30. Samir Khan: um improvável soldado de infantaria
ESTADOS UNIDOS E IÊMEN, 2001-9 — Em retrospecto, parece bastante claro o curso dos acontecimentos que fizeram com que o Iêmen se tornasse, no fim de 2009, uma séria fonte de preocupação para o governo Obama. Em novembro, o Iêmen estava em todas as manchetes e, aparentemente, associado a todas as novas e supostas tramas terroristas contra os Estados Unidos, ao mesmo tempo que os tentáculos de Anwar Awlaki alcançavam todos os incidentes. Para muitos americanos, porém, o Iêmen parecia ter surgido do nada. A presença contínua do Iêmen nos meios de comunicação teve início em 5 de novembro de 2009, quando um jovem psiquiatra do Exército americano, o major Nidal Malik Hasan — que escrevera uma série de e-mails a Awlaki — entrou no Centro de Processamento de Prontidão Militar,1 em Fort Hood, Texas, gritou “Allah u Akbar [Deus é grande]” e abriu fogo contra seus colegas de farda, matando treze pessoas e ferindo 43 antes de ser baleado e paralisado. Segundo a maioria dos depoimentos, Hasan foi levado a cometer o atentado por uma combinação de fatores relacionados com o tratamento que ele fazia de soldados que haviam combatido no Afeganistão e no Iraque. Consta que ele tentara fazer com que alguns pacientes seus fossem processados por crimes de guerra2 depois que lhe revelaram suas ações no campo de batalha, mas que tais pedidos tinham sido rejeitados. Hasan queixara-se a amigos e parentes3 que tinha sido tratado mal por alguns soldados por causa de sua religião. Segundo esses amigos e parentes, ele tentara dar baixa do Exército à medida que se esforçava cada vez mais para conciliar a fé com seu trabalho para uma Força Armada que combatia muçulmanos em terras muçulmanas. Em 2007, numa apresentação em PowerPoint que fez antes de um congresso de médicos do Exército, Hasan declarou: “Para os muçulmanos no Exército, está ficando cada vez mais difícil4 justificar moralmente o trabalho para uma força militar que parece guerrear continuamente com outros muçulmanos”. Hasan defendia a concessão da condição de objetor de consciência a muçulmanos, para prevenir o que, em suas palavras, poderiam ser “fatos adversos”. Na época do atentado, Hasan estava na iminência de ser enviado ao Afeganistão.5 Logo depois do incidente, os meios de comunicação começaram a noticiar que ele mantivera contato com Awlaki, acrescentando que frequentara a mesquita de Awlaki, na Virgínia, em 2001, embora ninguém mencionasse que eles só tinham se encontrado uma vez. O fato de ambos terem trocado ao menos dezoito e-mails a partir de dezembro de 2008 passou a ser repisado dia e noite
por jornalistas e políticos. Todavia, quando autoridades americanas de contraterrorismo passaram em revista os e-mails, determinaram que eram inócuos. Segundo o New York Times, “um analista de contraterrorismo que examinou as mensagens, logo depois de terem sido distribuídas, decidiu que eram compatíveis com pesquisas autorizadas que o major Hasan vinha realizando e não chamaram a atenção6 de seus superiores militares”. Mais tarde Awlaki declarou a um jornalista iemenita que Hasan o procurara basicamente para lhe fazer perguntas de caráter religioso. Afirmou ainda que não “dera ordens nem fizera pressão”7 para que Hasan realizasse ataques, o que foi confirmado pelos e-mails, depois de divulgados. Entretanto, a reação de Awlaki ao atentado tornou esses detalhes irrelevantes aos olhos do público e do governo americanos. Dias depois do tiroteio em Fort Hood, Awlaki postou em seu blog um texto de título nada sutil: “Nidal Hasan fez a coisa certa”. Hasan, ele escreveu,
é um herói.8 É um homem de consciência que não pôde suportar viver a contradição de ser muçulmano e servir um exército que está fazendo guerra a seu próprio povo. Essa é uma contradição que muitos muçulmanos põem de lado, fingindo que não existe. Ele abriu fogo contra soldados que estavam prestes a serem mandados para o Iraque e o Afeganistão. Como pode haver dúvida quanto à correção do que ele fez? De fato, só existe uma única forma de um muçulmano justificar, do ponto de vista islâmico, a decisão de servir como soldado no Exército americano: é tencionar seguir as pegadas de homens como Nidal.
Awlaki exortou outros muçulmanos do Exército americano a realizarem operações semelhantes. “Nidal Hasan não foi recrutado pela Al-Qaeda”,9 disse Awlaki mais tarde. “Ele foi recrutado pelos crimes americanos, e é isso que os Estados Unidos se recusam a admitir.” Essa foi a última postagem feita por Awlaki em seu blog. No dia seguinte ao do atentado, logo de manhã, o presidente Obama reuniu-se com seus principais comandantes “e lhes ordenou que fizessem uma análise completa10 da sequência de acontecimentos que levaram ao atentado”. Em sua primeira alocução semanal após o incidente, Obama disse: “Devemos reunir todas as informações já obtidas sobre o atirador e temos de saber o que foi feito com essas informações. Depois de juntarmos esses fatos, teremos de tomar medidas com base neles”. E o presidente disse ainda: “Nosso governo deve ser capaz de agir com rapidez e eficiência com relação a informações ameaçadoras. E nossos soldados precisam ter a segurança que merecem”. Embora não fossem apresentados indícios que ligassem Awlaki ao planejamento dos disparos em Fort Hood e os investigadores determinassem que Hasan não fazia parte de uma conspiração terrorista mais ampla, a suposta associação com Awlaki tornou-se parte importante da história e encorajou aqueles que defendiam uma ação mais agressiva do governo Obama no
Iêmen. Em 18 de novembro, o senador Joseph Lieberman classificou o atentado como “o ataque terrorista mais destrutivo11 contra os Estados Unidos desde o Onze de Setembro”. Um mês depois, Lieberman pedia ataques preventivos contra o Iêmen.12 De seu esconderijo em Shabwah, Awlaki acompanhava as notícias. Vasculhava os noticiários, e seus “alertas Google” vinculados a seu nome começaram a silvar de minuto a minuto. Ele podia ter sido famoso, antes, entre muçulmanos de língua inglesa, mas agora seu nome se tornara verdadeiramente global. O fato de Awlaki ter ou não exercido algum papel no ataque assassino de Hasan passou a ser irrelevante nos Estados Unidos. Seu elogio ao atentado, feito com franqueza e alegria, tornou-se uma obsessão para a imprensa, que se referia a ele como o “imã do Onze de Setembro”, e todos os dias novas reportagens esmiuçavam sua biografia. As prisões relacionadas à prostituição, seus supostos contatos com os sequestradores do Onze de Setembro, seus discursos sobre a jihad e seu blog — tudo foi entrelaçado de forma a dar a impressão de que Awlaki passara a vida inteira planejando operações terroristas contra os Estados Unidos. Na televisão, “peritos” em terrorismo pontificavam sobre sua capacidade de recrutar jihadistas ocidentais para a causa da Al-Qaeda. Não muito tempo depois do atentado de Fort Hood, o blog de Awlaki teve um fim repentino. Os Estados Unidos bloquearam seu site, cujo URL estava registrado através da Wild West Domains,13 empresa com sede em Scottsville, Arizona. “Fecharam meu site na internet,14 em decorrência da operação de Nidal Hasan”, recordou Awlaki. “Depois li no Washington Post que estavam monitorando minhas comunicações. Por isso fui obrigado a interrompê-las.” Para Awlaki, a atenção dada a ele pelos meios de comunicação era sinal de uma vida difícil: ele teria de mudar de residência sem parar e apagar qualquer pista digital que pudesse levar a ele. Se antes já sabia que os americanos queriam prendê-lo, agora passou a temer que Obama o quisesse morto.
Em outubro de 2009, Samir Khan, um jovem americano de família paquistanesa, desembarcou em Sana’a.15 Como centenas de outros muçulmanos de todo o mundo que chegam ao Iêmen a cada ano, Khan estava ali para estudar o Islã e o árabe nas mais famosas universidades antigas do país. Ao menos foi isso o que ele disse à família e aos amigos em sua cidade. Nos dez anos que antecederam sua viagem para o Iêmen, Khan se tornara cada vez mais militante em suas opiniões políticas e em sua interpretação do Islã. O Onze de Setembro e a repressão aos muçulmanos nos Estados Unidos tiveram um efeito profundo sobre ele, tal como em Awlaki. Khan nascera em 1985, em Riade, Arábia Saudita, de pais paquistaneses, um dos quais tinha cidadania americana. “Ele é filho do Natal”,16 disse sua mãe, Sarah Khan, “porque nasceu no dia 25 de dezembro.” Quando Samir tinha sete anos, a família imigrou para os Estados Unidos e foi morar na casa dos avós17 do menino no Queens, Nova York. Seus parentes eram muçulmanos conservadores, mas também se consideravam americanos patriotas. “Na
verdade, queríamos dar um futuro melhor às crianças”, disse-me Sarah. “Tínhamos grandes esperanças para este país.” Os colegas de Khan18 no ensino médio lembram-se de um garoto meio desajeitado, com calças jeans largas, jogador de futebol americano, apesar da timidez, entusiasmado com o hip-hop e o jornal da escola. “Ele sempre se interessou por esportes”, disse a mãe. “Sempre dizia que queria jogar na liga nacional de futebol.” Os interesses de Samir começaram a mudar em agosto de 2001, quando, com quinze anos, ele passou uma semana num acampamento de verão numa mesquita do Queens, patrocinado pela Organização Islâmica da América do Norte (Islamic Organization of North America, Iona), entidade conservadora ligada à organização paquistanesa Tanzeen-e-Islami. Anos depois, Khan disse numa entrevista que o acampamento tinha sido uma experiência importante para ele e que tinha voltado para a escola, naquele ano, sabendo “o que eu queria fazer na vida: ser um muçulmano resoluto, um muçulmano forte, um muçulmano praticante”.19 Abandonou as calças largas e o rap, só abrindo uma exceção para o hoje desfeito grupo de hip-hop chamado Soldados de Alá. Aproximou-se da Sociedade de Pensadores Islâmicos,20 um grupo com sede em Jackson Heights que empregava o ativismo não violento, como “dawas [convites] de rua” em sua luta por um Califado Islâmico. Quando aconteceu o Onze de Setembro, Khan não fez esforço algum para esconder dos amigos e da família suas novas atitudes em relação à religião e à política. Recusava-se a pronunciar o Juramento à Bandeira e por várias vezes discutiu com colegas de classe por declarar que os americanos tinham merecido o ataque. “Antes do Onze de Setembro, as pessoas já notavam a mudança em Samir, mas não davam muita importância”, comentou um colega de classe. “Mas, depois, mais pessoas decidiram questionar a ideologia dele e perguntavam: ‘Será que ele está tentando ser como eles [os terroristas do Onze de Setembro]? Será que pensa como eles?’.”21 Outro colega disse que Khan costumava ser alvo de piadas étnicas. No primeiro ano do ensino médio, Khan ia à escola, todo dia, usando um gorro kufi. O pai de Samir Khan notou que o filho começara a frequentar sites jihadistas na internet e fez a primeira de várias intervenções.22 No anuário do colégio, Khan referiu-se a si mesmo como um “mujahid” e escreveu que entre seus planos estava viajar “ao exterior [para] estudar a lei islâmica e outros temas relacionados ao Islã”. Incluiu em seu texto também uma máxima: “Se deres a Satã uma polegada,23 ele te governará”. Em 2003, ano em que Samir Khan concluiu o ensino médio e em que os Estados Unidos invadiram o Iraque, ele passara a ter uma visão absolutamente radical da política externa americana. A família mudou-se para a Carolina do Norte, onde o pai de Khan, Zafar, passou a trabalhar como executivo numa empresa de tecnologia da informação. Samir matriculou-se numa faculdade comunitária24 e ganhava algum dinheiro vendendo facas de cozinha e outros utensílios domésticos. Frequentava uma mesquita e, em discussões com outros muçulmanos,25 deplorava a falta de firmeza dos líderes religiosos diante das guerras americanas. Além disso, passou a dedicar muito tempo à internet, em busca de muçulmanos que
pensassem como ele, postando em seu blog notícias sobre a jihad no exterior, muitas vezes assinando seus textos como “Inshallahshaheed” ou “um mártir se Deus permitir”. Samir mantinha muitos blogs, retirando-os do ar com frequência26 e mudando de servidor quando seus comentários cáusticos passavam a ser criticados ou eram banidos pelos administradores dos servidores. Samir por fim achou guarida no Muslimpad,27 dirigido pela Islamic Network (empresa na qual trabalhara Daniel Maldonado, condenado por viajar a campos de treinamento da UCI na Somália). Um de seus blogs, também chamado Inshallahshaheed, foi lançado em 2005 e tornouse imensamente popular em 2007, quando foi incluído na lista de 1 milhão de sites28 considerados os melhores dentre os 100 milhões existentes, de acordo com o medidor de usuários <alexa.com>. Seus demais blogs tinham nomes como Human Liberation — An Islamic Renaissance and Revival [Emancipação humana — renascimento e revivificação pelo Islã]. Samir Khan enaltecia em seus blogs as vitórias e virtudes da Al-Qaeda e das organizações a ela filiadas, mas seus textos contribuíram também para popularizar um movimento ideológico mais amplo que incluía xeques e letrados de que poucos americanos tinham ouvido falar. Um blog posterior listava homens a que ele se referia como “sábios do Islã29 […] que nos transmitem conhecimentos”. Entre eles estavam Abu Musab al-Zarqawi, Aby Layth Libi e Anwar Awlaki. Um dos colaboradores do blog Inshallahshaheed era o americano Zachary Chesser,30 que seria preso em 2010 por tentar viajar à Somália para filiar-se à Al-Shabab. Em seus vários sites, Samir comemorava ataques a soldados americanos no Iraque, divulgava textos de Osama bin Laden e fazia votos pela vitória dos jihadistas sobre as forças americanas e israelenses em todo o mundo. Durante esse período, Khan começou a ser alvo da atenção da imprensa, principalmente do New York Times, que em 2007 fez um perfil dele em que o descrevia como um improvável soldado de infantaria31 naquilo que a Al-Qaeda chama de “mídia jihadista islâmica”. Nos Estados Unidos, ele se tornou um rosto novo na emergente e diversificada cultura digital militante, que começara com vídeos granulados de Zarqawi cortando cabeças no Iraque e encontrara plena expressão no que o Times chamou de uma “constelação de operadores de comunicação aparentemente independentes que estão divulgando a mensagem da Al-Qaeda e de outros grupos” para pessoas em todo o mundo, inclusive, cada vez mais, do Ocidente. Khan declarou ao New York Times que o vídeo de um homem-bomba explodindo um posto dos Estados Unidos no Iraque “trouxe-me imensa felicidade”.32 Com relação às famílias americanas que tinham parentes servindo no Iraque, ele disse: “O que acontece a seus filhos e filhas não me interessa nem um pouco”, e chamou-os de “pessoas do fogo infernal”. Embora negasse ligações com grupos terroristas e declarasse a uma TV local33 que não estava recrutando ativamente combatentes americanos, Khan deu a entender que talvez ele próprio viajasse um dia para se juntar à jihad, mas se absteve de incitar diretamente atos de violência. Chegou a contratar um advogado34 que o aconselhasse em relação aos parâmetros da liberdade
de expressão antes de lançar seu primeiro blog. Com efeito, as autoridades praticamente nada lhe fizeram, ainda que, com certeza, tenham tido sua atenção despertada: agentes da segurança interna, bem como analistas do Centro de Combate ao Terrorismo, passaram a acompanhá-lo de perto.35 Sue Myrick, deputada republicana da Carolina do Norte, mais tarde revelou ao Washington Post que estivera envolvida em iniciativas para “silenciar [Khan]36 através do FBI”. Esses esforços foram malsucedidos “porque ele não estava incitando à violência, estava simplesmente divulgando informações, e porque ele não parava de mudar de servidor”. Khan achava que as autoridades estavam fazendo alguma coisa além de ler seus blogs. “Na Carolina do Norte, o FBI pôs um espião37 na minha cola que fingia querer converter-se ao Islã”, escreveu ele. Em várias ocasiões, agentes do FBI visitaram a casa de Khan na tentativa de fazer com que os pais de Samir o persuadissem a fechar os blogs. De acordo com Sarah Khan, os agentes do FBI disseram à família que Samir não estava violando nenhuma lei e estava protegido pela liberdade de expressão, mas que estavam preocupados com a direção que ele parecia estar tomando. O pai de Samir, Zafar, chegara a ponto de cortar-lhe a conexão de internet e tentar outras medidas. Pediu ao imã38 Mustapha Elturk que tentasse persuadir Samir a reconsiderar seu radicalismo. Elturk sabia que o pai de Samir era “um muçulmano moderado,39 devotado à sua fé”. Disse que Zafar “tentou tudo que estava a seu alcance para convencer o filho e fazer com que ele falasse com imãs e com letrados muçulmanos que persuadissem” Samir de que “a ideologia da violência não é o caminho correto”. Samir “estava absolutamente convicto40 de que os Estados Unidos são um país imperialista que defende ditadores e dá apoio cego a Israel […]. Em sua opinião, justificava-se o recurso a mortes indiscriminadas”, lembrou Elturk. “Tentei usar argumentos41 tirados do Alcorão e de letrados, e disse: ‘Tudo o que você está pensando não é verdadeiro’.” Samir não se deixou abalar e continuou seu trabalho. O fruto de seus últimos meses nos Estados Unidos foi a Jihad Recollections (Memórias da Jihad), revista on-line em PDF que usava muitos recursos gráficos e publicava traduções de discursos de líderes da Al-Qaeda, além de textos originais dele próprio e de outros colaboradores. No fim de 2009, Samir tinha decidido sair dos Estados Unidos. Em seu entender, o FBI o vigiava 24 horas por dia, e ele se sentia enojado por estar cercado de muçulmanos que, segundo ele, tinham sido cooptados pela cultura americana. Samir Khan publicou o quarto e último número da Jihad Recollections em setembro de 2009. “Eu sabia que a verdade real não poderia chegar às massas a menos que eu estivesse acima da lei”, escreveu ele mais tarde. Khan viajou para o Iêmen no mês seguinte, com o pretexto de estudar árabe e ensinar inglês. Especialistas americanos em terrorismo chegaram a pensar que ele já recebera um convite42 de Awlaki para ir ao Iêmen e ajudar a liderar a “jihad midiática”. No entanto, de acordo com Sarah Khan, o Iêmen não foi a primeira opção do filho. Ele tinha procurando escolas no Paquistão e no Reino Unido, mas a papelada do Iêmen chegou primeiro. “Sabíamos da vontade dele de aprender o árabe, e ele estava em busca de boas escolas que lhe
ensinassem a língua nas quais pudesse também aprender mais sobre o Islã e entender melhor o Alcorão”, disse ela. Quando Samir disse aos pais que estava partindo para o Iêmen, a mãe ficou apreensiva, mas pensou: “Ele estará bem, já é homem-feito. É provável que precise conhecer coisas, ver o mundo por si mesmo”. Entretanto, Samir estava passando por um processo muito diferente do que seus pais pensavam. Tinha decidido que não queria mais saber das coisas que entendia como a venalidade e os pecados da classe média americana. A internet fora sua melhor sala de aula, onde ele encontrara a pregação de líderes muçulmanos que o inspiravam. Assistira aos horrores das guerras e das invasões que se seguiram ao Onze de Setembro e chegara à conclusão de que tinha a obrigação de juntar-se a outros muçulmanos na luta contra as forças dos cruzados, como ele os via. “Depois que minha fé deu um giro de 180 graus, entendi que não podia mais morar nos Estados Unidos como um cidadão complacente. Minhas convicções tinham me transformado num rebelde contra o imperialismo de Washington”, ele escreveu.
Como alguém podia afirmar ser são43 e continuar sentado sem fazer nada? Para mim, era impossível. Minha culpa [consciência] tornou-se meu modo de pensar. Não podia me imaginar como uma pessoa que perderia a oportunidade de uma vida, salvar a nação islâmica de seu apuro.
Apesar da vigilância, Samir Khan teve pouca dificuldade para deixar os Estados Unidos. “Foram necessários trinta minutos adicionais para eu pegar meu cartão de embarque na Carolina do Norte, porque, como o atendente me disse, eu estava sendo vigiado”, contou depois Khan, que admitiu sua surpresa por poder sair do país quase sem problema algum. Khan passou algum tempo em Sana’a, dando aulas de inglês, antes de fazer planos de viajar ao sul para procurar os mujahedin. “Eu estava na iminência de me tornar, oficialmente, um traidor do país em que tinha sido criado e vivido durante a maior parte de minha vida”, escreveu. “Refleti sobre muitos dos possíveis efeitos que aquilo poderia ter em minha vida. Mas, fossem quais fossem, eu estava disposto a aceitá-los!”
Morten Storm diz que conheceu Anwar Awlaki44 em Sana’a, em 2006, pouco antes que Awlaki fosse metido na prisão durante dezoito meses, a pedido dos Estados Unidos. Ex-membro de uma gangue de motociclistas e criminoso condenado, Storm, nascido na Dinamarca, se convertera ao Islã. No fim da década de 1990, começou a conviver em círculos islâmicos com o nome de Murad Storm.45 Tivera uma infância turbulenta. Cometeu seu primeiro assalto a mão armada46 aos treze anos, e na adolescência foi detido pela polícia diversas vezes. Acabou se envolvendo com a gangue internacional Bandidos.47 Em 1997, porém, renunciou à vida de
drogas e crimes, dizendo à família e aos amigos que tinha se convertido ao Islã. Mudou-se para o Iêmen,48 onde, em 2000, casou-se com uma marroquina. Dois anos depois tiveram um filho, a quem deram o nome de Osama.49 Um vídeo de 200550 mostra Storm em Londres, numa palestra do clérigo muçulmano radical Omar Bakri Mohammed. Storm afirmou que conhecera Awlaki um ano depois, em Sana’a. Na época, estudava na Universidade da Fé,51 onde Awlaki tinha aulas e dava palestras. Segundo Storm, ele e Awlaki “conversavam livremente”52 durante os meses que antecederam a prisão de Awlaki e se tornaram amigos. Disse também que enquanto Awlaki esteve preso, ele começou a mudar de opinião em relação à versão do Islã que estava praticando. “Descobri que aquilo em que eu acreditava não era, infelizmente, o que eu pensava que fosse.”53 Disse que procurou54 o Serviço de Inteligência da Dinamarca (PET) para oferecer ajuda. Teria sido apresentado a representantes de serviços de Inteligência britânicos e da CIA. O PET, declarou, designou um agente para acompanhá-lo. Quando Awlaki foi solto. Storm tornou-se potencialmente importante para a CIA. Ela e o PET “sabiam que Anwar me via como amigo55 e confidente. Sabiam que eu tinha como falar com ele e descobrir onde morava”, disse Storm numa entrevista a um importante jornal dinamarquês, o Jyllands-Posten. Disse também que as autoridades de informações dinamarquesas lhe deram dinheiro para “levar [a Awlaki] materiais e equipamentos eletrônicos”.56 Segundo Storm, a CIA queria instalar, no equipamento que ele estava entregando a Awlaki, um dispositivo de rastreamento que possibilitasse aos americanos monitorar o clérigo e possivelmente matá-lo com um ataque de drone. Em setembro de 2009, Storm voltou ao Iêmen e viajou à província de Shabwah, onde Awlaki estava escondido. Disse que ficou na casa de um simpatizante da Al-Qaeda e que, quando se avistou com o clérigo, este lhe pediu que conseguisse painéis solares ou uma geladeira portátil que ele pudesse usar para resfriar componentes de explosivos. “Conversamos também sobre os ataques terroristas.57 Ele tinha planos para atacar grandes shoppings no Ocidente ou outras partes do mundo, onde houvesse muita gente, utilizando gases venenosos.” As afirmativas de Storm não podem ser confirmadas, mas é certo que ele as transmitiu à CIA na época em que os Estados Unidos estavam reunindo evidências contra Awlaki. Perguntei ao pai de Awlaki a respeito das declarações de Storm. “Não acredito em muitas coisas do que ele disse sobre Anwar”, disse Nasser.
Eu acho que esse sujeito fazia parte de uma conspiração para pegar Anwar58 […] o homem e o personagem […] a fim de diminuir ou eliminar sua influência sobre muçulmanos e muçulmanas em todo o mundo. Então os Estados Unidos e a Dinamarca encontram um homem que foi durante a vida toda um sujeito rude, que fez um assalto a mão armada com apenas treze anos. Nos seus quarenta anos de vida, Anwar nunca se envolveu em nenhum ato
de violência contra qualquer pessoa ou grupo.
O que é indiscutível é que Awlaki pediu a Storm que lhe arranjasse mais uma esposa. Tinha se casado com uma segunda iemenita59 enquanto esteve foragido e teve uma filha com ela. Dessa vez, porém, queria, especificamente, uma branca convertida ao islamismo, para que fosse sua “companheira na clandestinidade”,60 explicou Storm. “Ele me perguntou se eu conhecia uma ocidental com quem ele pudesse se casar. Acho que ele desejava alguém capaz de entender melhor sua mentalidade ocidental”, declarou Storm ao jornal dinamarquês. Ele concordou em ajudar Awlaki. “Eu gostaria de ressaltar duas coisas”,61 Awlaki teria escrito a Storm num e-mail em fins de 2009, pedindo-lhe que as transmitisse a uma possível noiva.
A primeira é que eu não tenho residência fixa. Por isso, minhas condições de vida variam bastante. Às vezes, chego a morar numa tenda. Em segundo lugar, devido às minhas condições de segurança, às vezes tenho de me isolar, o que significa que eu e minha família não nos encontramos com outras pessoas durante períodos prolongados. Se você é capaz de viver em condições difíceis, não se importa com a solidão e aceita restrições a suas comunicações com outras pessoas, então alhamdulillah [graças a Deus], isso é ótimo.
Ao voltar a Copenhague, Storm reuniu-se com autoridades da CIA e do PET. Disse que lhe mostraram imagens, obtidas por satélites, da área onde ele estivera em Shabwah e que identificou nelas a casa onde se hospedara. Forças iemenitas executaram um ataque62 contra essa casa algum tempo depois, porém Awlaki já tinha se mudado. O dono da casa morreu. Storm também lhes falou do desejo de Awlaki de achar uma esposa ocidental. A CIA viu uma oportunidade nesse interesse. Os agentes americanos, disse Storm, ficaram “exultantes”.63 Segundo Storm, a CIA, secundada por agentes do PET, apresentou um plano. “O projeto consistia em achar uma pessoa64 que tivesse a mesma ideologia e mentalidade [de Awlaki], para que ambos fossem mortos num ataque americano de drone”, contou Storm. “Ajudei a CIA e o PET a rastrear Awlaki, para que os americanos pudessem lançar um drone contra ele. Esse era o plano.”65
31. Tiro pela culatra na Somália
SOMÁLIA E WASHINGTON, DC, 2009 — No começo do verão de 2009, o JSOC tinha bem claro o fato de que os homens identificados como as mais perigosas ameaças para os interesses dos Estados Unidos na África Oriental, Saleh Ali Nabhan e Fazul Abdullah Mohammed, ainda estavam à solta. Acreditava-se que Fazul tinha se submetido a uma cirurgia plástica,1 e os analistas de Inteligência podiam apenas fazer suposições sobre seu exato paradeiro. As pistas sobre os dois homens tinham se tornado cada vez mais vagas à medida que a Al-Shabab ampliava as áreas por ela controladas na Somália, dando a eles mais opções para se esconder ou operar discretamente. A Inteligência americana acreditava que Nabhan tinha se incorporado mais profundamente às operações da Al-Shabab desde a deposição da UCI e estava liderando três campos de treinamento que produzia muitos homens-bomba, entre eles um cidadão americano. Um telegrama diplomático secreto da embaixada dos Estados Unidos em Nairóbi dizia que
desde a escolha de Nabhan para treinador sênior2 da Al-Shabab, no verão de 2008, o fluxo de estrangeiros para a Somália ampliou-se e passou a incorporar combatentes do sul da Ásia, da Europa, da América do Norte, do Sudão e da África Oriental, principalmente do Quênia.
Esses combatentes, de acordo com o telegrama, viajavam a Mogadíscio para lutar contra a União Africana, apoiada pelos Estados Unidos, e contra as forças do governo somaliano. Os “campos continuam a treinar números cada vez maiores de estrangeiros”, concluía. O governo dos Estados Unidos queria desesperadamente tirar Nabhan de circulação, e em julho de 2009, a Inteligência americana promoveu um grande avanço potencial. Naquele mês, as forças de segurança do Quênia invadiram3 a casa de um jovem queniano de ascendência somaliana chamado Ahmed Abdullahi Hassan, que morava em Eastleigh, a superlotada favela somaliana em Nairóbi. Na noite seguinte, os captores de Hassan levaram-no ao aeroporto de Wilson: “Puseram um saco na minha cabeça,4 como em Guantánamo. Amarraram minhas mãos nas costas e me puseram num avião”, lembrou Hassan, segundo uma declaração dele relatada a mim por um investigador de direitos humanos. “De madrugada, pousamos em Mogadíscio. Soube que estava em Mogadíscio por causa do cheiro do mar — o caminho passa muito perto da
praia.” De lá, Hassan foi levado a uma prisão secreta5 nos porões da Agência de Segurança Nacional da Somália, onde foi interrogado por funcionários da Inteligência americana. Um relatório da Unidade Policial Antiterrorismo do Quênia que vazou afirmava que “Ahmed Abdullahi Hassan, também conhecido como Anas” era “um ex-assistente pessoal6 de Nabhan” e “tinha sido ferido em combate perto do palácio presidencial em Mogadíscio em 2009”. Era visto como prisioneiro de grande valor. “Fui interrogado inúmeras vezes”, dizia Hassan em sua declaração, que foi contrabandeada da prisão e chegou até mim. “Fui interrogado por somalianos e por brancos. Todo dia apareciam caras novas.” Em sua campanha eleitoral e depois de se tornar presidente, Barack Obama prometeu que os Estados Unidos deixariam de usar certas táticas de tortura e detenção da era Bush. O diretor da CIA, Leon Panetta, afirmou, em abril de 2009, que “a CIA já não tem prisões ou instalações clandestinas”7 e anunciou um “plano de desativação das unidades remanescentes”. No entanto, três meses depois, Hassan se encontrava numa prisão secreta, sendo interrogado por americanos. Segundo um funcionário americano que falou comigo com a condição de não ser identificado, Hassan não foi transferido diretamente do Quênia para a Somália pelo governo americano. No entanto, disse ele, “os Estados Unidos forneceram informações8 que ajudaram a tirar Hassan — um perigoso terrorista — das ruas”. Essa afirmação apoia a teoria segundo a qual forças quenianas estavam transferindo suspeitos em nome dos Estados Unidos e de outros governos. Outra fonte bem informada disse que Hassan tinha sido visado em Nairóbi porque a Inteligência deu a entender que ele era “o braço direito”9 de Nabhan, na época tido como o líder da AlQaeda na África Oriental. Dois meses depois que Hassan foi levado para a prisão secreta de Mogadíscio, em 4 de setembro de 2009, uma equipe do JSOC partiu em helicópteros10 de um porta-aviões situado ao largo da costa da Somália e entrou no espaço aéreo somaliano. Segundo informações “acionáveis” recentes, os homens que eles perseguiam tinham feito viagens regulares11 entre as cidades portuárias de Merca e Kismayo, perto da fronteira do Quênia. Naquele dia, esses alvos estavam viajando numa Land Cruiser, apoiado por caminhonetes com metralhadoras. Segundo testemunhas,12 os helicópteros “zuniram” sobre uma aldeia rural a caminho do ponto onde se encontrava o comboio. Em plena luz do dia, a equipe do JSOC atacou os comboios, matando as pessoas nos veículos. Os comandos americanos então pousaram e recolheram pelo menos dois corpos.13 Um deles, como se veio a confirmar mais tarde, era o de Saleh Ali Nabhan. Bryan Whitman, porta-voz do Pentágono, nada comentou sobre “uma suposta operação na Somália”,14 e também a Casa Branca se calou. Naquele dia, quando a Al-Shabab15 confirmou que Nabhan, cinco outros combatentes estrangeiros e três somalianos tinham sido mortos no ataque, já restava pouca margem de dúvida. O JSOC tinha abatido o homem mais procurado da África Oriental na primeira operação de assassinato dirigido realizada no interior da Somália com autorização do presidente Obama.
Para quadros operacionais veteranos em contraterrorismo, como Malcolm Nance, a morte de Nabhan foi um exemplo do que os Estados Unidos deviam ter feito em vez de apoiar a invasão da Somália pelos etíopes. “Sou um partidário entusiasta16 do assassinato dirigido quando se trata de pessoas que já não têm valor para nossos processos de coleta de informação. Se eles forem fortes demais para nossa capacidade de neutralizá-los no campo de batalha, o que temos de fazer é lançar um míssil Hellfire contra eles”, disse-me Nance.
Tivemos muito mais sucesso usando golpes cirúrgicos onde entramos — para dizer a verdade, muito como faz Israel — e lançamos o ataque com drones, e/ou com o Hellfire e explodimos o carro de um cara conhecido que se sabia que estava no veículo. Voamos até lá, pegamos o corpo, fizemos o reconhecimento dele e caímos fora. É assim que devia ser sempre. Devíamos estar fazendo isso há dez anos.
O ataque contra Nabhan rendeu muitos elogios a Obama vindos da comunidade de contraterrorismo e Operações Especiais, mas em outros círculos suscitou graves questões sobre o consenso emergente e suprapartidário referente a assassinatos, detenções e prisões secretas. “São como execuções sumárias”,17 disse Evelyn Farkas, ex-funcionária da Comissão de Serviços Armados do Senado, que trabalhou na área de fiscalização para o Socom de 2001 a 2008. “Quem está autorizando? Quem está fazendo as listas [de alvos]? É uma [missão] de morte ou captura ou é uma missão de morte?” Como candidato, Obama declarou que se afastaria radicalmente das políticas da era Bush, mas no caso Nabhan ele lançou mão das mais controversas dessas políticas. “Nossa política mudou alguma coisa desde o governo anterior?”, perguntou Farkas. “Minha impressão é de que não.” Jack Goldsmith, que foi subprocurador geral no governo Bush, disse que a crença de que
o governo Obama tinha revertido as políticas da era Bush está em grande medida equivocada. A verdade está mais próxima do contrário:18 o novo governo copiou a maior parte do programa de Bush, expandiu-o de alguma forma e limitou-o só um pouquinho. Quase todas as mudanças de Obama ocorreram no âmbito das aparências, da argumentação, do símbolo e da retórica.
Embora decretando o fim das prisões secretas, Obama e sua equipe de contraterrorismo encontraram uma saída pela porta dos fundos para dar-lhes continuidade. Na Somália, a prisão secreta subterrânea onde Hassan ficou detido foi a primeira usada pela CIA como centro de interrogatório de suspeitos de pertencerem à Al-Shabab ou à Al-Qaeda. Embora tecnicamente não fosse dirigida pelos Estados Unidos, a prisão dava liberdade19 aos agentes americanos para interrogar prisioneiros. Advogados contratados pela família de Hassan, supostamente o braço
direito de Nabhan, viram em seu caso a exibição de uma continuidade levemente depurada das políticas de detenção de Bush. “O caso de Hassan leva a crer20 que os Estados Unidos podem estar envolvidos numa Guantánamo descentralizada e terceirizada no centro de Mogadíscio”, disseram os assistentes jurídicos quenianos da família, observando que Hassan não teve acesso a advogados, a sua família nem à Cruz Vermelha. Em pouco tempo ficaria claro também que Hassan não era o único prisioneiro mantido na cadeia subterrânea secreta da Somália — e que o papel de Washington naquela prisão não se resumia a interrogatórios ocasionais de presos de grande valor. Com a morte de Nabhan, Fazul tornou-se o mais antigo importante dirigente da Al-Qaeda em atividade na Somália. Embora a Al-Shabab tenha sofrido dois golpes importantes em mãos do JSOC, praticamente não foi detida. Sua batalha assimétrica estava só começando. A morte de Nabhan, como várias outras vitórias “estratégicas” americanas trombeteadas com entusiasmo, acabaria sendo um tiro pela culatra. Mesmo quando executados com perfeição, os ataques dirigidos têm a característica de ajudar a reforçar a hierarquia dos grupos insurgentes e dar-lhes mártires a serem emulados. No fim de 2009, pelo menos sete cidadãos americanos21 morreram lutando em nome da Al-Shabab, e acreditava-se que dezenas de outros estivessem em suas fileiras e campos de treinamento, preparando-se para ações futuras. Embora a Al-Shabab não tivesse condições de atacar diretamente os Estados Unidos, estava mostrando que era capaz de recrutar americanos e causar sérios problemas aos fantoches do país em Mogadíscio. No processo, a Al-Shabab atrairia os Estados Unidos, a União Africana e o governo da Somália para uma repetição potencialmente desastrosa da era dos chefes de milícias da CIA, mesclada aos piores excessos do período de ocupação etíope.
É claro que o governo Obama via de outro modo os acontecimentos na Somália. Depois do assassinato dos piratas somalianos, executado à perfeição, o relacionamento do presidente Obama com o JSOC e seu comandante, o almirante McRaven, se tornou mais estreito. O governo repensou com cuidado as ordens vigentes, dadas por Bush, que autorizavam as Forças Armadas americanas a atacar terroristas onde quer que residissem, dentro da doutrina segundo a qual “o mundo é um campo de batalha”, criada por Stephen Cambone e outros arquitetos da guerra contra o terror. E eles decidiram que queriam expandir essas autorizações. O secretário de Defesa, Robert Gates, e o novo diretor da CIA, Leon Panetta, que acabava de ser nomeado por Obama, trabalharam com afinco para pôr fim ao conflito entre a CIA e o JSOC, que, alimentado por Rumsfeld e Cheney, tinha persistido durante o governo Bush. Obama queria uma máquina contraterrorista sem fissuras. Depois do ataque a Nabhan, o então comandante do Centcom, David Petraeus, atualizou22 a Ordem de Execução AQN, dando às Forças Armadas americanas, particularmente ao JSOC, um espaço muito maior para atuação no Iêmen, na Somália e em outros países. Os ataques assimétricos, relativamente raros durante o governo Bush — com o
Iraque no centro das atenções do contraterrorismo — se tornariam o foco da guerra global renomeada por Obama. Em seu primeiro ano de governo, o presidente Obama e seus assessores empenharam-se em remodelar a política contraterrorista americana em favor de um esforço mais abrangente e pleno para reduzir o extremismo, até então baseado, em grande medida, na segurança regional. Robert Gates resumiu o que se supunha ser a posição de altos funcionários civis e militares do governo Obama quando afirmou, em abril de 2009, que não haveria uma “solução puramente militar”23 para a pirataria e a guerra civil na Somália. A posição dos Estados Unidos para o país teria de se afastar da contenção. “O NSC 24 reuniu o Departamento de Estado, o DoD, a USAID, a IC e vários outros órgãos de governo para criarem uma estratégia ao mesmo tempo abrangente e sustentável”, observou o secretário de Estado assistente para Assuntos Africanos, Johnnie Carson, em 20 de maio de 2009, diante da Comissão das Relações Exteriores do Senado. A maior assistência ao governo da Somália e à Amisom seria prioritária, mas o foco permaneceria voltado para a liderança da Al-Shabab e da Al-Qaeda. As prioridades evidenciadas na primeira proposta de orçamento de Obama, no início de maio, eram evidentes: o presidente dava continuidade a uma política militarizada para a África e aumentava a assistência de segurança aos Estados africanos. O orçamento, observou Daniel Volman, diretor do Projeto de Pesquisa Segurança Africana, mostrava que “o governo está seguindo o curso25 estabelecido para o Africom pelo governo Bush, em vez de manter esses programas em suspenso até que se pudesse fazer uma revisão séria da política americana de segurança para a África”. O orçamento para a venda de armas para a África ascendeu a 25,6 milhões de dólares, contra os 8,3 milhões do ano fiscal de 2009, inclusive 2,5 milhões reservados para o Djibuti, 3 milhões para a Etiópia e 1 milhão para o Quênia. Da mesma forma, expandiram-se os programas de treinamento militar para esses países. Foram propostos mais gastos com Camp Lemonnier, assim como equipamentos navais para operações de segurança no oceano Índico. Além do uso de Camp Lemonnier como base de drones, o governo Obama chegou a um acordo com o governo das Seychelles26 para estacionar nas ilhas um esquadrão de drones MQ-9 Reaper a partir de setembro de 2009. Embora o objetivo declarado da presença dos drones fosse a vigilância desarmada em apoio a operações antipirataria, funcionários do contraterrorismo americano começaram a pressionar para que eles fossem armados e usados na caça aos homens da Al-Shabab. “Seria um erro27 supor que Obama não levará mais longe a ação militar se a situação da Somália se agravar”, concluiu Volman. Ele tinha razão. Enquanto a equipe de segurança nacional de Obama começava a esboçar uma nova e letal estratégia para lidar com a Al-Shabab na Somália e com a AQPA no Iêmen, a Al-Shabab também estava se reorganizando. Fazul tinha assumido o posto de Nabhan e estava profundamente envolvido na estrutura de liderança da organização. No fim de 2009, a Al-Shabab tinha tirado enorme proveito da invasão etíope. “Agora estamos lidando com um grupo que está lá dentro e bem entrincheirado”, disse-me Nance. Em setembro de 2009, as forças da Amisom em
Mogadíscio tinham passado de 1700 homens para 5200,28 graças, em parte, a um maior financiamento e apoio de Washington. Depois da morte de Nabhan, correram boatos de que as forças da Amisom estavam se preparando para uma ofensiva pós-Ramadã29 contra a Al-Shabab ainda naquele ano. Depois que Nabhan foi morto, quadros operacionais da Al-Shabab roubaram dois Land Cruiser30 das Nações Unidas na Somália Central e levaram-nos a Mogadíscio. Em 17 de setembro, agentes da Al-Shabab conduziram os veículos até os portões do aeroporto internacional de Mogadíscio, onde as forças da Amisom estavam reunidas em sua base com funcionários da segurança da Somália. Estacionaram os utilitários diante dos escritórios de uma empresa americana prestadora de serviços de segurança e de um depósito de combustível. Os veículos das Nações Unidas foram pelos ares numa espetacular explosão suicida. No fim, mais de vinte pessoas morreram no ataque, entre elas dezessete soldados da União Africana. Na lista de mortos estava o vice-comandante das forças da Amisom, general Juvenal Niyoyunguruza, do Burundi. “Foi muito bem-feito do ponto de vista tático”, disse um porta-voz da Amisom ao New York Times. “É como se esses caras tivessem um mapa do lugar.” Foi o ataque mais mortífero31 sofrido pela Amisom desde sua chegada à Somália, em 2007. O porta-voz da Al-Shabab, xeque Ali Mohamud Rage, reivindicou a autoria do ataque e disse que ele vingara a morte de Nabhan. “Tivemos nossa vingança32 pela morte de nosso irmão Nabhan”, declarou Rage. “Dois carros-bomba suicidas visando a base da União Africana, louvado seja Alá.” E acrescentou: “Sabíamos que o governo infiel e as tropas da UA pretendiam nos atacar depois do mês sagrado. Isto é um recado para eles”. Rage disse que no total cinco agentes da Al-Shabab participaram do ataque suicida. Pouco depois, testemunhas que tinham visto os Land Cruisers sendo preparados para a missão disseram ter ouvido dois homens-bomba falando inglês.33 “Eles falavam inglês e se identificaram como sendo das Nações Unidas”, disse Dahir Mohamud Gelle, ministro da Informação da Somália. Um site de notícias somaliano, tido como confiável, noticiou mais tarde que um dos atacantes era cidadão americano.34 Enquanto os Estados Unidos festejavam a morte de Nabhan, a Al-Shabab lançava sua própria campanha de assassinatos dirigidos.
