava entre as ondas uns cem metros a bombordo. — Se a estátua engolfa as pessoas em fogo, devemos mandar Leo. — Também amo você, cara. — Você entendeu. Você é imune. Ah, tanto faz, me dê umas dessas lindas granadas de água e eu vou. Ares e eu já nos enfrentamos antes. Annabeth ficou olhando para a costa de Pilos, já distante agora. — Se Piper viu nós duas procurando a estátua, então somos nós que devemos ir. Vamos ficar bem. Sempre há um jeito de sobreviver. — Nem sempre — alertou Hazel.
Como ela era a única no grupo que tinha realmente morrido e voltado à vida, sua observação meio que quebrou o clima. Frank mostrou o frasco de menta pilosiana. — E esse negócio? Depois da Casa de Hades eu meio que esperava não ter que beber veneno de novo. — Guarde isso em segurança — disse Annabeth. — Por enquanto, é tudo o que podemos fazer. Depois que resolvermos essa situação do deus acorrentado, seguimos para a ilha de Delos. — A maldição de Delos — lembrou Hazel. — Isso parece divertido. — Espero que Apolo esteja lá — disse Annabeth. — Ele vivia em Delos. É o deus da medicina. Deve poder nos aconselhar. Piper se lembrou das palavras de Afrodite: Você deve ser a ponte entre romanos e gregos, minha filha. Nem tempestade nem fogo terão sucesso sem você. Afrodite a alertara sobre o que estava por vir, contara a ela o que teria que fazer para deter Gaia. Se teria coragem ou não… Piper não sabia. A bombordo, a serpente-marinha sabor cereja soltou um jato de vapor. — É, com certeza ela está nos observando — concluiu Percy. — Talvez fosse melhor ir pelo ar por algum tempo. — Que seja pelo ar, então! — disse Leo. — Festus, faça as honras! O dragão de bronze rangeu e estalou. O motor do navio começou a trabalhar. Os remos se ergueram e se expandiram em hélices com o som de noventa guarda-chuvas se abrindo ao mesmo tempo, e o Argo II subiu ao céu. — Devemos chegar a Esparta pela manhã — anunciou Leo. — E lembrem-se de vir ao refeitório à noite, meus caros, porque o chef Leo vai fazer seus famosos tacos de tofu superapimentados!
XVIII
PIPER
PIPER NÃO QUERIA QUE UMA mesa de três pernas gritasse com ela. Quando Jason visitou sua cabine naquela noite, ela tomou o cuidado de deixar a porta aberta, porque Buford, a Mesa Maravilhosa, levava muito a sério sua função de acompanhante adulto. Se tivesse a menor desconfiança de que havia um garoto e uma garota na mesma cabine sem supervisão, ele fumegava e vinha chacoalhando pelo corredor com a projeção holográfica do treinador Hedge berrando: “PARE COM ISSO! PAGUE VINTE FLEXÕES! VISTA ALGUMA COISA!” Jason se sentou ao pé do beliche. — Está quase no meu turno de vigia. Só quis ver como você estava antes. Piper cutucou a perna dele com o pé. — O cara que foi apunhalado quer saber como eu estou? Como você está se sentindo? Ele deu um meio sorriso para ela. Seu rosto estava tão bronzeado pelo tempo passado na costa da África que a cicatriz em seu lábio parecia uma marca de giz. Os olhos azuis estavam ainda mais chamativos. O cabelo, branco como palha de milho, apesar de ele ainda ter uma falha onde havia sido atingido por uma bala da pistola do bandido Círon. Se um arranhão tão pequeno de bronze celestial demorava tanto para cicatrizar, Piper se perguntava como ele iria se recuperar do ferimento de ouro imperial na barriga. — Já estive pior — disse Jason, tranquilizando-a. — Uma vez, no Oregon, uma dracaena cortou fora meus braços. Piper se assustou. Depois deu um tapa de leve no braço dele. — Mentiroso. — Por um segundo eu peguei você. Ficaram de mãos dadas em um silêncio confortável. Piper quase podia imaginar que eles eram adolescentes normais, aproveitando a companhia um do outro como um casal. Claro, Jason e ela ficaram alguns meses juntos no Acampamento Meio-Sangue, mas a guerra com Gaia sempre esteve pairando sobre eles. Como seria se não estivessem ocupados tentando não morrer doze vezes por dia? — Eu nunca agradeci a você. — A expressão de Jason ficou séria. — Lá em Ítaca, depois que vi o que… restou de minha mãe, sua mania… quando fui ferido, você não deixou que eu desistisse, Pipes. Uma parte minha… — A voz dele vacilou. — Uma parte minha queria fechar os olhos e parar de lutar.