Em 3 de dezembro de 2009, dezenas de jovens e orgulhosos somalianos estavam reunidos no Shamo Hotel, em Mogadíscio, usando becas e capelos azuis e amarelos. Numa cidade que precisava desesperadamente de médicos, eles se tornariam tábuas de salvação. Todos estavam ali para receber o diploma de medicina, concedido pela Universidade Benadir, fundada em 200235 por um grupo de médicos e acadêmicos somalianos. Num vídeo da cerimônia,36 que me foi mostrado em Mogadíscio, os jovens recém-formados sorriam para as câmeras, observados com orgulho pelas famílias e por amigos. Ao iniciar-se a cerimônia, todos se sentaram, com as autoridades na primeira fileira. Entre estas havia cinco ministros de Estado,37 inclusive os da
Educação, dos Esportes e da Saúde. Três deles pertenciam à diáspora somaliana e tinham retornado ao país para tentar reconstruir o governo. O ministro da Educação Superior,38 Ibrahim Hassan Addou, era cidadão americano, e a ministra da Saúde,39 Qamar Aden Ali, era uma somali-britânica. Cinegrafistas lotavam a beira do palco, à espera de uma momentosa entrevista coletiva. A formatura deveria ser uma mensagem à Somália e ao mundo: este é nosso brilhante futuro. Entre as pessoas que entravam no auditório do Shamo Hotel havia várias mulheres vestidas com burcas que lhes cobriam todo o corpo e quase toda a cabeça. O ex-ministro da Saúde Osman Dufle deu as boas-vindas aos presentes e começou os procedimentos quando uma das pessoas vestidas com burcas se pôs de pé, voltou-se para as autoridades da primeira fila e numa voz inequivocamente masculina disse “paz”. Antes que qualquer pessoa pudesse esboçar uma reação, o homem que estava sob a burca explodiu-se. A câmera que filmava o evento mostrou tudo branco por um momento. Quando o vídeo recomeçou, o salão cheio de fumaça tinha se tornado um cenário pavoroso. Havia membros decepados junto dos corpos a que pertenciam, e três dos ministros de governo mortos.
De repente,40 o salão tremeu e ouvi um barulho, BUM!, que vinha da frente do palco, onde a maior parte das autoridades e representantes do governo estavam sentados. Atirei-me ao chão e olhei para trás. Dezenas de pessoas estavam no chão sob uma enorme nuvem de fumaça. Outros corriam em busca da saída [...],
lembrou o jornalista somaliano Abdinasir Mohamed, que tinha saído para beber água quando o homem-bomba explodiu.
Olhei para a direita e vi um de meus colegas morto e sangrando. Não pude fazer nada. Vi as cadeiras dos representantes do governo vazias e com sangue, e muita gente ferida com gravidade. O local ficou muito escuro, parecendo um abatedouro com sangue escorrendo pelo chão.
Ao todo, morreram 25 pessoas naquele dia, entre as quais formandos, membros de suas famílias e jornalistas. Um quarto ministro de governo morreria mais tarde em decorrência dos ferimentos. Cerca de 55 pessoas ficaram feridas. O que tinha sido planejado como uma mensagem de esperança havia sido transformado numa “catástrofe nacional”,41 nas palavras do ministro da Informação. O presidente xeque Sharif culpou a Al-Qaeda pelo ataque e suplicou desesperadamente ajuda externa. “Imploramos ao mundo42 ajuda para nos defendermos desses combatentes estrangeiros”, disse. O homem-bomba foi identificado como cidadão dinamarquês43 de ascendência somaliana.
As notícias do massacre começaram a correr o mundo, e a Al-Shabab negou sua responsabilidade no caso. “Declaramos que a Al-Shabab não planejou aquela explosão”,44 disse o xeque Rage. “Acreditamos que tenha sido um complô do próprio governo. Não é próprio da Al-Shabab atacar pessoas inocentes.” Embora os ataques contra as forças estrangeiras da Amisom, apoiadas pelos Estados Unidos, possam não ter despertado a indignação entre os somalianos comuns — e é bem provável que fossem apoiadas em silêncio por grande parte da população de Mogadíscio —, mandar pelos ares uma cerimônia de formatura de médicos era indefensável. Talvez a Al-Shabab quisesse se desvincular do atentado por esse motivo, ou talvez tenha sido uma operação unilateral da Al-Qaeda, executada por um quadro operacional estrangeiro. Seja quem for que tenha planejado o ataque, o medo se instalou entre somalianos de todas as classes e posições sociais.
* * *
No começo de dezembro, o presidente Obama fez um importante discurso na Academia Militar de West Point em Nova York. Embora tenha se centrado na iminente expansão do número de soldados americanos no Afeganistão, o presidente abordou as guerras assimétricas em curso e em ampliação que seu governo vinha travando debaixo dos panos. “A luta contra o extremismo violento45 não acabará depressa e irá além do Afeganistão e do Paquistão”, declarou Obama.
Vai ser uma prova de resistência para nossa sociedade livre e para nossa liderança no mundo. E ao contrário dos conflitos entre grandes potências e as claras linhas divisórias que caracterizaram o século XX, nosso esforço vai envolver regiões caóticas, Estados falidos, inimigos difusos.
E acrescentou:
Teremos de ser ágeis e precisos no uso da força militar. Onde quer que a Al-Qaeda e seus aliados tentem estabelecer uma cabeça de ponte — seja na Somália, no Iêmen ou noutro lugar —, devem ser enfrentados com pressão crescente e parcerias fortes.
Uma semana depois do discurso em West Point, o presidente Obama recebeu o prêmio Nobel da Paz em Oslo, na Noruega. Suas afirmações conquistaram o louvor de republicanos linha-dura por sua firme defesa da projeção do poderio americano no mundo e pela afirmação segundo a qual as guerras travadas pelos Estados Unidos eram “guerras justas”. “Talvez a questão mais profunda46 sobre o recebimento deste prêmio seja o fato de que sou o comandante
em chefe das Forças Armadas de uma nação envolvida em duas guerras”, disse Obama. Elogiou os lendários militantes pacifistas Gandhi e Martin Luther King Jr. — este também contemplado com o prêmio, em 1964 — antes de expor por que discordava do pacifismo deles. Obama afirmou:
Como uma pessoa que está aqui em consequência direta do trabalho a que o dr. King dedicou a vida, sou um depoimento vivo da força moral da não violência. Sei que não há fraqueza alguma, nenhuma passividade e nenhuma ingenuidade nas convicções e na vida de Gandhi e King [...]. Mas como um chefe de Estado que jurou proteger e defender sua nação, não posso me guiar apenas pelo exemplo deles. Deparo com o mundo como ele é, e não posso ficar inerte diante das ameaças ao povo americano. Para que não restem dúvidas: o mal existe no mundo. Um movimento não violento não poderia ter detido os exércitos de Hitler. A negociação não vai convencer os líderes da Al-Qaeda a depor suas armas. Dizer que às vezes o uso da força é necessário não é um apelo ao cinismo — é o reconhecimento da história, das imperfeições do homem e dos limites da razão.
Karl Rove, que fora um dos altos assessores de Bush, disse que o discurso tinha sido “excelente”, “firme” e “eficaz”,47 enquanto muitos neoconservadores aderiam aos elogios a Obama. Newt Gingrich, ex-porta-voz republicano da Casa Branca, elogiou o fato de um “presidente liberal”48 ter ido “a Oslo para um prêmio de paz e lembrar aos integrantes do comitê que eles não teriam liberdade nem condições de conceder um prêmio de paz sem que houvesse uso da força”. Comentando os elogios de republicanos linha-dura ao discurso de Obama, o colunista Glenn Greenwald observou que tinha sido “o mais explícito discurso próguerra49 já pronunciado por alguém ao receber o prêmio Nobel da Paz”. Quando Obama voltou de Oslo com o Nobel, seu governo estava a ponto de iniciar uma nova guerra secreta e anunciar uma era na política externa dos Estados Unidos em que teria em seu cerne a expansão do programa global de assassinatos.
32. “Se matam crianças inocentes e dizem que elas são da Al-Qaeda, todos nós somos da Al-Qaeda”
WASHINGTON, DC, E IÊMEN, 2009 — Em 16 de dezembro de 2009, autoridades do mais alto escalão da segurança nacional receberam um “álbum de figurinhas” com a biografia de três supostos membros da AQPA1 que o almirante McRaven pretendia mandar matar pelo JSOC, numa “série de assassinatos dirigidos” no Iêmen. Seus codinomes eram Objetivos Akron, Toledo e Cleveland. O JSOC queria ir atrás dos alvos em menos de 24 horas e precisava da resposta dos assessores jurídicos: sim ou não. Os funcionários que organizaram a comissão da morte tinham pouco tempo para rever as informações. Tanto Harold Koh, assessor jurídico do Departamento de Estado, quanto seu congênere do Pentágono, Jeh Johnson, tiveram, segundo se relatou, apenas 45 minutos2 desde que receberam os documentos até o início da teleconferência presidida pelo JSOC que decidiria se as missões seriam ou não empreendidas. Essa reunião foi mais demorada que a maior parte das outras de mesmo tipo e envolveu algo como 75 autoridades.3 O governo Obama estava a ponto de iniciar o bombardeio do Iêmen e toda a estrutura de segurança nacional estava mobilizada. O almirante McRaven participou da reunião via teleconferência e, com o tom frio e direto que lhe era peculiar, expôs o plano militar da “ação fulminante” contra os “alvos”. O alvo principal, “Akron”, era Mohammed Saleh Mohammed Ali al-Kazemi, identificado como o homem forte da AQPA na província iemenita de Abyan. O JSOC estava à caça de Kazemi, e os homens de McRaven tinham conseguido “rastreá-lo num campo de treinamento perto da cidade de Al-Majalah”.4 Kazemi vinha escapando do JSOC havia meses. Agora, disse McRaven, a Inteligência americana havia localizado seu paradeiro com segurança. Depois de descartada uma operação de captura e da avaliação das demais opções militares, decidiu-se que o JSOC atacaria o campo com mísseis de cruzeiro. Jeh Johnson sentiu “a forte pressão exercida5 pelos militares para matar” e se considerou “atropelado e despreparado” para avaliar todas as opções. Mesmo assim, deu seu consentimento. Pouco tempo depois, num centro de comando do Pentágono, Johnson pôde ver imagens de satélite de Majalah. Vultos que pareciam do tamanho de formigas moviam-se de lá
para cá. E então, com um grande clarão, elas se evaporaram. O que Johnson presenciara via satélite era chamado, dentro do JSOC, de “TV Morte”. Agora Johnson sabia por quê. Na manhã de 17 de dezembro, o BlackBerry do xeque Saleh bin Fareed começou a tocar.6 Gente de sua tribo, a aulaq, disse-lhe que tinha havido um incidente horrível numa minúscula aldeia beduína chamada Majalah, na província de Abyan. Naquela manhã bem cedo, tinham chovido mísseis sobre as modestas casas de uma dúzia de famílias que viviam na remota e árida aldeia de montanha. Dezenas de pessoas tinham sido mortas, contaram a Bin Fareed, entre elas muitas mulheres e crianças. Bin Fareed sintonizou a Al-Jazeera bem no momento em que a notícia era dada. O locutor leu um comunicado à imprensa7 do governo iemenita que dizia que aviões de guerra iemenitas tinham atacado um campo de treinamento da Al-Qaeda, impondo um golpe devastador aos militantes. Bin Fareed ligou para o chefe de sua segurança e para seu motorista, ordenando que preparassem seu SUV para uma viagem de Áden a Al-Majalah que lhes tomaria a metade do dia.
Bin Fareed é um dos homens mais poderosos do sul do Iêmen. Sua linhagem familiar remonta aos sultões que outrora governavam a Península Arábica. Depois que o colonialismo britânico chegou ao sul do Iêmen,8 em 1839, a tribo aulaq tornou-se um de seus mais apreciados aliados tribais. De 1937 a 1963, a cidade sul-iemenita de Áden foi uma colônia da Coroa,9 com suas áreas mais remotas governadas por meio de uma série de tratados com as tribos. Bin Fareed, filho de um sultão, estudou em escolas britânicas e foi criado como membro da realeza. Em 1960, viajou ao Reino Unido para cursar a faculdade e frequentar a academia militar, e depois disso voltou ao Iêmen, onde entrou para o Exército. Em 1967, o sul do país passou a ser controlado por marxistas, e os britânicos se retiraram.10 Bin Fareed e sua família fugiram do país, acreditando que poderiam retornar em poucos meses. Levou um quarto de século. Bin Fareed acabou se acostumando à ideia de uma vida no exílio. Passou grande parte da juventude em empreendimentos de negócios em todo o Golfo e longos períodos na propriedade da família no sul da Inglaterra. Com os anos, tornou-se grande prestador de serviços de transportes e de construção no Golfo. Em 1990, Bin Fareed era um homem extremamente rico. Naquele ano, o presidente Saleh unificou o norte e o sul do Iêmen e procurou Bin Fareed. Saleh precisava da ajuda das tribos para consolidar seu controle sobre o sul do país, e fez um acordo com os xeques tribais para que retornassem. Em 1991, Bin Fareed estava de volta ao Iêmen. Na ocasião em que a Al-Qaeda começou a organizar formalmente uma base no Iêmen, em 2009, Bin Fareed tinha se tornado, mais uma vez, uma figura poderosa no país. Era membro do Parlamento, líder de uma grande tribo e estava construindo um vasto resort particular no golfo de Áden. Sabia que havia um punhado de pessoas que mantinha vínculos com a Al-Qaeda, inclusive membros de sua própria tribo, mas via-os basicamente como membros da tribo e não se preocupava muito com jihadistas, uma vez que o Iêmen estava cheio de veteranos da guerra
dos mujahedin no Afeganistão e em outros países. Mais ainda, esses homens eram considerados heróis nacionais por muita gente. Bin Fareed se lembrava do tempo em que Fahd al-Quso tinha sido preso por participação na explosão do Cole. A função de Quso teria sido filmar a explosão, mas ele não acordou a tempo.11 Quando o governo o prendeu como um dos conspiradores do atentado, Bin Fareed foi chamado como mediador, já que Quso era membro da tribo aulaq. “É a primeira vez que ouço dizer que um Awlaki pertence à Al-Qaeda”, disse ele. “E era somente ele, e talvez, acho eu, mais um ou dois.” Agora, nove anos depois, Bin Fareed via a imprensa anunciar a existência de um baluarte da Al-Qaeda bem no meio de suas áreas tribais. As notícias diziam que “nosso governo atacou a AlQaeda em Al-Majalah, onde ela tem uma base e um campo de treinamento. E tem grandes arsenais de todo tipo de armas e munições, foguetes e tudo o mais. E o ataque foi um sucesso”, disse Bin Fareed. “E as notícias nem sequer mencionaram os americanos.” Bin Fareed achava impossível que houvesse uma base da Al-Qaeda em Al-Majalah. Mesmo que lá houvesse membros da organização, pensou, o governo poderia facilmente ter enviado uma força terrestre para erradicá-los. As notícias que estava recebendo a respeito do ataque aéreo não faziam nenhum sentido para ele. Era uma área remota, mas não era Tora Bora. Ao chegar a Al-Majalah, Bin Fareed ficou horrorizado. Ele me revelou:
Quando chegamos lá, não pudemos acreditar em nossos próprios olhos. Isto é, se alguém tivesse problema de coração, acho que ia ter um ataque. Viam-se cabras e ovelhas para todo lado, viam-se cabeças de pessoas mortas aqui e ali. Viam-se corpos, viam-se crianças. Alguns deles não morreram imediatamente, mas queimando no fogo.
Havia partes de corpos distribuídas por toda a aldeia. “Não se sabia se aqueles restos eram humanos ou de animais”, lembrou ele. Eles tentaram reunir todas as partes de corpos que puderam para incinerar. “Mas nem tudo pôde ser recuperado. Parte da carne foi comida pelas aves.” Ao examinar a carnificina, Bin Fareed viu que a maior parte das vítimas era de mulheres e crianças. “Eram todos crianças, velhas, todo tipo de ovelhas, cabras e vacas. Inacreditável.” Examinou o lugar e não achou indícios de nada que pudesse se assemelhar vagamente a um campo de treinamento. “Por que fizeram isso? Por que diabos eles estão fazendo isso?”, perguntou. “Não há depósitos [de armas], não há campo de treinamento. Não há ninguém, salvo uma tribo muito pobre, uma das tribos mais pobres do sul.” Mais tarde estive com diversos sobreviventes do ataque em Abyan, entre eles um líder tribal local chamado Muqbal, poupado porque tinha ido fazer algum serviço numa aldeia próxima. “As pessoas viam a fumaça12 e sentiam a terra tremer — nunca tinham visto nada como aquilo. A maior parte dos mortos era de mulheres, crianças e velhos. Morreram cinco mulheres grávidas”, disse-me ele. Depois que os mísseis caíram, “corri para lá. Encontrei corpos
espalhados, mulheres e crianças feridas”. Uma sobrevivente gemia ao lembrar e me contar os acontecimentos.
Às seis da manhã [minha família] dormia e eu estava fazendo pão.13 Quando os mísseis explodiram, perdi os sentidos. Não sei o que aconteceu com meus filhos, minha filha, meu marido. Só eu sobrevivi, com este senhor e minha filha. Eles morreram. Todos eles morreram.
Ao todo, mais de quarenta pessoas foram mortas em Al-Majalah, entre elas catorze mulheres e 21 crianças.14 Muqbal, que adotou uma criança órfã, ficou assombrado ante a acusação de que sua aldeia era uma base da Al-Qaeda. “Se matam crianças inocentes e dizem que elas são da Al-Qaeda, então somos todos da Al-Qaeda”, disse-me ele. “Se as crianças são terroristas, somos todos terroristas.” Enquanto examinava os escombros, Bin Fareed viu objetos que pareciam ser partes de mísseis de cruzeiro Tomahawk. “É claro que nosso governo não tem esse tipo de foguete. O que quero dizer é que qualquer pessoa poderia dizer que isso pertencia a uma grande nação, a um grande governo”, disse-me ele. Foi então que eles encontraram uma parte de um míssil com etiqueta: “Made in the United States” [fabricado nos Estados Unidos]. Al-Majalah estava também cheia de bombas de fragmentação. Poucos dias depois do ataque, morreram mais três pessoas15 quando uma dessas bombas explodiu. Bin Fareed achou que o governo do Iêmen estava mentindo e que os americanos tinham bombardeado Al-Majalah e massacrado dezenas de inocentes. E decidiu provar isso. Como também fez um jovem repórter iemenita.
Abdulelah Haider Shaye era uma espécie rara de jornalista num país cuja imprensa era dominada por aduladores do regime. “Só tínhamos acesso à imprensa ocidental16 e à imprensa árabe financiada pelo Ocidente, que apresenta uma única imagem da Al-Qaeda”, lembrou seu grande amigo Kamal Sharaf, chargista político e conhecido dissidente. “Mas Abdulelah tinha uma outra visão.” Segundo Sharaf, Shaye não reverenciava a Al-Qaeda, porém via a ascensão do grupo no Iêmen como uma notícia importante. Shaye conseguia ter acesso a personalidades da Al-Qaeda em parte por causa de seu parentesco, por meio de um casamento,17 com o clérigo islâmico radical Abdul Majeed al-Zindani, fundador da Universidade da Fé e apontado pelo Departamento do Tesouro18 dos Estados Unidos como terrorista. Embora Sharaf admitisse que Shaye usava suas relações para ter acesso à Al-Qaeda, ressalvava que ele também criticava “com ousadia” Zindani e seus seguidores: “Dizia a verdade
sem medo”. Shaye tinha traçado detalhados perfis de Wuhayshi e Shihri, líderes da AQPA, e documentara suas habilidades de fabricantes de bombas. Consta que Shaye chegou a provar, nervoso, um traje de homem-bomba19 produzido pela AQPA. Era o principal cronista da ascensão do movimento. Seu trabalho jornalístico era famoso dentro e fora do Iêmen. Shaye já era bem conhecido no país como um corajoso jornalista independente, e aparentemente entrou em rota de colisão com o governo dos Estados Unidos com o bombardeio de Al-Majalah. Enquanto o caso se difundia pelo mundo, Shaye viajou para a aldeia e descobriu restos de mísseis de cruzeiro Tomahawk e das bombas de fragmentação, armas que não faziam parte do arsenal iemenita. Fotografou partes de mísseis, algumas delas com a etiqueta “Made in the United States”, e distribuiu as fotos entre as agências internacionais de notícias e as organizações de direitos humanos. Informou ainda que mulheres, velhos e crianças tinham sido a maior parte das vítimas. Depois de fazer sua própria investigação, Shaye concluiu que se tratava de um ataque dos Estados Unidos e anunciou sua conclusão para toda a imprensa e para quem quer que se dispusesse a ouvi-lo. O jovem jornalista estava se tornando uma pedra no sapato dos Estados Unidos. Mas quando passou a entrevistar Anwar Awlaki, transformou-se num alvo.
Bin Fareed e Shaye tinham razão. Al-Majalah tinha sido o tiro de largada da mais nova guerra dos Estados Unidos. Ao contrário dos programas de “ações secretas” da CIA, que exigiam notificação formal às comissões de Inteligência da Câmara e do Senado, essa operação foi executada dentro do “Programa de Acesso Especial”,20 que dava às Forças Armadas ampla liberdade para executar operações letais e secretas com pouca ou nenhuma fiscalização. No Iêmen, todas essas operações estavam sendo coordenadas pelas Forças de Operações Especiais com base no centro de operações conjuntas Estados Unidos-Iêmen em Sana’a,21 com a divisão de Inteligência do JSOC coordenando as informações, dirigindo as forças iemenitas no teatro de operações e dando as coordenadas para ataques americanos com mísseis. Dentro da base, o pessoal das Forças Armadas e da Inteligência dos Estados Unidos e do Iêmen tinha acesso a vigilância eletrônica em vídeo em tempo real, assim como a mapas tridimensionais do terreno. O pessoal dos Estados Unidos que trabalhava no Iêmen enviava informações e detalhes operacionais para a NSA em Fort Meade, para o Comando de Operações Especiais em Tampa e para outros órgãos militares e de Inteligência. Foi assim que se deu a destruição de Al-Majalah. Era 17 de dezembro. Pouco depois que a comissão de Obama se reuniu em Washington e aprovou a operação que assassinaria Kazemi e outros membros da Al-Qaeda que estavam na lista negra do almirante McRaven, o JSOC enviou aeronaves de vigilância22 para monitorar os alvos. Foi dada a largada para a operação nas primeiras horas da manhã, quando um míssil de cruzeiro Tomahawk foi disparado de um submarino ao largo da costa do Iêmen carregado com munição de fragmentação. O míssil caiu sobre um grupo de moradias em Al-Majalah. Nesse meio-tempo, outro ataque23 estava sendo
lançado em Arhab, subúrbio da capital, seguido de incursões em casas suspeitas de ligação com a Al-Qaeda executadas por homens de Operações Especiais iemenitas da unidade de contraterrorismo, onde eram treinados por americanos e apoiados pelo JSOC. A autorização para os ataques americanos foi dada a toque de caixa pelo gabinete do presidente Saleh por causa de “informações acionáveis”, segundo as quais homens-bomba da Al-Qaeda estavam se preparando para ataques24 na capital do Iêmen. O alvo em Arhab, segundo relatórios da Inteligência, era uma casa da Al-Qaeda na qual se supunha que estivesse escondido um peixe graúdo:25 Qasim al-Rimi, líder da AQPA. Em Abyan, um funcionário anônimo dos Estados Unidos disse à ABC News “que estava sendo planejado um ataque iminente26 contra um alvo americano”. Uma fonte militar que conhecia a operação contou-me que Al-Majalah tinha sido uma “operação do JSOC com submarinos e fuzileiros navais tomados de empréstimo à Marinha,27 à vigilância aérea da Força Aérea e da Marinha com estreita colaboração da CIA e da DIA na frente do Iêmen. Contando com a tripulação dos submarinos, estamos falando de 350 a quatrocentas [pessoas] na jogada”. Assim que se teve notícia dos ataques, o governo de Saleh assumiu publicamente a responsabilidade. O Ministério da Defesa do Iêmen disse que suas forças tinham empreendido “operações preventivas de sucesso”28 contra a Al-Qaeda, que 34 terroristas tinham sido mortos e dezessete presos. O Pentágono recusou-se a comentar o fato e encaminhou todos os questionamentos ao governo iemenita, que deu uma declaração assumindo a autoria dos ataques coordenados, dizendo num comunicado à imprensa que suas forças “executaram incursões simultâneas29 em que mataram e prenderam militantes”. O presidente Obama ligou para Saleh, “felicitou-o”, “agradeceu por sua cooperação30 e prometeu continuar lhe dando o apoio americano”. O ditador egípcio Hosni Mubarak também telefonou31 para expressar sua satisfação. Mas quando analistas de assuntos militares viram as imagens de Al-Majalah depois do ataque, questionaram a posse daquele tipo de armamento pelo Iêmen.32 A Al-Jazeera transmitiu imagens de cartuchos de artilharia com números de série visíveis e sugeriu que o ataque tinha sido feito com um míssil de cruzeiro americano. Abdulelah Haider Shaye foi entrevistado pela emissora e descreveu os corpos de civis que tinha visto em Al-Majalah. Entre a munição encontrada no lugar havia sub-bombas BLU 97 A/B,33 que ao explodir lançam cerca de duzentos fragmentos penetrantes a uma distância de mais de cem metros. São, essencialmente, minas terrestres voadoras capazes de triturar corpos humanos. As sub-bombas estavam equipadas também com zircônio inflamável, material incendiário que ateia fogo a objetos combustíveis com que entra em contato. O míssil usado no ataque, um BGM-109D Tomahawk, pode transportar mais de 160 bombas de fragmentação. Nenhum desses projéteis fazia parte do arsenal do Iêmen.34 Quando as notícias sobre o ataque se espalharam, o almirante Mike Mullen, chefe do Estado
Maior Conjunto, retornava, num avião militar, de uma viagem ao Iraque e ao Afeganistão e elogiou o que chamou de operações iemenitas apoiadas pelos Estados Unidos. “Realmente, dessa vez lavramos um tento.35 Acho que estamos no caminho certo”, disse. Em relação aos ataques, Mullen disse: “Aplaudo com vontade o que eles fizeram, o fato de estarem procurando especificamente aquelas pessoas, o fato de terem atacado a célula da Al-Qaeda, que cresceu substancialmente nos últimos anos ali”. Todavia, a grande maioria das vítimas do ataque não era formada por terroristas da AlQaeda. Muitas delas, segundo um telegrama diplomático confidencial americano, “eram de famílias beduínas nômades36 que moravam em tendas próximas do campo de treinamento da AQPA”. Um alto funcionário de Defesa iemenita disse que se tratava de “gente pobre que vendia alimentos e demais suprimentos a terroristas e que atuava em conluio com eles, tirando vantagem financeira da presença da AQPA na região”. Para a Al-Qaeda, a mensagem era clara: o ataque tinha sido obra dos Estados Unidos. A AQPA poderia usar as imagens da destruição, inclusive as de crianças mortas e desfiguradas, para atrair iemenitas para sua causa.
Saleh bin Fareed ficou furioso ao ver como o bombardeio de Al-Majalah estava sendo coberto pela imprensa ocidental. Praticamente todas as agências de notícias que cobriram o caso diziam que o Iêmen tivera como alvo um campo de treinamento da Al-Qaeda e que o ataque tinha sido um sucesso. Mas Bin Fareed tinha ido lá. Tinha ajudado a raspar os restos de corpos de beduínos pobres incrustados nas árvores. Tinha visto corpos de crianças retirados dos escombros. Tinha prometido a crianças órfãs que cuidaria delas, e vira as etiquetas em partes do míssil que mostravam que ele vinha dos Estados Unidos. Estava decidido a fazer com que o mundo soubesse que as vítimas do ataque não eram da Al-Qaeda — e que os Estados Unidos eram responsáveis. Em 20 de dezembro, Bin Fareed organizou uma grande reunião de líderes tribais37 de todo o Iêmen da qual participaram cerca de 150 xeques dos mais poderosos do país. Não era pouca coisa. Havia rivalidades antigas, hostilidades atuais e ódio mortal entre alguns dos mais destacados chefes presentes à reunião. Contudo, Bin Fareed convenceu todos a deixar de lado suas diferenças em favor da tarefa que tinham pela frente. “Fizemos um convite extensivo a muitos xeques de todas as tribos. Eles vieram de Marib, de Al-Jawf. Vieram do norte, vieram do sul”, ele lembrou. “Levamos gente vinda de todas as partes do país a Majalah, só para provar e mostrar a toda a imprensa que nosso governo não estava dizendo a verdade. O desastre de Majalah era obra dos americanos. E não havia Al-Qaeda nenhuma.” O objetivo de Bin Fareed era reunir milhares de iemenitas de todo o país em Al-Majalah para manifestar solidariedade às vítimas do míssil. Como tinha uma propriedade a 160 quilômetros de Al-Majalah, hospedou ali todos os líderes tribais visitantes na noite anterior, de modo que pudessem viajar juntos para a manifestação do dia seguinte.
Por volta das 21h30, quando os líderes tribais acabavam de jantar e de discutir a logística do dia seguinte, um dos seguranças de Bin Fareed aproximou-se dele e lhe segredou que meia dúzia de homens tinham chegado à propriedade. “Eles querem vê-lo”, disse o segurança a Bin Fareed, que com um gesto autorizou que fossem levados ao interior da casa. “Mas eles estão portando metralhadoras pesadas, granadas de mão e lançadores de foguetes”, disse o segurança. “Não tem importância”, replicou Bin Fareed. “Temos o mesmo equipamento. Eles não são inimigos.” Os homens entraram na casa. Eram jovens, bem vestidos e de boa aparência. Conversaram um pouco e Bin Fareed perguntou como se chamavam. Conhecia suas tribos, mas não as pessoas. Perguntou em que trabalhavam. Os homens riram e se entreolharam. “Estamos desempregados”, disse um deles. E acrescentou: “Dizem que somos da Al-Qaeda”. “E são?”, perguntou Bin Fareed. Os homens acabaram admitindo que eram. “Não há um só americano, um só israelense, um só britânico aqui em Shabwah”, Bin Fareed advertiu-os. “Vocês estão causando um monte de problemas para seu povo. Estão criando uma má reputação para nós e para as nossas tribos. Se querem lutar contra israelenses, compro umas passagens e mando vocês para a Palestina.” Bin Fareed estava perdendo a paciência. “O que posso fazer por vocês?”, perguntou. Os homens disseram que tinham ficado sabendo da manifestação em Al-Majalah e perguntaram se podiam falar ao público. “Se amanhã vocês forem lá como membros comuns de uma das tribos, serão bem recebidos”, disse-lhes Bin Fareed, mas não como representantes da Al-Qaeda. “Não”, respondeu um deles. “Queremos ir lá, fazer um discurso e falar sobre a Al-Qaeda.” Bin Fareed perdeu o controle. “Isso quer dizer que vocês são mesmo uns idiotas. Idiotas mesmo”, disse ele aos jovens. “Nossa manifestação é para provar ao mundo inteiro que não existe Al-Qaeda” em Al-Majalah e que “as pessoas mortas eram inocentes”. Se eles fossem, disse-lhes, a “imprensa vai dizer que todos nós somos da Al-Qaeda”. E advertiu-os a não comparecerem. “Se vocês forem, podem raspar minha barba se sobreviverem três dias.” Era uma advertência grave. No Iêmen, pelos costumes tribais, ter a barba raspada publicamente por outro homem é uma humilhação para toda a vida. Bin Fareed estava dizendo aos jovens da Al-Qaeda que mandaria matá-los se pusessem os pés em Al-Majalah. Na manhã seguinte, às 4h30, Bin Fareed e dezenas de líderes tribais que ele reunira em sua propriedade se dirigiram para Al-Majalah. Ao chegar, já havia dezenas de milhares de iemenitas reunidos. Havia tendas armadas e carros até onde a vista podia alcançar. “Naquele dia, calculamos que havia ali entre 50 mil e 70 mil pessoas, outras estimativas diziam que eram mais”, disse Bin Fareed. Depois que ele se instalou numa das grandes tendas e começou a repassar a programação do dia, seus seguranças irromperam. Disseram-lhe que os homens da noite anterior — os membros da Al-Qaeda — estavam num carro com um megafone fazendo um discurso. Bin Fareed pegou sua arma automática e se lançou para fora da tenda. Seus homens o seguraram. “Ou eles me matam ou eu os mato”, disse Bin Fareed. “Eu avisei.” Era tarde demais. Os homens da Al-Qaeda já tinham conseguido seu objetivo.
Enquanto Bin Fareed pegava sua metralhadora, um dos homens da Al-Qaeda, Muhammad Al-Kilwi, estava de pé num veículo falando para uma multidão na periferia da manifestação. Com a barba tingida com hena e uma jaqueta militar, ele dizia: “A guerra da Al-Qaeda no Iêmen38 é contra os Estados Unidos, não contra as Forças Armadas iemenitas”. Tendo ao lado os outros homens do grupo, que empunhavam fuzis, Kilwi jurou vingar os mortos de Al-Majalah. “Nosso problema é com os americanos e seus lacaios.” Encerrou seu breve discurso e junto com seus acompanhantes saltaram para dentro de seus veículos e desapareceram nas montanhas. Naquela noite, um vídeo do discurso foi ao ar no mundo inteiro. A manifestação de Bin Fareed foi mostrada como obra da Al-Qaeda, justamente o que ele temia. “Eles conseguiram pôr a perder nossa manifestação”, lembrou Bin Fareed. Mas no fim ele foi vingado. Os homens que tinham se apropriado de sua manifestação foram mortos poucos dias depois em outro ataque americano com míssil de cruzeiro.39 Talvez tenham sido rastreados pelos americanos depois de aparecer na manifestação, supôs Bin Fareed. “Foram mortos”, disse. “Todos eles.”
No Iêmen, a indignação com os acontecimentos de Al-Majalah se generalizava, alimentada em grande medida pela suposição de que se tratava de um bombardeio americano. O Parlamento iemenita enviou uma delegação para uma investigação in loco.40 Quando seus integrantes chegaram à aldeia, “encontraram todas as casas e seu conteúdo queimados, tudo o que restava eram pedaços de mobília” junto com “resíduos de sangue das vítimas e numerosos buracos escavados no chão pelo bombardeio […], além de muitas bombas não detonadas”. A investigação concluiu que o ataque tinha matado 41 membros de duas famílias, inclusive catorze mulheres e 21 crianças. Alguns dos que foram mortos dormiam quando o míssil caiu. O governo de Saleh insistia que tinham sido mortos catorze quadros operacionais da Al-Qaeda, mas os representantes do Parlamento que participaram da investigação disseram que o governo só tinha sido capaz de dar o nome de um deles — Kazemi, o “líder” conhecido como Akron na lista do JSOC. Jornalistas iemenitas e analistas de segurança que entrevistei estavam pasmos41 com o fato de Kazemi estar sendo mostrado como líder da Al-Qaeda, esclarecendo que ele era um veterano, já idoso, das primeiras guerras do Afeganistão e não era uma personalidade importante na AQPA. Depois do ataque, uma alta autoridade iemenita disse ao New York Times que “o envolvimento dos Estados Unidos42 gera simpatia pela Al-Qaeda. A cooperação é necessária — mas não há dúvida de que isso influencia o homem comum. Ele simpatiza com a Al-Qaeda”. Em 21 de dezembro, o embaixador Stephen Seche enviou um telegrama de Sana’a43 para Washington em que dizia que o governo iemenita “não parece muito preocupado com vazamentos não autorizados a respeito do papel dos Estados Unidos” no ataque com “a repercussão negativa da morte de civis”. Seche informou que o vice-primeiro-ministro Rashad
al-Alimi lhe dissera que “qualquer indício de envolvimento dos Estados Unidos, tal como fragmentos de munição americana encontrados nos lugares atingidos — poderiam ser explicados como equipamento adquirido dos Estados Unidos”. Mas os Estados Unidos e o Iêmen sabiam que as forças de Saleh não tinham aquele tipo de bomba. Em seu telegrama, o embaixador Seche afirmava que o Iêmen “precisa pensar com seriedade em sua posição pública e se sua estrita adesão à versão segundo a qual o ataque foi unilateral não estará prejudicando o apoio público a operações de contraterrorismo legítimas e urgentes, no caso de vir à tona evidências em contrário”. Com efeito, meses depois do ataque, a Anistia Internacional publicou provas fotográficas da existência de bombas americanas no local. O Pentágono não respondeu44 às indagações do grupo sobre a munição. “Um ataque militar desse tipo45 contra supostos militantes sem uma tentativa de prendê-los é no mínimo ilegal”, disse Philip Luther, vice-diretor da divisão da Anistia Internacional para o Oriente Médio e o norte da África. “O fato de que tantas das vítimas fossem na verdade mulheres e crianças indica que o ataque foi grosseiramente irresponsável.” A Anistia Internacional observou que nem os Estados Unidos nem o Iêmen eram signatários da Convenção sobre Bombas de Fragmentação, um tratado voltado justamente para a proibição das armas usadas no ataque. Sem confirmar publicamente que o ataque tinha sido executado pelos Estados Unidos, funcionários do governo americano não identificados “referiram-se à carência de recursos”46 quanto à decisão de usar o míssil de cruzeiro, alegando que como “os drones armados da CIA estavam comprometidos com a campanha de bombardeio do Paquistão […], só os mísseis de cruzeiro estavam disponíveis na ocasião”. Autoridades iemenitas disseram ao embaixador americano que tinham dado 100 mil dólares47 ao governador de Abyan para indenizar as famílias dos mortos. Enquanto isso, altos funcionários do contraterrorismo americano defendiam o ataque. Um deles disse ao New York Times que o ataque tinha sido “executado de forma muito metódica”48 e que as denúncias de morte de civis eram “muito exageradas”. Mas segundo o jornalista Daniel Klaidman, Jeh Johnson, o advogado do Pentágono que autorizara o ataque, teria dito a respeito de sua responsabilidade no bombardeio de Al-Majalah que “se eu fosse católico, teria de me confessar”.49 Saleh, por sua vez, disse aos Estados Unidos que queria a continuidade dessas operações “sem interrupção até erradicar esse mal”,50 e Alimi acrescentou que o Iêmen “‘deve manter o status quo’ no que se refere à negativa oficial de envolvimento dos Estados Unidos para garantir novas ‘operações positivas’ contra a AQPA”, segundo um telegrama americano enviado quatro dias depois do ataque. O ministro das Relações Exteriores do Iêmen, Abu Bakr al-Qirbi, pediu aos Estados Unidos que “mantivessem o silêncio”51 sobre seu papel nos ataques e “continuassem a encaminhar as sindicâncias ao governo iemenita, a destacar a eficiência do contraterrorismo local [do governo do Iêmen] e a acentuar que a Al-Qaeda representa uma ameaça não só para o Ocidente, como também para a segurança do Iêmen”. Enquanto diplomatas americanos continuavam a elaborar, com seus congêneres iemenitas, a versão de
acobertamento, novas operações estavam sendo programadas. O papel do governo dos Estados Unidos nos ataques praticados no Iêmen só foi revelado por vazamento de informações. Mas era claro quem estava dando as cartas. Em meio a exigências do Parlamento iemenita, que queria explicações sobre o massacre de Al-Majalah, o viceprimeiro-ministro Alimi começou a fazer circular uma versão atualizada a respeito de acobertamento, declarando: “As forças de segurança iemenitas executaram as operações com a ajuda da Inteligência da Arábia Saudita52 e dos Estados Unidos da América em nossa luta contra o terrorismo”. Embora mais perto da verdade, essa versão dos acontecimentos também era falsa. “Foram ataques com mísseis de cruzeiro53 combinados com unidades militares terrestres”, disse Sebastian Gorka, instrutor da Universidade de Operações Especiais Conjuntas do Comando de Operações Especiais dos Estados Unidos, que tinha treinado forças iemenitas.
Foi um sinal claro, dado pelo governo Obama, de que os americanos estavam levando a sério a ajuda dada ao Iêmen para eliminar as instalações da Al-Qaeda de seu território. Essas ações eram, em grande parte, executadas pelos Estados Unidos, mas com forte apoio do governo iemenita.
Segundo um alto militar dos Estados Unidos e funcionários da Inteligência, durante a incursão terrestre que se seguiu ao ataque aéreo a Ahrab em 17 de dezembro, Forças de Operações Especiais iemenitas que trabalhavam em conjunto com o JSOC encontraram um homem que seria sobrevivente de uma operação suicida da Al-Qaeda que ainda usava seu colete de homembomba. Foi preso e interrogado,54 produzindo o que os Estados Unidos acreditavam ser informações acionáveis. Uma semana depois do ataque aéreo a Abyan e das incursões terrestres na periferia de Sana’a, o presidente Obama autorizou outro golpe, baseado em parte em informações dadas pelo homem preso na incursão de Arhab. Dessa vez o alvo era um cidadão americano.
33. “Os americanos queriam mesmo matar Anwar”
IÊMEN, FIM DE 2009 - COMEÇO DE 2010 — Nasser Awlaki não tinha notícias do filho desde maio. Em 20 de dezembro de 2009, ele recebeu uma ligação do presidente Saleh que lhe causou um nó na garganta. “Ele me ligou às três da tarde1 e disse: ‘Nasser, você soube das notícias?’. Perguntei ‘Que notícias?’. E ele: ‘Há quatro horas, seu filho foi morto por um avião americano’. Perguntei: ‘Que avião americano? Onde?’.” Saleh lhe disse onde tinha sido, uma área montanhosa de Shabwah. Nasser desligou e começou a telefonar para líderes tribais da região, desesperado por informações. Não se registrara nenhum ataque aéreo. “Não sei por que o presidente me falou aquilo”, disse-me Nasser mais tarde, acrescentando que acreditava que os americanos tivessem dito a Saleh que iam pegar Anwar naquele dia, mas a operação fora cancelada por algum motivo. Qualquer que fosse a razão, agora estava claro: “Os americanos queriam mesmo matar Anwar”. Quatro dias depois do telefonema do presidente Saleh para Nasser, em 24 de dezembro, forças americanas executaram um ataque aéreo2 numa área a 650 quilômetros a sudeste de Sana’a, no vale de montanha de Rafd, província de Shabwah. Segundo registros oficiais,3 a Inteligência americana e a iemenita indicaram que Awlaki estava reunido com as duas pessoas mais importantes da florescente organização AQPA, Nasir al-Wuhayshi, ex-secretário de Bin Laden, e o líder da AQPA, Said Ali al-Shihri. Autoridades do Iêmen acusaram-nos de estar “planejando um ataque a alvos iemenitas e estrangeiros relacionados ao petróleo”.4 Os ataques aéreos mataram trinta pessoas, e as agências de notícias começaram a anunciar a morte de Awlaki e dos dois outros homens da Al-Qaeda. Antigos funcionários da Inteligência e “especialistas” em Iêmen apareceram em programas de notícias classificando essas mortes como “uma grande vitória5 na luta contra a Al-Qaeda no Iêmen”. Um alto funcionário do governo, não identificado, disse ao Washington Post que o governo Obama não tinha problema em atingir um cidadão americano que acreditava ter aderido à Al-Qaeda e afirmou: “Isso na verdade não muda nada6 do ponto de vista da possibilidade de visá-los” porque “eles são agora parte do inimigo”. O fato de o presidente ter autorizado um ataque assassino contra um cidadão americano passou quase sem questionamento tanto por democratas quanto por republicanos. Apesar de os relatos dos ataques como obra de americanos terem chegado a grandes agências
de notícias, principalmente por meio do vazamento de informações propiciado por funcionários americanos que tentavam mostrar que estavam atacando a Al-Qaeda, não houve reivindicação oficial das ações pela Casa Branca ou pelo Pentágono. “Embora os Estados Unidos tivessem conseguido evitar críticas mais pesadas,7 o contínuo vazamento de informações procedentes de Washington e a cobertura da imprensa internacional sobre o envolvimento americano poderiam despertar ressentimentos antiamericanos no Iêmen”, dizia um telegrama enviado da embaixada dos Estados Unidos em Sana’a a Washington. Nasser assistiu aos noticiários que davam seu filho por morto. Conseguiu achar na tribo uma pessoa proeminente que estava em contato com Anwar. “Fui informado naquele dia de que meu filho não estava lá, mas não estava morto”, lembrou ele. Quando um repórter do Washington Post lhe telefonou e pediu-lhe que comentasse a morte de Anwar, Nasser disse que ele estava vivo. Nesse meio-tempo, a CBS News entrevistou uma fonte no Iêmen que disse que Anwar não apenas estava vivo como os ataques tinham ocorrido “longe de sua casa8 e que ele nada tinha a ver com os mortos”. Estivessem ou não no local, nem Wuhayshi nem Shihri tinham sido mortos no ataque. “Eles decidiram matar [Anwar] no fim de 2009”, disse-me Nasser.
É legítimo que os Estados Unidos matem um cidadão americano sem o devido processo legal? Quero que algum advogado americano decente me diga se está certo o governo matar um cidadão americano com o pretexto de que ele disse alguma coisa contra os Estados Unidos ou contra seus soldados. Não conheço integralmente a Constituição americana, mas não creio que ela permita que se mate um cidadão americano por ter dito algo contra os Estados Unidos.
Enquanto o governo americano caçava Anwar Awlaki, o jornalista iemenita Abdulelah Haider Shaye conseguiu localizá-lo para uma entrevista exclusiva que foi transmitida mundialmente e traduzida para uma porção de línguas. Nos Estados Unidos, ela foi transmitida pela principal rede americana de TV e saiu nos jornais. A entrevista não teve nada de cordial, pois Shaye chegou a ser rude9 e deu a impressão de realmente querer respostas. Entre outras coisas, Shaye perguntou a Awlaki: “Como o senhor pode concordar com o que Nidal Hasan fez ao trair sua nação americana? Por que o senhor abençoa os atos de Nidal Hasan? O senhor tem alguma relação direta com o incidente?”. Shaye também apertou Awlaki quanto a incoerências de suas entrevistas anteriores. Com o questionamento de Shaye, Awlaki articulou em profundidade a defesa do massacre perpetrado por Nidal Hasan em Fort Hood e disse a Shaye que queria “esclarecer” sua posição sobre o múltiplo assassinato. Awlaki disse ao jornalista:
Eu não recrutei Nidal Hasan, mas os Estados Unidos sim, com seus crimes e suas injustiças, e é isso que os Estados Unidos não querem admitir. Não querem admitir que o que Nidal fez, e o que milhares de muçulmanos como ele estão fazendo ao lutar contra os Estados Unidos, decorre de sua política opressiva contra o mundo islâmico [...]. Nidal Hasan, antes de ser americano, é muçulmano, e também é da Palestina e vê o que os judeus estão fazendo ao oprimir seu povo com o apoio e a cobertura dos americanos. Sim, eu devo ter tido uma influência na orientação intelectual de Nidal, mas a questão não passa disso, já que não tento me desvincular do que Nidal fez por discordar dele, mas seria uma honra para mim ter tido um papel maior nisso.
Awlaki mostrou ao jornalista sua correspondência por e-mail com Hasan, para que Shaye pudesse tirar suas próprias conclusões sobre seu conteúdo. “Entreguei-a a você para publicação porque o governo americano proibiu que fosse publicada”, disse-lhe Awlaki.
Por que eles não querem que isso venha à tona? Qual é o motivo? Será que querem esconder suas falhas de segurança? Ou não querem admitir que Nidal Hasan era um homem de princípios e que prestou um serviço ao Islã? Será que [querem] mostrar o fato como um ato individual que não tem relação com os atos do criminoso Exército americano?
Awlaki disse que o governo americano tinha interceptado os e-mails que ele trocara com Hasan, inclusive o primeiro, enviado um ano antes dos tiros em Fort Hood, no qual Hasan “perguntava se matar soldados e oficiais americanos era legal ou não”. Awlaki disse que os e-mails revelavam o fracasso dos órgãos da Inteligência americana. “Fico imaginando onde estariam as forças de segurança americanas que um dia proclamaram-se capazes de distinguir, do espaço, os números de qualquer placa de carro do mundo.” Shaye causara problemas para os Estados Unidos e para o governo iemenita ao revelar o papel dos Estados Unidos no bombardeio de Al-Majalah e em outros ataques. Agora ele estava em contato com Anwar Awlaki, dando ao pregador outra oportunidade de enviar sua mensagem. Shaye era um jornalista sério, que investigou assuntos importantes em seu país. Pelo menos suas entrevistas trouxeram à IC dos Estados Unidos, a políticos e teóricos do assassinato munição para apoiar sua campanha pela eliminação de Awlaki. Não obstante, os Estados Unidos percebiam Shaye como uma ameaça — e uma ameaça com a qual era preciso lidar. Enquanto isso, Awlaki estava se tornando rapidamente um nome conhecido. Depois dos ataques e das incursões de dezembro, a imprensa e o Congresso começaram a acordar para o fato de que os Estados Unidos pareciam encaminhar-se para uma guerra não declarada no Iêmen. Os acontecimentos do Natal de 2009 abalariam o país inteiro.
O presidente Barack Obama e sua família entoavam canções natalinas10 no Havaí quando um de seus assessores interrompeu a festa, chamou Obama a um canto para um telefonema urgente de John Brennan, seu principal conselheiro para contraterrorismo. Poucas horas antes, um jovem nigeriano, Umar Farouk Abdulmutallab, embarcara no voo 253 da Northwest Airlines11 no aeroporto de Schiphol em Amsterdam. Três dias antes, ele fizera 23 anos. Por volta das oito da manhã, hora local, ele percorreu o corredor do avião e acomodouse na poltrona 19A. Às 8h45, o avião decolara e sobrevoava o Atlântico em direção a Detroit. O pai de Abdulmutallab,12 Alhaji Umaru Mutallab, era um empresário aposentado que servira como comissário de Desenvolvimento Econômico na Nigéria e um dos homens mais ricos do continente africano. O caminho que levou o jovem e rico nigeriano ao voo 253 passava pelo Iêmen. Abdulmutallab frequentara escolas particulares de elite em Lomé, Togo, onde era conhecido por ser um muçulmano fervoroso, e foi lembrado por um de seus mestres como “o sonho de todo professor”.13 O jovem passou parte do ano de 2005 estudando árabe14 em Sana’a e, como muitas personalidades vigiadas no Iêmen pelo aparelho de contraterrorismo dos Estados Unidos, frequentou palestras na Universidade da Fé. No mesmo ano, mudou-se para Londres, onde matriculou-se numa faculdade.15 Foi lá que ele se tornou presidente do University College da sociedade islâmica de Londres e participou de protestos não violentos contra as guerras dos Estados Unidos e do Reino Unido em países muçulmanos. Organizou ainda uma conferência para denunciar a “guerra contra o terror”. Em pelo menos duas ocasiões, Abdulmutallab viajou aos Estados Unidos16 em visita e, em 2008, obteve um visto para entradas diversas no país. Em agosto de 2008, compareceu a palestras num instituto islâmico do Texas17 antes de voltar ao Iêmen para estudar árabe. O pai de Abdulmutallab disse que durante esse período o filho se tornara cada vez mais radical, ficou obcecado pela Sharia e pelo que ele chamava de “verdadeiro Islã”.18 Finalmente, Abdulmutallab sumiu do mapa. Seu pai ficou tão preocupado que, em 19 de novembro de 2009, foi até a embaixada americana na Nigéria,19 onde encontrou-se com dois funcionários da segurança americana, mais tarde identificados como agentes da CIA, e lhes disse que seu filho tinha desaparecido no Iêmen. Durante o encontro, ele mencionou “as opiniões religiosas extremas”20 do filho. Quando o voo 253 começou a descer em Detroit, Abdulmutallab queixou-se de uma dor de estômago e entrou no banheiro, onde ficou cerca de vinte minutos. Quando retornou a sua poltrona, cobriu-se com uma manta. Momentos depois, segundo o relato de outros passageiros, ouviu-se um barulho como o de um traque. Num piscar de olhos, um pedaço da calça de Abdulmutallab estava em chamas, assim como parte da parede interna do avião. Um passageiro que estava perto pulou sobre ele, e comissários de bordo correram para apagar o fogo. Quando
um comissário perguntou a Abdulmutallab o que ele tinha na calça, ele teria respondido: “Material explosivo”.21 Era a manhã de Natal, e por todos os Estados Unidos as famílias estavam abrindo presentes e se preparavam para as celebrações quando correu a notícia de que ocorrera um atentado num avião comercial americano. Logo depois que se tornou público que Abdulmutallab contrabandeava explosivos na roupa de baixo, ele se tornou conhecido como o “Homem da Bomba na Cueca”. Não demorou muito para que se descobrisse a ligação de Abdulmutallab com o Iêmen, com um intenso foco em seu possível envolvimento com a AQPA. O fato de haver PETN entre os explosivos da bomba improvisada da cueca de Abdulmutallab foi tido como indício22 do envolvimento de Ibrahim Asiri, que fez com esse material a bomba que seu irmão usara no atentado contra o príncipe Bin Nayef da Arábia Saudita meses antes. Enquanto o governo Obama se apressava em reagir, começaram a surgir boatos na IC americana e entre parlamentares republicanos. Em pouco, Abdulmutallab era apresentado como quadro operacional da AQPA enviado a uma missão suicida23 por Anwar Awlaki. A Inteligência iemenita informou aos Estados Unidos que Abdulmutallab tinha viajado a Shabwah, área tribal de Awlaki, em outubro de 2009, onde teria sido posto em contato com membros da AQPA. Uma fonte do governo americano disse que a Agência Nacional de Segurança tinha interceptado uma “comunicação de voz”24 entre Abdulmutallab e Awlaki no outono de 2009 e concluiu que este “estava envolvido de alguma forma na organização do transporte ou da viagem do rapaz pelo Iêmen. Podia ser para treinamento, uma porção de coisas. Não creio que saibamos com certeza”, declarou a fonte anônima ao Washington Post. Um líder tribal de Shabwah, Mullah Zabara, disse-me mais tarde que vira o jovem nigeriano na fazenda de Fahd al-Quso, suposto participante da conspiração que determinou o bombardeio do USS Cole. “Ele estava regando as plantas”,25 contou-me Zabara. “Quando vi [Abdulmutallab], perguntei a Fahd: ‘Quem é ele?’.” Quso disse a Zabara que o jovem era de outra região do Iêmen, o que Zabara sabia que era mentira. “Quando o vi na TV, Fahd me contou a verdade.” O papel de Awlaki no “complô da cueca” não estava claro. Mais tarde, Awlaki diria que Abdulmutallab era um de seus “alunos”.26 Fontes tribais de Shabwah27 disseram-me que quadros operacionais da Al-Qaeda procuraram Awlaki para dar aconselhamento religioso a Abdulmutallab, mas que Awlaki não estava envolvido no complô. Mesmo tendo elogiado o ataque, Awlaki disse que não esteve envolvido em sua concepção ou em seu planejamento. “Sim, houve algum contato entre mim e ele,28 mas não dei uma sentença permitindo-lhe que executasse essa operação”, disse Awlaki a Abdulelah Haider Shaye numa entrevista para a AlJazeera poucas semanas depois da tentativa de ataque:
Apoio o que Umar Farouk fez depois de ter visto meus irmãos sendo mortos na Palestina durante mais de sessenta anos, e outros sendo mortos no Iraque e no Afeganistão. Em minha tribo, mísseis americanos também mataram mulheres e crianças, então não me pergunte se a
Al-Qaeda matou ou se explodiu um avião civil americano depois de tudo isso. Os trezentos americanos não se comparam aos milhares de muçulmanos que foram mortos.
Shaye pressionou Awlaki sobre a tentativa de derrubar o avião, lembrando-lhe que era um avião de carreira civil. “O senhor apoiou Nidal Malik Hasan e justificou seu ato dizendo que o alvo era militar, e não civil. O avião de Umar Farouk Abdulmutallab era civil. Isso quer dizer que o alvo era o público americano?”, insistiu. “Teria sido melhor se fosse um avião militar ou um alvo militar americano”, respondeu Awlaki. Mas acrescentou:
O povo americano vive [em] um sistema democrático e por isso eles são responsáveis por suas políticas. Foi o povo americano que votou duas vezes no criminoso Bush e elegeu Obama, que não é diferente de Bush, já que em suas primeiras palavras afirmou que não abandonaria Israel, e isso apesar de haver outros candidatos contrários à guerra nas eleições americanas, que tiveram poucos votos. O povo americano participou de todos os crimes de seu governo. Se se opusessem a eles, mudariam o governo. Eles pagam os impostos que são investidos no Exército e mandam seus filhos para as Forças Armadas, é por isso que têm a responsabilidade.
Pouco depois da tentativa de explosão, a AQPA deu uma declaração pela internet em que louvava Abdulmutallab como um herói que tinha “superado toda a tecnologia, aparelhos modernos e sofisticados e as barreiras de segurança dos aeroportos” e “atingiu seu alvo”. A declaração se gabava de que “os irmãos mujahedin do Departamento de Manufatura” tinham construído o dispositivo, que não detonou por “uma falha técnica”.29 Quatro meses depois da tentativa de ataque, a AQPA divulgou um vídeo30 que mostrava Abdulmutallab armado com um fuzil Kalashnikov, usando um keffiyeh, num campo de treinamento no deserto do Iêmen. No vídeo, homens mascarados treinavam com munição real. Uma cena mostra quadros operacionais da AQPA atirando contra um drone em voo. No fim do vídeo, Abdulmutallab lia uma declaração de martírio em árabe. “Vocês, da irmandade muçulmana da Península Arábica, têm o direito de fazer a jihad porque o inimigo está em sua terra”, dizia ele, diante de uma bandeira e um fuzil, vestido de branco. “Deus disse que se vocês não revidarem, vai castigá-los e substituí-los.” O incidente deu munição aos republicanos e a ex-funcionários do governo Bush, que acusaram o presidente Obama e sua equipe de segurança nacional de ignorar repetidos sinais de alarme que prenunciavam o incidente, dizendo que o aviso do pai de Abdulmutallab à embaixada em Abuja, Nigéria, deveria ter sido levado mais a sério. Um funcionário da Inteligência retrucou, declarando à Newsweek:
Embora seja a hora das críticas e das acusações a posteriori,31 não vi nada na reunião de Abuja que justificasse incluir o nome de Abdulmutallab na lista de pessoas proibidas em aviões. O que se tinha era um jovem cada vez mais religioso que dava as costas à vida de opulência levada por sua família. Isso por si só não faz dele um são Francisco nem um pistoleiro. É claro que cada dado parece diferente quando se sabe a resposta, como todos sabem agora.
Ao mesmo tempo, os republicanos usavam o incidente para mostrar Obama como um pacifista ingênuo. “O governo Obama chegou dizendo32 ‘não vamos mais usar a palavra “terrorismo”. Vamos falar em “desastres provocados pelo homem”’, tentando, você sabe como, acho eu, minimizar a ameaça do terrorismo”, ironizou o representante Pete Hoekstra, na época vice-presidente da Comissão de Inteligência da Câmara, em declaração à Fox News dois dias depois do ataque frustrado. Em 30 de dezembro, o ex-vice-presidente Cheney desfechou outro ataque público destrutivo contra Obama: “Da maneira como vejo os acontecimentos dos últimos dias, fica claro mais uma vez que o presidente Obama está tentando fingir que não estamos em guerra”,33 declarou.
Ao que parece, ele pensa que se der uma resposta discreta à tentativa de explodir um avião de passageiros e matar centenas de pessoas nós não estaremos em guerra. Parece que pensa que se der aos terroristas os mesmos direitos dos americanos, permitindo que se recusem a responder a perguntas e informando-lhes sobre os direitos dos presos, não estaremos em guerra.
O ataque de Cheney foi ousado, sobretudo por sua hipocrisia. Quando o “homem da bomba no sapato”, Richard Reid, tentou explodir um avião de modo semelhante, o governo Bush processou-o em tribunais civis, e Rumsfeld declarou que “a questão estava em mãos dos agentes da lei”.34 Ao contrário de Obama, que manifestou-se prontamente após o incidente, o presidente Bush levou seis dias para se pronunciar sobre o ataque de Reid. Mais tarde, Cheney disse que Obama “ao que parece, pensa que livrando-se das palavras ‘guerra ao terror’ não estaremos em guerra. Mas estamos em guerra, e quando o presidente Obama finge que não estamos, provoca insegurança”.35 A declaração de Cheney foi uma fenomenal distorção dos fatos. Obama já havia bombardeado o Iêmen, em seu primeiro ano de governo, mais vezes do que Bush e Cheney nos oito anos de seus dois mandatos na Casa Branca. “Uma porção de imbecis36 que tenho visto na rede mostra que eles não sabem do que estão falando”, vociferou Brennan em declaração ao New York Times. “Quando dizem que o governo não está em guerra com a Al-Qaeda, é pura besteira. Eles estão é fazendo o jogo da Al-Qaeda em seu esforço estratégico, que consiste em nos fazer brigar internamente em vez de nos centrarmos nela.” Em sua posse, Obama tinha declarado que “nossa nação está em guerra37
contra uma grande rede de violência e ódio”. No que se refere ao Iêmen, Obama com certeza entendeu a presença da Al-Qaeda no país como um alvo prioritário, apesar das acusações públicas de Cheney. Enquanto o governo Obama enfrentava olhares perscrutadores sobre a maneira como lidava com o incidente, também intensificava a ação militar dos Estados Unidos contra a AQPA. “Estamos aumentando nossa presença ali,38 e temos de fazer isso, de nossas atividades de Operações Especiais, de boinas-verdes, da Inteligência”, afirmou o senador Joe Lieberman na Fox News. Lieberman, que viajou ao Iêmen em agosto, disse que “uma pessoa de nosso governo me disse em Sana’a, capital do Iêmen: ‘O Iraque é uma guerra de ontem. O Afeganistão é a guerra de hoje. E se não agirmos preventivamente, o Iêmen será a guerra de amanhã’. Esse é o risco que corremos”. Da mesma forma que Cheney, parecia que Lieberman estava atrasado. A guerra no Iêmen já estava em curso.
* * *
No começo de 2010, o governo Obama continuava a minimizar a interferência no Iêmen, e as autoridades repetiam variações da mesma história: os Estados Unidos estavam apenas dando apoio às operações de contraterrorismo do Iêmen. “As pessoas me indagam — a questão sempre vem à tona — se estamos enviando soldados ao Iêmen”,39 disse o almirante Mike Mullen, presidente do Estado-Maior Conjunto, numa palestra no Colégio Naval dos Estados Unidos em 8 de janeiro. “A resposta é: não temos planos para isso e não devemos nos esquecer de que se trata de um país soberano. E países soberanos escolhem quem vai entrar em seu território e quem não vai.” Esses comentários encontraram eco na fala do próprio presidente dois dias depois. “Vimos durante todo o último ano40 que a Al-Qaeda tornou-se um problema mais grave no Iêmen”, disse Obama em 10 de janeiro. “Em consequência disso, fizemos uma parceria com o governo iemenita para atacar os campos de treinamento e as células dos terroristas de uma forma muito mais determinada e contínua.” Sem meias palavras, Obama disse: “Não tenho intenção de mandar tropas à frente de batalha” no Iêmen. Incrível declaração de um comandante em chefe que, durante um ano inteiro, manteve soldados no campo de batalha, entrincheirados, ativos e em número crescente. A presença dos Estados Unidos era pequena, mas o JSOC estava em campo com autorização direta do presidente. Em Sana’a, o Departamento de Estado observou que havia “um número cada vez maior de elementos das Forças Armadas41 com base na embaixada [dos Estados Unidos]” como parte da expansão da “presença militar americana”. De acordo com a Resolução 38 — NSDD-38, emitida em 1982, o embaixador dos Estados Unidos tinha a atribuição de autorizar42 a entrada de todo o pessoal enviado ao Iêmen. Em junho de 2010, a embaixada relatou que estava lidando com um “fluxo diário de propostas de engajamento apresentadas pelas Forças Armadas dos Estados Unidos” e solicitações de pessoal de Inteligência e das Forças Armadas que solicitavam “vistos
de entrada” para o desempenho de “tarefas temporárias”. O oficial de ligação entre o Comando de Operações Especiais e a embaixada era o tenente-coronel Brad Treadway, que exercera a mesma função para uma equipe dos SEALs do Grupo Naval de Guerra Especial no Iraque nas primeiras fases da invasão americana. Era sem dúvida um homem ocupado, já que as equipes de Operações Especiais estavam em franca expansão. No fim de janeiro, o JSOC já tinha participado de mais de duas dúzias43 de incursões terrestres e ataques aéreos no Iêmen desde o bombardeio de Al-Majalah em 17 de dezembro. Dezenas de pessoas morreram nessas operações e outras tantas foram presas. Ao mesmo tempo, o JSOC começou a operar seus próprios drones no país.44 O que tinha começado como ataques coordenados estava se transformando numa campanha permanente de assassinatos dirigidos no Iêmen, coordenada pelo JSOC. “Depois daquele negócio com Abdulmutallab em dezembro,45 [o presidente Saleh] de certo modo teve de mostrar mais apoio a nossas ações”, lembrou o dr. Emile Nakhleh, ex-dirigente da CIA. “Ele fazia o jogo, e de certa forma fazia vista grossa quando executávamos certos tipos de operação militar, operações fulminantes contra alguns grupos radicais. Quando foi pressionado, disse que eram ações deles mesmos. Ele fazia o jogo.” Enquanto as Forças Armadas e os órgãos de Inteligência dos Estados Unidos começavam a planejar mais ataques no Iêmen, o general Petraeus viajou a Sana’a para outra rodada de negociações46 com o presidente Saleh e seus principais oficiais militares e de Inteligência para garantir a continuidade depois das missões de dezembro e do fracassado complô do Natal. Em 2 de janeiro, Petraeus deu o pontapé inicial na reunião, informando a Saleh que os Estados Unidos mais que dobrariam a “assistência para a segurança” do Iêmen, o que incluiria 45 milhões de dólares para treinar e equipar Forças de Operações Especiais iemenitas para a guerra aérea contra a AQPA. Saleh pediu a Petraeus doze helicópteros de ataque, dizendo que se a “burocracia” americana obstruísse a cessão dessas máquinas, Petraeus poderia fazer um acordo de bastidores com a Arábia Saudita e com os EAU para que esses países se incumbissem da transferência dos helicópteros. Petraeus disse a Saleh que já tinha discutido esse acordo com os sauditas. Saleh informou a Petraeus que os Estados Unidos podiam posicionar aviões em território iemenita “às ocultas” e autorizou-os a atacar a AQPA quando houvesse “informações úteis”. Oficialmente, disse Saleh a Petraeus, o Iêmen não queria forças americanas executando operações militares no Iêmen. “Vocês não podem entrar na área de operações, devem permanecer no centro de operações conjuntas”, disse Saleh. Mas todos os que estavam presentes devem ter entendido que essa “exigência” não seria observada, como não tinha sido observada no passado. Embora elogiando os ataques de dezembro, Saleh “lamentou” o uso de mísseis de cruzeiro para bombardear Al-Majalah, segundo um telegrama diplomático sobre a reunião, porque eles “não eram muito precisos”. Na reunião, Petraeus alegou que “os únicos civis mortos no local tinham sido a mulher e os dois filhos de um quadro operacional da AQPA”, o que era uma mentira
deslavada. Saleh disse a Petraeus que preferia “bombas dirigidas de precisão” disparadas de aviões. Saleh chegou a explicitar o engodo, dizendo “vamos continuar afirmando que as bombas são nossas, não de vocês. O vice-primeiro-ministro do Iêmen, Rashad al-Alimi, disse de brincadeira que acabava de “mentir” ao declarar ao Parlamento iemenita que as bombas lançadas contra Arhab, Abyan e Shabwah eram produzidas nos Estados Unidos mas acionadas pelo Iêmen. Pouco depois da reunião, Alimi disse aos repórteres que estavam no Iêmen que
as operações em questão […] foram executadas totalmente por forças iemenitas.47 O aparato de segurança do Iêmen tinha recebido apoio, informações e tecnologia não disponíveis no país principalmente dos Estados Unidos, da Arábia Saudita e de outros países amigos.
Contudo, a maior parte dos iemenitas não engoliu a história. Ahmed al-Aswadi, líder do partido de oposição Al Islah, disse que “a maior parte dos iemenitas acredita”48 que os ataques recentes foram “na verdade executados por forças americanas” e que “a política dos Estados Unidos para esta região do mundo não é nenhum segredo. Se o governo não atende às exigências dos Estados Unidos, eles trazem seus drones”. Durante sua reunião com Saleh, Petraeus reclamou que “só quatro das cinquenta missões de treinamento do Comando de Operações Especiais dos Estados Unidos com a Força Aérea iemenita tinham sido efetivamente executadas no ano passado”. Em entrevistas, quadros operacionais das Forças Especiais com experiência no Iêmen revelaram que as Forças de Operações Especiais que eles estavam treinando não tinham vontade de lutar e me disseram que cada vez mais sentiam necessidade de assumir eles mesmos as tarefas.49 No começo de 2010, o governo Obama cancelou a repatriação de mais de trinta iemenitas de Guantánamo cuja libertação já tinha sido autorizada. “Dada a indefinição da situação50 [no Iêmen], conversamos com o procurador-geral e concordamos em não transferir mais presos de volta ao Iêmen por ora”, disse Obama em 5 de janeiro. Advogados de alguns dos presos classificaram a decisão de “injustificável”,51 dizendo que ela “na prática impediria qualquer progresso significativo na questão do fechamento de Guantánamo, que o presidente Obama afirmou repetidamente que tornará nossa nação mais segura”. Estava claro que para o governo Obama a questão de Guantánamo, um dos pilares de sua campanha eleitoral, era muito menos urgente que seu programa de contraterrorismo no Iêmen, país que tinha mais cidadãos presos do que qualquer outro. No Departamento de Estado, Hillary Clinton declarou que “a instabilidade do Iêmen52 é uma ameaça à estabilidade regional e até mesmo à estabilidade mundial”. Em 15 de janeiro, novos ataques aéreos53 foram disparados contra supostos quadros operacionais da AQPA, com mísseis que atingiram dois veículos. Quatro dias depois, em 19 de janeiro, o governo americano qualificou formalmente54 a AQPA como “Organização Terrorista Estrangeira”. Naquele dia, a
pedido da embaixadora americana Susan Rice, o Conselho de Segurança das Nações Unidas tomou atitude similar.55 O porta-voz do Departamento de Estado, P. J. Crowley, disse que essas atitudes “apoiam o esforço americano56 para minar as potencialidades desse grupo. Estamos decididos a eliminar a possibilidade de a AQPA executar ataques violentos e a interromper, desmantelar e derrotar suas redes”. Em 20 de janeiro, mais uma vez, ataques com mísseis foram disparados contra supostos quadros operacionais da AQPA em Marib. Como ocorrera em 15 de janeiro, as autoridades iemenitas declararam mortos quadros importantes da AQPA57 que mais tarde viu-se que estavam vivos, entre eles Qasim al-Rimi. Os ataques, um deles contra um comboio, levaram à suposição de que drones americanos armados estavam sendo usados no Iêmen. Essas duas séries de ataques pareciam dirigidas a decapitar a AQPA, exterminando sua liderança em Marib, centrada em Ayad al-Shabwani, que se suspeitava ser o líder local.58 Nas incursões de 20 de janeiro, o editor-chefe do Yemen Post, Hakim Almasmari, falou em ataques aéreos continuados. “Hoje foram realizadas dezessetes incursões aéreas59 em Marib, a maior parte delas tentando atingir Shabwani e seus amigos”, disse. “Até agora, foi morto apenas um líder da Al-Qaeda. [As forças de segurança iemenitas] têm tropas em campo, mas não fazem nada. Os ataques, em sua maior parte, foram aéreos.” Testemunhas oculares disseram que os aldeões estavam usando canhões antiaéreos para atingir os aviões.
34. “Sr. Barack Obama […] espero que reconsidere sua ordem de matar […] meu filho”
WASHINGTON, DC, E IÊMEN, COMEÇO DE 2010 — Em janeiro de 2010, notícias que vazaram para a imprensa americana diziam que o JSOC tinha promovido oficialmente Anwar Awlaki à categoria de captura ou morte em sua lista de Alvos de Grande Valor. A decisão de aprovar o assassinato dirigido de um cidadão americano foi tomada após uma revisão por parte do NSC, que deu luz verde para o assassinato de Awlaki. “Tanto a CIA quanto o JSOC1 têm listas de pessoas chamadas ‘Alvos de Grande Valor’ e ‘Pessoas de Grande Valor’ que eles pretendem capturar ou matar”, publicou o Washington Post. “Na lista do JSOC há três americanos, entre eles Awlaki, cujo nome foi incluído no fim do ano passado. Há coisa de alguns meses, a lista da CIA incluiu três cidadãos americanos, e um funcionário da Inteligência disse que o nome de Awlaki tinha sido incluído.” Quando a matéria do Post foi publicada, em 26 de janeiro, a CIA apressou-se a declarar que não tinha autorizado o assassinato de Awlaki. O Post publicou uma correção na qual afirmava que “o Comando Conjunto de Operações Especiais das Forças Armadas tem uma lista de alvos em que figuram diversos americanos”. A evasiva destacava a vantagem para a Casa Branca de usar o JSOC para executar operações letais. “Acho a legalidade disso muito discutível,2 devido ao fato de não estarmos em guerra”, disse-me o coronel Patrick Lang pouco depois da revelação do nome de Awlaki na lista do JSOC. “E ele não é membro de uma força inimiga que esteja legalmente em guerra com os Estados Unidos. Gosto de lei, quando o assunto é guerra. De outra forma, as coisas logo se tornam confusas.” Glenn Greenwald, especialista em direito constitucional, observou na época:
É óbvio que as forças americanas estão lutando num campo de batalha real,3 de modo que elas (como qualquer outra força) têm o direito de matar combatentes lutando ativamente contra eles, mesmo sendo cidadãos americanos. Isso é apenas a essência da guerra. É por isso que se permite matar um combatente numa batalha real numa zona de guerra mas não, por exemplo, torturá-los quando capturados e definitivamente controlados. Porém aqui não estamos falando de combate. As pessoas dessa “lista de alvos” provavelmente serão mortas
em casa, dormindo, dirigindo um carro com amigos ou parentes, ou desempenhando diversas outras atividades. Ainda mais grave, o governo Obama — da mesma forma que o de Bush anteriormente — define “campo de batalha” como o mundo todo.
A representante democrata Jane Harman, que na época presidia a Subcomissão de Segurança Interna da Câmara para Inteligência, falou de Awlaki como “provavelmente o terrorista número um4 em termos de ameaça para nós”. Acrescentou que o governo Obama tinha “deixado muito claro que as pessoas, inclusive americanos, que estão tentando atacar nosso país são pessoas que perseguiremos com certeza […] são alvos para os Estados Unidos”. Em 3 de fevereiro, o almirante Dennis Blair, na época diretor de Inteligência nacional, depôs diante da Comissão Especial Permanente de Inteligência da Câmara e confirmou que o governo Obama se achava no direito de matar cidadãos americanos, ao dizer que “a decisão de usar força letal5 contra um cidadão americano exige permissão especial” e afirmou que “ser cidadão americano não evita que uma pessoa seja assassinada por quadros operacionais das Forças Armadas ou da Inteligência se ela estiver trabalhando com terroristas e planejando ataques contra concidadãos americanos”. “Nada sei do desconforto das pessoas que acompanham esses acontecimentos quando se passa a situar cidadãos americanos na mesma categoria que não cidadãos”, disse-me Nakhleh, que tinha saído da CIA antes que Awlaki fosse parar na lista do JSOC de candidatos ao assassinato. “Notei alguma inquietação6 quanto a essa posição entre pessoas com quem falei a respeito de eliminar cidadãos americanos sem o devido processo.” No entanto, ao que parece o governo Obama pouco se incomoda com isso. Ao falar da relação dos Estados Unidos com o Iêmen, que lhes permite atacar à vontade dentro do país, um alto funcionário do governo disse ao Washington Post: “Estamos satisfeitos7 com o rumo que isso está tomando”. No Iêmen, Nasser Awlaki leu a matéria e decidiu escrever diretamente a Obama.8 Sua carta, que um jornalista americano passou a autoridades dos Estados Unidos, não recebeu resposta:
Para: Sr. Barack Obama, presidente dos Estados Unidos da América
Fiquei muito feliz quando o senhor foi eleito presidente dos Estados Unidos da América. Na verdade, passei toda a noite da apuração sem dormir, até que a imprensa declarou que o senhor era o “presidente eleito”. Li seu livro A origem dos meus sonhos e fiquei muito tocado. O senhor sabe que eu mesmo fui para os Estados Unidos em 1966, aos vinte anos, com uma bolsa da Fulbright para estudar economia agrícola. Anwar foi meu filho primogênito e quando nasceu, em 1971, distribuí muitos charutos a amigos e colegas da Faculdade Estadual do Novo México. Em razão de meu amor pelo seu país, mandei Anwar para a Universidade Estadual do Colorado para que recebesse uma formação americana. Meu filho continuou seus estudos de pós-graduação e iniciou seu doutorado na Universidade George Washington em 2001. Por causa dos infelizes acontecimentos do Onze de Setembro, tornou-se difícil para ele dar continuidade aos estudos em razão do mau tratamento que recebeu na universidade e por isso ele decidiu ir para o Reino Unido a fim de completar sua
formação, mas, sem poder arcar com os custos de seus estudos, retornou ao Iêmen. Desde então, vem se dedicando a estudar e a pregar sua religião, e nada mais. No entanto, ele foi mantido preso por mais de dezoito meses em decorrência de um pedido do governo americano. Em 2007, foi entrevistado durante dois dias pelo FBI, que não encontrou ligação entre ele e os acontecimentos do Onze de Setembro. Depois de posto em liberdade, continuou sendo assediado, o que o levou a sair de Sana’a, capital do Iêmen, para viver numa pequena cidade do sul do país. Durante muitos meses, um avião espião dos Estados Unidos sobrevoou a cidade, e quando se soube que ele estava sendo rastreado para ser preso mais uma vez, foi para as montanhas da província de Shabwah, terra de seus ancestrais. Na quarta-feira 27 de janeiro de 2007, o Washington Post publicou um artigo de Dana Priest no qual ela diz que o senhor ordenou o ataque de 24 de dezembro ao lugar onde “se supunha que Anwar estivesse reunido com líderes da Al-Qaeda”. O Post informou que a CIA e o JSOC incluíram Anwar numa lista de chamados “Alvos de Grande Valor” que esses órgãos pretendem matar ou capturar, na suposição de que Anwar Awlaki seja um personagem da Al-Qaeda. O senhor sabe, como eu sei, que Anwar Awlaki nunca foi membro dessa organização e espero que nunca seja. Ele é simplesmente um pregador que tem o direito de divulgar a palavra do Islã onde quiser, o que é absolutamente legal e protegido pela Constituição americana. Assim, peço que o senhor reconsidere a ordem de matar ou capturar meu filho, baseada na falsa suposição de que ele é membro da Al-Qaeda. Mais uma vez, gostaria de lhe informar, senhor presidente Obama, que meu filho é inocente, nada tem a ver com violência, é apenas um acadêmico do Islã e acredito que nada tem a ver com o terrorismo. Assim, apelo mais uma vez para que o senhor respeite a lei americana. Se alguma vez Anwar fez algo errado, deve ser processado de acordo com a lei americana.