O coração de Piper se contraiu. Ela sentiu o próprio pulso nos dedos. — Jason… você é um lutador. Você nunca desistiria. Quando encarou o espírito da sua mãe… naquele momento, você foi forte, não eu. — Pode ser. — A voz dele estava seca. — Eu não queria botar um peso tão grande em cima de você, Pipes. É só que… eu tenho o DNA da minha mãe. Minha parte humana veio toda dela. E se eu fizer as escolhas erradas? E se eu cometer um erro irremediável quando estivermos lutando contra Gaia? Não quero acabar como minha mãe, reduzido a uma mania, remoendo meus arrependimentos para sempre. Piper cobriu as mãos dele com as suas. Ela sentia como se estivesse de volta ao convés do Argo II, segurando a granada de gelo do Boreada pouco antes de explodir. — Você vai fazer as escolhas certas — disse ela. — Não sei o que vai acontecer com nenhum de nós, mas você nunca acabará como sua mãe. — Como você pode ter tanta certeza? Piper observou a tatuagem no antebraço dele: SPQR, a águia de Júpiter, doze linhas por seus anos na legião. — Meu pai me contava uma história sobre fazer escolhas… — Ela balançou a cabeça. — Não, deixa pra lá. Estou parecendo o vovô Tom. — Vá em frente — disse Jason. — Qual é a história? — Bem… Havia dois caçadores cherokee na floresta, certo? Cada um deles tinha um tabu. — Um tabu… uma coisa que eles estavam proibidos de fazer. — É. Piper começou a relaxar. Devia ser por isso que seu pai e seu avô sempre gostaram de contar histórias. Era mais fácil falar até sobre o assunto mais aterrorizante quando ele estava sob a forma de algo que tinha acontecido com dois caçadores cherokee séculos antes. Pegue um problema; transforme-o em entretenimento. Talvez por isso o pai dela tivesse virado ator. — Um dos caçadores — continuou ela — não podia comer carne de veado. O outro não podia comer carne de esquilo. — Por quê? — Ei, eu não sei. Alguns tabus cherokee eram proibições permanentes, como matar águias. — Ela deu um tapinha no símbolo do braço de Jason. — Isso era azar para praticamente todo mundo. Mas às vezes alguns cherokee assumiam tabus temporários, talvez para purificar o espírito, ou talvez porque soubessem, por ouvir o mundo espiritual ou algo assim, que o tabu era importante. Eles seguiam seus instintos. — Está bem. — Jason parecia confuso. — Vamos voltar aos caçadores.
— Eles passaram o dia inteiro caçando, e a única coisa que pegaram foram esquilos. À noite, armaram acampamento, e o cara que podia comer carne de esquilo começou a prepará-la no fogo. — Nham! — Mais um motivo para eu ser vegetariana. Enfim, o segundo caçador, que não podia comer carne de esquilo, estava faminto. E só ficou lá sentado apertando a barriga enquanto o amigo comia. O primeiro caçador começou a se sentir culpado. “Ah, vá em frente”, disse ele. “Coma um pouco.” Mas o segundo caçador resistiu. “É meu tabu. Vou ter problemas sérios. Vou virar uma cobra ou coisa assim.” O primeiro riu. “De onde você tirou essa ideia maluca? Não vai acontecer nada. Você pode voltar a evitar carne de esquilo amanhã.” O segundo caçador sabia que não deveria, mas comeu. Jason acariciou a mão dela, atrapalhando sua concentração. — O que aconteceu? — No meio da noite, o segundo caçador acordou gritando de dor. O primeiro correu até ele para ver qual era o problema. Ele puxou as cobertas do amigo e viu que as pernas dele tinham virado uma cauda de couro, e o corpo dele ia sendo coberto por pele de cobra. O pobre do caçador chorava, se desculpava com os espíritos e gritava de medo, mas não havia nada a fazer. O primeiro caçador ficou do seu lado e tentou confortá-lo, até que o coitado se transformou completamente em uma serpente gigante e foi embora rastejando. Fim. — Adoro essas histórias cherokee — disse Jason. — São tão pra cima. — É, bem… — Então o cara virou uma cobra. A moral é: Frank está comendo esquilos? Ela riu, o que foi agradável. — Não, seu bobo. A questão é: confie em seus instintos. Carne de esquilo pode ser boa para uma pessoa, mas tabu para outra. O segundo caçador sabia que tinha um espírito de serpente dentro dele, esperando para assumir o controle. Ele sabia que não deveria alimentar esse espírito ruim comendo carne de esquilo, mas fez isso assim mesmo. — Então… eu não devo comer esquilos. Piper ficou aliviada ao ver o brilho nos olhos dele. Ela pensou em algo que Hazel lhe contara em segredo algumas noites antes: Acho que Jason é a peçachave de todo o plano de Hera. Ele foi sua primeira jogada; e será a última. — O que quero que entenda — disse Piper, cutucando o peito dele — é que você, Jason Grace, conhece muito bem seus próprios espíritos ruins, e faz o possível para não alimentá-los. Você tem instintos sólidos e sabe segui-los. Por mais que tenha qualidades irritantes, é uma pessoa realmente boa que sempre tenta fazer a escolha certa. Então pare com essa conversa de desistir. Jason franziu a testa. — Espere aí. Eu tenho qualidades irritantes?
Ela revirou os olhos. — Venha aqui. Ela estava prestes a beijá-lo quando bateram na porta, e Leo surgiu na entrada da cabine. — Uma festa? Estou convidado? Jason limpou a garganta. — Oi, Leo. O que está rolando? — Ah, nada de mais. — Ele apontou para o convés. — Os venti insuportáveis de sempre tentando destruir o navio. Está pronto para o seu turno? — Sim. — Jason se inclinou e beijou Piper. — Obrigado. E não se preocupe. Estou bem. — Isso — disse ela — era basicamente o que eu queria provar. Depois que os garotos saíram, Piper deitou-se em seus travesseiros de plumas de pégaso e ficou contemplando as constelações que o abajur projetava no teto. Ela achava que não ia conseguir dormir, mas um dia inteiro lutando contra monstros no calor do verão cobrou seu preço. Em pouco tempo ela fechou os olhos e mergulhou em um pesadelo.
* * *
A Acrópole. Piper nunca tinha estado lá, mas a reconheceu de fotos: uma fortaleza antiga localizada no alto de uma colina quase tão impressionante quanto a de Gibraltar. Elevava-se cerca de cento e vinte metros acima da Atenas moderna, com penhascos íngremes encimados por muralhas de calcário. No topo, templos em ruínas e guindastes modernos reluziam como prata ao luar. Em seu sonho, Piper voava acima do Partenon, o antigo templo de Atena; o lado esquerdo de sua casca vazia estava cercado por andaimes de metal. A Acrópole parecia deserta de mortais, talvez devido aos problemas financeiros da Grécia. Ou talvez as forças de Gaia tivessem arranjado um pretexto para manter os turistas e operários afastados. A visão de Piper se concentrou no centro do templo. Havia tantos gigantes ali que parecia até uma festa para sequoias centenárias. Piper reconheceu alguns: aqueles gêmeos terríveis de Roma, Oto e Efialtes, vestidos com uniformes iguais de operário de construção; Polibotes, igual à descrição feita por Percy, com veneno escorrendo de seus dreadlocks e bocas abertas e famintas esculpidas no peitoral; o pior de todos, Encélado, o gigante que raptara o pai de Piper. Sua armadura era gravada com desenhos de chamas; e o cabelo, trançado com ossos humanos. Sua lança, do tamanho de um mastro de bandeira, queimava com labaredas roxas. Piper tinha ouvido dizer que cada gigante nascera para se opor a um deus,
mas havia muito mais do que doze gigantes reunidos ali no Partenon. Ela contou pelo menos vinte, e, como se isso não fosse intimidador o suficiente, uma horda de monstros menores se agitava ao redor dos gigantes: ciclopes, ogros, Nascidos da Terra de seis braços e dracaenae. No centro da multidão havia um trono improvisado feito de andaimes retorcidos e blocos de pedra aparentemente arrancados aleatoriamente das ruínas. Enquanto Piper observava, um novo gigante subiu os degraus na extremidade oposta da Acrópole. Ele vestia um enorme moletom esportivo de veludo, tinha correntes de ouro no pescoço e cabelo penteado para trás com gel, parecendo um membro de gangue de dez metros de altura — isso se os membros de gangue tivessem pés de dragão e pele laranja. O gigante mafioso correu na direção do Partenon, onde entrou aos tropeções, esmagando vários Nascidos da Terra sob seus pés. Ele parou sem fôlego ao pé do trono. — Onde está Porfírion? — perguntou. — Trago notícias! O velho inimigo de Piper, Encélado, deu um passo à frente. — Atrasado como sempre, Hipólito. Espero que suas notícias justifiquem a espera. O rei Porfírion