Atenciosamente, Nasser A. Awlaki Professor de economia agrícola Universidade de Sana’a República do Iêmen
35. Uma noite em Gardez
WASHINGTON, DC, 2008-10; AFEGANISTÃO, 2009-10 — Stanley McChrystal estava no campo de batalha desde o começo de 2008. Depois que McRaven assumiu o comando do JSOC, McChrystal voltou a Washington para servir como diretor do Estado-Maior Conjunto, cargo importante dentro na burocracia do Pentágono. Sua indicação foi freada1 por um grupo de senadores que pretendiam que sua participação em sevícia e tortura de prisioneiros no Iraque e em outros países fosse investigada, mas ela acabou sendo confirmada. Não foi um rebaixamento para McChrystal. No mínimo, ele foi posto no centro de futuras decisões sobre mobilização de tropas e formação de forças que seriam utilizadas em operações militares. No Estado-Maior Conjunto, McChrystal conseguiu convencer2 Obama a descentralizar o controle sobre as Forças de Operações Especiais e transferir alguma autoridade sobre táticas de guerra não convencionais aos comandantes em combate. Essas mudanças, por sua vez, ampliaram o campo de batalha secreto e facilitaram as operações letais que Obama autorizava cada vez mais no Iêmen e em outros países. Durante os primeiros meses do governo Obama, sua equipe de segurança nacional envolveuse num acalorado debate3 sobre como proceder no Afeganistão. Alguns comandantes militares defendiam um aumento considerável nas forças americanas e uma retomada das táticas de contrainsurgência transformadas em mito nos relatos sobre o “sucesso” do reforço das tropas no Iraque, mas o vice-presidente Joe Biden e o conselheiro de Segurança Nacional James Jones defendiam o deslocamento do foco da campanha4 para o Paquistão, usando uma combinação de Forças de Operações Especiais e drones. “Não prevejo5 uma volta do Talibã e quero expressar com clareza que o Afeganistão não se encontra em risco iminente”, disse o general Jones em outubro de 2009. “A presença da Al-Qaeda diminuiu muito. Estima-se em no máximo cem os quadros da organização em atividade no país, sem bases e sem capacidade de lançar ataques contra nós ou contra nossos aliados.” McChrystal e McRaven tinham pressionado Obama a intensificar as forças americanas no Afeganistão e, juntamente com outros militares poderosos, entre eles Petraeus, convenceram o novo comandante supremo que esse era o caminho certo. Obama e McRaven “na verdade têm um relacionamento bastante bom, e McRaven,6 enquanto McChrystal esteve no Afeganistão, trabalhou com ele como unha e carne, formulando a maneira de neutralizar as estratégias da Al
Qaeda”, disse-me uma fonte próxima ao governo na época. McRaven “desempenhou um papel significativo e oculto na execução dos planos de McChrystal, que Obama acabou subscrevendo”. Em dezembro de 2009, Obama anunciou um reforço7 de tropas no Afeganistão. No verão de 2010, o presidente queria aumentar de 68 mil para 100 mil o número de soldados americanos no país. Seu objetivo, como explicou no fim de 2009, era “desarticular, desmantelar e derrotar8 a Al-Qaeda no Afeganistão e no Paquistão, evitar que ela possa ameaçar os Estados Unidos e nossos aliados no futuro” e “deter o ímpeto do Talibã”. Obama afirmou estar “convencido de que nossa segurança está em jogo” e “de que novos ataques estão sendo planejados no momento mesmo em que estou falando. Não é um perigo sem propósito, não é uma ameaça hipotética”. Para enfrentar essa “ameaça”, Obama escolheu o general McChrystal como seu homem no Afeganistão. Ao indicar McChrystal para o comando da ISAF e para o comando das forças americanas no Afeganistão, Obama revelou em que medida sua política contraterrorista estava centrada no JSOC. Obama escolheu um homem identificado, mais do que qualquer outro, com as políticas militares mais agressivas do governo Bush, com exceção, talvez, do general Petraeus, para comandar a guerra que em pouco ele reivindicaria como sua. “Fiquei um tanto surpreso9 quando McChrystal foi escolhido comandante no Afeganistão”, lembrou o coronel Lawrence Wilkerson, que entrara em conflito com a opacidade do JSOC durante o governo Bush. “Esse cara tem sido mantido longe do público. Tem sido um quadro clandestino. É um cara acostumado à ação direta, habituado a fazer as coisas à sua maneira. É um cara habituado a fazer tudo sem nenhuma transparência.” Outras fontes com quem falei deram uma interpretação diversa à indicação de McChrystal. Falaram dos problemas que o comando convencional teve durante um longo tempo com as forças do JSOC, que executavam operações sem informá-los, e disseram que viam esse modo de agir como prejudicial à COIN, ou estratégia contrainsurrecional. “O Comando de Cabul10 se sentia posto de lado, pois o JSOC dirigia seu próprio espetáculo, sem se ajustar à doutrina da contrainsurreição”, e “a maior parte das táticas usadas pelo JSOC na verdade solapava a legitimidade do governo [afegão]”, disse Scott Horton, advogado de direitos humanos que estudou profundamente o JSOC. “Portanto, acho que a maneira de conciliar essas coisas era mesmo pôr Stanley McChrystal no comando em Cabul. E fazê-lo observar a doutrina contrainsurrecional. Nomear alguém a quem o JSOC seria obrigado a dar ouvidos.” Embora muitas dessas Forças de Operações Especiais atuassem por fora da cadeia de comando da coalizão, em sua análise do esforço de guerra no Afeganistão, McChrystal deixou claro11 que uma coordenação estreita com o JSOC estava entre seus principais objetivos e que ele pretendia integrar as Forças de Operações Especiais na estratégia geral de combate à insurreição. Os vice-almirantes McRaven e Robert Harward (veterano do JSOC e chefe de uma nova força-tarefa de detenção) foram levados a reuniões estratégicas sobre o Afeganistão realizadas na Casa Branca no outono de 2009. Da mesma forma que McChrystal, McRaven e
Harward defendiam “uma pesada, pesadíssima presença da COIN”12 nos principais centros populacionais, usando equipes de contraterrorismo para perseguir alvos em todo o país. A região próxima da fronteira com o Paquistão receberia maior atenção, e o próprio McRaven queria também ter certeza de que as operações dentro do Paquistão não ficariam de fora. “Eles estão se concentrando nos principais centros populacionais,13 que acham que podem salvar com efetivos terrestres, e qualquer coisa além disso seria avançar o sinal”, disse um funcionário da NSC ao jornalista Spencer Ackerman em novembro de 2009. “O JSOC já está se reforçando para isso.” Por ser o homem a quem se atribuía a sistematização da prisão e do assassinato em massa de suspeitos de insurreição no Iraque, era pouco provável que McChrystal fosse visto como paladino da contrainsurreição no Afeganistão. Mas ele fez uma profissão de fé em seus dogmas básicos,14 como um significativo aumento no contingente, um novo foco da segurança de grandes centros populacionais e a promoção da boa governança. Em sua audiência de confirmação, em junho, McChrystal destacou que a redução no número de mortos e feridos pela coalizão seria “essencial para [a] credibilidade”15 da missão e que uma vitória tática seria “vazia e insustentável” se resultasse em indignação popular. A “completa eliminação da Al-Qaeda” do Paquistão e do Afeganistão ainda era um objetivo principal. No entanto, disse ele, a medida do sucesso no Afeganistão “não seria [o número de] inimigos mortos”, mas “o número de afegãos protegidos da violência”. McChrystal deu ordens que reduziram bastante os ataques aéreos16 no Afeganistão, ataques esses que eram vistos como responsáveis pelo número descomunal de civis mortos. Em maio de 2009 — um mês antes da confirmação de McChrystal —, um ataque aéreo americano matou pelo menos 97 civis17 na província de Farah, entre eles mulheres e crianças. McChrystal também implantou novas regras para incursões em domicílios, segundo as quais se exigia que “qualquer entrada numa casa afegã18 devia ser efetuada pelas Forças de Segurança Nacional do Afeganistão [Afghan National Security Forces, ANSF], com apoio das autoridades locais”. Enquanto McChrystal e a “doutrina da COIN” eram festejados pela imprensa, na realidade os Estados Unidos estavam expandindo duas guerras simultâneas no Afeganistão: a campanha pública das Forças Armadas convencionais, centrada na COIN, e a guerra secreta travada pelas Forças de Operações Especiais. Na semana em que McChrystal foi confirmado como comandante da guerra do Afeganistão, também foram enviados ao país mil homens das Forças de Operações Especiais19 e pessoal de apoio, elevando seu total para cerca de 5 mil. A lista do JSOC de Alvos de Grande Valor já não se limitava à Al-Qaeda; a estratégia de contrainsurreição de McChrystal precisava de resultados, e à medida que as forças convencionais trabalhavam para dar segurança às cidades, as equipes das SOF20 dedicavam-se a ceifar as lideranças intermediárias do Talibã, assim como de outros grupos militantes, como a rede Haqqani. “De qualquer ângulo objetivo,21 [McChrystal] era completamente despreparado para qualquer coisa que não fosse assassinato dirigido. Foi tudo o que ele fez durante cinco anos, de 2003 a 2008”,
disse-me o historiador Gareth Porter, que passou longo tempo no Afeganistão durante o mandato de McChrystal e achava que fazer de McChrystal o responsável pela guerra “dava sinais claros de que os Estados Unidos tendiam a dar ênfase cada vez maior ao assassinato dirigido no Afeganistão. Simplesmente isso — e, é claro, foi exatamente o que aconteceu”. Depois de assumir o comando no Afeganistão, McChrystal ampliou as incursões noturnas ao estilo do JSOC e incluiu mais nomes na lista da morte. Em outubro de 2009, havia mais de 2 mil pessoas22 na Lista Conjunta de Alvos Prioritários. Em maio de 2009, as Forças de Operações Especiais estavam executando cerca de vinte incursões por mês no Afeganistão. Em novembro, sob o comando de McChrystal, esse número subira para noventa e ascendia com firmeza. Forças afegãs podiam ser empregadas para a entrada, mas segundo as novas regras, as incursões eram executadas pelas Forças Especiais americanas. Em dezembro de 2009, o número de incursões executadas pelo JSOC tinha quadruplicado.23 “Isso é coisa do general McChrystal”,24 disse ao Los Angeles Times um alto funcionário americano. “Eles precisam mostrar que são capazes de inverter a relação de forças. Ele precisa mostrar que está fazendo progresso.” A multiplicação de incursões resultou também num inchaço da quantidade de presos. Como tinha ocorrido no Iraque anteriormente, o JSOC executava suas próprias operações com presos25 no Afeganistão. Os prisioneiros que supostamente tinham informação que pudesse levar a Alvos de Grande Valor eram conduzidos a centros de detenção dirigidos pelos Estados Unidos conhecidos como Áreas de Prisão no Campo,26 localizados em bases americanas em todo o Afeganistão. Embora a OTAN desse orientação para limitar a detenção de militantes pelas forças de coalizão a 96 horas,27 as Forças de Operações Especiais encontravam meios de manter os presos em suas dependências por até nove semanas.28 Havia também uma prisão secreta dentro da prisão de Bagram, conhecida como Cadeia Negra,29 onde os Alvos de Grande Valor eram mantidos. Como acontecia em Camp Nama, no Iraque, a Cadeia Negra era inacessível à Cruz Vermelha. Pessoas que trabalhavam com direitos humanos e investigaram o lugar denunciaram nudez forçada, manipulação do ambiente e confinamento solitário,30 e exprisioneiros disseram ter sido espancados.31 Embora Obama tivesse prometido derrotar a Al-Qaeda no Afeganistão, o período em que McChrystal esteve no comando durante a guerra representaria um aumento notável do apoio dado ao Talibã e um número recorde32 de soldados americanos mortos.
As nascentes “guerras de mentira” de Obama no Paquistão, Iêmen e Somália receberam pouca atenção da imprensa nos primeiros tempos de sua presidência. O foco esmagador estava no Afeganistão e no debate sobre o aumento do contingente, mas havia um desdobramento muito mais significativo a caminho. A Casa Branca, trabalhando em estreita colaboração com o general McChrystal, começou a adotar sua nascente lista de mortes globais dentro do Afeganistão, sepultada dentro da guerra pública maior que envolvia as forças americanas
convencionais. Quando visitei o Afeganistão em 2010, comandantes da polícia afegã me disseram que equipes de Operações Especiais americanas entravam em sua jurisdição33 sem coordenação com as autoridades locais e sem informar às principais bases americanas da região. Executavam operações, matavam gente em incursões noturnas, capturavam pessoas que eram levadas para outras províncias. As incursões, explicaram os oficiais da polícia, estavam causando uma importante reação negativa que prejudicava as forças americanas convencionais e as unidades policiais afegãs apoiadas pelos Estados Unidos. Disseram-me que na verdade as incursões noturnas estavam ajudando o Talibã. A Casa Branca estava bem consciente, àquela altura, da seriedade dos danos causados no Afeganistão. Em setembro de 2009, um diplomata americano no país apresentou sua carta de renúncia, na qual fazia uma contundente denúncia da guerra americana. Matthew Hoh, fuzileiro naval condecorado que fez diversas viagens pelo Iraque e depois serviu como principal funcionário civil na província afegã de Zabul, garantiu que “a presença e as operações dos Estados Unidos e da OTAN34 em vales e aldeias pashtuns” chegavam a representar “uma força de ocupação contra a qual a insurreição se justificava”. Numa carta ao Departamento de Estado, Hoh declarou sem meias palavras que “a presença militar dos Estados Unidos no Afeganistão contribui em grande medida para a legitimação e a aceitação da mensagem estratégica da insurreição pashtun”. E escreveu:
Acho enganosas as razões que alegamos para o banho de sangue e para o sacrifício de nossos homens e mulheres jovens no Afeganistão. Para que fosse honesta, nossa estratégia estabelecida para garantir que o Afeganistão evite o ressurgimento ou o reagrupamento da Al-Qaeda exigiria que além disso invadíssemos e ocupássemos o Paquistão ocidental, a Somália, o Sudão, o Iêmen etc. Nossa presença no Afeganistão só aumentou a desestabilização e a insurreição no Paquistão, onde tememos, com razão, que um governo deposto ou enfraquecido possa perder o controle sobre as armas nucleares do país.
O Washington Post noticiou que a carta de Hoh “repercutira de alto a baixo35 na Casa Branca”. Autoridades americanas, entre as quais o embaixador e o enviado de Obama para o Afeganistão e o Paquistão, Richard Holbrooke, tentaram oferecer a Hoh outros cargos para evitar sua renúncia. Holbrooke declarou ao Post que tinha perguntado a Hoh: “Se o senhor quer realmente influenciar a política36 e ajudar a reduzir o custo da guerra em vidas e em recursos”, não deveria permanecer “dentro do edifício, e não do lado de fora, onde vai poder atrair muita atenção mas sem o mesmo impacto político?”. Hoh afinal recusou as ofertas e tornou pública sua oposição à guerra. Quando estive com Hoh, pouco depois de sua renúncia, discutimos as incursões noturnas e o papel que o JSOC estava desempenhando no Afeganistão. Ele esclareceu que tinha enorme
respeito pelas equipes de Operações Especiais e que acreditava que havia pessoas perigosas que “precisam ser mortas”.37 Mas questionava o uso dessas tropas de elite para combater o que tinha se transformado efetivamente numa insurreição popular contra a ocupação estrangeira. O JSOC, disse ele, é “a melhor tropa de choque que o mundo já conheceu”, mas “está lá no Afeganistão, correndo atrás de líderes intermediários do Talibã que não ameaçam os Estados Unidos, só estão lutando contra nós porque estamos na seara deles”. Disse-me ainda: “Nos metemos nessa forma de guerra de desgaste de Operações Especiais”. Ele calculava que haveria “de cinquenta a cem” quadros operacionais da Al-Qaeda na época. Sob o comando de McChrystal, o ritmo das incursões noturnas aumentava à medida que o JSOC ia assinalando nomes na lista da morte, que parecia não ter fim. McChrystal sabia bem como promover38 seus planos junto à Casa Branca, e quando lutava para que sua opinião fosse adotada, fazia-o “com a mesma temeridade que usava para rastrear terroristas no Iraque: calcule como o inimigo atua, seja mais rápido e mais brutal do que qualquer outro e acabe com os filhos da puta”, observou o jornalista Michael Hastings, que viajou com McChrystal e passou um tempo no Afeganistão. As forças-tarefas de Operações Especiais de McChrystal e McRaven começaram a expandir a lista de alvos, perseguindo “colaboradores” e “suspeitos de militância”39 do Talibã. As informações que alimentavam as operações se apoiavam em grande parte em fontes afegãs. Hoh disse-me que era comum que afegãos acusassem seus inimigos de ser quadros operacionais do Talibã como vingança em casos de disputa de terras ou conflitos tribais. O fornecimento dessas informações falsas às forças americanas, por sua vez, criou um ambiente em que um número enorme de afegãos inocentes se viu enfrentando comandos americanos que invadiam sua casa no meio da noite, capturando ou matando gente. “Sim, muitas vezes os caras certos foram perseguidos e os caras certos foram mortos”, lembrou Hoh.
E então, muitas outras vezes, pessoas erradas foram mortas. Às vezes eram famílias inocentes. Em outros casos, podiam ser pessoas e famílias que tinham sido denunciadas por vingança ou por rivalidades que existiam muito antes de que fôssemos para lá. Acontecia muito, aquele que procurava os americanos primeiro era quem entregava o rival, ou seu inimigo, ou seu antagonista.
Hoh disse que havia também vezes em que uma força-tarefa do JSOC “matava alguém que era importante para nós. Matavam um líder tribal ou algum tipo de administrador do governo que estava trabalhando conosco, ou com quem estávamos fazendo progressos. No meio da noite, você acabava baleando o cara”. E acrescentou: “Não há nada que se compare ao ato de entrar numa aldeia no meio da noite, derrubar uma porta e matar uma mulher ou uma criança só para destruir” qualquer progresso civil ou militar que as Forças Armadas convencionais tivessem feito em áreas que circundam o Afeganistão. Investiguei diversas incursões noturnas malfeitas
no país em que ficou claro que gente inocente tinha sido atingida. Nenhuma delas foi mais aterradora do que a que ocorreu perto de Gardez, na província de Paktia, em fevereiro de 2010.
Em 12 de fevereiro de 2010, Mohammed Daoud Sharabuddin tinha muito o que comemorar. O respeitado oficial da polícia recebera uma promoção importante40 com a qual tornara-se chefe de Inteligência num dos distritos da província de Paktia, no sudeste do Afeganistão. Era também pai de um recém-nascido.41 Naquela noite, Daoud e a família estavam celebrando a atribuição de nome ao menino, ritual que ocorre no sexto dia de vida de uma criança.42 A festa se realizava na propriedade deles, na aldeia de Khataba, a curta distância de Gardez, capital da província. Duas dezenas de pessoas estavam na casa para a festa, além de três músicos.43 “Tínhamos muitos convidados44 e música”, contou-me Mohammed Tahir, cunhado de Daoud, quando visitei a família. “Durante a festa, as pessoas dançavam o attan, nossa dança tradicional”. A família Sharabuddin não pertencia à etnia pashtun,45 dominante e quase exclusiva entre os talibãs. Sua língua principal era o dari. Muitos dos homens da família não usavam barba, alguns tinham apenas bigodes. Havia muito que se opunham ao Talibã. Daoud, o comandante de polícia, tinha passado por dezenas de programas de treinamento dos Estados Unidos, e sua casa estava cheia de fotos dele com soldados americanos. Outro membro da família era promotor da administração municipal, apoiada pelos Estados Unidos, e um terceiro era vice-reitor da universidade local. A área onde viviam era próxima a um quartel-general do Talibã, e a rede Haqqani — grupo insurgente que segundo os Estados Unidos era estreitamente vinculado à AlQaeda e à ISI, organização de espionagem paquistanesa — tinha executado ataques contra o governo e forças da OTAN. Assim, quando começou a notar alguma coisa errada diante da propriedade, a família receou que se tratasse de um ataque do Talibã a sua casa. Eram cerca de 3h30 da madrugada e a festa estava acabando quando a família e seus convidados notaram que a luz46 tinha sido cortada por alguém de fora. Nessa hora, um dos músicos, que tinha saído para o quintal para usar o banheiro, viu miras a laser que, do exterior da casa, varriam o terreno.47 O homem correu para dentro e avisou os demais. “Daoud saiu para ver o que estava acontecendo”, contou-me Tahir. “Ele pensou que o Talibã tinha chegado. Já estavam no telhado.” Assim que Daoud e o filho de quinze anos, Sediqullah, puseram os pés no quintal, foram atingidos por projéteis disparados por franco-atiradores48 e caíram. A família começou a ouvir as vozes de seus agressores. Algumas davam ordens em inglês, outras em pashtun. A família começou a suspeitar que os agressores eram americanos. O pânico tomou conta dos que estavam na casa. “Todas as crianças gritavam: ‘Atiraram em Daoud! Atiraram em Daoud!’”, lembrou Tahir. O filho mais velho de Daoud estava atrás do pai e do irmão quando eles dois foram atingidos. “Quando meu pai caiu, eu gritei”,49 contou-me ele. “Todo mundo — meus tios, as mulheres, todos saíram da casa e se precipitaram para a varanda. Corri até eles e recomendei que não
saíssem, pois havia americanos atacando e matariam todos.” Enquanto isso, os irmãos de Daoud, Mohammed Saranwal Zahir e Mohammed Sabir, tentavam socorrê-lo. “Quando saí correndo,50 Daoud estava caído bem aqui”, disse-me Mohammed Sabir, referindo-se ao lugar em que estávamos de pé no quintal poeirento. “Levamos Daoud para dentro.” Enquanto ele sangrava no piso de um corredor dentro da propriedade, seu irmão Zahir disse que ia tentar deter o ataque conversando com os americanos. Por ser promotor, ele sabia um pouco de inglês. “Trabalhamos para o governo!”, ele gritou para fora. “Olhem para nossos carros de polícia. Vocês balearam um comandante da polícia!” Três mulheres da família, Bibi Saleha, de 37 anos; Bibi Shirin, de 22, e Gulalai, de dezoito, agarraram-se às roupas de Zahir e imploraram-lhe que não saísse. Não teria feito diferença. Zahir foi abatido ali mesmo onde estava, atingido por projéteis que feriram também as três mulheres. Zahir, Bibi Saleha e Bibi Shirin morreram na hora. Gulalai e Daoud sobreviveram durante horas, mas a família, sitiada, não pôde fazer nada por eles, que acabaram morrendo também. De alguma forma, em questão de minutos, um evento familiar festivo se transformou num massacre. Sete pessoas morreram, segundo membros da família. Duas das mulheres estavam grávidas.51 No total, as mulheres tinham dezesseis filhos.52
Eram sete da manhã. Poucas horas antes, Mohammed Sabir vira o irmão, a mulher, a sobrinha e a cunhada caídos. Agora, traumatizado, estava debruçado sobre os corpos numa sala cheia de soldados americanos. Os comandos mascarados tinham invadido a casa e começaram a revistá-la, vasculhando cada um dos aposentos. Sabir contou-me que Daoud e Gulalai ainda estavam vivos. Soldados americanos ficaram dizendo que iam providenciar assistência médica. “Eles não permitiram que levássemos os feridos ao hospital e ficaram dizendo que tinham médicos e iam cuidar dos feridos”, disse ele. “Pedi com insistência que me deixassem levar minha filha ao hospital, ela tinha perdido muito sangue e nosso carro estava bem ali”, disse Mohammed Tahir, pai de Gulalai. “Mas eles não deixaram. Minha filha e Daoud ainda estavam vivos. Continuamos pedindo, porém eles disseram que um helicóptero estava a caminho para levar nossos feridos ao hospital.” Os dois morreram antes que chegasse um helicóptero para resgatá-los. Ainda durante a incursão americana, Mohammed Sabir e seu sobrinho Izzat, juntamente com as mulheres de Daoud e Sabir, começaram a preparar mortalhas53 para as vítimas. O costume afegão manda enfaixar os pés e a cabeça dos mortos. Um lenço amarrado sob o queixo evita que a boca fique aberta. Eles conseguiram fazer isso antes que os americanos começassem a algemálos54 e pusessem homens e mulheres sobreviventes em espaços separados. Foi nesse momento que os homens da família presenciaram uma cena pavorosa: os soldados americanos extraindo os projéteis dos corpos das mulheres. “Eles metiam a faca nos ferimentos e tiravam as balas”, contou-me Sabir. Perguntei-lhe sem rodeios: “Você viu os americanos extraindo balas do corpo
das mulheres?”. Sem hesitar, ele respondeu: “Sim”. Tahir disse-me que viu americanos com facas junto aos corpos. “Estavam extraindo as balas para eliminar as provas do crime”, disse. Mohammed Sabir não pôde comparecer ao sepultamento da esposa nem ao dos outros mortos da família. Depois da incursão, os americanos fizeram com que todos eles se ajoelhassem ou ficassem de pé no quintal, descalços, numa manhã de inverno rigoroso, com as mãos atadas às costas.55 Testemunhas disseram que os que tentavam falar com os soldados ou pedir-lhes algo eram espancados. “Eles me mandaram pôr as mãos ao alto, mas pensei que, se estava em minha própria casa, por que deveria fazer isso?”, disse-me o filho mais velho de Daoud, Abdul Ghafar.
Eles me bateram diversas vezes. Atiraram em minha direção e à minha volta. Joguei-me no chão. Pedi ao tradutor [afegão dos americanos] que lhes dissesse para não matar mulheres, só fazer sua busca. Nós apoiamos o governo. Trabalhamos com o governo. Eles me chutaram diversas vezes. Tentava ficar de pé, mas eles me chutavam.
Mais tarde, uma testemunha disse a um investigador das Nações Unidas que pelo menos dez pessoas tinham sido agredidas pelo grupo de americanos e afegãos,56 entre elas Hajji Sharabuddin, o chefe da família, de 65 anos. “Eles nos disseram que tinham sido informados57 da presença de quarenta ou cinquenta talibãs aqui”, disse Sharabuddin. “Mas na verdade eram todos membros de minha família que trabalham para o governo.” Sharabuddin exigiu que explicassem por que tinham invadido sua casa no meio da noite. “Vocês poderiam ter revistado minha casa de manhã”, disse-lhes. “E se encontrassem algum talibã aqui, poderiam fazer comigo o que quisessem, ou destruir e depredar minha casa, e eu não os culparia.” Uma investigação das Nações Unidas, realizada dois dias depois da incursão que nunca viera a público, concluiu que os sobreviventes “foram vítimas de tratamento desumano, cruel e degradante58 por terem sido agredidos fisicamente por tropas americanas e afegãs, dominados e obrigados a permanecer de pé e descalços durante horas à intempérie”, acrescentando que as testemunhas disseram “que as tropas americanas e afegãs negaram-se a dispensar atendimento médico adequado e a tempo a duas pessoas que apresentavam graves ferimentos a bala, o que resultou na morte delas horas mais tarde”. Mohammed Sabir foi um dos homens escolhidos para interrogatório depois da incursão. Com as roupas ainda empastadas do sangue de seus entes queridos, ele e outros sete homens foram encapuzados e algemados. “Amarraram nossas mãos e vendaram nossos olhos”, lembrou ele. “Duas pessoas nos agarraram e nos empurraram, um a um, para dentro da aeronave.” Foram levados a outra província afegã, Paktia, onde ficaram em poder dos americanos durante dias. “Meus sentidos não estavam funcionando”, lembrou ele. “Não conseguia chorar, estava paralisado. Fiquei três dias e três noites sem comer. Não nos deram água para lavar o sangue.”
Os americanos submeteram os homens a exames biométricos, fotografaram-lhes as íris e tiraram suas impressões digitais. Grupos de interrogadores americanos e afegãos, contou-me Sabir, perguntaram-lhe sobre as ligações de sua família com o Talibã. Ele lhes disse que sua família era contra o Talibã, tinha lutado contra ele, e alguns de seus membros tinham sido sequestrados por talibãs. “Os interrogadores americanos tinham barbas curtas e não usavam farda. Eram musculosos”, lembrou Sabir, acrescentando que às vezes era sacudido com violência. “Dissemos honestamente que não havia talibãs em nossa casa.” Um dos americanos disse a ele que “havia informações de que um homem-bomba se escondera em sua casa e planejava uma operação.” Sabir retrucou: “Se tivéssemos um homem-bomba em casa, estaríamos tocando música? Quase todos os convidados eram funcionários do governo”. Depois de três dias em cativeiro, disse-me Sabir, ele e os demais foram postos em liberdade pelos americanos. “Disseram que éramos inocentes, que lamentavam muito, e que era errado o que tinham feito em nossa casa.” Contudo, publicamente os Estados Unidos e seus aliados contaram uma história muito diferente sobre o que tinha acontecido em Gardez naquela noite.
Enquanto Mohammed Sabir e os demais estiveram sob custódia americana, o quartel-general da Força Internacional de Assistência para a Segurança (International Security Assistance Force, ISAF) apressou-se a dar uma declaração sobre o incidente. Horas depois da incursão, a ISAF e o Ministério do Interior afegão emitiram um comunicado conjunto à imprensa. Afirmavam que uma “força de segurança” integrada por afegãos e elementos internacionais tinha feito uma “descoberta tenebrosa” na noite anterior. A força estava numa operação de rotina perto da aldeia de Khataba. A Inteligência tinha “confirmado” que a propriedade era local de “atividade de militantes”. Assim que se aproximaram do local, viram-se “envolvidos” num “tiroteio” com “diversos rebeldes”, dizia a declaração. A força matou os rebeldes e estava revistando a propriedade quando fez a descoberta: três mulheres tinham sido “amarradas”, “amordaçadas” e finalmente executadas dentro da propriedade. A força, dizia o comunicado, achou-as “escondidas numa sala adjacente”.59 “A ISAF trabalha permanentemente com nossos parceiros afegãos no combate a criminosos e terroristas60 que não se importam com a vida de civis”, disse à imprensa o general do Exército canadense Eric Tremblay, porta-voz da ISAF, em relação à incursão. Referiu-se aos comandos que invadiram a casa como heróis. Vários homens, mulheres e crianças foram detidos pela força ao tentar sair da propriedade, afirmava a declaração, e oito homens tinham sido presos para averiguações. Durante o incidente, foi solicitado atendimento médico.61 Algumas agências divulgaram a notícia naquele dia e publicaram mais declarações de autoridades americanas, afegãs e da ISAF . Um “militar americano de alta patente” disse à CNN que quatro vítimas tinham sido encontradas na propriedade, dois homens e duas mulheres.
Confirmou os detalhes sinistros da declaração sobre a execução das mulheres, acrescentando que aparentemente os assassinatos tinham motivos culturais extremos. “Apresentavam os sinais de crimes de honra tradicionais”,62 disse o militar, deixando implícito que as quatro pessoas tinham sido mortas por membros da própria família. Ainda deu a entender que adultério ou conivência com forças da OTAN poderia ter sido o motivo. O New York Times publicou uma nota no dia seguinte, basicamente um resumo da versão da OTAN. Rob Nordland, repórter do Times, falou com o chefe de polícia da província de Paktia,63 Aziz Ahmad Wardak, que, segundo Nordland, confirmou muitos detalhes do incidente, mas disse que três mulheres e dois homens tinham sido mortos. Alegou que o grupo tinha sido assassinado por militantes talibãs que atacaram durante uma festa comemorativa de um nascimento. Autoridades americanas mais tarde diriam à imprensa que os corpos das vítimas apresentavam cortes e perfurações,64 levando a crer que tinham sido esfaqueadas. Enquanto as agências internacionais de notícias veiculavam a versão americana dos eventos, repórteres locais começaram a falar com funcionários afegãos e membros da família. A Pajhwok Afghan News Agency falou com o subchefe de polícia da província, general Ghulam Dastagir Rustamyar, que disse que “Forças Especiais dos Estados Unidos” tinham matado as cinco pessoas durante uma operação, evidentemente em consequência de uma informação imprecisa ou falsa.65 “A noite passada, os americanos executaram uma operação numa casa e mataram cinco inocentes, entre eles três mulheres”, disse Shahyesta Jan Ahadi, membro suplente do conselho provincial de Gardez, a um repórter local da Associated Press. “As pessoas estão muito zangadas.” Ahadi negou a afirmação da OTAN de que a incursão fora obra de uma força mista americana e afegã. “O governo [afegão] não sabia nada sobre isso”, disse ele. “Condenamos com veemência esse ato.”66 Dias depois da incursão, investigadores de direitos humanos das Nações Unidas conversaram com “autoridades locais”, segundo as quais Forças Especiais americanas tinham vindo de Bagram a Gardez dias antes da operação. Essas autoridades disseram também que funcionários da segurança afegã tinham sido avisados sobre uma operação iminente, mas sem que lhes dessem informações sobre o lugar ou o momento em que seria executada. As Nações Unidas concluíram que nem as ANSF nem tropas da ISAF estavam envolvidas na incursão. A OTAN tinha prometido uma “investigação conjunta”, que nunca se realizou. Depois do incidente, autoridades afegãs da capital da província foram impedidas de entrar na propriedade.67 “Quando chegamos lá, havia um rapaz estrangeiro guardando os corpos, e não deixou que nos aproximássemos,68 disse Wardak, da polícia de Paktia. Por fim, o Ministério do Interior enviou de Cabul uma delegação para investigar a incursão, liderada pelo principal investigador criminal69 da capital afegã. Ao que parece, esse grupo trabalhou de forma bastante independente em relação à OTAN. Quando Mohammed Sabir voltou para casa, depois de ser mantido preso pelos americanos, já tinha perdido o sepultamento da mulher e dos outros membros da família. Louco de tristeza,
pensou em vingar seus entes queridos. “Perdi a vontade de viver”, disse-me ele. “Queria vestir um colete de homem-bomba e explodir entre americanos. Mas meu irmão e meu pai não deixaram. Eu queria fazer a jihad contra os americanos.”
Estava havendo, sem dúvida, um acobertamento da verdade. A família sabia. As Nações Unidas sabiam. E os investigadores afegãos sabiam. A tropa que invadiu a casa tinha sido enviada pelos Estados Unidos, mas quem eram os americanos que invadiram aquela casa no meio da noite? O caso só começou a ser completamente desvendado um mês depois, quando um repórter britânico, Jerome Starkey, deu início a uma séria investigação dos homicídios de Gardez. Quando Starkey leu o comunicado de imprensa da ISAF, “não vi motivo para supor que não fosse verdade”, disse. Quando estive na casa de Starkey, em Cabul, ele me disse: “Achei que o caso era digno de atenção porque se o teor do comunicado da imprensa fosse autêntico — um crime de honra múltiplo, três mulheres mortas pelos talibãs que depois foram mortos pelas Forças Especiais —, daria uma reportagem vívida e fascinante”.70 Mas quando visitou Gardez e começou a reunir testemunhas da região que pudessem estar com ele, logo se deu conta de que a versão da ISAF era provavelmente falsa. A família tinha indícios significativos que desmentiam a versão divulgada pela ISAF e aceita por muitas empresas de notícias. A família em Gardez mostrou a Starkey e a mim um vídeo da noite da invasão, no qual aparecem os músicos tocando e Daoud com seus parentes dançando para comemorar a cerimônia de dar nome ao filho de Daoud. “Acho que a melhor comparação que podemos fazer é com uma festa de batizado”, lembrou Starkey. “Realiza-se na sexta noite após o nascimento da criança. Ela recebe um nome, geralmente dado por seus avós, e a família comemora convidando todos os amigos, vizinhos e parentes para uma espécie de ceia ou banquete em sua casa, com música e dança.” Starkey compreendeu que a natureza da celebração
não casava com a insinuação de que fossem talibãs. Os talibãs são conhecidos por suas normas muito estritas, e os instrumentos musicais foram proibidos quando eles estavam no poder. E ali estava o vídeo dos caras, de um conjunto de três músicos. Entrevistamos os músicos, que confirmaram a história. As coisas simplesmente não faziam sentido. Era óbvio que eles não eram talibãs.
Starkey esteve em Gardez cerca de um mês depois da invasão e falou com mais de uma dúzia de sobreviventes, com membros do governo municipal, agentes da lei e um líder religioso. Falou também com investigadores de direitos humanos das Nações Unidas que tinham feito
uma investigação por sua conta na região. Todas as pessoas com quem ele conversou afirmaram com insistência que misteriosos atiradores americanos e afegãos tinham matado as cinco pessoas. Além de saber de novos detalhes sobre os assassinatos de 12 de fevereiro, Starkey achou que as forças convencionais da coalizão provavelmente não estavam por trás do ataque, o que fazia crer que “Forças Especiais” dos Estados Unidos estivessem envolvidas. Soldados americanos com base na área negaram participação71 em qualquer incursão em Khataba naquele dia. E representantes afegãos que, segundo o protocolo da OTAN, deveriam ter sido notificados de qualquer operação em sua área de jurisdição disseram que não tinham tido notícia do planejamento de uma incursão. “Ninguém nos informou”, disse o vice-governador de Gardez, Abdul Rahman Mangal. “Essa operação foi um erro.”72 De acordo com as regras da OTAN, a equipe que executou a operação deveria ter deixado informações73 sobre sua unidade com o pessoal local, mas a família disse que não tinha recebido nada. Mais tarde, a família acusou os soldados de tentar ocultar a invasão, ajudados pela desinformação da OTAN. Starkey fez contato com o contra-almirante Greg Smith, vice-chefe da equipe de comunicações do general McChrystal e lhe expôs as discrepâncias. Smith disse que a OTAN era culpada… de escolher mal as palavras. As mulheres, ele concordou, provavelmente estariam amortalhadas para o funeral, e não “amarradas e amordaçadas.” Mas Smith negou que tivesse havido um “acobertamento” e insistiu que as mulheres estavam mortas havia horas. Confirmou que os homens tinham sido mortos por tropas americanas e afegãs. “Eles não eram os alvos dessa incursão específica”, admitiu Smith. Mas estavam armados e mostraram “intenções hostis”, afirmou, justificando a intensificação do uso da força. “Não sei se fizeram alguns disparos”, disse ele. “Se você vê uma pessoa saindo de uma propriedade, e sua força de assalto está ali, esse é o sinal habitual para neutralizar a pessoa. Você não vai esperar ser atingido para então disparar.”74 Apesar da investigação das Nações Unidas e de vários noticiários locais que contestaram a versão da ISAF, o comando na OTAN liderado pelos Estados Unidos não foi obrigado a prestar contas públicas sobre as graves discrepâncias entre o que a família dizia e as afirmações da ISAF. Isto é, até que Starkey publicou uma matéria no Times de Londres intitulada: “OTAN acobertou uma incursão noturna malfeita no Afeganistão que deixou cinco mortos”. Horas depois da publicação da matéria, Starkey começou a receber telefonemas de advertência de seus colegas. “Fui informado por outros jornalistas de Cabul, amigos meus, que a OTAN estava fazendo briefings contra mim”, contou-me Starkey. “A OTAN estava tentando me desacreditar, tentando dizer que a reportagem era inexata, tentando, na verdade, desacreditá-la.” O contra-almirante Smith fez uma declaração que prescindia da linguagem diplomática e indireta típica das notas oficiais. A assessoria de imprensa de McChrystal tinha passado a citar nomes. “A acusação levantada por Jerome Starkey, repórter do Times britânico, segundo a qual a OTAN ‘acobertou’ um incidente ocorrido em Gardez, na província de Paktia, é absolutamente
falsa”,75 dizia a declaração. Prosseguia acusando Starkey de distorcer palavras do almirante Smith e afirmava que o Comando Conjunto da ISAF tinha enviado uma equipe para fazer uma investigação na propriedade doze horas após o incidente. Smith e Duncan Boothby, assessores de imprensa civis de McChrystal na época, também “convidaram agências de notícias rivais,76 bem como outros repórteres, a desmerecer Starkey, dizendo que ele não era um jornalista confiável”, pelo fato de ter trabalhado num tabloide britânico. “Morei no Afeganistão durante quatro anos”, disse Starkey. “E não me lembro de nenhum caso em que isso tenha acontecido. Que eu saiba, foi a única vez que eles mencionaram um jornalista pelo nome e deram destaque a um jornalista de maneira tão específica num desmentido.” A OTAN “anunciou que tinha uma gravação de minha conversa que contradizia meu texto taquigrafado”, postou Starkey no blog Nieman Watchdog na semana seguinte, em relação à suposta citação errada. “Pedi para ouvir a gravação, mas não me atenderam. Pressionei, e disseram que tinha havido um mal-entendido. Por gravação, tinham querido dizer registro escrito, de alguém que tomou notas. As fitas, disseram, não existiam.”77 Starkey insistiu e publicou outra matéria em que falava da cólera que a incursão despertara na comunidade e das respostas da OTAN e das autoridades afegãs. “Não quero dinheiro.78 Quero justiça”, disse Hajji Sharabuddin, o patriarca da família, a Starkey. Contou que, depois que os protestos paralisaram a capital da província, o governo tinha oferecido a eles uma compensação por cada parente morto. “Nossa família inteira já não se importa com a vida. Todos nós vamos cometer ataques suicidas e [toda a província] vai nos apoiar.” “Ontem, funcionários da OTAN continuavam dizendo aos jornalistas em Cabul que as mulheres tinham sido vítimas de um ‘crime de honra’”, escreveu Starkey. “No entanto, não explicam por que os corpos foram mantidos na casa durante toda a noite, contrariamente ao costume islâmico, nem por que a família tinha convidado 25 pessoas para celebrar a atribuição de nome a um recém-nascido naquela mesma noite.”79 “Meu pai era amigo dos americanos e foi morto por eles”, disse a Starkey o filho de Daoud, Abdul Ghafar, mostrando-lhe uma foto do pai com três soldados americanos sorridentes. “Eles mataram meu pai. Quero matá-los. Quero que os assassinos sejam levados à justiça.”80
Em 15 de março de 2010, o New York Times afirmou que o general McChrystal tinha decidido81 tomar sob seu comando a maior parte das Forças de Operações Especiais dos Estados Unidos no Afeganistão. A decisão tinha sido motivada em parte pela preocupação com baixas civis, lembrou o artigo, causadas com frequência por tropas de elite que operavam fora da estrutura de comando da OTAN. A matéria do Times baseou-se em boa medida no relato de Starkey sobre a incursão em Gardez, confirmando que “Forças Especiais da polícia afegã junto de forças americanas de Operações Especiais” estavam por trás da operação. Mais uma vez, o almirante Smith evitou assumir a responsabilidade pela morte das mulheres. “O lamentável foi a morte de
dois homens inocentes”, disse o almirante. “Quanto às mulheres, não creio que algum dia se saiba como elas morreram.”82 No entanto, acrescentou: “Não sei se existe uma perícia criminal que mostrem perfurações de bala ou sangue no corpo das mulheres”. Disse que as mulheres pareciam ter sido esfaqueadas e cortadas com facas, e não atingidas por arma de fogo. O Times conversou com Sayid Mohammed Mal, pai do noivo de Gulalai e vice-reitor da Universidade de Gardez. “Eles foram mortos pelos americanos”, disse ele. “Se o governo não nos der ouvidos, vou levar todos os cinquenta membros de minha família a Gardez, vamos derramar gasolina no corpo e morrer queimados.”83 Semanas depois, no início de abril, Starkey recebeu um telefonema inesperado. “A OTAN me ligou”, contou-me Starkey. “Eles disseram: ‘Jerome, queríamos lhe avisar de que estamos preparando um comunicado à imprensa. Estamos mudando nossa versão dos fatos’.” Uma suposta investigação conjunta tinha “concluído que forças internacionais tinham sido responsáveis pela morte de três mulheres que estavam na mesma propriedade em que dois homens foram mortos pela patrulha afegã-internacional que procurava um rebelde talibã”. O comunicado prosseguia: “Embora os investigadores não tenham conseguido determinar conclusivamente como ou quando as mulheres morreram, por falta de indícios periciais, chegaram à conclusão de que foram mortas acidentalmente pelos disparos efetuados contra os homens”.84 A declaração sustentava que os homens tinham manifestado “intenções hostis”, mas que “mais tarde determinou-se que não se tratava de rebeldes”. “A declaração [original] dizia que as mulheres tinham sido amarradas e amordaçadas, porém essa informação havia sido fornecida por um relatório preliminar feito por membros não afegãos da força conjunta que não conheciam bem os costumes fúnebres islâmicos”, dizia o texto. Quando Starkey recebeu o telefonema, acabava de enviar outro texto para o Times de Londres. Era sua matéria mais explosiva até o momento e se baseava na conversa com um alto funcionário afegão envolvido na investigação do governo e com membros da família. A delegação encerrara seu relatório, e McChrystal também foi informado de suas descobertas. O comunicado à imprensa, seguido da notícia de que McChrystal estava determinando uma segunda revisão do incidente, pretendia esvaziar uma terrível revelação. “Soldados das Forças Especiais americanas extraíram projéteis85 do corpo de suas vítimas na sequência sangrenta da desastrada incursão noturna, depois lavaram os ferimentos com álcool e mentiram a seus superiores sobre o que tinha acontecido”, afirmava Starkey em sua matéria, que saiu no dia seguinte. Investigadores afegãos disseram-lhe que os soldados americanos também tinham retirado os projéteis do local. A investigação concluiu que, dos onze tiros disparados, apenas sete projéteis tinham sido encontrados. Os quatro que faltavam, combinados com as provas fotográficas e o depoimento de testemunhas, levaram os investigadores àquela conclusão sobre o que as Forças de Operações Especiais tinham feito. “Em que cultura do mundo alguém convida […] pessoas para uma festa e mata três mulheres?”, disse a Starkey o
alto funcionário afegão. “Os corpos estavam a oito metros do lugar onde preparavam a comida. Os americanos nos disseram que as mulheres tinham sido mortas catorze horas antes.” Os investigadores do governo afegão confirmaram o que a família dissera a Starkey — e mais tarde a mim — sobre a extração dos projéteis do corpo das mulheres. “Sabíamos que o que estávamos esclarecendo era tão grave que teríamos que ter certeza de estarmos pisando em terreno firme”, disse-me Starkey sobre a extração dos projéteis. “Deixei aquela acusação de fora da minha primeira matéria. Mas ao ouvi-la novamente de uma fonte afegã muito graduada, muito confiável, decidimos publicá-la.”
Naquele mesmo dia, o New York Times publicou algumas conclusões da investigação afegã. “Chegamos à conclusão de que a patrulha da OTAN foi responsável pela morte de dois homens e três mulheres e que havia indícios de ocultação de provas na varanda da propriedade” por parte da equipe de ataque, declarou o chefe da investigação, Merza Mohammed Yarmad. “A cena estava revirada.”86 A OTAN declarou que as acusações dariam ensejo a novas investigações, mas mesmo assim rejeitou-as por completo. “Negamos enfaticamente que tenha havido extração de projéteis dos corpos. Simplesmente não há indícios”,87 disse um militar da OTAN. O oficial nomeado para realizar a segunda investigação foi posto sob o “controle operacional”88 direto de McChrystal enquanto conduzia o inquérito. Os resultados continuaram sigilosos, mas a OTAN continuou insistindo que “não havia indícios de ocultação de provas”.89
À medida que aumentava a indignação no Afeganistão pelas mortes de civis em incursões como a que ocorrera em Gardez, instalou-se um acirrado debate interno na OTAN acerca de como reagir. Em certo momento pensou-se numa viagem do próprio general McChrystal90 à aldeia para pedir desculpas à família. Em vez disso, decidiu-se que quem iria a Gardez seria o comandante da tropa responsável pela incursão e que no processo ele revelaria exatamente qual unidade estava por trás dos cruéis assassinatos e do acobertamento do massacre. Também seria revelada publicamente a face do JSOC. Na manhã de 8 de abril, pouco depois das onze horas, o almirante William McRaven, o discretíssimo comandante do JSOC, estacionava diante dos portões da propriedade dos Sharabuddin. A família tinha sido avisada na noite anterior de que receberia uma visita importante. Acharam que seria McChrystal em pessoa. Mohammed Sabir e outros membros da família disseram-me que tinham discutido a possibilidade de matar McChrystal quando ele chegasse no dia seguinte, mas o imã local aconselhou que mostrassem hospitalidade e ouvissem o que ele tinha a dizer. Diante da reunião iminente, a família decidiu então chamar uma testemunha não afegã: Jerome Starkey. A OTAN tentara dissimular os detalhes e a hora da visita, mas assim que Starkey recebeu a ligação, empreendeu a viagem de meio dia que o levaria de Cabul a Gardez.