deve estar… O chão entre eles se abriu. Um gigante ainda maior surgiu da terra, como uma baleia irrompendo do mar. — O rei Porfírion está aqui — anunciou o próprio. Ele parecia exatamente igual ao que Piper se lembrava da Casa dos Lobos, em Sonoma. Com doze metros de altura, era mais alto que seus irmãos. Na verdade — percebeu Piper, com preocupação —, era do mesmo tamanho da Atena Partenos, que antigamente tinha habitado aquele templo. Em suas tranças da cor de algas marinhas brilhavam armas capturadas de semideuses. O rosto era cruel e verde-claro; os olhos, brancos como a névoa. Seu corpo parecia irradiar uma espécie de gravidade, fazendo os outros monstros se inclinarem na direção dele. Terra e seixos corriam pelo chão, acumulando-se ao redor de seus enormes pés de dragão. O gigante mafioso, Hipólito, se ajoelhou. — Meu rei, trago informações sobre o inimigo! Porfírion sentou-se no trono. — Fale. — O navio dos semideuses está fazendo a volta no Peloponeso. Eles já destruíram os fantasmas em Ítaca e capturaram a deusa Nice em Olímpia. A multidão de monstros se agitou, preocupada. Um ciclope roeu as unhas. Duas dracaenae trocaram moedas como se estivessem fazendo apostas em um bolão do Fim do Mundo. Porfírion apenas riu.
— Hipólito, você quer matar seu inimigo Hermes e se tornar o mensageiro dos gigantes? — Sim, meu rei! — Então vai ter que trazer notícias mais frescas. Eu já sei de tudo isso. E nada disso importa! Os semideuses tomaram a rota que esperávamos que eles tomassem. Eles seriam tolos se seguissem por qualquer outro caminho. — Mas, senhor, eles vão chegar a Esparta pela manhã! Se conseguirem libertar os makhai… — Idiota! — A voz de Porfírion abalou as ruínas. — Nosso irmão, Mimas, espera por eles em Esparta. Você não precisa se preocupar. Os semideuses não podem mudar seu destino. De um jeito ou de outro, o sangue deles será derramado sobre estas pedras e despertará a Mãe Terra! A multidão rugiu em aprovação e brandiu suas armas. Hipólito fez uma reverência e se afastou, mas outro gigante se aproximou do trono. Piper notou, com certa surpresa, que aquele gigante era uma mulher. Não que fosse fácil perceber isso. A giganta tinha os mesmos pés de dragão e cabelo comprido trançado. Era tão alta e musculosa quanto os outros, mas seu peitoral com certeza era modelado para uma mulher. Também tinha a voz mais alta e aguda. — Pai! — exclamou ela. — Vou perguntar de novo: por que aqui, neste lugar? Por que não nas encostas do próprio Monte Olimpo? Sem dúvida… — Peribeia — interrompeu o rei, com gravidade. — A questão está decidida. O Monte Olimpo original agora é um pico estéril. Não nos oferecerá glória. Aqui, no centro do mundo grego, as raízes dos deuses são realmente profundas. Podem existir templos mais antigos, mas este Partenon é o que melhor guarda sua memória. Na mente dos mortais, este é o símbolo mais poderoso dos olimpianos. Quando o sangue dos últimos heróis for derramado aqui, a Acrópole será destruída. Este morro vai desmoronar, e toda a cidade vai ser consumida pela Mãe Terra. Nós seremos os mestres da criação! A multidão gritou e aplaudiu, mas a giganta Peribeia não pareceu convencida. — O senhor provoca o destino, pai — disse ela. — Os semideuses também têm aliados aqui. Não é sábio… — SÁBIO? — Porfírion se levantou do trono. Todos os gigantes deram um passo para trás. — Encélado, meu conselheiro, explique à minha filha o que é sabedoria! O gigante se aproximou. Seus olhos brilhavam como diamantes. Piper odiava aquele rosto. Ela o vira demais em seus sonhos quando o pai tinha sido feito prisioneiro. — Não precisa se preocupar, princesa — garantiu Encélado. — Nós tomamos Delfos. Apolo foi expulso do Olimpo em vergonha. Os deuses não podem mais ver o futuro. Eles tropeçam às cegas. E sobre provocar o destino…