Como não podia deixar de ser, estávamos muito ansiosos para garantir nossa presença no momento em que se desse o encontro, o que foi dificílimo, já que ninguém queria nos informar. E acho que, do ponto de vista das relações públicas, o pessoal que cuidava internamente da imagem da OTAN provavelmente não queria chamar a atenção [...]. Eles reconheciam que tinham cometido um erro. Mais uma vez, esperavam que a coisa ficasse por aí, mas não foi o que aconteceu.
Starkey chegou à casa da família de manhã cedo e ficou conversando e tomando chá com eles. “Por volta das onze, chegou um imenso comboio de grandes veículos blindados americanos, SUVs blindados e um número incontável, e digo incontável no sentido literal do termo, de oficiais e soldados afegãos”, lembrou Starkey. “Entre eles havia um homem que usava um uniforme que achei parecido com o dos fuzileiros navais, mas que tinha na lapela o dístico US Navy [Marinha dos Estados Unidos].” No crachá de identificação lia-se apenas “McRaven”. “Naquele tempo, eu não sabia quem era ele”, disse Starkey, um dos repórteres ocidentais mais experientes dos que estavam no Afeganistão.
E aí se desenrolou uma das cenas mais extraordinárias que presenciei no Afeganistão. Da caçamba de uma caminhonete do Exército afegão, eles tiraram uma ovelha. Três soldados afegãos ajoelharam-se diante da ovelha na frente da casa, exatamente no lugar de onde aqueles soldados tinham iniciado a invasão. Afiaram uma faca, e um mulá do Exército afegão começou a rezar e a oferecer a ovelha em sacrifício.
Hajji Sharabuddin, o ancião da família, interveio. “Não façam isso”, disse ele aos soldados. Starkey disse que as tropas afegãs e McRaven estavam tentando pôr a família numa situação difícil. “Quando uma pessoa chega a seu portão91 e pede perdão, segundo a lei afegã, é difícil negar”, tinha dito Sharabuddin a Starkey, e este acrescentou que a prática era “um antigo ritual afegão92 conhecido como nanawate, no qual se sacrifica uma ovelha diante da porta de alguém para pedir perdão.” A família, segundo Starkey, “ficou sem alternativa, sem nenhuma saída honrosa além de deixar que aqueles homens entrassem em [sua] casa”. Os soldados afegãos tentaram impedir o fotógrafo de Starkey, Jeremy Kelly, de fotografar e fizeram o possível para expulsar Starkey da sala depois que McRaven entrou. Mas a família insistiu que ele ficasse. Não fosse assim, nenhuma prova restaria de que aquele acontecimento extraordinário tinha ocorrido, nenhuma prova de quem eram os assassinos. No interior da casa, o comandante do JSOC ficou frente a frente com os sobreviventes da incursão, inclusive pais e maridos das mulheres que esses homens tinham matado. “O almirante McRaven se pôs de pé e fez um discurso extraordinário. Mencionou semelhanças entre ele e Hajji Sharabuddin, falou de
ambos como homens espirituais, como homens de Deus. Fez comparações e achou semelhanças entre o cristianismo e o islã”, lembrou Starkey. “O senhor e eu somos muito diferentes”,93 disse McRaven a Sharabuddin.
O senhor é um homem de família com muitos filhos e muitos amigos. Eu sou um soldado. Passei a maior parte de minha carreira no exterior, longe de minha família, mas também tenho filhos e meu coração está enlutado pelo senhor. Porém temos uma coisa em comum. Temos o mesmo deus. É um deus que demonstra muito amor e compaixão. Estou rezando pelo senhor, para que em seu luto Deus lhe demonstre amor e compaixão e aplaque sua dor. Estou rezando também para que Ele tenha piedade de mim e de meus soldados por essa terrível tragédia.
Starkey declarou que, a seguir, McRaven disse à família: “Meus soldados foram responsáveis pela morte de membros de sua família”, e pediu desculpas. Os generais afegãos entregaram à família um monte de dinheiro — quase 30 mil dólares,94 segundo parentes. As principais agências internacionais de notícias disseram que Hajji Sharabuddin aceitou as desculpas de McRaven.95 Meses depois, quando estive com Sharabuddin em sua casa, seu ódio só parecia ter aumentado. “Não aceito as desculpas deles. Não trocaria meus filhos nem por todo o reino dos Estados Unidos”, disse-me ele, segurando um retrato dos filhos.
No começo, pensávamos que os americanos eram amigos dos afegãos, mas agora achamos que os americanos é que são os terroristas. Os americanos são nossos inimigos. Eles trazem terror e destruição. Os americanos não só destruíram minha casa, destruíram minha família. Os americanos soltaram as Forças Especiais contra nós. Essas Forças Especiais, com suas barbas longas, fizeram coisas cruéis, criminosas.
“Dizemos que eles são o Talibã americano”, acrescentou Mohammed Tahir, pai de Gulalai, uma das mulheres assassinadas. Enquanto eu falava com outros membros da família, Mohammed Sabir, que perdera os irmãos e a mulher no massacre, aproximou-se de mim junto com a filha de seis anos, Tamana. Disse-me que devíamos ir embora logo porque os talibãs controlavam as estradas de noite. Diante de nós, ele perguntou à filha: “Tamana, quem foi que os americanos mataram?”. Ela abraçou as pernas do pai e recitou a lista de mortos. Depois seu olhar perdeu-se ao longe, inexpressivo. “Ela lembra cada detalhe daquela noite”, disse-me Sabir. “A chegada dos americanos, os disparos, a destruição, tudo.” Enquanto embarcávamos para partir, ele me disse: “Tenho um recado, para o povo dos Estados Unidos, que vai nos ajudar:
livrem-se dessas Forças Especiais e as ponham na cadeia, façam com que sejam condenados porque estão matando gente inocente”.
Durante mais de um ano, tentei ter acesso a algum documento das Forças Armadas americanas sobre o incidente de Gardez. Solicitei boletins pós-operacionais e qualquer informação existente sobre medidas disciplinares aplicadas aos soldados que mataram as três mulheres e os dois homens e extraíram projéteis do corpo das mulheres. Preenchi formulários, dentro da Lei de Liberdade de Informação, que circularam por diversas instâncias das Forças Armadas até irem parar numa “agência” não identificada à espera de apreciação. Até o momento em que escrevo, começo de 2013, não recebi documento algum. Starkey me contou que suas tentativas de obter documentos tiveram a mesma sorte. Não muito tempo depois que voltei do Afeganistão, no fim de 2010, estive com o general Hugh Shelton, ex-presidente do Estado-Maior Conjunto, e perguntei-lhe sobre o incidente de Gardez. Ele disse que não estava a par de todos os detalhes. E embora dissesse que deveria ser feita uma revisão interna do caso, por ordem do comandante, a fim de esclarecer o que tinha acontecido e determinar se alguns soldados deveriam ser submetidos à corte marcial, disse acreditar que o caso não voltaria a ser investigado. “Se aquele oficial da polícia [Daoud] e aquelas duas mulheres grávidas foram mortos por ação do JSOC, com base em todas as informações que eles tinham, segundo as quais ali estava sendo preparada uma operação terrorista, e se eles voaram para lá, tentaram entrar no local e encontraram algum tipo de resistência — quero dizer, houve tiros —, sinto muito que aquela gente tenha sido morta”, disseme ele.
Mas, embora no lugar errado e na hora errada, nossos rapazes estavam fazendo o que achavam que deviam fazer, protegendo a si mesmos e a seus camaradas no processo. Dou-me por satisfeito. Não acho que deva ser investigado; penso que deve ser posto na conta desses malditos atos de guerra.96
O fato de Daoud ser um comandante de polícia treinado pelos Estados Unidos pouco significava para Shelton. “O fato de ser um chefe de polícia não significa que não pudesse ser também um terrorista. Ele podia estar trabalhando nos dois lados”, disse ele.
As duas mulheres grávidas? O fato de que estivessem grávidas é muitíssimo lamentável. Mas também é lamentável o fato de serem mulheres. Por outro lado, já levei tiro de mulher. Portanto, isso… não quer dizer nada. Isso não é desculpa. Elas morrem igual a homens que atiram em nós.
À medida que aumentava o ritmo das incursões noturnas, sob o comando de McChrystal, as Forças de Operações Especiais continuaram tendo liberdade de operar sem ter de prestar contas de seus atos, fato que, aparentemente, não passou despercebido a McChrystal. “É bom que você esteja lá esta noite e que abata quatro ou cinco alvos”, disse McChrystal a um SEAL da Marinha no Afeganistão. A seguir, acrescentou: “Mas de manhã vou repreender você por ter feito isso”.97 No entanto, a cada nova incursão mais protestos se espalhavam pelo país. As condições que tinham levado Matt Hoh a renunciar a seu cargo no Departamento de Estado em protesto, no fim de 2009, mantinham-se em 2010. Se algo tinha mudado, foi para pior. As mortes de civis decorrentes de operações da OTAN subiram para noventa nos primeiros meses de 2010, um aumento de 75% em relação ao ano anterior.98 E não somente em incursões noturnas. Mais de trinta afegãos foram mortos a tiro em postos de controle desde que McChrystal assumiu o comando até a primavera de 2010. De acordo com McChrystal, em março de 2010, numa teleconferência com soldados americanos:
Nos mais de nove meses99 em que estou aqui, não houve um só caso em que tenhamos nos envolvido num incidente causado por escalada de força e machucado alguém que estivesse próximo a um veículo com bombas ou que estivesse preparado para um atentado suicida e, em muitos casos, eles levavam famílias [...]. Atiramos num número impressionante de pessoas, matamos uma porção delas e, que eu saiba, nenhuma representava uma ameaça real.
Embora McChrystal ostensivamente impusesse maiores restrições a incursões noturnas e suspendesse ataques aéreos quase que por completo, a realidade dos fatos ainda era a mesma: pessoas inocentes estavam morrendo, e os afegãos ficavam cada vez mais indignados. Em maio de 2010, os Estados Unidos executavam nada menos de mil incursões noturnas100 por mês. As Forças de Operações Especiais “foram autorizadas a atirar contra qualquer homem armado que surgisse”, informou Gareth Porter, “e com isso as incursões resultavam na morte de muitos civis afegãos, todos automaticamente classificados como rebeldes101 pelas Forças de Operações Especiais”. Quando conheci o mulá Abdul Salam Zaeef, ex-porta-voz dos talibãs, no fim de 2010, ele me disse claramente que as incursões americanas estavam ajudando o Talibã, exatamente como dissera Hoh. “Eles estão incentivando as pessoas a se tornarem extremistas”, disse-me ele em seu apartamento em Cabul, onde se encontrava em prisão domiciliar de fato, vigiado dia e noite por oficiais da polícia afegã diante de seu edifício. Os líderes políticos e militares dos Estados Unidos, disse ele,
pensam: “Quando assustamos as pessoas, elas deveriam ficar quietas”. Mas este é um país diferente. Quando você mata uma pessoa, quatro ou cinco outras se levantam contra você. Se você mata cinco pessoas, pelo menos vinte se levantam contra você. Quando você desrespeita as pessoas ou a honra das pessoas numa aldeia, a aldeia inteira se volta contra você. Isso está criando ódio contra os americanos.102
A morte de civis pelos Estados Unidos, combinada com a impressão generalizada de que o governo afegão só existia para facilitar a corrupção de poderosos chefes de milícia, traficantes de drogas e criminosos de guerra, criou uma situação em que o Talibã e a rede Haqqani ganharam apoio de comunidades da área pashtun que, de outra forma, não os apoiariam. Zaeef me disse que desde 2005,103 quando ele saiu da prisão de Guantánamo, “o Talibã tornou-se mais forte”. “Os talibãs estão caindo do céu?”, perguntou Zaeef. “Não, é gente nova.” Quando perguntei a Hoh o que achava a respeito dos comentários de Zaeef, ele respondeu que eram exatos. “Acho que estamos provocando mais hostilidade. Estamos desperdiçando muitos recursos na perseguição de caras de nível médio que não ameaçam os Estados Unidos nem têm capacidade de ameaçar os Estados Unidos”, disse-me ele. “Se dizemos que a Al-Qaeda recruta com base numa ideologia que defende o mundo muçulmano dos ataques do Ocidente, isso só faz alimentar essa ideologia.” Em junho de 2010, o Afeganistão se tornara a mais longa guerra da história americana.104 Naquele verão, o número de mortos americanos bateu a marca de mil.105 De junho de 2009 a maio de 2010, o número de ataques com artefatos explosivos improvisados tinha subido de 250 por mês para mais de novecentos.106 À medida que a situação no Afeganistão se deteriorava e os talibãs e outros grupos insurgentes ganhavam terreno, um escândalo que atingiu as Forças Armadas americanas e a comunidade de Operações Especiais acabou levando à renúncia e à aposentadoria do general McChrystal, um dos arquitetos da máquina de matar americana pósOnze de Setembro. Entretanto, seu afastamento nada teve a ver com suas ações com o JSOC no Iraque ou com sua participação no acobertamento do fogo amigo que causou a morte, em 2004, de Pat Tillman, jogador de futebol americano transformado em Ranger do Exército no Afeganistão, nem com seu papel na transformação do JSOC num esquadrão da morte em nível global. A queda de McChrystal foi provocada por uma matéria de Michael Hastings na revista Rolling Stone, que mostrava McChrystal e seu círculo mais próximo fazendo observações depreciativas sobre o presidente Obama, o vice Biden e outras autoridades civis americanas. Antes mesmo que a revista chegasse às bancas, trechos da matéria circularam pelos gabinetes do poder e pela mídia em Washington. McChrystal estava liquidado. Sua carreira de comandante das unidades de elite das Forças Armadas dos Estados Unidos fora encerrada por um artigo publicado numa revista que mostrava na capa Lady Gaga quase nua usando um sutiã do qual saíam dois fuzis.
Em 23 de junho, o presidente Obama, tendo a seu lado o vice Joe Biden, o almirante Mullen, o secretário de Defesa Gates e o general Petraeus, anunciou que, “com muito pesar”, tinha aceitado a renúncia de McChrystal. “É a coisa acertada para nossa missão no Afeganistão, para nossas Forças Armadas e para nosso país”, disse Obama diante da Casa Branca. “Acredito que seja a decisão certa para a segurança nacional”, acrescentou. “A conduta retratada no artigo recentemente publicado não se coaduna com o que se espera de um comandante.” Obama agradeceu a McChrystal “por sua notável carreira com a farda”.107 “Esta é uma mudança de pessoas”, declarou Obama. “Mas não uma mudança de política.” Essa questão ficou clara quando o presidente anunciou que o general Petraeus, um dos principais arquitetos da expansão do campo de batalha global dos Estados Unidos, assumiria o posto de McChrystal. Assim que Petraeus assumiu o comando da guerra, o ritmo das incursões noturnas aumentou108 e foram retomados os ataques aéreos.109 Com o aumento do número de civis mortos,110 a insurreição afegã se intensificou. O programa de assassinato “dirigido” dos Estados Unidos estava alimentando a ameaça que pretendia combater.
36. O ano do drone
IÊMEN E ESTADOS UNIDOS, 2010 — Enquanto milhares de soldados americanos eram enviados e reenviados ao Afeganistão, a campanha secreta em campos de batalha não declarados se ampliava. Os Estados Unidos estavam atacando o Paquistão com drones semanalmente, enquanto tropas do JSOC atuavam na Somália e no Iêmen, este último submetido também a ataques aéreos. Ao mesmo tempo, as sucursais da Al-Qaeda nesses países ganhavam força. Quando voltei a me encontrar com o Caçador, que tinha trabalhado com o JSOC durante o governo Bush e continuava trabalhando na área de contraterrorismo no governo Obama, perguntei-lhe que mudanças tinham ocorrido de um para outro governo. Ele respondeu de batepronto:
Está tudo na mesma.1 Se algo mudou foi a intensificação das operações do JSOC neste governo, uma intensidade maior nas coisas que pedem a eles, nos lugares que pedem a eles e na forma de fazer o que pedem a eles [...]. Agora há coisas que transpiram, no mundo todo, o que seria impensável no governo Bush, não apenas por causa da oposição ferrenha dentro do gabinete, ou dentro do Pentágono, mas porque não teriam o apoio final do presidente. Neste governo, o presidente fez uma avaliação política e militar — é prerrogativa sua — e concluiu que o melhor é deixar o Comando Conjunto de Operações Especiais agir à solta, como um cavalo selvagem, na busca dos objetivos que [Obama] estabeleceu.
O governo Obama, disse-me o Caçador, empenhou-se em pôr fim às divergências entre a CIA e o JSOC e reunir todas as forças numa campanha global unificada contra o terrorismo, embora essa fosse uma tarefa hercúlea. O que ficou claro no primeiro ano do governo Obama foi que o JSOC tinha ganhado a guerra de ideias de uma década dentro da comunidade americana de contraterrorismo. Suas ações diretas com foco paramilitar se tornariam a estratégia central das diversas pequenas guerras do novo governo, e não somente no Afeganistão. De acordo com o Caçador:
As operações foram institucionalizadas a ponto de se tornarem parte integrante de qualquer
campanha, em qualquer teatro de operações, e em certo momento cruzamos um limiar em que o Comando Conjunto de Operações Especiais se confunde com a campanha [...]. Em lugares como o Iêmen, é o Comando Conjunto de Operações Especiais e ponto. Eles dão as cartas. É a casa deles, e eles fazem o que precisam fazer.
Enquanto a identificação da política contraterrorista com o JSOC se generalizava, a CIA ia aumentando com firmeza sua competência paramilitar e expandindo seus ataques com drones e suas listas de alvos. De certa forma, aquilo parecia um cabo de guerra entre o JSOC e a CIA, que disputavam quem riscaria mais depressa os nomes constantes de suas listas de mortes. No começo de 2010, havia pelo menos três entidades2 dentro do governo americano que mantinham listas da morte: o NSC, com o qual Obama tratava diretamente por meio de reuniões semanais, a CIA e as Forças Armadas. A CIA tinha seu próprio “processo paralelo, mais enclausurado”3 de seleção de alvos e execução de ataques, na maior parte dos casos no Paquistão. O Conselho Nacional de Segurança e o Departamento de Estado tinham pouca ingerência4 sobre esse processo. Obama dava a última palavra em “ataques mais complexos e arriscados”5 no Paquistão. Pelo menos duas vezes por mês,6 o principal advogado da CIA recebia um documento do Centro de Contraterrorismo (quase sempre de duas a cinco páginas) com recomendações e informações sobre alvos. O advogado convocava pequenas reuniões com advogados do CTC e com o chefe do Serviço Nacional Clandestino, anteriormente chamado Diretório de Operações, que coordena as operações secretas da CIA no mundo. Advogados da Casa Branca e do Conselho Nacional de Segurança examinavam a lista da CIA, que devia ser aprovada também pela Gangue dos Oito na Colina do Capitólio. A lista das Forças Armadas, segundo os repórteres Dana Priest e William Arkin, “era na verdade mais de uma,7 já que os soldados de operações especiais clandestinas” do JSOC tinham sua própria lista interna. Essas listas com frequência se sobrepunham, mas como observaram Priest e Arkin, “mesmo essas listas da morte altamente confidenciais não eram feitas de maneira coordenada pelos três principais órgãos envolvidos em sua criação”.
Obama e sua equipe de contraterrorismo passaram o primeiro ano de sua presidência plenamente comprometidos com a formalização do processo de assassinato de suspeitos de terrorismo e outros “militantes”. À sua maneira, eles tinham abraçado a posição neoconservadora do mundo como um campo de batalha, e as listas da morte que tinham montado abrangiam o mundo. Ao contrário do presidente Bush, que com frequência delegava as decisões sobre assassinatos a seus comandantes e a funcionários da CIA, Obama insistiu em autorizar pessoalmente8 a maior parte dos ataques. Nas noites de terça-feira, Obama presidia reuniões apelidadas de Terças do Terror por altos funcionários do governo, durante as quais os
alvos propostos eram “indicados” para integrar a lista da morte. Muitos deles eram conhecidos quadros operacionais do Paquistão, do Iêmen ou da Somália, mas às vezes eram apenas vagamente ligados a outros suspeitos ou, simplesmente, residentes de certas regiões. “Esse processo secreto de ‘indicações’9 foi inventado pelo governo Obama, uma macabra sociedade de debates que examina slides de PowerPoint indicando nomes, apelidos e histórias de vida de supostos membros do ramo iemenita da Al-Qaeda ou seus aliados da milícia Shabab da Somália”, relatou o New York Times. “As indicações vão para a Casa Branca, onde por sua própria insistência e orientado pelo sr. Brennan, o sr. Obama deve aprovar cada um dos nomes. Ele autoriza cada ataque no Iêmen e na Somália e também os mais complexos e arriscados ataques no Paquistão”, observou o Times. Os encontros das Terças do Terror se realizavam depois que um grupo maior — às vezes mais de cem pessoas, entre advogados e funcionários da segurança nacional — discutia os nomes que seriam acrescentados ou subtraídos da lista. O JSOC, segundo fontes bem informadas sobre as reuniões, dominava o processo e, nas palavras de uma fonte do JSOC, “preparava”10 o pessoal do Departamento de Estado, da CIA e do governo para aceitar a campanha de assassinatos dirigidos que levaria a “infraestrutura” das redes a descer muito mais na “cadeia alimentar” em diversos países. Embora Obama tivesse baseado sua campanha, em parte, na promessa de usar unilateralmente forças dos Estados Unidos na perseguição a terroristas conhecidos, manteve seu escopo limitado a Osama bin Laden e seus principais seguidores. Uma vez na presidência, ele tornou muito mais abrangente o sistema que estava construindo. Em essência, a lista da morte tornou-se uma espécie de justiça “pré-criminal” em que as pessoas eram consideradas alvos legítimos desde que se enquadrassem em certos padrões biográficos próprios de suspeitos de terrorismo. Utilizando ataques por indícios, já não era preciso que os alvos estivessem envolvidos em complôs ou atos contra os Estados Unidos. Seu potencial para cometer atos futuros podia ser uma justificativa para que fossem mortos. Às vezes, o simples fato de pertencer ao grupo “masculino em idade militar” em dada região do Paquistão servia como indício de atividade terrorista suficiente para desencadear um ataque de drone. No Iêmen, Obama autorizou o JSOC a atacar alvos mesmo quando os planejadores da missão desconhecessem a identidade daqueles que estavam bombardeando. Esses atos levavam o rótulo de Ataques de Desmonte de Atos Terroristas,11 ou TADS [Terrorist Attack Disruption Concepts]. Enquanto Obama presidia as reuniões das Terças do Terror, a política de assassinato de seu governo era coordenada por dois arquitetos com vasta experiência em morte dirigida: John Brennan e o almirante William McRaven. Brennan trabalhara por longo tempo no programa de mortes do governo Bush; McRaven tinha ajudado a desenvolver a versão pós-Onze de Setembro do programa quando trabalhou no NSC de Bush. Com Obama, os dois homens estavam agora encarregados de formalizar e racionalizar os programas de morte em que tinham trabalhado nas sombras durante a maior parte de sua vida profissional. No Paquistão, a CIA assumiria a liderança em relação a ataques com drones, e Obama
concedeu à Agência ampla autoridade para efetuar os ataques e equipou-a com mais drones. No fim de 2009, Leon Panetta declarou que a CIA estava “executando as mais agressivas12 operações da história de nossa Agência”. A maior parte do resto do mundo caberia ao JSOC, que no governo Obama foi agraciado com uma parte muito maior do mundo para atacar. Embora alguns conflitos de bastidores surgidos entre o JSOC e a CIA no governo Bush tenham persistido, tanto McRaven quanto Brennan viram uma oportunidade de promover uma frente de contraterrorismo mais unificada do que fora possível nos oito anos anteriores. As credenciais do presidente Obama como democrata liberal e advogado especializado em direito constitucional, que prometera pôr fim aos excessos da máquina de guerra de Bush, seriam de enorme valor para vender a causa do grupo. Em entrevistas ao New York Times e outros importantes veículos, altos funcionários da Casa Branca insistiam no tema da “guerra justa”, teoria abraçada por Obama em seu discurso de aceitação do prêmio Nobel, observando que Obama era admirador de santo Agostinho e de santo Tomás de Aquino. “Se John Brennan for a última pessoa13 na sala com o presidente, fico tranquilo, porque Brennan é uma pessoa de uma retidão moral autêntica”, disse o advogado do Departamento de Estado Harold Koh, que fora um dos grandes críticos das políticas de contraterrorismo do governo Bush. Agora mudava de tom. “É difícil, como seria para um padre de valores morais extremamente fortes, de repente ver-se encarregado de comandar uma guerra.” Na frente do contraterrorismo, o primeiro ano de Obama na presidência foi marcado pela adoção agressiva do assassinato como peça fundamental da política de segurança nacional dos Estados Unidos. Em parte, os ataques preventivos foram motivados por medo de outro ataque aos Estados Unidos. Politicamente, os conselheiros de Obama sabiam que um ataque terrorista bem-sucedido poderia prejudicar sua presidência, e disseram isso claramente aos repórteres. Mas o uso intensivo dos quadros e dos drones do JSOC também serviu para sustentar a versão de que Obama estava travando uma guerra mais “competente” do que seu antecessor. Obama podia dizer que estava enfrentando os terroristas e, ao mesmo tempo, reduzindo a ocupação do Iraque, à qual se opusera. Embora Obama tenha recebido elogios de muitos republicanos por suas agressivas políticas contraterroristas, outros achavam que elas serviam para driblar a polêmica questão de como deter suspeitos de terrorismo dentro da lei. “A política deles é eliminar14 Alvos de Grande Valor em vez de capturá-los”, declarou o senador Saxby Chambliss, o mais proeminente republicano da Comissão de Inteligência do Senado. “Eles não vão proclamar isso, mas é o que estão fazendo.” Pouquíssimos democratas ergueram a voz contra a emergente campanha global de assassinatos de Obama. “É o mais vantajoso15 que temos a fazer do ponto de vista político — baixo custo, sem baixas americanas, dá a impressão de tenacidade”, disse o almirante Dennis Blair, ex-diretor nacional de Inteligência de Obama, explicando como o governo via sua política. “Funciona bem internamente, só é impopular em outros países. Qualquer prejuízo que possa causar ao interesse nacional só vai surgir a longo prazo.”
O governo utilizou intensamente o Instituto de Segredo de Estado e a alegação de estar protegendo a segurança nacional para esconder do público os detalhes de seu programa de mortes. Quando lhe convinha, o governo permitia o vazamento de detalhes de operações para jornalistas. Assim agindo, deu continuidade a muitas das práticas que os liberais democratas tinham censurado quando Bush e sua equipe estavam no comando. Jack Goldsmith, que tinha sido advogado do governo Bush, afirmou que “talvez a surpresa mais notável16 de sua presidência” tenha sido o fato de “Obama ter dado continuidade a quase todas as políticas de contraterrorismo de seus antecessores”. Quando Obama presidiu uma análise da proposta de assassinato de Anwar Awlaki, lembrou um de seus principais assessores, chegou a declarar: “Este é fácil”.17 Fácil ou não, o governo Obama recusou-se a divulgar suas conclusões18 sobre como uma operação daquelas poderia ser legal. “Este programa se baseia na legitimidade pessoal19 do presidente, e isso não é sustentável”, declarou ao New York Times o ex-diretor da CIA Michael Hayden.
Levei a vida como uma pessoa que age com base em memorandos secretos da Assessoria Jurídica do Departamento da Justiça (Office of Legal Counsel, OLC), e não foi uma vida boa. Uma democracia não faz guerra baseada em memorandos sobre legalidade trancados num cofre do Departamento de Justiça.
Obama e sua equipe criaram um sistema “em que as pessoas estão sendo mortas20 e não se sabe em razão de que provas, e não há meios de reparar a situação”, disse-me o ex-inspetor da CIA Phil Giraldi.
Não quer dizer que não haja terroristas lá fora, e de quando em quando um deles precisa ser morto por uma ou outra razão, mas quero saber qual é a razão. Não quero que alguém da Casa Branca venha me dizer “você tem de confiar em mim”. Essas atitudes já foram além da conta.
Em meados de 2010, o governo Obama tinha aumentado de sessenta para 7521 o número de países em que atuavam suas Forças de Operações Especiais. O Socom tinha cerca de 4 mil pessoas22 em outros países do mundo, além do Iraque e do Afeganistão. “As funções das Operações Especiais23 solicitadas pela Casa Branca vão além de ataques unilaterais. Incluem treinamento de forças contraterroristas locais e operações conjuntas com elas”, publicou o Washington Post na época. “Existem planos para ataques preventivos ou retaliatórios em muitos países, com o propósito de que sejam executados quando for identificado um complô ou depois de um ataque ligado a um grupo específico.” John Brennan expôs a nova visão de contraterrorismo do governo Obama: Nós “não vamos
simplesmente responder24 depois do fato consumado” aos ataques terroristas. Vamos “levar o combate à Al-Qaeda e a seus aliados extremistas onde quer que conspirem e treinem. No Afeganistão, Paquistão, Iêmen, Somália e por aí vai”. Fontes de operações especiais bem informadas disseram-me que entre os países a que foram enviados grupos do JSOC no governo Obama estavam Irã, Geórgia, Ucrânia, Bolívia, Paraguai, Equador, Peru, Iêmen, Paquistão (inclusive o Baluchistão) e Filipinas. Às vezes, esses grupos estiveram na Turquia, Bélgica, França e Espanha. O JSOC também apoiou as operações da Agência de Repressão às Drogas dos Estados Unidos na Colômbia e no México. Mas as duas grandes prioridades fora do Afeganistão e do Paquistão eram o Iêmen e a Somália. “Nesses dois lugares, há ações unilaterais em andamento”,25 revelou-me em 2010 uma fonte de Operações Especiais. Um oficial das Forças Armadas disse ao Washington Post que o governo Obama tinha dado sinal verde para coisas “que o governo anterior não autorizava”.26 Os comandantes de Operações Especiais, disse o jornal, tinham mais comunicação direta com a Casa Branca do que na era Bush. “Temos muito mais acesso”, disse um oficial das Forças Armadas ao jornal. “Eles falam publicamente muito menos, mas agem mais. Querem tornar-se agressivos muito mais rapidamente.” Com Obama, contou-me o Caçador, o JSOC tinha condições de ser mais “firme, forte e rápido, com pleno apoio da Casa Branca”. Enquanto o governo Obama intensificava seus ataques com drones e a campanha de assassinatos dirigidos, as sucursais da Al-Qaeda tornavam-se mais fortes, incentivadas em certa medida pela escalada americana. Embora o governo Obama apregoasse que a Al-Qaeda estava na lona, seu programa global de assassinatos vinha se tornando um instrumento de recrutamento para as próprias forças que os Estados Unidos pretendiam destruir.
37. Anwar Awlaki é empurrado para o inferno
IÊMEN, 2010 — No começo de fevereiro de 2010, um líder da AQPA, Said Ali al-Shihri, que os iemenitas haviam anunciado ter matado diversas vezes, divulgou uma fita de áudio. “Aconselhamos vocês,1 nosso povo da Península, a preparar e a portar suas armas, a defender sua religião e a si mesmos, e a unir-se a seus irmãos mujahidin”, declarava, acrescentando que os “aviões de espionagem” — presumivelmente drones — estavam matando mulheres e crianças. Em 14 de março, os Estados Unidos atacaram mais uma vez.2 Abyan, no sul do Iêmen, foi atingida por ataques aéreos que mataram dois supostos quadros operacionais da AQPA, inclusive seu chefe para o sul do país, Jamil al-Anbari. Como tinha feito depois do bombardeio de Majalah, o Iêmen assumiu a autoria do ataque e Washington permaneceu em silêncio. Outro líder da AQPA, Qasim al-Rimi, confirmou as mortes numa fita de áudio divulgada logo depois dos ataques. “Um ataque dos Estados Unidos atingiu nosso irmão”,3 declarava ele. “O ataque foi executado enquanto nosso irmão fazia uma ligação telefônica pela internet.” Quanto à reivindicação da autoria do ataque pelo Iêmen, Rimi disse: “Esse absurdo é equivalente ao de suas afirmações” por ocasião dos ataques de dezembro de 2009. “Que Deus castigue a mentira e os mentirosos.” Poucos meses depois, a AQPA vingaria seus mortos lançando um ousado ataque contra uma dependência de segurança do governo em Áden, matando onze pessoas. A reivindicação de responsabilidade levava uma assinatura: “Brigada do mártir Jamil al-Anbari”.4 Uma semana depois do ataque de 14 de maio, um dos principais elementos do comando das operações secretas no Iêmen, Michael Vickers, em companhia de James Clapper, subsecretário de Defesa para Inteligência, conversou com o presidente Saleh e outras autoridades iemenitas. A embaixada americana divulgou uma breve declaração sobre a reunião, dizendo que estavam lá para “discutir a cooperação contraterrorista em andamento”5 entre os dois países e para “manifestar o apreço dos Estados Unidos pelos esforços incessantes do Iêmen para combater” a AQPA. Um mês depois, Vickers resumiu à Comissão de Serviços Armados do Senado, a portas fechadas,6 a ação secreta dos Estados Unidos no Iêmen e na Somália. Um e-mail7 que circulou no gabinete de Vickers na época, ao qual tive acesso em confiança, admitia que “uma Forçatarefa em operação no Iêmen ajudara forças iemenitas a matar suspeitos de terrorismo, mas também tinha executado operações unilaterais”, acrescentando: “A IC, inclusive a DIA e a Agência Central de Inteligência, verifica as listas de alvos e decide quem deve ser capturado
para propósitos de coleta de informações ou quem deve ser morto”. Enquanto as forças do JSOC continuavam atuando no Iêmen, às vezes treinando tropas iemenitas ou executando ações fulminantes, os ataques aéreos permaneceram. No fim de maio, o general James “Hoss” Cartwright, vice-comandante do Estado-Maior Conjunto, informou o presidente Obama sobre um Alvo de Grande Valor que o JSOC tinha localizado por radar. O presidente deu sinal verde para o ataque.8 Em 24 de maio, um míssil americano atingiu um comboio de veículos9 no deserto de Marib que, segundo “informações acionáveis”, estava se dirigindo a uma reunião de quadros operacionais da Al-Qaeda. As informações estavam corretas em parte. Os homens que se encontravam naqueles veículos não eram membros da Al-Qaeda, mas importantes mediadores locais iemenitas que participavam da iniciativa do governo de desmilitarizar membros da AQPA. Entre os mortos estava Jabir al-Shabwani, vice-governador da província de Marib. Shabwani estava numa excelente posição para negociar, dado que seu primo Ayad10 era o líder local da AQPA, que as forças americanas e iemenitas tinham tentado eliminar com ataques em janeiro. Um tio de Shabwani e dois de seus acompanhantes também foram mortos no ataque. Um funcionário local disse que o “vice-governador se encontrava em missão de mediação11 que visava persuadir elementos da Al-Qaeda a se entregar às autoridades”. Como no caso dos outros ataques americanos, as autoridades iemenitas assumiram publicamente a responsabilidade, e o Supremo Conselho de Segurança do Iêmen pediu desculpas12 pelo que chamou de incursão malograda do governo. Contudo, esse ataque custou caro, por ter matado um de seus próprios membros. Poucas horas depois do ataque, a tribo de Shabwani atacou o principal oleoduto13 que liga Marib ao porto de Ras Isa, no mar Vermelho. Os homens da tribo tentaram também ocupar o palácio presidencial na província, mas foram detidos por tropas e tanques do Exército iemenita. Legisladores iemenitas exigiram que o governo de Saleh explicasse como tinha acontecido o ataque e quem estava realmente por trás da guerra aérea em expansão. Meses depois do ataque, alguns funcionários americanos começaram a desconfiar que o regime de Saleh tinha passado informações falsas aos Estados Unidos com a intenção de eliminar Shabwani, depois que explodiu uma contenda entre Jabir al Shabwani e “nomes-chave” da família do presidente Saleh. “Achamos que nos deram uma volta”,14 disse uma fonte americana com acesso a discussões de “alto nível” do governo Obama sobre o Iêmen. A Casa Branca, as Forças Armadas americanas e o embaixador dos Estados Unidos no Iêmen tinham aprovado o ataque. “Afinal, não se sabia, realmente, quem estava em todas aquelas reuniões [iemenitas]”, disse ao Wall Street Journal um ex-funcionário da Inteligência americana. Segundo ele declarou, o ataque demonstrava que os Estados Unidos “aceitavam candidamente quando os iemenitas diziam: ‘Ah, esse é um mau elemento, peguem ele’. E acaba que ele é um mau elemento do ponto de vista político, não é um mau elemento de verdade”. Brennan teria ficado “furioso” com o ataque. “Como isso pôde ter acontecido?”,15 Obama perguntou mais tarde ao general
Cartwright. O general lhe disse que era informação errada dada pelos iemenitas. Segundo Cartwright, “ele tinha levado uma boa descompostura do comandante supremo”. Depois dos ataques com mísseis Tomahawk que mataram dezenas de civis em Al-Majalah em dezembro de 2009 e do desastroso ataque que matou Shabwani, a CIA começou a defender uma mudança nos ataques do JSOC, com a troca dos mísseis Tomahawk16 pela arma preferida da CIA: drones. Os satélites de vigilância foram reposicionados, e enviaram-se mais drones Predator a bases secretas no Iêmen. “Os drones estão voando sobre Marib17 a cada 24 horas e não há um só dia em que não sejam vistos”, disse o xeque Ibrahim al Shabwani, outro irmão do mediador do governo assassinado no ataque de 25 de maio. “Às vezes voam baixo, outras vezes a grande altitude. O clima tornou-se pesado em decorrência da presença dos drones americanos e do medo que possam atacar a qualquer momento.” Fomentar a insegurança parecia parte central da nova estratégia dos Estados Unidos, ameaçando com perigo de morte as tribos locais que apoiassem a Al-Qaeda. Mas na opinião de outros era um tiro pela culatra, sobretudo com líderes tribais locais que muitas vezes tinham membros da família em vários lados da guerra. Há quem diga que Saleh, que dependia do apoio das tribos a seu regime, ao contrário de ter programado a morte de Shabwani, tinha pedido uma pausa nas ações secretas dos Estados Unidos depois do ataque. Entretanto, funcionários americanos insistiam que isso não abalava o acordo secreto que permitia que os Estados Unidos executassem ataques no Iêmen. “No fim das contas,18 não é como se ele dissesse ‘Chega disso’”, declarou ao New York Times um funcionário não identificado do governo Obama. “Ele não nos expulsou do país.” O que não se pode discutir é que os ataques, especialmente aqueles que mataram civis e figuras de destaque das tribos, estavam dando à Al-Qaeda valiosa munição para sua campanha de recrutamento no Iêmen e para sua batalha propagandística contra a aliança americanoiemenita de combate ao terrorismo. Autoridades iemenitas disseram que entre dezembro de 2009 e maio de 2010 os ataques americanos19 mataram mais de duzentos civis e quarenta pessoas ligadas à Al-Qaeda. “O que os Estados Unidos estão tentando fazer atualmente no Iêmen é perigosíssimo,20 já que cai como uma luva para a estratégia mais ampla da AQPA no que se refere a mostrar que o Iêmen não é diferente do Iraque e do Afeganistão”, afirmou em junho de 2010 Gregory Johnsen, professor de Princeton, depois que a Anistia Internacional divulgou um relatório que documentava o uso de munição americana nos ataques executados no Iêmen. “Isso lhes possibilita afirmar que o Iêmen é uma frente legítima para a jihad”, disse Johnsen, que em 2009 participou da equipe da USAID que avaliou o conflito do Iêmen. “Eles estão dizendo isso desde 2007, mas incidentes desse tipo funcionam como fermento para a argumentação deles.” No verão de 2010, depois de meses de incursões e ataques aéreos de forças americanas e iemenitas, a AQPA deu o troco. Em junho, um grupo de quadros operacionais da organização, usando uniformes militares, executou uma incursão21 contra a divisão da polícia secreta iemenita, a PSO. Durante a cerimônia matinal de hasteamento da bandeira, quadros da AQPA lançaram granadas propelidas por foguetes contra o edifício e abriram fogo com armas
automáticas, irrompendo pelos portões. Atingiram pelo menos dez oficiais e três faxineiras. O objetivo da incursão foi libertar suspeitos presos pela PSO, e teve sucesso. A incursão foi seguida de uma campanha sustentada de assassinatos que visava militares iemenitas de alta patente e funcionários da Inteligência. Durante o mês sagrado do Ramadã, que começara em agosto, a AQPA executou uma dúzia de ataques.22 Em setembro, sessenta funcionários tinham sido mortos, muitos deles baleados por assassinos em motocicleta.23 Esse método de ataque tornou-se tão comum que o governo acabou proibindo o trânsito de motos nas áreas urbanas de Abyan. O uso de “motocicletas em operações terroristas de assassinato de autoridades da Inteligência e funcionários da segurança” tinha “aumentado substancialmente nos nove últimos meses na província”, disse um funcionário do Ministério do Interior do Iêmen. Enquanto o governo do Iêmen se via sitiado e as ações secretas dos Estados Unidos se multiplicavam, Anwar Awlaki pronunciou uma “Mensagem ao Povo Americano” em que dizia que a tentativa de Umar Farouk Abdulmutallab de derrubar um aeroplano sobre Detroit tinha sido uma “retaliação aos mísseis de cruzeiro24 e às bombas de fragmentação que mataram mulheres e crianças”, e declarou: “Vocês têm seus B-52, seus Apaches, seus Abrams e seus mísseis de cruzeiro, e nós temos armas leves e artefatos explosivos improvisados. Mas temos homens, dedicados e sinceros, com coração de leão”. Awlaki lançou também uma diatribe contra o governo americano e o de Saleh. Se “Bush é lembrado como o presidente que levou os Estados Unidos a se atolar no Afeganistão e no Iraque, parece que Obama quer ser lembrado como o presidente que levou os Estados Unidos a se atolar no Iêmen”, declarou. Segundo ele,
Obama já deu início à guerra no Iêmen com o bombardeio aéreo de Abyan e Shabwah. Com isso, lançou uma campanha publicitária para os mujahedin no Iêmen que em poucos dias fez o trabalho deles de anos […]. Os membros corruptos do governo iemenita e alguns chefes tribais que se dizem aliados deles estão se dando bem. O boato que corre entre eles é que chegou a hora de extorquir os americanos simplórios. Políticos, militares e agentes da Inteligência estão mamando milhões. Os funcionários do governo iemenita estão fazendo grandes promessas a vocês e mandando grandes contas: bem-vindos ao mundo dos políticos iemenitas.