Encélado gesticulou para sua esquerda, e um gigante menor se aproximou arrastando os pés. Ele tinha cabelo grisalho e emaranhado, rosto enrugado e olhos leitosos de catarata. Em vez de armadura, usava uma túnica esfarrapada de aniagem. Suas pernas com escamas de dragão eram brancas como a geada. Ele não parecia grande coisa, mas Piper percebeu que os outros monstros mantinham distância dele. Até Porfírion se inclinou para longe do velho. — Este é Toas — disse Encélado. — Assim como vários de nós nascemos para matar certos deuses, Toas nasceu para se opor às Três Parcas. Ele vai estrangular as velhas com as próprias mãos. Vai arrebentar o fio delas e destruir seu tear. Ele vai destruir o próprio Destino! O rei Porfírion se levantou e abriu os braços em triunfo. — Basta de profecias, meus amigos! Basta de previsões! O tempo de Gaia será nossa era, vamos criar nosso próprio destino! Ao ouvir isso, a multidão aplaudiu tão alto que Piper sentiu como se estivesse desmoronando. Então percebeu que alguém a estava sacudindo para que acordasse. — Ei — disse Annabeth. — Chegamos a Esparta. Quer se aprontar? Piper sentou-se, ainda zonza. Seu coração batia forte. — Claro… — Ela segurou o braço de Annabeth. — Mas, primeiro, você precisa escutar uma coisa.
XIX
PIPER
QUANDO ELA REPETIU O SONHO para Percy, os banheiros do navio explodiram. — Vocês duas não vão para lá sozinhas de jeito nenhum — disse Percy. Leo veio correndo pelo corredor, balançando uma chave inglesa. — Cara, você tinha que destruir o encanamento? Percy o ignorou. Água corria pelo passadiço. Do casco vinha um barulho ensurdecedor, de mais canos estourando e pias transbordando. Piper achou que Percy não tivera a intenção de causar tanto estrago, mas sua expressão irritada a fez querer deixar o navio o mais rápido possível. — Vamos ficar bem — disse Annabeth a ele. — Piper previu nós duas indo até lá, então é isso o que precisa acontecer. Percy olhou para Piper como se tudo aquilo fosse culpa dela. — E esse sujeito, Mimas? Ele é um gigante, não é? — Provavelmente — respondeu ela. — Porfírion o chamou de nosso irmão. — E uma estátua de bronze cercada de fogo — disse Percy. — E aquelas… outras coisas que você mencionou. Mackies? — Makhai — corrigiu Piper. — Acho que a palavra significa batalhas em grego, mas não sei exatamente como ela se aplica. — É disso que estou falando! — disse Percy. — Não sabemos o que tem lá. Eu vou com vocês. — Não. — Annabeth pôs a mão no braço dele. — Se os gigantes querem nosso sangue, a última coisa que precisamos é de um garoto e uma garota indo lá juntos. Não se lembra? Eles querem um de cada para seu grande sacrifício. — Então vou chamar Jason — disse Percy. — E nós dois… — Cabeça de Alga, você está sugerindo que dois garotos podem resolver isso melhor que duas garotas? — Não. Quer dizer… não. Mas… Annabeth o beijou. — Estaremos de volta antes que você perceba. Piper subiu as escadas atrás dela antes que todo o convés inferior ficasse alagado com água de privada.