O que havia de notável nas afirmações de Awlaki sobre a relação dos Estados Unidos com Saleh era como soava verdadeira para muitos analistas iemenitas veteranos. Durante esse período, Awlaki começou a conquistar uma dimensão mítica no discurso da imprensa e do governo dos Estados Unidos sobre ameaças terroristas. Mas a questão real dizia respeito ao tamanho da ameaça realmente representada. Embora a disputa não se desse publicamente, havia na IC uma profunda divisão que não era dada a público sobre como considerar Awlaki. Eram fartas as evidências de que ele tinha elogiado a posteriori os ataques contra os Estados
Unidos, assim como de que tinha feito contato com Hasan e Abdulmutallab. Também havia provas de que ele incitava a violência jihadista contra os Estados Unidos e seus aliados. Mas nenhuma prova conclusiva tinha sido apresentada, pelo menos publicamente, de que ele tivesse desempenhado papel operacional em algum desses ataques. Em outubro de 2009, a CIA teria chegado à conclusão de que “não tinha provas específicas25 de que ele ameaçasse a vida de americanos — o que é o mínimo que se pode exigir para uma operação de captura ou morte” contra um cidadão americano. O presidente Obama agora discordava dessa avaliação. Awlaki tinha de morrer.
Em fevereiro de 2010, o jornalista Abdulelah Haider Shaye mais uma vez conseguiu encontrar Awlaki e fez a primeira entrevista com o cidadão americano desde que se tornaram públicas as notícias da ameaça de seu assassinato pelo governo americano. “Por que o senhor acha que os americanos querem matá-lo?”,26 perguntou Shaye a Awlaki. “Porque sou muçulmano e propago o islã”, respondeu Awlaki, acrescentando que as acusações contra ele — na imprensa, não num tribunal de justiça — se baseavam na ideia de que ele teria “incitado” Nidal Hasan e Abdulmutallab e que gravações de palestras suas tinham sido encontradas em poder de conspiradores em mais de uma dúzia de supostos complôs terroristas. “Tudo isso é parte da tentativa de liquidar as vozes que clamam pelos direitos da Ummah.” E acrescentou:
Pregamos o Islã que foi revelado por Alá ao profeta Maomé, o Islã da jihad e da sharia. Sempre que uma voz prega o Islã, eles acabam com a pessoa ou com sua reputação; acabam com a pessoa assassinando-a ou pondo-a na cadeia, ou acabam com sua reputação distorcendo sua imagem na imprensa.
Shaye perguntou a Awlaki: “O senhor acha que o governo do Iêmen facilitaria seu assassinato?”. “O governo do Iêmen vende seus próprios cidadãos aos Estados Unidos para ganhar os mal havidos recursos que implora ao Ocidente em paga do sangue deles. As autoridades iemenitas dizem aos americanos que ataquem onde quiserem, e pedem a eles que não anunciem a autoria dos ataques para evitar a indignação pública, e então o governo iemenita assume despudoradamente esses ataques”, respondeu Awlaki.
O povo de Shabwah, Abyan e Arhab viram os mísseis de cruzeiro, e algumas pessoas viram bombas de fragmentação que não explodiram. O Estado mente quando reivindica a responsabilidade pelos ataques, e faz isso para negar a colaboração. Drones americanos voam continuamente sobre o Iêmen. Que Estado é esse que permite que o inimigo espione seu
povo, considerado isso uma “cooperação consentida”?
No Iêmen, Awlaki estava agora completamente clandestino e tinha dificuldade para postar seus sermões. Seu blog tinha sido bloqueado pelo governo americano e havia drones cruzando os céus de Shabwah. Embora as agências de notícias americanas, “especialistas” em terrorismo e destacados funcionários do governo identificassem Awlaki como líder da AQPA, essas acusações eram ambíguas. Awlaki tinha pisado em terreno minado ao elogiar abertamente ataques terroristas contra os Estados Unidos e convocando os muçulmanos americanos a seguir o exemplo de Nidal Hasan. Contudo, os indícios existentes sobre a relação da Al-Qaeda com Awlaki em 2010 levam a crer que ele não era um quadro operacional do grupo, e sim estava à procura de uma aliança com pessoas de ideias afins. Algumas delas, como seu tio, até argumentaram que ele foi levado a se aliar à AQPA depois de marcado para morrer juntamente com os líderes da organização. O xeque Saleh bin Fareed tinha sido o protetor de Anwar no Iêmen. Foi a liderança de Bin Fareed sobre sua tribo que permitia a Awlaki transitar livremente por Shabwah e outras áreas tribais. Mas o regime iemenita pressionava o xeque para entregar Anwar. O pai de Awlaki, Nasser, estava convencido de que Anwar permaneceria escondido e que o governo americano continuaria tentando matá-lo. Bin Fareed decidiu fazer uma nova tentativa. Foi visitar Anwar em Shabwah. Disse que ao chegar viu drones “circundando nosso vale 24 horas por dia27 — sem parar um minuto. Claro que só podemos vê-los à luz do sol — mas podemos ouvi-los claramente. E acho que estavam atrás de Anwar”, disse-me ele. Quando Bin Fareed se encontrou com o sobrinho, este lhe disse que tinha ouvido falar que Obama o tinha marcado para morrer. “Em Sana’a agora, acho que eles estão sob pressão”, respondeu Bin Fareed. “Agora o presidente deu ordem a eles para capturar ou matar você.” Awlaki disse a Bin Fareed que não tinha sido acusado de crime algum pelo governo americano e que não ia se apresentar para responder a acusações que não existiam. “Pode dizer a eles, não tenho nada, até hoje, não tenho nada a ver com a Al-Qaeda”, disse Anwar ao tio. “Mas se [Obama] não desistir [de sua ordem], e eu continuar sendo procurado, talvez eles me mandem para o inferno. Não tenho escolha.” Bin Fareed me disse que acreditava que as ameaças contra Anwar sem querer aproximaramno da AQPA. “É claro, entendemos que [Anwar] não tinha escolha. E, na verdade, foram eles que o empurraram para o inferno.” O anúncio do governo dos Estados Unidos de que Anwar estava marcado para morrer, disse-me Bin Fareed, “foi um erro muito, muito grande”. Em 23 de maio de 2010, o braço midiático da Al-Qaeda no Iêmen, Al-Malaeim, divulgou um vídeo intitulado “O primeiro e exclusivo encontro28 com o xeque Anwar al-Awlaki”. No vídeo, Awlaki agradece a seu entrevistador, um homem barbado todo de branco, por “ter se dado tanto trabalho para chegar até aqui”. Usando o traje tradicional iemenita, Awlaki aparecia sentado diante de uma estante cheia de livros religiosos. Trazia na cintura uma jambiya, adaga
que é um símbolo tribal usado por muitos iemenitas. Na entrevista, Awlaki elogiou um discurso recente do número dois da Al-Qaeda, Ayman al-Zawahiri, mas também se referiu a “vocês, gente da Al-Qaeda”, e não se apresentou como membro do grupo. O entrevistador, que agradeceu muito a Awlaki pela entrevista “exclusiva”, não se dirigiu a ele como membro da AlQaeda. O entrevistador que aparece nesse vídeo propagandístico da Al-Qaeda foi incrivelmente direto e fez a Awlaki muitas perguntas sobre o ataque a civis, sua relação com Nidal Hasan e Abdulmutallab e sua interpretação de várias fatwas. Também perguntou a Awlaki sobre o que se dizia de sua condição de homem marcado. Falando em árabe, Awlaki disse ao entrevistador:
Não é verdade que eu seja um fugitivo. Circulo entre os membros de minha tribo e em outras partes do Iêmen porque o povo do Iêmen odeia os americanos e apoia a gente da verdade e os oprimidos. Circulo entre os membros da tribo aulaq e recebo apoio de amplos setores da população do Iêmen.
Awlaki elogiou vários movimentos mujahedin pelo mundo, do Iraque ao Afeganistão e à Somália. “Pelos muçulmanos em geral e pelos habitantes da Península em particular, devemos participar desta jihad contra os Estados Unidos”, disse ele. Awlaki estava sem dúvida desenvolvendo uma afinidade com os princípios da Al-Qaeda — e seus pronunciamentos vinham se confundindo com os da organização. Ainda assim, eram palavras, não atos. Para um ex-analista da DIA, Joshua Foust, era como se alguém na IC dos Estados Unidos estivesse aumentando a importância de Awlaki com medo do que ele pudesse inspirar com suas palavras. Embora recriminasse o elogio à Al-Qaeda e o convite a ataques terroristas contra os Estados Unidos, Foust não acreditava que essas declarações constituíssem provas de um papel operacional importante na Al-Qaeda. “Mesmo dentro da AQPA, ele é literalmente de nível médio”,29 disse-me ele na ocasião. “Até mesmo os líderes da AQPA o tratam como se fosse um subordinado que deve ficar de boca calada e fazer o que lhe é ordenado.” E acrescentou: “Estou convencido de que o foco em Awlaki não faz nenhum sentido, porque lhe atribuímos uma importância e uma influência que ele na verdade não tem”. Depois da conspiração da bomba do Natal, a Casa Branca mudou de tom ao falar de Awlaki, dizendo que ele tinha se tornado um quadro operacional, sendo que alguns funcionários chegavam a compará-lo a Osama bin Laden. “Acho que é um exagero,30 francamente, achar que ele é necessariamente um novo Bin Laden”, disse-me Nakhleh, o ex-dirigente da CIA. “Nem o teríamos levado em conta se não fosse Abdulmutallab, o Homem da Bomba na Cueca.” Embora Awlaki viesse travando relações com diversas figuras da Al-Qaeda em Shabwah e em outros lugares, e seu status na hierarquia da organização estivesse em ascensão, iemenitas bem informados que tinham entrevistado líderes da AQPA contaram-me que ele não era membro
operacional do grupo. “Anwar al-Awlaki não era líder31 da Al-Qaeda, não tinha nenhum cargo oficial na organização”, disse o jornalista Abdul Rezzaq al-Jamal. Ele me contou que a AQPA considerava Awlaki um aliado e que “o que o ligava à Al-Qaeda era a hostilidade aos Estados Unidos”. Awlaki “concorda com a Al-Qaeda em concepção, fundamentos e estratégias. Os esforços empreendidos por Awlaki no contexto do trabalho da AQPA, sobretudo em termos de recrutamento no Ocidente, foram muito grandes”. Nasser Awlaki reconheceu que nas entrevistas o filho estava começando a se referir aos membros da Al-Qaeda como “meus irmãos”, mas que não acreditava que Anwar fosse membro da AQPA. “Ele nunca disse32 que era membro da Al-Qaeda”, contou-me, imaginando que “talvez como ideologia, Anwar tenha chegado a crer em algumas das ideias da Al-Qaeda, como as que dizem que se você não consegue recuperar sua terra por meios pacíficos, deve lutar por ela. Se uma pessoa o agride, você tem de se defender”. Nasser acrescentou ainda que “Anwar é um homem muito corajoso. Posso lhe dizer, com certeza, que conheço meu filho. Se ele fosse membro daquela organização, não teria problema em dizê-lo”. Afinal, estando já marcado para morrer pelos Estados Unidos, ele nada tinha a perder. Até mesmo membros do governo iemenita estavam preocupados com a condição de líder terrorista a que os Estados Unidos estavam elevando Awlaki. O ministro das Relações Exteriores do Iêmen, Abu Bakr al-Qirbi, disse a repórteres em Sana’a que “Anwar al-Awlaki sempre foi visto mais como pregador33 do que como terrorista e não deveria ser tomado por terrorista a menos que os americanos tivessem provas de que ele está envolvido em terrorismo”. O governo dos Estados Unidos não acusava Awlaki de crime algum, nem deu publicamente nenhum indício de que Awlaki fosse o chefe da AQPA, como fazia parecer. O caso de Awlaki levaria às últimas consequências uma das principais questões levantadas pelo papel cada vez maior que o assassinato dirigido vinha desempenhando na política externa americana: poderia o governo americano assassinar seus próprios cidadãos sem o devido processo judicial?
38. A agência matrimonial da CIA
DINAMARCA E IÊMEN, 2010 — Enquanto se intensificava a caçada humana lançada pelos Estados Unidos contra Anwar Awlaki no Iêmen, Morten Storm estava ocupado tentando encontrar uma mulher europeia para Awlaki. Sem o conhecimento de Awlaki, o agente dinamarquês da Inteligência estava coordenando com a CIA a procura de uma noiva. Storm tinha postado mensagens em sites1 frequentados por admiradores de Awlaki e pouco depois recebeu uma nota de uma croata recém-convertida ao Islã. “Aminah” era o nome que ela adotara depois da conversão, embora tivesse sido criada como católica. Tinha sido uma estrela do atletismo no ensino médio2 e trabalhara com jovens problemáticos em Zagreb. “Estive pensando que se ele estava procurando uma segunda esposa,3 eu lhe proporia casamento. Não sei se isso é muita tolice”, escreveu Aminah para Storm. “Tenho profundo respeito por ele e por tudo o que ele faz […]. Iria com ele a qualquer parte. Tenho 32 anos e estou pronta para coisas perigosas. Não tenho medo da morte, ou de morrer em nome de Alá.” Storm continuou correspondendo-se com Awlaki e lhe falou de Aminah. Informou também o PET, Serviço de Inteligência da Dinamarca, que estava empenhado em arranjar casamento para Awlaki. O PET fez contato com a CIA. Storm declarou que os funcionários da Inteligência ficaram “radiantes”.4 Juntas, as duas Agências de Inteligência fizeram um plano, para o caso de o projeto de casamento dar certo: Storm entregaria a Aminah uma mala equipada com um dispositivo de rastreamento5 que revelaria o paradeiro de Awlaki. Awlaki contatou Storm novamente em 17 de fevereiro de 2010 e disse que queria conhecer Aminah. “Se você for visitá-la,6 posso pôr na internet uma gravação em vídeo de mim mesmo, num arquivo criptografado, e você pode mostrá-lo a ela, assim ela terá certeza de que sou eu”, escreveu. Dias depois, Awlaki escreveu mais uma vez para falar da melhora de suas condições de vida:
Normalmente não moro numa tenda, e sim numa casa [que] pertence a um amigo. Não saio de casa, e na minha situação minha mulher ficaria comigo o tempo todo. Prefiro esta residência [a] uma tenda nas montanhas porque me dá a possibilidade de ler, escrever e pesquisar.
Depois dessa mensagem, Storm disse ter se reunido com funcionários da CIA e da PET em Helsingør, na Dinamarca. Participou da reunião um veterano contato da CIA baseado na Dinamarca que usava o nome de Jed e, segundo Storm, um funcionário da CIA vindo de Washington que se apresentava como Alex. Storm reuniu-se com Aminah em Viena, Áustria, em 8 de março de 2010, diante da estação de ônibus internacionais.7 Sua viagem foi confirmada por grande número de notas fiscais8 examinadas pelo jornal dinamarquês Jyllands-Posten. Storm disse que ao encontrar-se com Aminah, estava sendo seguido por seus supervisores do PET e da CIA. Aminah, disse Storm, convenceu-o de que estava disposta a aceitar as consequências de sua decisão de viajar para o Iêmen para casar-se com Awlaki. A pedido de Awlaki, Storm ensinou à moça a enviar e-mails criptografados e num segundo encontro mostrou-lhe um vídeo que o clérigo fizera especialmente para ela. “Esta gravação foi feita especificamente para a irmã Aminah,9 a seu pedido, e o irmão que está levando esta gravação é de confiança”, dizia Awlaki no vídeo. “Dito isto, peço a Alá que a guie para o que for melhor, nesta e na outra vida. E que a guie para escolher o que for melhor quanto a esta proposta. Sugiro também que, se possível, você faça também uma mensagem gravada e me mande. Seria muito bom.” Segundo Storm, o vídeo levou Aminah às lágrimas. Aminah respondeu com dois vídeos de si mesma. No primeiro deles usava um hijab [véu], com apenas o rosto visível. Disse que se sentia “nervosa”10 e que a experiência era “embaraçosa”. No segundo vídeo, tinha removido o véu. “Irmão, sou eu sem a echarpe,11 para que possa ver meu cabelo”, disse ela num inglês com forte sotaque. “Espero que fique contente comigo, inshallah.” Os dois concordaram em se casar no Iêmen. Awlaki enviou a Storm um e-mail criptografado falando das coisas que Aminah precisaria no Iêmen: “Roupas para o calor,12 objetos de higiene pessoal etc. Tudo de que ela possa precisar durante um período de um ou dois meses. Não deve trazer mais do que uma mala de tamanho médio e uma sacola de rodinhas. Deve trazer consigo pelo menos 3 mil dólares”. Então, a CIA fez contato com Storm. Num documento obtido pelo Jyllands-Posten, Awlaki é chamado de “Gancho” e Aminah de “Irmã”.13 A CIA sugeriu que Storm “usasse as instruções do Gancho como pretexto para entregar à Irmã a mala e o estojo de cosméticos”. Storm voltou a Viena em 8 de maio de 2010 para comprar a passagem de Aminah para o Iêmen e entregar-lhe roupas e 3 mil dólares, tudo pago pela CIA, segundo ele. Entregou também a Aminah a mala marcada que, se tudo corresse de acordo com o planejado, conduziria Awlaki e sua noiva para a execução por um drone. Aminah viajou para o Iêmen em 2 de junho. Storm disse que foi para uma casa segura alugada pela CIA e pelo PET na Dinamarca. “Fomos para lá, fizemos churrasco14 e uma bela festa”, contou Storm ao Jyllands-Posten. A viagem de Aminah, lembrou ele, estava sendo constantemente monitorada. Dois dias depois Storm recebeu uma mensagem de texto de seu supervisor dinamarquês. “Parabéns, irmão,15 você acaba de ficar rico, muito rico”, dizia. O agente incluía emoticons
sorridentes no texto. Storm disse que apanhou sua recompensa em 9 de junho de 2010, no Crowne Plaza Hotel próximo de Copenhague, acrescentando que estavam presentes um oficial da CIA e outro do PET na entrega, e que o oficial do PET estava algemado à mala16 que continha sua recompensa. A mala continha 250 mil dólares em maços de notas de cem. Storm pediu o segredo para abrir a mala. “Tente 007”,17 disse a ele o agente da CIA. Storm tirou uma foto do dinheiro que estava dentro da mala e mais tarde ofereceu-a ao Jyllands-Posten como prova de sua história. Numerosas fontes confirmaram que ele recebeu o pagamento.18 A CIA e seus aliados celebraram o que acreditavam ser o fim da caçada a Awlaki, mas logo seu plano apresentou problema. Aminah devia frequentar uma escola de línguas em Sana’a durante duas semanas antes de encontrar seu prometido. Quando os assessores de Awlaki chegaram para levá-la até ele, disseram-lhe que não podia levar a mala,19 apenas uma sacola plástica com seus pertences. A mala marcada da CIA não faria a excursão. Pouco depois, Awlaki e Aminah estavam casados. Sem querer, a CIA tinha conseguido uma esposa europeia para um de seus alvos mais procurados. Mais tarde, Awlaki mandou uma mensagem a Storm20 agradecendo pelo enlace.
39. “O leilão do assassino”
WASHINGTON, DC, 2010 — Nos corredores do Congresso dos Estados Unidos, os legisladores se alinhavam em um ou outro dos dois grandes grupos de opinião quanto à questão do assassinato de Anwar Awlaki, um cidadão americano: o do silêncio e o do apoio. Só três meses depois do anúncio do plano foi que um membro da Câmara dos Representantes ergueu a voz contra ele. “Não apoio e ponto final”,1 disse-me na época o democrata Dennis Kucinich. “Acho que membros dos dois partidos que tenham consideração pela Constituição deveriam se manifestar sobre isso.” Kucinich disse que enviara diversas cartas ao governo Obama questionando a inconstitucionalidade daquela política, assim como sobre possíveis violações da lei internacional, mas sem receber resposta. “Como há muitas pessoas inteligentes no governo, eles sabem os riscos que estão correndo nesse caso em relação a violações da lei”, disse Kucinich. Chamou essa política de “extraconstitucional, extrajudicial”, dizendo que ela “perverte a presunção de inocência e [com ela] o governo torna-se investigador, policial, promotor, juiz, jurado e executor, tudo de uma vez só. Isso levanta enormes questões com respeito a nossa Constituição e nosso modo de vida democrático”. E acrescentou: “Tudo isso está sendo feito em nome da segurança nacional. Como vamos saber por que certas pessoas estão sendo mortas? Quero dizer, quem está tomando essa decisão? É como um poder divino. Você pode apontar o dedo para uma imagem e dizer ‘Essa pessoa já era’”. O fato de haver um cidadão americano na lista não era a única preocupação de Kucinich. Um presidente democrata popular e advogado especialista em direito constitucional que estendia os limites das políticas extremas do governo Bush, acreditava Kucinich, teria consequências de longo prazo. “Estamos agindo em função do medo. Estamos esquecendo quem somos”, disseme ele. “Estamos demolindo pilares das nossas tradições democráticas. O direito a julgamento? Acabou. O direito de confrontar seus acusadores? Acabou. O direito de não sofrer castigo cruel e inusitado? Acabou. Todas essas âncoras estão sendo removidas.” E acrescentou:
Não pensem nem por um momento que possamos fazer esse tipo de coisas sem que elas tenham consequências diretas para o país. Não se pode ter uma América lá fora e outra aqui. É tudo a mesma coisa. A erosão da integridade, a erosão dos valores democráticos, a erosão
das boas intenções, tudo isso prenuncia uma nação em que os direitos elementares de nosso próprio povo já não podem ser garantidos. Estão sendo incluídos no leilão do assassino.
Em julho de 2010, Kucinich apresentou o projeto de lei2 HR 6010, “que proibia a execução extrajudicial de cidadãos americanos”. No projeto, Kucinich fazia menção a todas as resoluções executivas, desde o governo Ford, que proibiam o assassinato, entre elas a Resolução Executiva 12333, que dizia: “Nenhuma pessoa empregada pelo governo dos Estados Unidos ou que aja em seu nome se envolverá ou conspirará para se envolver em assassinato”. Em suma, o projeto convocava o Congresso a afirmar que os cidadãos americanos tinham direito ao devido processo antes de serem executados. “O uso de força extrajudicial contra um cidadão dos Estados Unidos fora dos campos de batalha internacionalmente reconhecidos do Iraque e do Afeganistão constitui uma violação da lei de conflitos armados”, dizia o projeto de lei. “É do maior interesse para os Estados Unidos respeitar o império da lei e dar o exemplo, mantendo os princípios do direito internacional e do direito civil.” Apenas seis outros membros da Câmara dos Representantes, e nenhum senador, apoiaram o projeto de lei de Kucinich. O assunto morreu aí. Em julho, funcionários da Inteligência americana reconheceram que tinham sido executados “quase uma dúzia”3 de ataques com o objetivo de matar Awlaki. Nenhum deles tivera sucesso. As principais organizações americanas que tinham lutado contra as políticas da guerra ao terror do governo Bush — o Centro de Direitos Constitucionais (Center for Constitutional Rights, CCR) e a União Americana pelas Liberdades Civis (American Civil Liberties Union, Aclu) — estavam avaliando o programa de assassinatos dirigidos, focado principalmente no aumento de ataques com drones no Paquistão. No entanto, uma vez que um cidadão americano fora apontado como alvo do programa, elas acharam que o assunto devia ser contestado no sistema judiciário americano. Era “uma grande oportunidade4 para contestar o programa [de assassinatos], porque temos, concretamente, o nome de uma pessoa — e não se trata de um assassinato já consumado — sendo, portanto, o caso de tentarmos impedir o assassinato de uma pessoa que, com base no que foi informado, sabemos que está numa lista da morte”, disse Pardiss Kebriaei, alto representante do CCR. Kebriaei e seus colegas analisaram os fatos publicamente disponíveis sobre Awlaki e chegaram à conclusão de que os sermões e comentários de Awlaki em entrevistas, embora ofensivos a muitos americanos, “nos parecem ser uma atividade protegida pela Primeira Emenda” e que, “se representa alguma ameaça e se o que ele está fazendo não tem o amparo da lei e constitui crime, então que ele seja indiciado e julgado, com direito ao devido processo, como qualquer pessoa, em especial um cidadão americano”. Kebriaei disse que se os Estados Unidos matassem um de seus próprios cidadãos num país estrangeiro, no qual não havia guerra declarada, sem atribuir um crime à pessoa, isso equivaleria
a uma afirmação por parte dos Estados Unidos de que está de fato reivindicando essa autoridade e usando essa autoridade para usar força militar letal contra suspeitos de terrorismo onde quer que se encontrem. E as implicações legais, morais e políticas disso são para mim aterrorizantes.
Depois que os advogados do CCR e da Aclu contataram Nasser Awlaki por intermédio de seus parceiros no Iêmen,5 ele os contratou para representá-lo como voluntários num processo que questionava o direito de o governo Obama matar seu filho sem que houvesse processo. “Farei o que puder6 para convencer meu filho [a se apresentar], a voltar, mas eles não me dão tempo. Querem matar meu filho. Como pode o governo americano matar um de seus cidadãos? Essa é uma questão legal que precisa ser respondida”, disse Nasser. Dias depois da primeira conversa de Nasser com os advogados nos Estados Unidos, o governo Obama entrou em ação para tentar impedir que o caso chegasse aos tribunais americanos. Em 16 de julho de 2010, o Departamento do Tesouro atribuiu oficialmente a Anwar Awlaki o rótulo de “Terrorista Global Especialmente Designado”. Em lugar do presidente, do secretário de Defesa ou do diretor da CIA, a Casa Branca usou o subsecretário para terrorismo e Inteligência financeira do Departamento do Tesouro, Stuart Levey, para defender a tese segundo a qual Awlaki tinha se tornado um “quadro operacional”, acusando-o diretamente de “preparar” e instruir Abdulmutallab “para essa operação”, alegando que “depois de receber essas instruções de Awlaki, Abdulmutallab conseguiu o artefato explosivo que usou na tentativa de ataque do dia de Natal”. Levey declarou que Awlaki tinha “se envolvido em todos os aspectos7 da cadeia de fornecimento do terrorismo — levantamento de verbas para grupos terroristas, recrutamento e treinamento de quadros operacionais, planejamento e mando de ataques contra inocentes”, mas não apresentou provas de nenhuma dessas acusações. O rótulo imposto a Awlaki pelo Departamento do Tesouro tornava crime o fato de advogados americanos representarem Awlaki sem autorização do governo. Em 23 de julho, a Aclu e o CCR apresentaram uma solicitação urgente de autorização. Como não a conseguiram, processaram o Departamento do Tesouro.8 Em 4 de agosto, em reação ao processo, o Departamento do Tesouro mudou de parecer e permitiu que Awlaki fosse representado por advogados.9 Um mês depois, o CCR e a Aclu entraram com uma ação contra o presidente Obama, Panetta, o diretor da CIA, e Gates, secretário de Defesa, denunciando a ilegalidade de sua intenção de mandar assassinar Awlaki. “Fora de um conflito armado, tanto a Constituição quanto as leis internacionais proíbem o assassinato dirigido, exceto como último recurso para proteger contra ameaça concreta, específica e iminente de morte ou grave ferimento físico”, dizia o texto.
O uso sumário da força10 é legal nessas circunstâncias estritas somente porque a iminência da
morte torna inviável o processo judicial. Uma política de assassinatos dirigidos dentro da qual as pessoas são postas em listas de morte, depois de um processo burocrático, e nelas permanecem durante meses extrapola claramente o uso da força letal como último recurso contra ameaça iminente e, da mesma forma, extrapola o que a Constituição e as leis internacionais permitem.
Eles pediram a um juiz federal que impedisse o presidente, a CIA e o JSOC de “matar intencionalmente” Awlaki e ordenasse “a revelação dos critérios usados pelo governo para determinar o assassinato dirigido de um cidadão americano”. O governo Obama respondeu energicamente ao processo, invocando um argumento amplamente usado durante todo o governo Bush para invalidar processos que visavam responsabilizar Donald Rumsfeld e outros funcionários do governo por assassinatos extrajudiciais, tortura e prisões extraordinárias: a “prerrogativa” do segredo militar e de Estado. Os advogados do Departamento de Justiça pediram ao juiz que extinguisse o processo por outros motivos, mas disseram que se tudo o mais falhasse, usariam a prerrogativa de segredo militar e de Estado, alegando que isso seria “necessário para proteger contra o risco de dano significativo à segurança nacional”. O processo de Awlaki, argumentou o procurador-geral assistente Tony West, “põe diretamente em questão11 a existência e detalhes operacionais de supostas atividades militares e de Inteligência voltadas para o combate da ameaça terrorista aos Estados Unidos”. Caracterizou o processo como “um exemplo paradigmático de uma causa na qual nenhuma de suas partes pode ser litigada no mérito sem pôr em risco, de forma imediata e irreparável, a revelação de informações de segurança nacional altamente delicadas e sigilosas”. Referiu-se a Awlaki como “um líder operacional da AQPA”. O governo apresentou declarações de Panetta, Gates e Clapper, feitas sob juramento, afirmando o regime de segredo de Estado e resumindo a ameaça à segurança nacional que, eles acreditavam, seria causada pela litigação do processo. Panetta declarou por escrito que estava alegando segredo de Estado para “proteger fontes, métodos e atividades da Inteligência12 que poderiam ficar comprometidos pelas acusações contidas na petição inicial” e argumentou que, se revelasse o fundamento que o levava a invocar esse regime, poderia prejudicar a “segurança nacional americana”. Gates assegurou que “a revelação de informações relacionadas à AQPA e a Anwar al-Awlaki causaria um dano gravíssimo13 à segurança nacional” e que as Forças Armadas americanas “não podem revelar a uma organização terrorista estrangeira ou a seus líderes o que sabe a respeito de suas atividades e como obteve essa informação”. Em essência, o governo estava afirmando que tinha o direito de matar um cidadão americano, mas que era perigoso demais revelar a justificativa para isso ao público americano. Os advogados de Awlaki responderam:
O apelo ubíquo à prerrogativa14 de segredo de Estado para encerrar este litígio é tão irônico quanto extremo. O fato de Anwar al-Awlaki ter sido marcado para morrer só é de conhecimento de todos porque altos representantes do governo, numa estratégia de imprensa aparentemente coordenada, avisaram os principais jornais da nação que o Conselho Nacional de Segurança tinha autorizado o uso de força letal contra ele […]. Se o próprio governo tivesse aderido às preocupações prioritárias de segredo que invoca com tanta solenidade em suas alegações, esses funcionários do governo não teriam anunciado aos quatro ventos as intenções do governo, e funcionários da Inteligência, falando publicamente, em vez de reconhecer tacitamente que o filho do autor estava condenado, teriam se furtado a qualquer comentário a respeito.
E afirmaram:
O governo vazou sua intenção de autoridade incontrolada na linguagem doutrinária da legitimidade, da justiça, da equidade e do segredo, mas a conclusão dessa argumentação é que o Executivo, que precisa de autorização judicial para vigiar as comunicações de um cidadão americano ou revistar sua pasta, pode executar esse cidadão sem nenhuma obrigação de justificar seus atos ante um tribunal ou ante o público.
Dentro da Casa Branca, o governo Obama já preparava seu próprio arcabouço legal15 para matar um de seus próprios cidadãos. Embora a ameaça de matar Awlaki tenha sido recebida pelo Congresso praticamente sem escândalo, os que estavam no governo sabiam que uma vez morto Awlaki, era quase certo que o caso iria parar nos tribunais. Altos funcionários do governo começaram a passar a jornalistas as informações que diziam ter sobre Awlaki — informações que indicavam que Awlaki se tornara um quadro operacional e estava ativamente envolvido em complôs para atacar os Estados Unidos, usando inclusive armas químicas e biológicas. O governo já estava decidido a assassinar Awlaki, e o presidente Obama queria ter condições de sustentar ante o povo americano que essa fora a decisão certa. O principal conselheiro legal do Departamento de Estado, Harold Koh, desejava expor o caso publicamente antes que Awlaki estivesse morto. Estava cansado de ouvir críticas destrutivas ao programa de assassinatos dirigidos feitas por diplomatas europeus e grupos de direitos humanos. No passado, Koh tinha sido conhecido como um liberal, advogado dos direitos humanos e das liberdades civis, e por isso seu selo de aprovação era útil para o governo na defesa de sua política de assassinato em geral — e reforçava sua decisão de condenar um cidadão americano sem julgamento. A Casa Branca acreditava também que a defesa pública do programa por Koh seria um forte golpe preventivo contra as críticas. “Os militares e a CIA também adoraram a ideia”,16 comentou
Daniel Klaidman, correspondente da Newsweek e autor do livro Kill or Capture, sobre a campanha de assassinatos dirigidos. “Pelas costas, chamavam o advogado do Departamento de Estado de ‘Koh, o Matador’. Houve quem chegasse a falar em mandar imprimir camisetas com o dístico: ‘Drones: se são válidos para Harold Koh, são válidos para mim’.” Antes de seu discurso público, Koh teve acesso aos dados da Inteligência sobre Awlaki, que lhe foram passados pela CIA e pelas Forças Armadas. Koh instalou-se numa Dependência Protegida de Inteligência Confidencial para um longo dia de leitura. Segundo Klaidman, cujo livro se baseava quase que inteiramente em informações vazadas por intermédio de funcionários do governo, Koh
determinou seu próprio critério legal17 para justificar o assassinato dirigido de um cidadão americano: o mal, com informações blindadas para demonstrá-lo. Não era exatamente um critério técnico, legal, mas era um limiar em que ele se sentia à vontade. Ele agora estava lendo sobre numerosos complôs para matar americanos e europeus, e em todos eles Awlaki estivera profundamente envolvido em termos operacionais. Havia planos de envenenar água e alimentos no Ocidente com toxina botulínica, assim como atacar americanos com ricina e cianureto. A criatividade de Awlaki para inventar complôs mais originais e mortíferos era de arrepiar. Koh estava abalado quando saiu da sala. Awlaki não era apenas mau, era satânico.
Quando Koh fez seu discurso, em 25 de maio de 2010, declarou que “as práticas dos Estados Unidos contra seus alvos,18 inclusive operações letais com uso de veículos aéreos não tripulados, obedecem a todas as leis aplicáveis ao caso, inclusive as leis de guerra”. O discurso de Koh foi pronunciado na convenção anual da Sociedade Americana de Direito Internacional. Ele fez uma defesa irrestrita da política de assassinatos dirigidos do governo, dizendo:
Há quem diga que o uso de força letal contra algumas pessoas específicas não deixa espaço para o processo adequado e por isso constitui assassinato extrajudicial ilegal. No entanto, um Estado envolvido num conflito armado ou em legítima defesa não está obrigado a abrir processo legal contra seus alvos antes de usar força letal […]. Há quem diga que nossas práticas dirigidas violam as leis internas e, em especial, a proibição consagrada de assassinatos. Mas dentro das leis nacionais, o uso de sistemas de armamentos legais — coerentes com as respectivas leis da guerra — para atingir com precisão líderes beligerantes específicos de alto nível quando agindo em defesa própria ou durante um conflito armado não é ilegal e, portanto, não configura “assassinato”.
Os advogados de Nasser Awlaki não defenderam a tese de que Anwar Awlaki era inocente.
Em vez disso, alegaram, se ele era o que o governo dos Estados Unidos o julgava ser — um terrorista e quadro operacional da Al-Qaeda —, deveriam ser apresentadas provas que seriam apreciadas por um tribunal de justiça. Se fosse verdade o que o governo permitia que chegasse aos jornalistas acerca do profundo envolvimento de Awlaki em complôs terroristas, inclusive em ataques com armas químicas aos Estados Unidos, por que não indiciá-lo e pedir sua extradição ao Iêmen para levá-lo a julgamento? “Se uma pessoa constitui uma ameaça, se há indícios contra ela, muito bem, acusem-na e a submetam ao processo devido”, disse Kebriaei, um dos advogados de Awlaki. “O presidente e o DoD ou a CIA não podem, por sua conta, decidir secretamente que essas pessoas constituem ameaça e portanto podemos não apenas prendê-las como também matá-las.” O governo continuou permitindo o vazamento de informações que, na sua interpretação, provavam que Awlaki era membro operacional da Al-Qaeda, e assim a imprensa começou a se referir a Awlaki como um líder ou como o líder da AQPA. Quando os advogados dele tentaram contestar na justiça as afirmações do governo de que ele era um líder da AQPA e quadro de ação, os advogados do governo americano impediram a contestação. O advogado do governo “entrou no tribunal e começou assim: ‘O contexto deste caso é que estamos falando de um líder da AQPA, e tudo o mais é segredo de Estado. Não podemos falar sobre provas, mas vocês deveriam saber’”, lembrou Kebriaei.
Somos levados à loucura ao ouvir o governo fazer acusações completamente desprovidas de apoio em fatos reais que tenhamos visto e não poder ter acesso a essa informação, estar na posição de ver isso em reportagens [na imprensa] e não sermos capazes de responder. O governo Bush reivindicava uma autoridade de detenção global no contexto dessa guerra contra o terror, e o que o governo Obama está fazendo é na verdade ampliando aquilo e reivindicando uma autoridade global para matar, inclusive o direito de matar cidadãos americanos.
Anwar Awlaki, enquanto isso, passava seus dias e suas noites fugindo. Sabia que os americanos estavam tentando matá-lo ativamente. Via drones, e ocasionalmente via ataques de mísseis nas proximidades. Awlaki tinha com certeza se tornado cada vez mais radical em suas opiniões sobre os Estados Unidos, mas de seu ponto de vista tinham sido os Estados Unidos que mudaram, não ele. Não muito tempo antes, Awlaki tinha defendido o voto em George W. Bush e elogiado as liberdades americanas. Falou com paixão quando condenou a Al-Qaeda e os ataques do Onze de Setembro, e falava de uma coexistência pacífica de muçulmanos com os Estados Unidos. Mas com o endurecimento global que se seguiu ao Onze de Setembro e com a campanha do governo dos Estados Unidos para caçá-lo, alguma coisa mudou em Awlaki, e ele já não se encontrava dividido entre a lealdade a seu país natal e sua religião. Numa de suas
mensagens de áudio postadas na internet, Awlaki perguntou:
Eis o que tenho a dizer aos muçulmanos dos Estados Unidos:19 como é que sua consciência permite que vocês vivam em coexistência pacífica com a nação responsável pela tirania e pelos crimes cometidos contra seus irmãos e irmãs? Como podem sentir lealdade por um governo que está liderando a guerra contra o Islã e contra os muçulmanos? [...] A arrogância imperial está conduzindo os Estados Unidos a seu destino: uma guerra de desgaste, uma hemorragia incontida que só terminará com a queda e o estilhaçamento dos Estados Unidos da América.
Johari Abdul Malik, que sucedeu a Awlaki no posto de imã da mesquita de Dar al-Hijrah na Virgínia, ficou pasmo. Lembrava de Awlaki como um moderado e como líder muçulmano que unia dois mundos com habilidade. “Passar daquela pessoa20 para esta que está enviando essas palavras do Iêmen é um choque”, ele disse. “Não acho que tenhamos entendido mal. Acho que alguma coisa aconteceu com ele.”
40. “Estamos aqui para o martírio, meu irmão”
IÊMEN, 2009-10 — Nos primeiros tempos de sua estadia no Iêmen, Samir Khan perdeu o telefone celular. Essas coisas acontecem a turistas e estudantes no mundo todo. Mas para Khan, o prejuízo foi maior. O celular era o único meio de comunicação com as pessoas que ele tinha vindo encontrar no Iêmen: os mujahedin. Khan tinha o número de celular de um homem que, segundo lhe disseram, poderia levá-lo a contatar a AQPA, e eles estavam trocando mensagens de texto e combinando um encontro quando o telefone de Khan sumiu. O jovem paquistanêsamericano entrou em pânico. “Ele ficou desconsolado,1 já que esse era o único meio de contato entre ele e os mujahedin”, lembrou seu amigo Abu Yazeed, jihadista declarado. “Apesar disso, em nenhum momento ele pensou em voltar.” Khan foi a mesquitas na esperança de encontrar alguém que pudesse reconectá-lo. Uma noite, ele estava fazendo a ishaa, a oração noturna, quando sentiu que lhe batiam no ombro. “Você é Samir?”, perguntou-lhe o homem. Khan assentiu. “Sou o irmão com quem você estava trocando mensagens de texto”, respondeu. Pouco depois, Khan estava fazendo as malas, deixando para trás Sana’a e qualquer simulação de que estava ali para ensinar inglês ou aprender árabe numa de suas universidades. Ele estava mesmo se preparando para estudar a jihad com os mujahedin, que o acolheriam como um de seus muhajirin, ou emigrantes. Khan sentiu-se como se estivesse no carro “durante anos”,2 encaminhando-se pelas estradas irregulares que é preciso percorrer para ir de Sana’a ao sul do Iêmen. O motorista escolhido para levar Khan ao campo dos mujahedin ouvia um nashid, um hino, que tocava sem parar. Chamava-se “Senhor Ya Bin Laden”. Khan já ouvira a homenagem a Bin Laden anteriormente, mas agora que estava a ponto de se encontrar com os combatentes da AQPA, ela adquiria um novo significado. “Alguma coisa me tocou naquele momento. O nashid repetia versos relacionados ao combate aos tiranos do mundo com o objetivo de dar a vitória à nação islâmica. Mas também lembrava ao ouvinte que o xeque Osama bin Laden é o líder dessa luta global”, lembrou Khan num ensaio que escreveu meses depois. “Vi pela janela as casas altas de barro sob um lindo céu e fechei os olhos, deixando o vento soprar meu cabelo. Respirei fundo.” E Samir pensou:
Sou uma pessoa convencida de que a reivindicação do poder para o Islã no mundo moderno não vai ser fácil como desfilar por um tapete vermelho ou passar por um sinal aberto. Estou perfeitamente consciente de que partes de corpos serão decepadas, crânios serão esmagados e sangue será derramado para que isso se torne realidade. Quem não pensar assim é uma pessoa que não está preparada para fazer os sacrifícios que fazem os heróis e os lutadores.
Ao se aproximar do campo, Khan olhou a paisagem rural pela janela.
Enquanto meus olhos passeavam pelas dunas misteriosamente onduladas, lembrei-me do enigma da jihad no mundo contemporâneo. É nada menos que fascinante saber que as guerrilhas podem combater superpotências globais com o mínimo indispensável e causar graves perdas ao inimigo, drenar a economia do inimigo e aumentar o apoio popular aos mujahedin.