* * *
Uma hora depois, as duas estavam em uma colina de onde se avistavam as ruínas da Esparta Antiga. Já haviam explorado a cidade moderna, que, estranhamente, fez Piper se lembrar de Albuquerque — um grupo de construções baixas, quadradas e brancas espalhado sobre uma planície aos pés de montanhas arroxeadas. Annabeth tinha insistido em conferir o museu de arqueologia, depois a estátua gigante de metal do guerreiro espartano, no fórum, depois o Museu Nacional da Azeitona e do Azeite de Oliva (sim, isso existia de verdade). Piper aprendeu mais sobre azeite do que jamais quis saber, mas nenhum gigante as atacou. E elas não encontraram nenhuma estátua de um deus acorrentado. Annabeth parecia relutante em verificar as ruínas nos limites da cidade, mas finalmente elas ficaram sem outros lugares onde procurar. Não havia muito para ver. Segundo Annabeth, a colina onde elas se encontravam agora era a acrópole de Esparta, o ponto mais alto da cidade e sua principal fortaleza, mas nada tinha a ver com a maciça acrópole ateniense que Piper vira em seus sonhos. A elevação desgastada estava coberta por grama seca, pedras e oliveiras mirradas. Lá embaixo, ruínas se estendiam por cerca de quinhentos metros: blocos de calcário, algumas paredes desmoronadas e buracos no chão contornados por ladrilhos, parecendo poços de água. Piper pensou no filme mais famoso de seu pai, Rei de Esparta, em que os espartanos eram retratados como super-homens invencíveis. Ela achava triste que seu legado tivesse sido reduzido a um terreno cheio de pedras e uma cidadezinha moderna com um museu dedicado ao azeite. Ela limpou o suor da testa. — Achei que seria mais fácil encontrar um gigante de dez metros por aqui. Annabeth olhava fixamente para a forma distante do Argo II flutuando acima do centro da cidade. Segurava o pingente de coral vermelho em seu cordão, presente de Percy quando eles começaram a namorar. — Você está pensando em Percy — presumiu Piper. Annabeth assentiu. Desde a volta do Tártaro, Annabeth contara a Piper muitas coisas assustadoras que tinham acontecido lá. No topo de sua lista: Percy controlando uma poça de veneno e sufocando a deusa Akhlys. — Ele parece estar se ajustando — disse Piper. — Está sorrindo com mais frequência. Você sabe que ele gosta muito de você. Annabeth se sentou. Seu rosto de repente ficou pálido. — Não sei por que de repente pensei nisso. Não consigo tirar essa lembrança da cabeça… a expressão de Percy quando ele estava à beira do Caos. Talvez Piper só estivesse reagindo ao desconforto de Annabeth, mas ela também começou a se sentir agitada.
Ela pensou no que Jason dissera na noite anterior: Uma parte minha queria fechar os olhos e parar de lutar. Ela fizera o possível para tranquilizá-lo, mas ainda estava preocupada. Como aquele caçador cherokee que se transformou em cobra, todos os semideuses tinham por dentro sua própria cota de espíritos ruins. Defeitos fatais. Algumas crises os faziam aflorar. Alguns limites não deviam ser ultrapassados. Se isso era verdade para Jason, como podia não ser igual para Percy? O cara tinha literalmente ido ao inferno e voltado. Mesmo quando não tinha a intenção, ele fazia os vasos sanitários explodirem. O que aconteceria se Percy quisesse agir de modo assustador? — Dê um tempo a ele. — Ela sentou ao lado de Annabeth. — O cara é louco por você. Vocês passaram por tantas coisas juntos… — Eu sei… — Os olhos cinza de Annabeth refletiam o verde das oliveiras. — É só que… O titã Bob me avisou que haveria mais sacrifícios pela frente. Eu quero muito acreditar que um dia nós vamos poder ter uma vida normal… Mas eu me permiti ter esse tipo de esperança no verão passado, depois da Guerra dos Titãs. Então Percy desapareceu por meses. Aí nós caímos naquele abismo… — Uma lágrima escorreu pelo rosto de Annabeth. — Piper, se você tivesse visto o rosto do deus Tártaro, aquele turbilhão de escuridão, devorando e vaporizando monstros… Nunca me senti tão impotente. Eu tento não pensar nisso… Piper segurou as mãos da amiga, que tremiam muito. Ela se lembrou de seu primeiro dia no Acampamento Meio-Sangue, quando Annabeth a levou para um tour. A garota estava abalada pelo desaparecimento de Percy, e, apesar de a própria Piper estar bem desorientada e assustada, confortar Annabeth fez com que ela se sentisse necessária, como se pudesse realmente ter um lugar entre aqueles semideuses absurdamente poderosos. Annabeth Chase era a pessoa mais corajosa que ela conhecia. Se até ela precisava de um ombro para chorar de vez em quando… bem, era um prazer para Piper oferecer o seu. — Ei — disse ela com delicadeza. — Não tente reprimir seus sentimentos. Você não vai conseguir. Deixe que eles corram livremente por você até se esgotarem. Você está com medo. — Pelos deuses, estou com medo, sim. — Você está com raiva. — De Percy, por me assustar — disse ela. — De minha mãe, por me mandar naquela missão horrível em Roma. De… bem, praticamente de todo mundo. De Gaia. Dos gigantes. Dos deuses, por serem imbecis. — De mim? — perguntou Piper. Annabeth conseguiu soltar uma risada fraca. — Sim, por ser irritantemente calma. — É tudo fingimento.