Na Carolina do Norte, agentes do FBI bateram na casa de Khan. “Eles souberam3 que Samir fora para o Iêmen”, lembrou a mãe dele, Sarah Khan. “E agora queriam saber como ele tinha ido para lá e coisas assim, e se tínhamos contato com ele. Perguntaram sobre a ida de [Samir] para o Iêmen.” Os agentes perguntaram aos Khan “com quem ele ia entrar em contato lá, esse tipo de coisa. Sabíamos, por informações que víamos nos noticiários, na internet e nos jornais, que o FBI vigiava os muçulmanos, então achamos que o que estava acontecendo era uma coisa assim”. Sarah Khan tinha ouvido as notícias sobre os ataques com mísseis de cruzeiro no Iêmen e sobre o complô da “bomba na cueca”. Ela me contou que, para a mãe de um filho que, segundo ela acreditava, estava estudando no Iêmen, “aquilo era muito assustador, é claro. Foi um momento muito assustador para nós”. Mas ela pensou que “Samir estava na universidade, por isso achamos que não corria perigo”. No entanto, Samir não estava mais na universidade. Estava indo direto para o núcleo de uma guerra em expansão dos Estados Unidos contra a AQPA. As pessoas que chegam a um campo da Al-Qaeda no Iêmen não são recebidas de braços abertos. Há um processo de checagem. Mas Khan não era uma incógnita. Já era uma grandeza conhecida, por meio de seus blogs e da revista virtual, e a liderança da AQPA gostava da ideia de ter um jihadista americano em suas fileiras. Khan passou por treinamento na área rural do Iêmen e estava ansioso para ver um combate. “O amor de Samir pelo martírio em nome de Alá era extraordinário”, disse seu amigo. Khan certa vez mandou-lhe uma mensagem de texto que dizia: “Foi para o martírio que vim para cá, meu irmão. Não desistiremos até conseguir o que nos fez vir para cá”. A AQPA acabaria publicando fotos de Khan empunhando armas e praticando combate corpo a corpo, mas os mujahedin acreditavam que a maior contribuição que ele podia dar à causa era em seu papel de propagandista. Quando ele finalmente chegou a uma base da AQPA, os jihadistas iemenitas e sauditas que ele conheceu ouviram suas histórias de vigilância
pelo FBI e assédio pelo governo americano. Repassaram seus escritos e trabalhos anteriores em suas publicações on-line. “Percebi que ele tinha viajado bastante em circunstâncias muito difíceis, para não mencionar o fato de que estava sendo procurado e caçado pela CIA”, lembrou Abu Yazeed. “Suas armas para defender o Islã eram muito simples: um laptop e uma câmera. No entanto, ele estava carregado de munição. Essa munição era a crença da jihad na trilha de Alá.” Os novos amigos de Khan acharam que seu sorriso largo era contagioso e sempre estavam pedindo a ele que risse “em inglês”. Eles “tinham-no como fonte de motivação e inspiração para eles mesmos, já que tinha atravessado o oceano para apoiar a causa do Islã”. Embora Khan estivesse entusiasmado com o treinamento com armas, a liderança da AQPA destinou-o a sua divisão de propaganda. Queriam sua ajuda para criar uma publicação em inglês que pudesse divulgar a mensagem deles pela diáspora muçulmana. Seria uma revista atraente e bem-acabada chamada Inspire. Khan tinha estudado tecnologia de internet4 durante o período em que frequentara uma faculdade comunitária na Carolina do Norte e criara diversos sites próprios, assim como uma revista on-line bem parecida com a que se pretendia para a AQPA. De acordo com Khan:
Depois de passar algum tempo em companhia dos mujahedin, reconheci prontamente que o sucesso não depende do trabalho que você faz de nove da manhã às cinco da tarde, nem da riqueza que você possa ter acumulado, nem de até onde você levou seus estudos na faculdade. Todas essas coisas são respeitáveis, mas estar com os mujahedin me ajudou a abrir os olhos para o fato de que nossa razão de viver não tem nada a ver com nenhuma dessas coisas [...]. A única coisa no mundo que me importa, agora mais do que nunca, é a situação de meu coração quando eu morrer.
Nesses primeiros tempos com a AQPA, sua principal tarefa passou a ser “conectar e facilitar a ligação5 entre diferentes grupos de pessoas na internet”, disse Aaron Zelin, intelectual que estudara e escrevera muito sobre a AQPA.
Ele era um tecido conectivo e um nodo tão importante que sem ele provavelmente o recrutamento teria sido mais difícil, principalmente depois do fim do site de Awlaki. Ele aprendeu a conectar-se com jovens no Ocidente sem arrogância, de igual para igual, como que mostrando “Veja, sou um cara como qualquer outro, nem mesmo sou um acadêmico religioso e cheguei aos campos da jihad para combater os apóstatas e os cruzados-sionistas: então você também pode fazer o mesmo”.
Quando o primeiro número da Inspire começou a ser produzido, Khan fez o projeto gráfico, editou e traduziu. Adotou mais de um nome de guerra, entre eles o de Qaqa al-Amiriki e o de Abu Shidah, ou Pai da Crueldade. “Ele — da maneira como entendo — queria escolher o mais agressivo dos nomes para aterrorizar os inimigos do Islã”, lembrou Abu Yazeed. Khan lançou-se ao trabalho na Inspire e pôs-se a estudar árabe com paixão. Quando seus colegas tentavam praticar inglês com ele, Khan respondia em árabe. “Não me lembro de uma só vez em que tenha estado com ele que não tenha me perguntado alguma coisa relacionada ao vocabulário árabe”, lembrou seu amigo. “A cada vez que eu o via, notava que seu árabe estava melhor. Durante o tempo em que permaneceu lá, progrediu tanto que já não era fácil perceber que ele era um irmão anglófono.” Khan envolveu-se com a AQPA no mesmo instante em que soavam numerosos sinais de alarme em Washington. A AQPA pretendia que a Inspire divulgasse sua missão entre o público anglófono e incentivasse jihadistas solitários do Ocidente a executar ataques, mas também tirava partido da campanha propagandística dos Estados Unidos, que pretendia apresentar a AQPA como uma grave ameaça. Em inglês, o programa da AQPA estaria acessível a todos. E Anwar Awlaki seria, desde o primeiro número, um destacado comentarista e analista religioso nas páginas da Inspire. Pouco havia na revista que já não tivesse sido dito muito antes pela publicação da AQPA em árabe, a Sada al-Malahim. Agora, o pessoal dos órgãos de Inteligência dos Estados Unidos, que tinham um número limitado de analistas fluentes em árabe, podia ler suas declarações em inglês. “Na ocasião do lançamento do primeiro número da Inspire, a AQPA já lançara treze números de sua revista em árabe, que tinha um conteúdo muito mais rico sobre a AQPA”, disse Zelin. O lançamento da Inspire, disse ele, coincidiu
com uma disposição, por parte da AQPA, de insistir mais amplamente em suas ambições globais em virtude do complô do dia de Natal. A AQPA sempre quis atingir os Estados Unidos. A Inspire era um meio de reunir seus simpatizantes no Ocidente e tentar ganhar maior penetração, de modo que pudessem planejar ataques ao Ocidente com mais facilidade.
O primeiro número da revista foi lançado pela internet, mas não se pode dizer que tenha sido um grande sucesso. De suas 67 páginas, apenas quatro eram realmente páginas da revista. As outras 63 continham um código de computador que, quando decifrado, revelava receitas de cupcake exibidas no popular programa de entrevistas da famosa apresentadora Ellen DeGeneres da TV americana. Não se sabe como o arquivo se corrompeu, mas dizem alguns que foi um ataque cibernético praticado por hackers anti-AQPA, pelo MI-66 ou pela própria CIA. Seja como for, o primeiro número da Inspire acabou chegando intacto à internet em junho de 2010. “Diz Alá: ‘E inspire os fiéis a lutar’”,7 começava a apresentação, assinada pelo anônimo
editor da Inspire. “É desse versículo que deriva o nome de nossa nova revista.” A Inspire, dizia o editor, era
a primeira revista lançada pela organização Al-Qaeda em inglês. No Ocidente; no sul, no leste e no oeste da África; no sul e no sudeste da Ásia e em outros lugares há milhões de muçulmanos cuja primeira ou segunda língua é o inglês. Queremos que esta revista seja uma plataforma para a apresentação das importantes questões que a Ummah enfrenta hoje ao amplo e disperso público leitor anglófono.
A Inspire publicou uma entrevista “exclusiva” com o líder da AQPA, Nasir al-Wuhayshi, também conhecido como Abu Basir, assim como textos traduzido-os de Bin Laden e Zawahiri. Entre eles havia um ensaio elogiando Abdulmutallab, o Homem da Bomba na Cueca. A revista era bem produzida, com um projeto gráfico que lembrava uma típica revista americana para adolescentes, embora sem mulheres e celebridades em trajes da moda. Em vez disso, mostrava fotos de crianças supostamente mortas por mísseis americanos e imagens de jihadistas mascarados e armados. Um artigo intitulado “Faça uma bomba na cozinha da mamãe”, assinado pelo “Chef da Al-Qaeda”, ensinava fabricar artefatos explosivos usando objetos domésticos comuns. Outro artigo dava instruções detalhadas sobre como baixar da internet programas de nível militar para criptografar e-mails e mensagens de texto. Ainda mais perturbador, talvez, a revista continha uma “lista de alvos” integrada por pessoas que, segundo afirmava, tinham criado “caricaturas blasfemas” do profeta Maomé. No fim de 2005, o Jyllands-Posten — jornal dinamarquês que mais tarde publicaria a história de Morten Storm — encomendou uma dúzia de histórias em quadrinhos do profeta,8 aparentemente para contribuir para o debate sobre a autocensura dentro do Islã. Isso irritou muçulmanos do mundo inteiro na época, inflamou protestos em massa e provocou ameaças de morte e de bombas contra o jornal. A lista de alvos publicada pela Inspire incluía nomes de editores de revistas, autoridades antimuçulmanas que tinham defendido os quadrinhos e o escritor Salman Rushdie. Incluía ainda Molly Norris, cartunista de Seattle que tinha criado o “Dia de todos desenharem Maomé”.9 Molly Norris disse que fez isso em reação à decisão da rede US Comedy Central, que, depois de receber ameaças, resolveu eliminar uma cena do desenho animado South Park que mencionava a polêmica. A lista de alvos da Inspire vinha acompanhada de um ensaio escrito por Awlaki incentivando os muçulmanos a atacar quem difamasse a imagem de Maomé. “Gostaria de expressar meus agradecimentos10 a meus irmãos da Inspire pelo convite para escrever o artigo principal do primeiro número de sua nova revista. Gostaria também de elogiá-los pela escolha desse tema, a defesa do Mensageiro de Alá, como o principal deste número”, escreveu Awlaki. Passou então a expor uma defesa do assassinato das pessoas envolvidas na blasfêmia contra Maomé. “O grande
número de participantes torna as coisas mais fáceis para nós por haver mais alvos para escolher e por dificultar o oferecimento de proteção por parte do governo.” Awlaki continuava:
Mas mesmo assim nossa campanha não deve limitar-se a participantes ativos. Esses criminosos não atuam no vácuo. Pelo contrário, atuam dentro de um sistema que lhes oferece apoio e proteção. O governo, os partidos políticos, a polícia, os serviços de Inteligência, os blogs, as redes sociais, a imprensa e assim por diante fazem parte de um sistema dentro do qual a difamação do Islã não é apenas protegida mas também promovida. Os principais elementos desse sistema são as leis que tornam legal essa blasfêmia. Como eles estão exercendo um “direito” defendido pela lei, têm o respaldo de todo o sistema político ocidental. Isso tornaria legal, do ponto de vista islâmico, o ataque contra qualquer alvo ocidental […]. Assassinatos, atentados a bomba e incêndios provocados são formas legítimas de vingança contra um sistema que aprecia o sacrilégio do Islã em nome da liberdade.
Quando a Inspire foi publicada, alguns integrantes da IC dos Estados Unidos entraram em pânico. A primeira preocupação foi proteger as pessoas identificadas como alvos para assassinato. O FBI tomou cuidados imediatos para proteger a cartunista de Seattle, temendo que pudesse ser morta. Ela acabou trocando de nome e se mudando.11 Órgãos de segurança de outros países tomaram medidas semelhantes. A “lista de alvos” personificava os temores de que Awlaki incitasse jovens muçulmanos ocidentais a cometer atos de terror “solitários”. A revista Inspire se tornaria uma das principais fontes de informação sobre a AQPA e Awlaki, com analistas de Inteligência perscrutando cada novo número em busca de pistas sobre seu paradeiro ou novos complôs possíveis. Quanto mais os Estados Unidos falavam sobre a Inspire12 e Anwar al-Awlaki, mais a imprensa focalizava a revista e o homem, o que resultou numa promoção cada vez maior de ambos pela AQPA, que tirava proveito da propaganda gratuita”, lembrou Gregory Johnsen, o especialista em Iêmen da Universidade Princeton.
Era um tanto chocante ver a reação dos Estados Unidos à Inspire, já que a AQPA vinha dizendo as mesmas coisas havia anos — com a diferença de que essas coisas eram ditas em árabe nas páginas da Sada al-Malahim. Quando a Inspire começou a ser publicada, muita gente do governo dos Estados Unidos que não tinha meios de ler a Sada al-Malahim de repente descobriu o que a AQPA vinha dizendo, o que, nos meses que se seguiram à tentativa de atentado a bomba do Natal de 2009, levou a uma reação exagerada e a uma sensação de pânico por parte de certos órgãos.
Ao que parece, Awlaki e Khan ficaram satisfeitos com a reação do governo dos Estados Unidos à Inspire. Em edições posteriores, a Inspire destacaria citações de autoridades americanas condenando a revista e reagindo às várias ameaças publicadas em suas páginas. Samir Khan tornou-se de repente uma personalidade estelar no cenário jihadista internacional. “Todos os observadores bem informados acreditam que Khan seja o editor da Inspire. Não só porque a revista publica seus artigos, mas pelas semelhanças entre ela e a Jihad Recollections, que ele editava e postava na internet antes de ir para o Iêmen”, disse Zelin. No Iêmen, Khan começou a criar uma relação próxima com Awlaki, homem que ele admirava de longe havia longo tempo. “É evidente, é claro, que Khan idolatrava Awlaki, tanto por sua pregação quanto pela postura que ele assumiu na vida”, disse Johnsen, acrescentando que Khan acabaria por se tornar “uma espécie de assessor executivo” de Awlaki. E Anwar Awlaki estava se colocando à frente, numa clara aliança com a AQPA. Suas relações com conspirações anteriores eram incertas, mas agora ele incentivava abertamente o assassinato de pessoas específicas no mundo todo. Nasir al-Wuhayshi, o líder da AQPA, via claramente o valor da obsessão dos Estados Unidos com Awlaki. Tanto que ele chegou a enviar uma mensagem a Osama bin Laden propondo o nome de Awlaki para novo chefe da AQPA. Em 27 de agosto de 2010, Bin Laden ordenou a seu braço direito,13 Shaykh Mahmud, tambem conhecido como Atiya Abdul Rahman, que transmitisse uma mensagem a Wuhayshi. Ao que parece, Bin Laden via Awlaki como aliado e como um efetivo potencialmente valioso para os objetivos da Al-Qaeda. O problema, explicou Bin Laden, era que Awlaki era uma grandeza desconhecida para a Al-Qaeda central, um homem que ainda tinha de provar sua determinação na verdadeira jihad. “A presença de certas características em nosso irmão Anwar […] é uma coisa boa, para servir à jihad”, escreveu Bin Laden, acrescentando que queria “uma oportunidade de conhecê-lo melhor”. E explicou: “Aqui geralmente temos certeza depois que a pessoa é enviada ao campo de batalha e é testada ali”. Pediu a Wuhayshi “o currículo detalhado e em toda a sua extensão do irmão Anwar al-Awlaki”, assim como uma declaração do próprio Awlaki explicando “em detalhe sua visão”. Wuhayshi, afirmou Bin Laden, deve “permanecer no cargo, no qual é qualificado e capaz de comandar as coisas no Iêmen”. Samir Khan saboreou sua recente fama e escreveu numerosos ensaios falando de sua própria experiência como exemplo para outros jovens ocidentais que poderiam unir-se à jihad. “Para os Estados Unidos, sou um traidor porque minha religião assim exige. Um traidor pode ser louvável ou desprezível. Aos olhos de uma pessoa, o bem e o mal se definem por uma agenda política”, escreveu ele.
Tenho orgulho de ser um traidor aos olhos dos Estados Unidos, tanto quanto tenho orgulho de ser muçulmano; e aproveito esta oportunidade para reafirmar meu juramento de lealdade (bai’yah) e o bai’yah dos mujahedin da Península Arábica ao leão feroz, ao herói da jihad, o
humilde servidor de Deus, meu amado xeque Osama bin Laden, que Alá o proteja. Ele é realmente o homem que abalou o trono dos tiranos do mundo. Juramos fazer a jihad pelo resto da vida, até implantarmos o Islã no mundo inteiro ou encontrarmos nosso Senhor como sustentáculos do Islã. E como é respeitável, aventuresca e prazerosa uma vida como essa, comparada à daqueles que ficam sentados, trabalhando das nove da manhã às cinco da tarde!
41. A perseguição de Abdulelah Haider Shaye
IÊMEN, VERÃO DE 2010 — Nos meses que se seguiram ao bombardeio de Al-Majalah, o jovem jornalista Abdullelah Haider Shaye não deixou de cobrir o que tinha ocorrido. De vez em quando levantava a questão na Al-Jazeera e continuou a fazer matérias sobre outros ataques americanos no Iêmen. Tinha entrevistado Awlaki várias vezes e ficara famoso, dentro e fora do Iêmen, como um importante crítico da guerra secreta americana, cada vez mais ampla, no Iêmen. “Ele estava se concentrando1 na forma com a qual Saleh usava a Al-Qaeda como trunfo para receber mais dinheiro e apoio logístico dos Estados Unidos”, lembrou o cartunista Kamal Sharaf, o mais íntimo amigo de Shaye. “Abdulelah era a única pessoa que criticava a Al-Qaeda e falava a verdade sobre a organização, de modo que era ouvido no mundo árabe e nos Estados Unidos.” Shaye estava trabalhando para o Washington Post, a ABC News, a Al-Jazeera e muitas outras fontes noticiosas internacionais de primeira linha, e com frequência fazia reportagens que mostrava a política americana no Iêmen sob um ângulo negativo. Em julho de 2010, sete meses depois do ataque de Al-Majalah, Shaye e Sharaf saíram de casa para resolver assuntos pessoais. Sharaf entrou num supermercado, e Shaye ficou esperando por ele do lado de fora. Ao sair da loja, contou-me Sharaf, “vi homens armados agarrando Shaye e levando-o para um carro”. Os homens, soube-se depois, eram agentes do Serviço de Informações iemenita. Agarraram Shaye, cobriram sua cabeça com um capuz e levaram-no para um local não revelado. Segundo Sharaf, ameaçaram Shaye e lhe disseram que não fizesse mais declarações à TV. As reportagens dele sobre o bombardeio e suas críticas ao governo dos Estados Unidos e do Iêmen, disse Shafar, levaram o regime a sequestrá-lo. Um dos interrogadores lhe disse: “Vamos destruir sua vida se você não calar a boca”. Por fim, na calada da noite, Shaye foi solto e deixado numa rua. “Agentes da Segurança Política ameaçaram Abdulelah várias vezes2 pelo telefone, e depois ele foi sequestrado, espancado e investigado por causa de suas afirmações e sua análise do bombardeio de Al-Majalah e da guerra americana contra o terrorismo no Iêmen”, disse-me o advogado iemenita de Shaye, Abdulrahman. “Creio que ele foi preso devido a um pedido dos Estados Unidos.” Shaye reagiu ao sequestro recorrendo à Al-Jazeera e relatando sua própria prisão. Mohamed Abdel Dayem, que dirigia o programa do Oriente Médio e do norte da África da Comissão de Proteção a Jornalistas, por acaso estava no Iêmen na noite em que Shaye foi sequestrado. Tinha
ido fazer pesquisas sobre um tribunal especial criado pelo governo do Iêmen para processar jornalistas que criticavam o governo. Dois dias antes da prisão de Shaye, Dayem se encontrara com ele. “Pude ver logo que ele era um jornalista muito inteligente3 e que estava disposto a se arriscar bastante para fazer as reportagens difíceis, porque as fáceis qualquer um pode fazer”, disse. Na noite em que Shaye foi preso, Dayem estava no estúdio da Al-Jazeera em Sana’a, preparando-se para uma entrevista, quando o telefone tocou. Era Shaye. “Estou saindo da prisão”, disse ele. “Vou para casa trocar de jaqueta. Esta está suja de sangue. Chego aí em vinte minutos.” Dayem disse que, no estúdio, Shaye “pôs a boca no mundo, no ar”, contando seu sequestro e explicando por que achava que estava sendo perseguido. Nessa época, o governo dos Estados Unidos começou a dizer, privadamente, aos principais órgãos de comunicação americanos que trabalhavam com Shaye, que deveriam interromper sua relação com ele. Uma fonte de uma importante organização jornalística americana me disse que o governo tinha avisado sua empresa que Shaye estava usando sua remuneração4 para ajudar a Al-Qaeda. Uma autoridade de Inteligência dos Estados Unidos disse a outro jornalista de uma importante revista americana que “informações sigilosas” indicavam que Shaye estava “cooperando” com a Al-Qaeda. “Fiquei convencido5 de que ele é um agente”, disse a autoridade. Da mesma forma que queria Awlaki silenciado, o governo americano queria calar qualquer pessoa que divulgasse as opiniões de Awlaki ou entrevistasse líderes da AQPA. Quando o conheci num café de Sana’a, em 2011, Sharaf abanou a cabeça diante da ideia de que Shaye apoiasse a Al-Qaeda. “Abdulelah continuou a noticiar fatos, não para agradar aos americanos ou a Al-Qaeda, mas por acreditar que sua versão dos fatos era verdadeira e que o papel do jornalista consiste em dizer a verdade”, disse Sharaf. “Ele é 100% profissional”, acrescentou. “É uma figura rara no jornalismo do Iêmen, onde 90% dos jornalistas escrevem sem pesquisar nada e carecem de credibilidade.” Shaye, ele explicou,
tem a mente muito aberta e não aceita extremismo. Foi contra a violência e a morte de inocentes em nome do Islã. Também foi contra a morte de muçulmanos inocentes sob o pretexto de combater o terrorismo. Em sua opinião, a guerra contra o terror deveria ter sido travada culturalmente, e não pela via militar. Ele acha que usar de violência só vai criar mais violência e incentivar a propagação de mais correntes extremistas na região.
Nesse ínterim, Sharaf estava enfrentando seus próprios problemas com o regime iemenita por causa de uns quadrinhos sobre o presidente Saleh e de suas críticas à guerra do governo iemenita contra a minoria houthi no norte do Iêmen. Tinha criticado também os salafis conservadores. E sua estreita amizade com Shaye o punha em risco. Em 16 de agosto de 2010, Sharaf e sua família tinham acabado de quebrar o jejum do Ramadã quando ouviram gritos do lado de fora da casa. “Saiam, a casa está cercada.” Sharaf saiu. “Vi
soldados que nunca tinha visto antes. Altos e corpulentos […]. Lembravam fuzileiros navais americanos. Logo entendi que eram da unidade de contraterrorismo. Portavam fuzis modernos, com mira a laser. Usavam uniformes como os dos fuzileiros americanos”, ele me contou. Disseram-lhe que tinham vindo buscá-lo. “Qual é a acusação?”, ele perguntou. “Eles responderam: ‘Você vai descobrir’.” Enquanto Sharaf estava sendo preso, forças iemenitas tinham cercado a casa de Shaye. “Como Abdulelah recusou-se a sair, eles invadiram a casa, pegaram-no à força, espancaram-no, quebraram um dente dele”, disse Sharaf. “Fomos levados, os dois, vendados e algemados, para a prisão de segurança nacional, mantida pelos americanos.” Lá, eles foram separados e jogados em celas escuras e subterrâneas, contou Sharaf. “Ficamos presos uns trinta dias, durante o Ramadã, na prisão de segurança nacional, onde éramos interrogados continuamente.” Naquele primeiro mês, Sharaf e Shaye não se viram. Por fim, foram transferidos da prisão de segurança nacional para a prisão de segurança política do Iêmen, onde ficaram juntos numa cela.6 Sharaf acabou sendo solto, depois de prometer às autoridades que não faria mais quadrinhos sobre o presidente Saleh. Shaye não quis fazer nenhum acordo desse tipo. Shaye foi mantido na solitária durante 34 dias,7 sem acesso a advogado. Sua família não sabia sequer para onde tinha sido levado e por quê. Por fim, um prisioneiro libertado informou a seus advogados que ele estava na prisão de segurança política, e ali puderam vê-lo. “Quando Abdulelah foi preso, foi deixado num banheiro estreito, sujo e fedorento durante cinco dias. Notei que lhe faltava um dos dentes e outro estava quebrado, além de cicatrizes em seu peito”, recordou Barman. “Havia muitas cicatrizes em seu peito. Ele foi torturado psicologicamente. Disseram a ele que todos os seus amigos e parentes o tinham abandonado e que ninguém tinha se interessado por sua sorte. Ele foi torturado com informações falsas.” Em 22 de setembro, Shaye foi levado a um tribunal. Os promotores pediram mais tempo para preparar a acusação.8 Um mês depois, ele foi trancafiado numa jaula no tribunal de segurança estatal do Iêmen, criado por decreto presidencial e amplamente denunciado por grupos de direitos humanos e da imprensa como ilegal e injusto. O governo do Iêmen chamou aquilo de julgamento. “Isso mesmo. O julgamento não passa pelo teste da gargalhada, não mesmo. E o tribunal também não passa nesse teste”, disse Dayem, da Comissão de Proteção a Jornalistas. “Não consegui localizar um só processo tramitado nesse tribunal criminal especializado […] que cumprisse, mesmo que mal, os requisitos de um julgamento justo.” O juiz leu uma lista de acusações contra Shaye. Ele era acusado de ser o “homem da imprensa” para a Al-Qaeda, recrutando novos quadros operacionais para o grupo e fornecendo a Al-Qaeda fotografias de bases iemenitas e de embaixadas de países estrangeiros para possíveis ataques. “O governo tinha protocolado muitas acusações contra ele”, disse Barman.
Algumas delas eram: aderir a um grupo armado que visava prejudicar a estabilidade e a segurança do país, incitar membros da Al-Qaeda a assassinar o presidente Ali Abdullah Saleh
e seu filho, recrutar novos membros para a Al-Qaeda, trabalhar como propagandista da AlQaeda em geral e de Awlaki em particular. Pela lei do Iêmen, muitas dessas acusações são puníveis com a pena de morte.
Enquanto as acusações contra ele eram lidas, disse a jornalista Iona Craig, experiente correspondente estrangeira que enviava matérias do Iêmen para o Times, de Londres, Shaye “caminhava lentamente pela cela branca,9 sorrindo e balançando a cabeça, atônito”. Quando o juiz acabou de ler as acusações, Shaye se pôs de pé junto das grades da cela e dirigiu-se a seus colegas jornalistas: “Quando eles esconderam assassinos10 de mulheres e crianças em Abyan, quando eu revelei a localização de campos de nômades e civis em Abyan, Shabwah e Arhab, onde seriam atingidos por mísseis de cruzeiro, foi nesse dia que eles decidiram me prender”, declarou. “Vocês aqui presentes podem notar que eles transformaram todas as minhas colaborações jornalísticas em acusações. Todas as minhas colaborações e citações para repórteres internacionais e para canais de notícias viraram acusações.” Enquanto guardas de segurança o tiravam dali, Shaye gritou: “Iêmen, aqui é um lugar onde, quando um jornalista jovem faz sucesso, é olhado com desconfiança”.
42. O presidente pode criar suas próprias regras
WASHINGTON, DC, E IÊMEN, FIM DE 2010 — Enquanto as operações americanas de contraterrorismo no Iêmen se expandiam, no verão de 2010, Washington e outras forças políticas e econômicas traçavam planos para uma reestruturação neoliberal da economia daquele país. Sob a bandeira de “Amigos do Iêmen”, o governo dos Estados Unidos e o do Reino Unido se uniram à União Europeia, ao Fundo Monetário Internacional e a alguns vizinhos do Iêmen. “O progresso contra os extremistas violentos1 e o progresso no sentido de um futuro melhor para o povo iemenita dependerão do fortalecimento das iniciativas de desenvolvimento”, disse Hillary Clinton, secretária de Estado americana, numa das primeiras reuniões do grupo, em janeiro de 2010. Essas iniciativas incluíam o que Aaron W. Jost, diretor de Assuntos da Península Arábica do NSC, chamou de “assistência econômica e humanitária muito ampliada […] ao povo iemenita”.2 O governo Obama aumentou os recursos da USAID destinados ao Iêmen para financiamento, assistência humanitária e “promoção da democracia”, que eram de 14 milhões de dólares em 2008, para 110 milhões de dólares em 2010. “Não resta dúvida de que a AQPA constitui uma ameaça grave para o Iêmen, para os Estados Unidos e para nossos aliados”, afirmou Jost. “Entretanto, o apoio a operações contra a AQPA é apenas uma parte da estratégia dos Estados Unidos para o Iêmen.” Todavia, como condição para a maior assistência que o Iêmen receberia, o presidente Saleh foi obrigado a aceitar ajustes estruturais do FMI (Fundo Monetário Internacional), entre eles “a redução gradual dos subsídios públicos aos combustíveis”. Uma declaração dos “Amigos” reconhecia abertamente que “as necessárias reformas econômicas teriam impacto adverso sobre os pobres”.3 Washington e seus aliados deixaram claro para Saleh que a continuidade da ajuda militar estava condicionada à sua cooperação com as reformas econômicas. “O povo iemenita e a comunidade internacional se confrontam com ameaças reais por parte da AQPA, e talvez levem anos para derrotá-la”, declarou Jost.
Não obstante, cremos que o futuro sorri para os que constroem e não para os que se
concentram em destruir. E os Estados Unidos põem-se ao lado do povo do Iêmen no momento em que procuram construir um futuro mais positivo e rejeitar os esforços da AQPA para matar homens, mulheres e crianças inocentes.
A prioridade maior de Saleh não era reprimir a AQPA, mas derrotar as rebeliões internas dos houthis e dos secessionistas do sul. No entanto, para continuar a receber a ajuda militar americana, de que ele precisava para combater as insurgências internas, teria de provar a Washington que falava sério a respeito de combater a AQPA. O coronel Lang, que, como adido de Defesa dos Estados Unidos, passara anos negociando com Saleh, disse que o presidente iemenita estava farto do que via como uma tentativa do governo Obama de aplicar ao Iêmen a doutrina da contrainsurreição, mas tinha de fazer o jogo para continuar recebendo ajuda militar. De acordo com Lang na época:
Na verdade, Saleh não quer4 nosso envolvimento ao ponto que as plenas implicações dessa doutrina exigiria, pois nesse caso ele seria relegado, cada vez mais, à situação de um governante como Karzai […] e, na verdade, enquanto o presidente afegão [Hamid] Karzai nunca foi capaz de jogar o jogo com muita habilidade, Saleh foi. Com muita habilidade.
Acrescentou que Saleh sabia que o dinheiro proporcionado pelos “Amigos do Iêmen” e pela USAID para reforma política seria monitorado pelos Estados Unidos, “de modo que alguma propina eventual não beneficie demais a ele e a seus camaradas, e outras coisas desse tipo, o que tenderá a reduzir seu poder. Por isso, na verdade ele não vai estar a favor do plano”. No entanto, com o intenso foco americano na AQPA — seu tíquete-alimentação, em forma de ajuda militar — Saleh tinha de aceitar o jogo. Em agosto de 2010, depois da série de mortes de militares e agentes de Inteligência iemenitas pelos assassinos de motocicletas, as forças iemenitas lançaram uma grande ofensiva no distrito de Lawdar, em Abyan, suposto reduto da AQPA. Em vários dias de batalhas, teriam morrido, segundo informes, uma dúzia de soldados do governo mais dezenove pessoas que o governo iemenita identificava como membros da Al-Qaeda. Ao menos três civis morreram também, e dezenas de outros deixaram suas casas. “As forças de segurança deram aos terroristas5 da AlQaeda uma dura lição e lhes infligiram golpes dolorosos, fazendo com que terroristas que tentavam se esconder fossem obrigados a fugir, depois que dezenas deles foram mortos e feridos”, declarou o vice-ministro do Exterior do Iêmen, general Saleh al-Zaweri. Essa avaliação não contou com a anuência de Washington. As forças do JSOC vinham obtendo vitórias ocasionais sobre a AQPA, mas as Forças de Operações Especiais iemenitas eram vistas como preguiçosas e, de modo geral, incompetentes por seus colegas americanos, e a hipocrisia de Saleh muitas vezes redundava em coleta de informações de má qualidade. Em suma, havia
no Iêmen aquilo que altas autoridades americanas classificavam como “escassez de informações consistentes”.6 As forças do JSOC estavam, com certeza, mais habilitadas a achar, atacar e acabar com seus alvos, mas essas operações exigiam um cuidadoso trabalho de Inteligência. “Todos os Land Rovers7 são muito parecidos entre si”, disse ao Washington Post um ex-agente de informações americano, de alta graduação e experiente em operações no Iêmen. “Você tem de ter alguma coisa que lhe diga que aquele ali é o que você deve seguir.” Historicamente, a CIA recrutara pessoal do JSOC e de outras unidades de operações especiais para missões letais, mas a ascensão do JSOC nos governos de Bush e Obama tinha alterado esse processo. O JSOC, como me disseram fontes militares, queria mandar no jogo — e a CIA não estava nada satisfeita com isso. Em 25 de agosto, quando terminou a ofensiva de Lawdar, o Washington Post e o Wall Street Journal publicaram matérias de primeira página que se baseavam, como era evidente, em dados que a CIA e seus aliados no governo deixaram vazar. “Pela primeira vez8 desde os ataques do Onze de Setembro, analistas da CIA veem uma das ramificações da Al-Qaeda — e não o núcleo do grupo, agora instalado no Paquistão — como a mais urgente ameaça à segurança dos Estados Unidos”, começava a matéria do Post. O Wall Street Journal acrescentou que o governo estava avaliando planos para “montar um programa mais intenso9 de assassinatos dirigidos no Iêmen”. A matéria do Post atribuía a uma alta autoridade do governo, sem revelar seu nome, a afirmativa de que a AQPA estava “em ascensão”10 e que, entre o Paquistão e o Iêmen, “os graus relativos de preocupação estão aumentando. Estamos agora mais preocupados com a AQPA do que antes”. Essa fonte disse: “Estamos pensando em apelar a todos os recursos à nossa disposição”, falando de planos para “uma escalada num período de meses”. Os vazamentos pareciam indicar um jogo de poder por parte da CIA para garantir um maior papel nas operações no Iêmen, que vinham sendo dominadas pelo JSOC. “Ninguém vai achar pedaços de bombas com marcas dos Estados Unidos nelas, disse a alta autoridade, referindo-se claramente ao ataque com mísseis Tomahawk a Al-Majalah, em dezembro de 2009, e ao ataque apoiado em informações falsas em Marib, que matou o vice-governador em sua missão de negociação. A autoridade deixou claro que a Casa Branca estava avaliando um plano para usar mais drones da CIA. “A Agência tirou proveito11 de todas as críticas feitas ao desempenho do JSOC como argumento para retomar o controle sobre as operações secretas”, disse o coronel Lang, que durante a carreira trabalhou tanto com as Forças de Operações Especiais quanto com a CIA, inclusive no Iêmen. “A concorrência entre os serviços militares clandestinos e a CIA é agora maior do que antes.” Embora a CIA estivesse obviamente procurando conquistar vantagem em sua luta pelo poder com o JSOC em relação ao controle das operações no Iêmen, havia também um importante interesse estratégico, por parte do governo, em fazer uma mudança no comando da CIA: pôr as forças do JSOC sob a orientação da CIA permitiria, dentro das leis americanas, que “equipes de elite para caça-e-morte”12 atuassem com muito mais liberdade no Iêmen sem o consentimento do governo local.
Em setembro de 2010, durante a visita que John Brennan, principal consultor de Obama para contraterrorismo, fez ao Iêmen, Saleh lançou mais uma ofensiva contra a AQPA,13 dessa vez na cidade de Hawta, na província de Shabwah, a 95 quilômetros da casa de Anwar Awlaki. Liderados por unidades de contraterrorismo treinadas e armadas pelos Estados Unidos, comandos iemenitas sitiaram a cidade usando disparos de artilharia e ataques de helicópteros. Embora a importância da participação dos Estados Unidos na operação ainda seja sigilosa, autoridades militares confirmaram que forças americanas estiveram presentes. Em 20 de setembro, enquanto milhares de pessoas fugiam de suas casas, Brennan estava em Sana’a para se reunir com Saleh. A data escolhida pelo presidente Saleh para a ofensiva foi significativa, permitindo-lhe apontar a Brennan uma operação concreta e em andamento contra a AQPA. Enquanto Saleh e Brennan se reuniam, o grupo Amigos do Iêmen preparava-se para realizar reuniões em nível ministerial em Nova York para tratar de ajuda ao país. De acordo com uma declaração divulgada pelo NSC, Brennan e Saleh “discutiram colaboração14 contra a ameaça permanente da Al-Qaeda, e Brennan transmitiu ao povo iemenita os pêsames dos Estados Unidos pela perda de autoridades de segurança e cidadãos iemenitas mortos em recentes ataques da Al-Qaeda”. Embora publicamente o governo do Iêmen apregoasse seu êxito em Hawta e Lawdar, as operações redundaram em fracasso, já que os principais alvos da Al-Qaeda nos dois lugares fugiram e cresceu a fúria tribal contra o governo.
Na noite de 28 de outubro de 2010, um mês depois da reunião com Saleh, Brennan15 recebeu um telefonema de seu amigo príncipe Mohammed bin Nayef. O Serviço de Informações saudita, disse o príncipe, descobrira um plano da AQPA para abater aviões de carga dos Estados Unidos. As bombas já estavam colocadas. Pouco depois das 22h30, Brennan avisou o presidente Obama de uma “possível ameaça terrorista”16 ao território americano. A Inteligência saudita forneceu aos Estados Unidos e ao Reino Unido dados que permitiriam localizar17 os pacotes que, segundo acreditava, continham explosivos. Quando Brennan soube da trama, um dos aviões que estaria levando uma bomba já tinha decolado de Sana’a. O pacote foi transferido para um avião da UPS e levado para a Alemanha, onde foi novamente transferido antes de chegar, às 2h13,18 hora local, ao aeroporto de East Midlands, em Leicestershire, 160 quilômetros ao norte de Londres. O pacote continha um cartucho de impressão equipado com um circuito impresso. Em vez de toner, tinha pólvora branca. Testes preliminares, realizados na Grã-Bretanha, inclusive com cães farejadores e equipamento de detecção de explosivos, indicaram que não se tratava de uma bomba. O pacote permaneceu na Grã-Bretanha para novos testes,19 e o avião foi liberado, continuando a viagem para Filadélfia. Nesse ínterim, o pacote suspeito foi levado de helicóptero para análise ao Laboratório de Ciência e Tecnologia de Defesa,20 em Fort Halstead. Revelou-se depois que a pólvora continha quatrocentos gramas de PETN, o mesmo explosivo usado na roupa de baixo de Abdulmutallab e no atentado malogrado contra o príncipe Bin Nayef. O pacote
estava armado com um despertador ligado ao circuito impresso de um telefone celular Nokia. Posteriormente a Scotland Yard declarou que se a bomba não tivesse sido removida, “a ativação poderia ter ocorrido21 sobre a costa leste dos Estados Unidos”, estando a detonação prevista para ocorrer às 5h30, hora local. Uma alta autoridade britânica de contraterrorismo declarou ao The Guardian que o artefato era “um dos mais sofisticados22 já vistos. O olho nu não o detectaria, experientes peritos em bombas não o viram e é muito pouco provável que exames com raios X o localizassem”. Uma segunda bomba, com trezentos gramas de PETN, foi descoberta em Dubai,23 a bordo de um avião da FedEx. Tal como o outro pacote, fora enviado a uma organização judaica em Chicago. Ironicamente, nenhum dos dois endereços era válido. Os investigadores suspeitaram que os remetentes tinham obtido dados desatualizados pela intenet. Embora endereçados a organizações judaicas em Chicago, os pacotes tinham como destinatários figuras históricas malvistas e mortas24 havia muito tempo. Um deles tinha sido enviado a Diego de Deza, o cruel grande inquisidor que, durante um período, liderou a Inquisição espanhola. O outro era para Reynald Krak, cavaleiro francês da segunda cruzada, conhecido pelo assassinato em massa de muçulmanos. Krak acabou decapitado por Saladino, o guerreiro muçulmano que derrotou os cruzados no século XII. Na sexta-feira, 29 de outubro, os americanos viram, pelo noticiário da TV, caças americanos escoltando um avião de carga num pouso de emergência25 no aeroporto FJK. Mostraram-se imagens de outros aviões sendo revistados26 nos aeroportos de Filadélfia e Newark, e correram rumores sobre outros pacotes perigosos. Naquela noite, o presidente Obama disse que os explosivos tinham constituído “uma ameaça terrorista digna de crédito”.27 Por fim, nenhuma das bombas detonou, e a especulação quanto a explosivos a bordo de outros aviões mostrou não ter fundamento. Assim que a ligação com o Iêmen ficou clara, não houve discussão alguma no governo: todos os olhos estavam fixados na AQPA. Em novembro, a AQPA publicou um “número especial” da Inspire. A capa mostrava uma imagem borrada de um avião de carga da UPS, com uma manchete simples: “US$ 4200”. Esse fora o custo, de acordo com a AQPA, das tentativas de atentados, que o grupo chamou de “operação hemorragia”. A revista publicou fotografias que mostravam as bombas feitas com cartuchos de impressora antes de despachadas, bem como artigos que expunham os objetivos e detalhes técnicos das bombas. A AQPA alegou também ter derrubado um avião da UPS meses antes, em 3 de setembro. “Tivemos êxito28 em abater o avião da UPS, mas como os meios de comunicação do inimigo não atribuíram a operação a nós, permanecemos em silêncio para poder repetir a operação”, declarou a revista. Com efeito, um avião da UPS acidentou-se naquele dia, matando dois membros da tripulação. Segundo investigadores, o acidente ocorreu depois de um incêndio no aparelho. Autoridades americanas desmentiram29 que o acidente tivesse sido causado por um ataque terrorista. “Gostaríamos de perguntar: Por que o inimigo não revelou a verdade sobre o que aconteceu com o avião da UPS acidentado?”, dizia a declaração da AQPA. “Será porque o inimigo não descobriu como o avião foi abatido? Ou porque o governo Obama quis
esconder a verdade, de modo a não expor seu fracasso, sobretudo […] num ano de eleição?” A AQPA chamou o 3 de setembro de “dia em que uma árvore caiu numa floresta sem ninguém ouvir”. Quanto às bombas de outubro, o “chefe de Operações Estrangeiras” da AQPA escreveu na Inspire que derrubar os aviões teria sido um bônus, mas que “o objetivo não era causar baixas máximas, e sim causar prejuízos máximos à economia americana.30 Foi também por isso que escolhemos as duas empresas de carga aérea dos Estados Unidos, a FedEx e a UPS, para nossa operação dupla”. Observando que o governo dos Estados Unidos e os de outros países provavelmente gastariam quantias substanciais para rever e mudar os procedimentos de segurança dos aeroportos, ele escreveu: “Ou você gasta bilhões de dólares para inspecionar cada pacote no mundo ou você nada faz e nós continuamos a tentar”. Disse que haviam escolhido endereços em Chicago porque essa era a “cidade de Obama”. A revista publicou também a fotografia de um surrado livro de Dickens, que Awlaki lera na prisão. “Estávamos muito otimistas quanto ao resultado dessa operação”, escreveu o suposto chefe de Operações Estrangeiras. “Foi por isso que pusemos numa das caixas um romance intitulado Grandes esperanças.” Quatro dias depois da descoberta das bombas nos aviões de carga, o Iêmen indiciou Awlaki, in absentia,31 com base em acusações não relacionadas com essa trama. A acusação oficial foi “incitar ao assassinato de estrangeiros e membros de serviços de segurança”. O juiz ordenou aos promotores que caçassem Awlaki e o trouxessem a juízo, vivo ou morto. Independentemente das acusações específicas contra Awlaki, ficou claro que o indiciamento fora coordenado com Washington e pretendia conferir legitimidade à perseguição e ao possível assassinato de Awlaki, ao mesmo tempo que mais uma vez jogava a responsabilidade nos ombros dos iemenitas.