— E por ser uma boa amiga. — Sei. — E por ter a cabeça no lugar em relação a garotos e relacionamentos e… — Desculpe. Tem certeza que você me conhece? Annabeth deu um soquinho no braço dela. — Sou uma boba mesmo, sentada aqui falando sobre meus sentimentos quando temos uma missão. — A batida do coração do deus acorrentado pode esperar. Piper tentou sorrir, mas seus próprios medos emergiram: ela temia por Jason e seus amigos no Argo II e por si mesma, se não conseguisse fazer o que Afrodite aconselhara. No fim, você só terá forças para uma única palavra. Deve ser a palavra certa, ou você perderá tudo. — Aconteça o que acontecer — disse ela a Annabeth —, sou sua amiga. Só… lembre-se disso, está bem? Especialmente se eu não estiver por perto para lembrar você, pensou Piper. Annabeth começou a dizer algo, mas, de repente, um som ensurdecedor veio das ruínas. Um dos buracos no chão, que Piper tinha confundido com poços de água, soltou um jato de chamas que alcançou a altura de um prédio de três andares e parou com a mesma rapidez. — O que foi isso? — perguntou Piper. Annabeth deu um suspiro. — Não sei, mas tenho a sensação de que é melhor irmos lá para dar uma olhada.
* * *
Havia três buracos lado a lado como furos de uma flauta doce. Todos eram perfeitamente redondos, com sessenta centímetros de diâmetro e as bordas revestidas de pedra calcária; todos mergulhavam direto na escuridão. Em intervalos aleatórios de alguns segundos, uma das três bocas jorrava uma coluna de fogo para o céu. A cada vez, de cor e intensidade diferentes. — Eles não estavam fazendo isso antes. — Annabeth deu uma volta larga nos poços. Ainda parecia abalada e pálida, mas sua mente estava obviamente concentrada no problema atual. — Não parece haver nenhum padrão. O intervalo de tempo, as cores, a altura das chamas… eu não entendo. — Será que de algum modo nós os ativamos? Talvez aquela onda de medo que você sentiu no alto da colina… Ah, quer dizer, que nós duas sentimos. Annabeth não pareceu ouvi-la. — Deve haver alguma espécie de mecanismo… uma placa de pressão, um sensor de movimento.
Chamas jorraram da abertura do meio. Annabeth contou em silêncio. Algum tempo depois, o jato surgiu à esquerda. — Isso não faz sentido. É inconsistente. Eles precisam seguir algum tipo de lógica. Piper começou a ouvir uma campainha no ouvido. Alguma coisa naqueles poços… Cada vez que um deles se acendia, ela era tomada por uma emoção forte: medo, pânico, mas também um desejo poderoso de se aproximar das chamas. — Não é racional — disse ela. — É emocional. — Como poços de fogo podem ser emocionais? Piper estendeu a mão sobre o poço da direita. As chamas jorraram instantaneamente. Ela mal teve tempo de tirar os dedos. Suas unhas fumegaram. — Piper! — Annabeth correu até ela. — O que você estava pensando? — Eu não estava pensando. Estava sentindo. O que nós queremos está lá embaixo. Esses buracos são a entrada. Vou ter que pular. — Ficou maluca? Mesmo que não fique presa lá dentro, você não tem ideia da profundidade. — Tem razão. — Você vai ser queimada viva! — É possível. — Piper tirou a espada da cintura e a jogou no poço da direita. — Aviso quando for seguro. Espere até eu chamar. — Nem pense… — começou Annabeth. Piper pulou. Por um instante ela se sentiu flutuar na escuridão, e as laterais do poço queimaram seus braços. Então o espaço se abriu ao seu redor. Instintivamente, ela se encolheu e rolou sobre o chão de pedra, absorvendo a maior parte do impacto da queda. Chamas jorraram à sua frente, queimando suas sobrancelhas, mas Piper recuperou a espada, tirou-a da bainha e golpeou antes mesmo de parar de rolar. Uma cabeça de dragão de bronze quicou no chão. Piper se levantou, tentando se situar. Olhou para baixo, para a cabeça de dragão perfeitamente decapitada, e sentiu um instante de culpa, como se tivesse matado Festus. Mas aquele não era Festus. Havia três estátuas de dragão de bronze lado a lado, alinhadas com os buracos no solo, lá no alto. Piper tinha acertado a do meio. Os dois dragões intactos tinham quase um metro de altura, com os focinhos apontados para cima e as bocas fumegantes abertas. Eles eram claramente as fontes das chamas, mas não pareciam ser autômatos. Não se mexeram nem tentaram atacá-la. Piper calmamente decapitou os outros dois. Ela esperou. Não jorraram mais chamas para o alto.
— Piper? — A voz de Annabeth ecoou de muito longe, como se ela estivesse berrando do alto de uma chaminé. — Oi! — gritou Piper. — Graças aos deuses! Você está bem? — Estou. Espere um segundo. Sua visão se ajustou à escuridão. Ela examinou a câmara. A única luz vinha de sua lâmina reluzente e das aberturas dos poços. O teto estava a cerca de dez metros de altura. O normal seria que Piper tivesse quebrado as duas pernas na queda, mas ela não ia reclamar da sorte. O espaço em si era redondo, mais ou menos do tamanho de um heliporto. As paredes eram de blocos de pedra áspera entalhados com inscrições gregas, milhares e milhares delas, como grafite. Na outra extremidade do salão, sobre uma plataforma de pedra, havia a estátua de um guerreiro em tamanho natural — o deus Ares, supôs Piper —, com correntes de bronze pesadas enroladas no corpo, prendendo-a ao chão. Dos dois lados da estátua assomavam portais escuros, cada um com três metros de altura e uma cara ameaçadora esculpida acima da arcada. Os rostos lembraram a Piper as górgonas, exceto pelo fato de que tinham jubas de leão como cabelo em vez de cobras. De repente Piper se sentiu muito solitária. — Annabeth! — chamou ela. — É uma queda longa, mas dá para descer sem problemas. Será que… será que você tem uma corda que possa ajudar a gente a subir de volta? — Pode deixar! Minutos depois, ela viu uma corda surgir pelo poço do meio. Annabeth desceu escorregando por ela. — Piper McLean — reclamou ela. — Esse foi sem dúvida o risco mais idiota que eu já vi alguém correr, e eu namoro um cara que adora correr riscos idiotas. — Valeu. — Piper cutucou com o pé a cabeça de dragão mais próxima. — Estou achando que estes são os dragões de Ares. O dragão é um de seus animais sagrados, não é? — E ali está o próprio deus acorrentado. Aonde será que aqueles portais… Piper ergueu a mão. — Ouviu isso? O som parecia uma batida de tambor… com eco metálico. — Está vindo da estátua — concluiu Piper. — A batida do coração do deus acorrentado. Annabeth sacou sua espada de osso de drakon. À luz fraca, seu rosto tinha uma palidez fantasmagórica, e seus olhos pareciam ter perdido a cor. — Eu… eu não gosto disso, Piper. Nós precisamos ir embora.
A parte racional de Piper concordou. Sua pele se arrepiou. Suas pernas estavam ansiosas para correr. No entanto, havia alguma coisa estranhamente familiar naquela câmara… — O santuário está intensificando nossas emoções — concluiu ela. — É como estar perto de minha mãe, só que este lugar irradia medo, não amor. Foi por isso que você começou a ficar deprimida lá no alto da colina. Aqui embaixo é mil vezes pior. Annabeth examinou as paredes. — Está bem… Precisamos de um plano para tirar a estátua daqui. Talvez içála com a corda, mas… — Espere. — Piper olhou para as caras raivosas de pedra acima dos portais. — Um santuário que irradia medo. Ares tinha dois filhos divinos, não? — F-fobos e Deimos.— Annabeth sentiu um calafrio. — Pânico e Medo. Percy conheceu os dois em Staten Island. Piper resolveu não perguntar o que os deuses gêmeos do pânico e do medo tinham ido fazer em Staten Island. — Acho que são os rostos deles acima das entradas dos túneis. Este lugar não é apenas um santuário de Ares. É um templo do medo. Uma risada grave ecoou pela câmara. Um gigante surgiu à direita de Piper. Ele não chegou por nenhum dos portais. Simplesmente emergiu da escuridão, como se estivesse camuflado contra a parede. Ele era pequeno para um gigante, devia ter uns oito metros de altura, o que lhe dava espaço suficiente para golpear com o enorme martelo que tinha nas mãos. Sua armadura, a pele e as pernas de dragão eram todas da cor do carvão. Fios de cobre e placas de circuitos quebradas brilhavam nas tranças de seu cabelo preto como petróleo. — Muito bom, filha de Afrodite. — O gigante sorriu. — Este é mesmo o Templo do Medo. E eu estou aqui para convertê-las.
Sem comentários:
Enviar um comentário