O juiz John Bates, nomeado em 2001 pelo presidente George W. Bush, ouviu uma sustentação oral no processo Al-Awlaki V. Obama que contestava a inclusão de um cidadão americano na lista de pessoas a serem mortas elaborada pelo governo. “Como se explica a exigência de aprovação judicial32 para que os Estados Unidos imponham vigilância eletrônica a um cidadão americano no exterior e ao mesmo tempo, segundo os réus, fica vedado o escrutínio judicial quando os Estados Unidos decidem pôr um cidadão americano no exterior numa lista de assassinatos dirigidos?”, perguntou o juiz. Os advogados do governo insistiram que o caso de Anwar Awlaki era um segredo de Estado, dentro de uma política de segurança nacional determinada pelo presidente e não estava na esfera dos tribunais. O juiz Bates declarou o processo “uma causa singular e extraordinária” em que “estão em jogo considerações vitais de segurança nacional e de assuntos militares e de relações exteriores (e, portanto, possivelmente de segredos de Estado)”. Bates perguntou: Pode um cidadão americano
usar o sistema judicial dos Estados Unidos para reivindicar seus direitos constitucionais, ao mesmo tempo que procura escapar às autoridades de segurança dos Estados Unidos, instando pela “jihad contra o Ocidente” e atuando em planejamento operacional para uma organização que já realizou numerosos ataques terroristas contra os Estados Unidos? Pode o Executivo ordenar a morte de um cidadão americano sem primeiro abrir contra ele alguma forma de processo judicial, baseando-se na mera assertiva de que ele é um membro perigoso de uma organização terrorista?
E o juiz Bates concluiu: “Essas e outras questões legais e de política suscitadas por esse processo são controversas e de elevado interesse público”. No entanto, o juiz Bates extinguiu a causa em 7 de dezembro de 2010, por questões processuais, determinando que o pai de Anwar, Nasser, não tinha legitimidade para abrir um processo em nome do filho e que a causa não sobreviveria a uma revisão das “questões políticas” que levantava em relação à autoridade do presidente para fazer guerra. O juiz Bates concluiu que “as sérias questões referentes aos méritos da suposta autorização para o assassinato dirigido de um cidadão americano no exterior têm de esperar uma outra época”. Os advogados de Awlaki ficaram desapontados, mas não surpresos com a decisão. A CCR e a Aclu tinham passado oito anos lutando com o governo Bush por causa das mesmas questões, embora afirmassem que esse caso tinha implicações maiores. “Se a decisão do tribunal está correta,33 o governo tem autoridade incontestável de levar a cabo o assassinato dirigido de qualquer americano, em qualquer lugar, desde que o presidente o considere uma ameaça à nação”, disse Jameel Jaffer, da Aclu, ao ser anunciada a decisão. “Seria difícil imaginar uma afirmação mais incompatível com a Constituição ou mais perigosa para a liberdade americana.” De certa forma, o processo Awlaki foi um microcosmo da mudança da atitude do presidente Obama em relação ao contraterrorismo, que passou a ser muito semelhante ao de seu antecessor: o presidente pode criar suas próprias regras.
ESTADOS UNIDOS E IÊMEN, 2001-9 — Em retrospecto, parece bastante claro o curso dos acontecimentos que fizeram com que o Iêmen se tornasse, no fim de 2009, uma séria fonte de preocupação para o governo Obama. Em novembro, o Iêmen estava em todas as manchetes e, aparentemente, associado a todas as novas e supostas tramas terroristas contra os Estados Unidos, ao mesmo tempo que os tentáculos de Anwar Awlaki alcançavam todos os incidentes. Para muitos americanos, porém, o Iêmen parecia ter surgido do nada. A presença contínua do Iêmen nos meios de comunicação teve início em 5 de novembro de 2009, quando um jovem psiquiatra do Exército americano, o major Nidal Malik Hasan — que escrevera uma série de e-mails a Awlaki — entrou no Centro de Processamento de Prontidão Militar,1 em Fort Hood, Texas, gritou “Allah u Akbar [Deus é grande]” e abriu fogo contra seus colegas de farda, matando treze pessoas e ferindo 43 antes de ser baleado e paralisado. Segundo a maioria dos depoimentos, Hasan foi levado a cometer o atentado por uma combinação de fatores relacionados com o tratamento que ele fazia de soldados que haviam combatido no Afeganistão e no Iraque. Consta que ele tentara fazer com que alguns pacientes seus fossem processados por crimes de guerra2 depois que lhe revelaram suas ações no campo de batalha, mas que tais pedidos tinham sido rejeitados. Hasan queixara-se a amigos e parentes3 que tinha sido tratado mal por alguns soldados por causa de sua religião. Segundo esses amigos e parentes, ele tentara dar baixa do Exército à medida que se esforçava cada vez mais para conciliar a fé com seu trabalho para uma Força Armada que combatia muçulmanos em terras muçulmanas. Em 2007, numa apresentação em PowerPoint que fez antes de um congresso de médicos do Exército, Hasan declarou: “Para os muçulmanos no Exército, está ficando cada vez mais difícil4 justificar moralmente o trabalho para uma força militar que parece guerrear continuamente com outros muçulmanos”. Hasan defendia a concessão da condição de objetor de consciência a muçulmanos, para prevenir o que, em suas palavras, poderiam ser “fatos adversos”. Na época do atentado, Hasan estava na iminência de ser enviado ao Afeganistão.5 Logo depois do incidente, os meios de comunicação começaram a noticiar que ele mantivera contato com Awlaki, acrescentando que frequentara a mesquita de Awlaki, na Virgínia, em 2001, embora ninguém mencionasse que eles só tinham se encontrado uma vez. O fato de ambos terem trocado ao menos dezoito e-mails a partir de dezembro de 2008 passou a ser repisado dia e noite
por jornalistas e políticos. Todavia, quando autoridades americanas de contraterrorismo passaram em revista os e-mails, determinaram que eram inócuos. Segundo o New York Times, “um analista de contraterrorismo que examinou as mensagens, logo depois de terem sido distribuídas, decidiu que eram compatíveis com pesquisas autorizadas que o major Hasan vinha realizando e não chamaram a atenção6 de seus superiores militares”. Mais tarde Awlaki declarou a um jornalista iemenita que Hasan o procurara basicamente para lhe fazer perguntas de caráter religioso. Afirmou ainda que não “dera ordens nem fizera pressão”7 para que Hasan realizasse ataques, o que foi confirmado pelos e-mails, depois de divulgados. Entretanto, a reação de Awlaki ao atentado tornou esses detalhes irrelevantes aos olhos do público e do governo americanos. Dias depois do tiroteio em Fort Hood, Awlaki postou em seu blog um texto de título nada sutil: “Nidal Hasan fez a coisa certa”. Hasan, ele escreveu,
é um herói.8 É um homem de consciência que não pôde suportar viver a contradição de ser muçulmano e servir um exército que está fazendo guerra a seu próprio povo. Essa é uma contradição que muitos muçulmanos põem de lado, fingindo que não existe. Ele abriu fogo contra soldados que estavam prestes a serem mandados para o Iraque e o Afeganistão. Como pode haver dúvida quanto à correção do que ele fez? De fato, só existe uma única forma de um muçulmano justificar, do ponto de vista islâmico, a decisão de servir como soldado no Exército americano: é tencionar seguir as pegadas de homens como Nidal.
Awlaki exortou outros muçulmanos do Exército americano a realizarem operações semelhantes. “Nidal Hasan não foi recrutado pela Al-Qaeda”,9 disse Awlaki mais tarde. “Ele foi recrutado pelos crimes americanos, e é isso que os Estados Unidos se recusam a admitir.” Essa foi a última postagem feita por Awlaki em seu blog. No dia seguinte ao do atentado, logo de manhã, o presidente Obama reuniu-se com seus principais comandantes “e lhes ordenou que fizessem uma análise completa10 da sequência de acontecimentos que levaram ao atentado”. Em sua primeira alocução semanal após o incidente, Obama disse: “Devemos reunir todas as informações já obtidas sobre o atirador e temos de saber o que foi feito com essas informações. Depois de juntarmos esses fatos, teremos de tomar medidas com base neles”. E o presidente disse ainda: “Nosso governo deve ser capaz de agir com rapidez e eficiência com relação a informações ameaçadoras. E nossos soldados precisam ter a segurança que merecem”. Embora não fossem apresentados indícios que ligassem Awlaki ao planejamento dos disparos em Fort Hood e os investigadores determinassem que Hasan não fazia parte de uma conspiração terrorista mais ampla, a suposta associação com Awlaki tornou-se parte importante da história e encorajou aqueles que defendiam uma ação mais agressiva do governo Obama no
Iêmen. Em 18 de novembro, o senador Joseph Lieberman classificou o atentado como “o ataque terrorista mais destrutivo11 contra os Estados Unidos desde o Onze de Setembro”. Um mês depois, Lieberman pedia ataques preventivos contra o Iêmen.12 De seu esconderijo em Shabwah, Awlaki acompanhava as notícias. Vasculhava os noticiários, e seus “alertas Google” vinculados a seu nome começaram a silvar de minuto a minuto. Ele podia ter sido famoso, antes, entre muçulmanos de língua inglesa, mas agora seu nome se tornara verdadeiramente global. O fato de Awlaki ter ou não exercido algum papel no ataque assassino de Hasan passou a ser irrelevante nos Estados Unidos. Seu elogio ao atentado, feito com franqueza e alegria, tornou-se uma obsessão para a imprensa, que se referia a ele como o “imã do Onze de Setembro”, e todos os dias novas reportagens esmiuçavam sua biografia. As prisões relacionadas à prostituição, seus supostos contatos com os sequestradores do Onze de Setembro, seus discursos sobre a jihad e seu blog — tudo foi entrelaçado de forma a dar a impressão de que Awlaki passara a vida inteira planejando operações terroristas contra os Estados Unidos. Na televisão, “peritos” em terrorismo pontificavam sobre sua capacidade de recrutar jihadistas ocidentais para a causa da Al-Qaeda. Não muito tempo depois do atentado de Fort Hood, o blog de Awlaki teve um fim repentino. Os Estados Unidos bloquearam seu site, cujo URL estava registrado através da Wild West Domains,13 empresa com sede em Scottsville, Arizona. “Fecharam meu site na internet,14 em decorrência da operação de Nidal Hasan”, recordou Awlaki. “Depois li no Washington Post que estavam monitorando minhas comunicações. Por isso fui obrigado a interrompê-las.” Para Awlaki, a atenção dada a ele pelos meios de comunicação era sinal de uma vida difícil: ele teria de mudar de residência sem parar e apagar qualquer pista digital que pudesse levar a ele. Se antes já sabia que os americanos queriam prendê-lo, agora passou a temer que Obama o quisesse morto.
Em outubro de 2009, Samir Khan, um jovem americano de família paquistanesa, desembarcou em Sana’a.15 Como centenas de outros muçulmanos de todo o mundo que chegam ao Iêmen a cada ano, Khan estava ali para estudar o Islã e o árabe nas mais famosas universidades antigas do país. Ao menos foi isso o que ele disse à família e aos amigos em sua cidade. Nos dez anos que antecederam sua viagem para o Iêmen, Khan se tornara cada vez mais militante em suas opiniões políticas e em sua interpretação do Islã. O Onze de Setembro e a repressão aos muçulmanos nos Estados Unidos tiveram um efeito profundo sobre ele, tal como em Awlaki. Khan nascera em 1985, em Riade, Arábia Saudita, de pais paquistaneses, um dos quais tinha cidadania americana. “Ele é filho do Natal”,16 disse sua mãe, Sarah Khan, “porque nasceu no dia 25 de dezembro.” Quando Samir tinha sete anos, a família imigrou para os Estados Unidos e foi morar na casa dos avós17 do menino no Queens, Nova York. Seus parentes eram muçulmanos conservadores, mas também se consideravam americanos patriotas. “Na
verdade, queríamos dar um futuro melhor às crianças”, disse-me Sarah. “Tínhamos grandes esperanças para este país.” Os colegas de Khan18 no ensino médio lembram-se de um garoto meio desajeitado, com calças jeans largas, jogador de futebol americano, apesar da timidez, entusiasmado com o hip-hop e o jornal da escola. “Ele sempre se interessou por esportes”, disse a mãe. “Sempre dizia que queria jogar na liga nacional de futebol.” Os interesses de Samir começaram a mudar em agosto de 2001, quando, com quinze anos, ele passou uma semana num acampamento de verão numa mesquita do Queens, patrocinado pela Organização Islâmica da América do Norte (Islamic Organization of North America, Iona), entidade conservadora ligada à organização paquistanesa Tanzeen-e-Islami. Anos depois, Khan disse numa entrevista que o acampamento tinha sido uma experiência importante para ele e que tinha voltado para a escola, naquele ano, sabendo “o que eu queria fazer na vida: ser um muçulmano resoluto, um muçulmano forte, um muçulmano praticante”.19 Abandonou as calças largas e o rap, só abrindo uma exceção para o hoje desfeito grupo de hip-hop chamado Soldados de Alá. Aproximou-se da Sociedade de Pensadores Islâmicos,20 um grupo com sede em Jackson Heights que empregava o ativismo não violento, como “dawas [convites] de rua” em sua luta por um Califado Islâmico. Quando aconteceu o Onze de Setembro, Khan não fez esforço algum para esconder dos amigos e da família suas novas atitudes em relação à religião e à política. Recusava-se a pronunciar o Juramento à Bandeira e por várias vezes discutiu com colegas de classe por declarar que os americanos tinham merecido o ataque. “Antes do Onze de Setembro, as pessoas já notavam a mudança em Samir, mas não davam muita importância”, comentou um colega de classe. “Mas, depois, mais pessoas decidiram questionar a ideologia dele e perguntavam: ‘Será que ele está tentando ser como eles [os terroristas do Onze de Setembro]? Será que pensa como eles?’.”21 Outro colega disse que Khan costumava ser alvo de piadas étnicas. No primeiro ano do ensino médio, Khan ia à escola, todo dia, usando um gorro kufi. O pai de Samir Khan notou que o filho começara a frequentar sites jihadistas na internet e fez a primeira de várias intervenções.22 No anuário do colégio, Khan referiu-se a si mesmo como um “mujahid” e escreveu que entre seus planos estava viajar “ao exterior [para] estudar a lei islâmica e outros temas relacionados ao Islã”. Incluiu em seu texto também uma máxima: “Se deres a Satã uma polegada,23 ele te governará”. Em 2003, ano em que Samir Khan concluiu o ensino médio e em que os Estados Unidos invadiram o Iraque, ele passara a ter uma visão absolutamente radical da política externa americana. A família mudou-se para a Carolina do Norte, onde o pai de Khan, Zafar, passou a trabalhar como executivo numa empresa de tecnologia da informação. Samir matriculou-se numa faculdade comunitária24 e ganhava algum dinheiro vendendo facas de cozinha e outros utensílios domésticos. Frequentava uma mesquita e, em discussões com outros muçulmanos,25 deplorava a falta de firmeza dos líderes religiosos diante das guerras americanas. Além disso, passou a dedicar muito tempo à internet, em busca de muçulmanos que
pensassem como ele, postando em seu blog notícias sobre a jihad no exterior, muitas vezes assinando seus textos como “Inshallahshaheed” ou “um mártir se Deus permitir”. Samir mantinha muitos blogs, retirando-os do ar com frequência26 e mudando de servidor quando seus comentários cáusticos passavam a ser criticados ou eram banidos pelos administradores dos servidores. Samir por fim achou guarida no Muslimpad,27 dirigido pela Islamic Network (empresa na qual trabalhara Daniel Maldonado, condenado por viajar a campos de treinamento da UCI na Somália). Um de seus blogs, também chamado Inshallahshaheed, foi lançado em 2005 e tornouse imensamente popular em 2007, quando foi incluído na lista de 1 milhão de sites28 considerados os melhores dentre os 100 milhões existentes, de acordo com o medidor de usuários <alexa.com>. Seus demais blogs tinham nomes como Human Liberation — An Islamic Renaissance and Revival [Emancipação humana — renascimento e revivificação pelo Islã]. Samir Khan enaltecia em seus blogs as vitórias e virtudes da Al-Qaeda e das organizações a ela filiadas, mas seus textos contribuíram também para popularizar um movimento ideológico mais amplo que incluía xeques e letrados de que poucos americanos tinham ouvido falar. Um blog posterior listava homens a que ele se referia como “sábios do Islã29 […] que nos transmitem conhecimentos”. Entre eles estavam Abu Musab al-Zarqawi, Aby Layth Libi e Anwar Awlaki. Um dos colaboradores do blog Inshallahshaheed era o americano Zachary Chesser,30 que seria preso em 2010 por tentar viajar à Somália para filiar-se à Al-Shabab. Em seus vários sites, Samir comemorava ataques a soldados americanos no Iraque, divulgava textos de Osama bin Laden e fazia votos pela vitória dos jihadistas sobre as forças americanas e israelenses em todo o mundo. Durante esse período, Khan começou a ser alvo da atenção da imprensa, principalmente do New York Times, que em 2007 fez um perfil dele em que o descrevia como um improvável soldado de infantaria31 naquilo que a Al-Qaeda chama de “mídia jihadista islâmica”. Nos Estados Unidos, ele se tornou um rosto novo na emergente e diversificada cultura digital militante, que começara com vídeos granulados de Zarqawi cortando cabeças no Iraque e encontrara plena expressão no que o Times chamou de uma “constelação de operadores de comunicação aparentemente independentes que estão divulgando a mensagem da Al-Qaeda e de outros grupos” para pessoas em todo o mundo, inclusive, cada vez mais, do Ocidente. Khan declarou ao New York Times que o vídeo de um homem-bomba explodindo um posto dos Estados Unidos no Iraque “trouxe-me imensa felicidade”.32 Com relação às famílias americanas que tinham parentes servindo no Iraque, ele disse: “O que acontece a seus filhos e filhas não me interessa nem um pouco”, e chamou-os de “pessoas do fogo infernal”. Embora negasse ligações com grupos terroristas e declarasse a uma TV local33 que não estava recrutando ativamente combatentes americanos, Khan deu a entender que talvez ele próprio viajasse um dia para se juntar à jihad, mas se absteve de incitar diretamente atos de violência. Chegou a contratar um advogado34 que o aconselhasse em relação aos parâmetros da liberdade
de expressão antes de lançar seu primeiro blog. Com efeito, as autoridades praticamente nada lhe fizeram, ainda que, com certeza, tenham tido sua atenção despertada: agentes da segurança interna, bem como analistas do Centro de Combate ao Terrorismo, passaram a acompanhá-lo de perto.35 Sue Myrick, deputada republicana da Carolina do Norte, mais tarde revelou ao Washington Post que estivera envolvida em iniciativas para “silenciar [Khan]36 através do FBI”. Esses esforços foram malsucedidos “porque ele não estava incitando à violência, estava simplesmente divulgando informações, e porque ele não parava de mudar de servidor”. Khan achava que as autoridades estavam fazendo alguma coisa além de ler seus blogs. “Na Carolina do Norte, o FBI pôs um espião37 na minha cola que fingia querer converter-se ao Islã”, escreveu ele. Em várias ocasiões, agentes do FBI visitaram a casa de Khan na tentativa de fazer com que os pais de Samir o persuadissem a fechar os blogs. De acordo com Sarah Khan, os agentes do FBI disseram à família que Samir não estava violando nenhuma lei e estava protegido pela liberdade de expressão, mas que estavam preocupados com a direção que ele parecia estar tomando. O pai de Samir, Zafar, chegara a ponto de cortar-lhe a conexão de internet e tentar outras medidas. Pediu ao imã38 Mustapha Elturk que tentasse persuadir Samir a reconsiderar seu radicalismo. Elturk sabia que o pai de Samir era “um muçulmano moderado,39 devotado à sua fé”. Disse que Zafar “tentou tudo que estava a seu alcance para convencer o filho e fazer com que ele falasse com imãs e com letrados muçulmanos que persuadissem” Samir de que “a ideologia da violência não é o caminho correto”. Samir “estava absolutamente convicto40 de que os Estados Unidos são um país imperialista que defende ditadores e dá apoio cego a Israel […]. Em sua opinião, justificava-se o recurso a mortes indiscriminadas”, lembrou Elturk. “Tentei usar argumentos41 tirados do Alcorão e de letrados, e disse: ‘Tudo o que você está pensando não é verdadeiro’.” Samir não se deixou abalar e continuou seu trabalho. O fruto de seus últimos meses nos Estados Unidos foi a Jihad Recollections (Memórias da Jihad), revista on-line em PDF que usava muitos recursos gráficos e publicava traduções de discursos de líderes da Al-Qaeda, além de textos originais dele próprio e de outros colaboradores. No fim de 2009, Samir tinha decidido sair dos Estados Unidos. Em seu entender, o FBI o vigiava 24 horas por dia, e ele se sentia enojado por estar cercado de muçulmanos que, segundo ele, tinham sido cooptados pela cultura americana. Samir Khan publicou o quarto e último número da Jihad Recollections em setembro de 2009. “Eu sabia que a verdade real não poderia chegar às massas a menos que eu estivesse acima da lei”, escreveu ele mais tarde. Khan viajou para o Iêmen no mês seguinte, com o pretexto de estudar árabe e ensinar inglês. Especialistas americanos em terrorismo chegaram a pensar que ele já recebera um convite42 de Awlaki para ir ao Iêmen e ajudar a liderar a “jihad midiática”. No entanto, de acordo com Sarah Khan, o Iêmen não foi a primeira opção do filho. Ele tinha procurando escolas no Paquistão e no Reino Unido, mas a papelada do Iêmen chegou primeiro. “Sabíamos da vontade dele de aprender o árabe, e ele estava em busca de boas escolas que lhe
ensinassem a língua nas quais pudesse também aprender mais sobre o Islã e entender melhor o Alcorão”, disse ela. Quando Samir disse aos pais que estava partindo para o Iêmen, a mãe ficou apreensiva, mas pensou: “Ele estará bem, já é homem-feito. É provável que precise conhecer coisas, ver o mundo por si mesmo”. Entretanto, Samir estava passando por um processo muito diferente do que seus pais pensavam. Tinha decidido que não queria mais saber das coisas que entendia como a venalidade e os pecados da classe média americana. A internet fora sua melhor sala de aula, onde ele encontrara a pregação de líderes muçulmanos que o inspiravam. Assistira aos horrores das guerras e das invasões que se seguiram ao Onze de Setembro e chegara à conclusão de que tinha a obrigação de juntar-se a outros muçulmanos na luta contra as forças dos cruzados, como ele os via. “Depois que minha fé deu um giro de 180 graus, entendi que não podia mais morar nos Estados Unidos como um cidadão complacente. Minhas convicções tinham me transformado num rebelde contra o imperialismo de Washington”, ele escreveu.
Como alguém podia afirmar ser são43 e continuar sentado sem fazer nada? Para mim, era impossível. Minha culpa [consciência] tornou-se meu modo de pensar. Não podia me imaginar como uma pessoa que perderia a oportunidade de uma vida, salvar a nação islâmica de seu apuro.
Apesar da vigilância, Samir Khan teve pouca dificuldade para deixar os Estados Unidos. “Foram necessários trinta minutos adicionais para eu pegar meu cartão de embarque na Carolina do Norte, porque, como o atendente me disse, eu estava sendo vigiado”, contou depois Khan, que admitiu sua surpresa por poder sair do país quase sem problema algum. Khan passou algum tempo em Sana’a, dando aulas de inglês, antes de fazer planos de viajar ao sul para procurar os mujahedin. “Eu estava na iminência de me tornar, oficialmente, um traidor do país em que tinha sido criado e vivido durante a maior parte de minha vida”, escreveu. “Refleti sobre muitos dos possíveis efeitos que aquilo poderia ter em minha vida. Mas, fossem quais fossem, eu estava disposto a aceitá-los!”
Morten Storm diz que conheceu Anwar Awlaki44 em Sana’a, em 2006, pouco antes que Awlaki fosse metido na prisão durante dezoito meses, a pedido dos Estados Unidos. Ex-membro de uma gangue de motociclistas e criminoso condenado, Storm, nascido na Dinamarca, se convertera ao Islã. No fim da década de 1990, começou a conviver em círculos islâmicos com o nome de Murad Storm.45 Tivera uma infância turbulenta. Cometeu seu primeiro assalto a mão armada46 aos treze anos, e na adolescência foi detido pela polícia diversas vezes. Acabou se envolvendo com a gangue internacional Bandidos.47 Em 1997, porém, renunciou à vida de
drogas e crimes, dizendo à família e aos amigos que tinha se convertido ao Islã. Mudou-se para o Iêmen,48 onde, em 2000, casou-se com uma marroquina. Dois anos depois tiveram um filho, a quem deram o nome de Osama.49 Um vídeo de 200550 mostra Storm em Londres, numa palestra do clérigo muçulmano radical Omar Bakri Mohammed. Storm afirmou que conhecera Awlaki um ano depois, em Sana’a. Na época, estudava na Universidade da Fé,51 onde Awlaki tinha aulas e dava palestras. Segundo Storm, ele e Awlaki “conversavam livremente”52 durante os meses que antecederam a prisão de Awlaki e se tornaram amigos. Disse também que enquanto Awlaki esteve preso, ele começou a mudar de opinião em relação à versão do Islã que estava praticando. “Descobri que aquilo em que eu acreditava não era, infelizmente, o que eu pensava que fosse.”53 Disse que procurou54 o Serviço de Inteligência da Dinamarca (PET) para oferecer ajuda. Teria sido apresentado a representantes de serviços de Inteligência britânicos e da CIA. O PET, declarou, designou um agente para acompanhá-lo. Quando Awlaki foi solto. Storm tornou-se potencialmente importante para a CIA. Ela e o PET “sabiam que Anwar me via como amigo55 e confidente. Sabiam que eu tinha como falar com ele e descobrir onde morava”, disse Storm numa entrevista a um importante jornal dinamarquês, o Jyllands-Posten. Disse também que as autoridades de informações dinamarquesas lhe deram dinheiro para “levar [a Awlaki] materiais e equipamentos eletrônicos”.56 Segundo Storm, a CIA queria instalar, no equipamento que ele estava entregando a Awlaki, um dispositivo de rastreamento que possibilitasse aos americanos monitorar o clérigo e possivelmente matá-lo com um ataque de drone. Em setembro de 2009, Storm voltou ao Iêmen e viajou à província de Shabwah, onde Awlaki estava escondido. Disse que ficou na casa de um simpatizante da Al-Qaeda e que, quando se avistou com o clérigo, este lhe pediu que conseguisse painéis solares ou uma geladeira portátil que ele pudesse usar para resfriar componentes de explosivos. “Conversamos também sobre os ataques terroristas.57 Ele tinha planos para atacar grandes shoppings no Ocidente ou outras partes do mundo, onde houvesse muita gente, utilizando gases venenosos.” As afirmativas de Storm não podem ser confirmadas, mas é certo que ele as transmitiu à CIA na época em que os Estados Unidos estavam reunindo evidências contra Awlaki. Perguntei ao pai de Awlaki a respeito das declarações de Storm. “Não acredito em muitas coisas do que ele disse sobre Anwar”, disse Nasser.
Eu acho que esse sujeito fazia parte de uma conspiração para pegar Anwar58 […] o homem e o personagem […] a fim de diminuir ou eliminar sua influência sobre muçulmanos e muçulmanas em todo o mundo. Então os Estados Unidos e a Dinamarca encontram um homem que foi durante a vida toda um sujeito rude, que fez um assalto a mão armada com apenas treze anos. Nos seus quarenta anos de vida, Anwar nunca se envolveu em nenhum ato
de violência contra qualquer pessoa ou grupo.
O que é indiscutível é que Awlaki pediu a Storm que lhe arranjasse mais uma esposa. Tinha se casado com uma segunda iemenita59 enquanto esteve foragido e teve uma filha com ela. Dessa vez, porém, queria, especificamente, uma branca convertida ao islamismo, para que fosse sua “companheira na clandestinidade”,60 explicou Storm. “Ele me perguntou se eu conhecia uma ocidental com quem ele pudesse se casar. Acho que ele desejava alguém capaz de entender melhor sua mentalidade ocidental”, declarou Storm ao jornal dinamarquês. Ele concordou em ajudar Awlaki. “Eu gostaria de ressaltar duas coisas”,61 Awlaki teria escrito a Storm num e-mail em fins de 2009, pedindo-lhe que as transmitisse a uma possível noiva.
A primeira é que eu não tenho residência fixa. Por isso, minhas condições de vida variam bastante. Às vezes, chego a morar numa tenda. Em segundo lugar, devido às minhas condições de segurança, às vezes tenho de me isolar, o que significa que eu e minha família não nos encontramos com outras pessoas durante períodos prolongados. Se você é capaz de viver em condições difíceis, não se importa com a solidão e aceita restrições a suas comunicações com outras pessoas, então alhamdulillah [graças a Deus], isso é ótimo.
Ao voltar a Copenhague, Storm reuniu-se com autoridades da CIA e do PET. Disse que lhe mostraram imagens, obtidas por satélites, da área onde ele estivera em Shabwah e que identificou nelas a casa onde se hospedara. Forças iemenitas executaram um ataque62 contra essa casa algum tempo depois, porém Awlaki já tinha se mudado. O dono da casa morreu. Storm também lhes falou do desejo de Awlaki de achar uma esposa ocidental. A CIA viu uma oportunidade nesse interesse. Os agentes americanos, disse Storm, ficaram “exultantes”.63 Segundo Storm, a CIA, secundada por agentes do PET, apresentou um plano. “O projeto consistia em achar uma pessoa64 que tivesse a mesma ideologia e mentalidade [de Awlaki], para que ambos fossem mortos num ataque americano de drone”, contou Storm. “Ajudei a CIA e o PET a rastrear Awlaki, para que os americanos pudessem lançar um drone contra ele. Esse era o plano.”65
31. Tiro pela culatra na Somália
SOMÁLIA E WASHINGTON, DC, 2009 — No começo do verão de 2009, o JSOC tinha bem claro o fato de que os homens identificados como as mais perigosas ameaças para os interesses dos Estados Unidos na África Oriental, Saleh Ali Nabhan e Fazul Abdullah Mohammed, ainda estavam à solta. Acreditava-se que Fazul tinha se submetido a uma cirurgia plástica,1 e os analistas de Inteligência podiam apenas fazer suposições sobre seu exato paradeiro. As pistas sobre os dois homens tinham se tornado cada vez mais vagas à medida que a Al-Shabab ampliava as áreas por ela controladas na Somália, dando a eles mais opções para se esconder ou operar discretamente. A Inteligência americana acreditava que Nabhan tinha se incorporado mais profundamente às operações da Al-Shabab desde a deposição da UCI e estava liderando três campos de treinamento que produzia muitos homens-bomba, entre eles um cidadão americano. Um telegrama diplomático secreto da embaixada dos Estados Unidos em Nairóbi dizia que
desde a escolha de Nabhan para treinador sênior2 da Al-Shabab, no verão de 2008, o fluxo de estrangeiros para a Somália ampliou-se e passou a incorporar combatentes do sul da Ásia, da Europa, da América do Norte, do Sudão e da África Oriental, principalmente do Quênia.
Esses combatentes, de acordo com o telegrama, viajavam a Mogadíscio para lutar contra a União Africana, apoiada pelos Estados Unidos, e contra as forças do governo somaliano. Os “campos continuam a treinar números cada vez maiores de estrangeiros”, concluía. O governo dos Estados Unidos queria desesperadamente tirar Nabhan de circulação, e em julho de 2009, a Inteligência americana promoveu um grande avanço potencial. Naquele mês, as forças de segurança do Quênia invadiram3 a casa de um jovem queniano de ascendência somaliana chamado Ahmed Abdullahi Hassan, que morava em Eastleigh, a superlotada favela somaliana em Nairóbi. Na noite seguinte, os captores de Hassan levaram-no ao aeroporto de Wilson: “Puseram um saco na minha cabeça,4 como em Guantánamo. Amarraram minhas mãos nas costas e me puseram num avião”, lembrou Hassan, segundo uma declaração dele relatada a mim por um investigador de direitos humanos. “De madrugada, pousamos em Mogadíscio. Soube que estava em Mogadíscio por causa do cheiro do mar — o caminho passa muito perto da
praia.” De lá, Hassan foi levado a uma prisão secreta5 nos porões da Agência de Segurança Nacional da Somália, onde foi interrogado por funcionários da Inteligência americana. Um relatório da Unidade Policial Antiterrorismo do Quênia que vazou afirmava que “Ahmed Abdullahi Hassan, também conhecido como Anas” era “um ex-assistente pessoal6 de Nabhan” e “tinha sido ferido em combate perto do palácio presidencial em Mogadíscio em 2009”. Era visto como prisioneiro de grande valor. “Fui interrogado inúmeras vezes”, dizia Hassan em sua declaração, que foi contrabandeada da prisão e chegou até mim. “Fui interrogado por somalianos e por brancos. Todo dia apareciam caras novas.” Em sua campanha eleitoral e depois de se tornar presidente, Barack Obama prometeu que os Estados Unidos deixariam de usar certas táticas de tortura e detenção da era Bush. O diretor da CIA, Leon Panetta, afirmou, em abril de 2009, que “a CIA já não tem prisões ou instalações clandestinas”7 e anunciou um “plano de desativação das unidades remanescentes”. No entanto, três meses depois, Hassan se encontrava numa prisão secreta, sendo interrogado por americanos. Segundo um funcionário americano que falou comigo com a condição de não ser identificado, Hassan não foi transferido diretamente do Quênia para a Somália pelo governo americano. No entanto, disse ele, “os Estados Unidos forneceram informações8 que ajudaram a tirar Hassan — um perigoso terrorista — das ruas”. Essa afirmação apoia a teoria segundo a qual forças quenianas estavam transferindo suspeitos em nome dos Estados Unidos e de outros governos. Outra fonte bem informada disse que Hassan tinha sido visado em Nairóbi porque a Inteligência deu a entender que ele era “o braço direito”9 de Nabhan, na época tido como o líder da AlQaeda na África Oriental. Dois meses depois que Hassan foi levado para a prisão secreta de Mogadíscio, em 4 de setembro de 2009, uma equipe do JSOC partiu em helicópteros10 de um porta-aviões situado ao largo da costa da Somália e entrou no espaço aéreo somaliano. Segundo informações “acionáveis” recentes, os homens que eles perseguiam tinham feito viagens regulares11 entre as cidades portuárias de Merca e Kismayo, perto da fronteira do Quênia. Naquele dia, esses alvos estavam viajando numa Land Cruiser, apoiado por caminhonetes com metralhadoras. Segundo testemunhas,12 os helicópteros “zuniram” sobre uma aldeia rural a caminho do ponto onde se encontrava o comboio. Em plena luz do dia, a equipe do JSOC atacou os comboios, matando as pessoas nos veículos. Os comandos americanos então pousaram e recolheram pelo menos dois corpos.13 Um deles, como se veio a confirmar mais tarde, era o de Saleh Ali Nabhan. Bryan Whitman, porta-voz do Pentágono, nada comentou sobre “uma suposta operação na Somália”,14 e também a Casa Branca se calou. Naquele dia, quando a Al-Shabab15 confirmou que Nabhan, cinco outros combatentes estrangeiros e três somalianos tinham sido mortos no ataque, já restava pouca margem de dúvida. O JSOC tinha abatido o homem mais procurado da África Oriental na primeira operação de assassinato dirigido realizada no interior da Somália com autorização do presidente Obama.
Para quadros operacionais veteranos em contraterrorismo, como Malcolm Nance, a morte de Nabhan foi um exemplo do que os Estados Unidos deviam ter feito em vez de apoiar a invasão da Somália pelos etíopes. “Sou um partidário entusiasta16 do assassinato dirigido quando se trata de pessoas que já não têm valor para nossos processos de coleta de informação. Se eles forem fortes demais para nossa capacidade de neutralizá-los no campo de batalha, o que temos de fazer é lançar um míssil Hellfire contra eles”, disse-me Nance.
Tivemos muito mais sucesso usando golpes cirúrgicos onde entramos — para dizer a verdade, muito como faz Israel — e lançamos o ataque com drones, e/ou com o Hellfire e explodimos o carro de um cara conhecido que se sabia que estava no veículo. Voamos até lá, pegamos o corpo, fizemos o reconhecimento dele e caímos fora. É assim que devia ser sempre. Devíamos estar fazendo isso há dez anos.
O ataque contra Nabhan rendeu muitos elogios a Obama vindos da comunidade de contraterrorismo e Operações Especiais, mas em outros círculos suscitou graves questões sobre o consenso emergente e suprapartidário referente a assassinatos, detenções e prisões secretas. “São como execuções sumárias”,17 disse Evelyn Farkas, ex-funcionária da Comissão de Serviços Armados do Senado, que trabalhou na área de fiscalização para o Socom de 2001 a 2008. “Quem está autorizando? Quem está fazendo as listas [de alvos]? É uma [missão] de morte ou captura ou é uma missão de morte?” Como candidato, Obama declarou que se afastaria radicalmente das políticas da era Bush, mas no caso Nabhan ele lançou mão das mais controversas dessas políticas. “Nossa política mudou alguma coisa desde o governo anterior?”, perguntou Farkas. “Minha impressão é de que não.” Jack Goldsmith, que foi subprocurador geral no governo Bush, disse que a crença de que
o governo Obama tinha revertido as políticas da era Bush está em grande medida equivocada. A verdade está mais próxima do contrário:18 o novo governo copiou a maior parte do programa de Bush, expandiu-o de alguma forma e limitou-o só um pouquinho. Quase todas as mudanças de Obama ocorreram no âmbito das aparências, da argumentação, do símbolo e da retórica.
Embora decretando o fim das prisões secretas, Obama e sua equipe de contraterrorismo encontraram uma saída pela porta dos fundos para dar-lhes continuidade. Na Somália, a prisão secreta subterrânea onde Hassan ficou detido foi a primeira usada pela CIA como centro de interrogatório de suspeitos de pertencerem à Al-Shabab ou à Al-Qaeda. Embora tecnicamente não fosse dirigida pelos Estados Unidos, a prisão dava liberdade19 aos agentes americanos para interrogar prisioneiros. Advogados contratados pela família de Hassan, supostamente o braço
direito de Nabhan, viram em seu caso a exibição de uma continuidade levemente depurada das políticas de detenção de Bush. “O caso de Hassan leva a crer20 que os Estados Unidos podem estar envolvidos numa Guantánamo descentralizada e terceirizada no centro de Mogadíscio”, disseram os assistentes jurídicos quenianos da família, observando que Hassan não teve acesso a advogados, a sua família nem à Cruz Vermelha. Em pouco tempo ficaria claro também que Hassan não era o único prisioneiro mantido na cadeia subterrânea secreta da Somália — e que o papel de Washington naquela prisão não se resumia a interrogatórios ocasionais de presos de grande valor. Com a morte de Nabhan, Fazul tornou-se o mais antigo importante dirigente da Al-Qaeda em atividade na Somália. Embora a Al-Shabab tenha sofrido dois golpes importantes em mãos do JSOC, praticamente não foi detida. Sua batalha assimétrica estava só começando. A morte de Nabhan, como várias outras vitórias “estratégicas” americanas trombeteadas com entusiasmo, acabaria sendo um tiro pela culatra. Mesmo quando executados com perfeição, os ataques dirigidos têm a característica de ajudar a reforçar a hierarquia dos grupos insurgentes e dar-lhes mártires a serem emulados. No fim de 2009, pelo menos sete cidadãos americanos21 morreram lutando em nome da Al-Shabab, e acreditava-se que dezenas de outros estivessem em suas fileiras e campos de treinamento, preparando-se para ações futuras. Embora a Al-Shabab não tivesse condições de atacar diretamente os Estados Unidos, estava mostrando que era capaz de recrutar americanos e causar sérios problemas aos fantoches do país em Mogadíscio. No processo, a Al-Shabab atrairia os Estados Unidos, a União Africana e o governo da Somália para uma repetição potencialmente desastrosa da era dos chefes de milícias da CIA, mesclada aos piores excessos do período de ocupação etíope.
É claro que o governo Obama via de outro modo os acontecimentos na Somália. Depois do assassinato dos piratas somalianos, executado à perfeição, o relacionamento do presidente Obama com o JSOC e seu comandante, o almirante McRaven, se tornou mais estreito. O governo repensou com cuidado as ordens vigentes, dadas por Bush, que autorizavam as Forças Armadas americanas a atacar terroristas onde quer que residissem, dentro da doutrina segundo a qual “o mundo é um campo de batalha”, criada por Stephen Cambone e outros arquitetos da guerra contra o terror. E eles decidiram que queriam expandir essas autorizações. O secretário de Defesa, Robert Gates, e o novo diretor da CIA, Leon Panetta, que acabava de ser nomeado por Obama, trabalharam com afinco para pôr fim ao conflito entre a CIA e o JSOC, que, alimentado por Rumsfeld e Cheney, tinha persistido durante o governo Bush. Obama queria uma máquina contraterrorista sem fissuras. Depois do ataque a Nabhan, o então comandante do Centcom, David Petraeus, atualizou22 a Ordem de Execução AQN, dando às Forças Armadas americanas, particularmente ao JSOC, um espaço muito maior para atuação no Iêmen, na Somália e em outros países. Os ataques assimétricos, relativamente raros durante o governo Bush — com o
Iraque no centro das atenções do contraterrorismo — se tornariam o foco da guerra global renomeada por Obama. Em seu primeiro ano de governo, o presidente Obama e seus assessores empenharam-se em remodelar a política contraterrorista americana em favor de um esforço mais abrangente e pleno para reduzir o extremismo, até então baseado, em grande medida, na segurança regional. Robert Gates resumiu o que se supunha ser a posição de altos funcionários civis e militares do governo Obama quando afirmou, em abril de 2009, que não haveria uma “solução puramente militar”23 para a pirataria e a guerra civil na Somália. A posição dos Estados Unidos para o país teria de se afastar da contenção. “O NSC 24 reuniu o Departamento de Estado, o DoD, a USAID, a IC e vários outros órgãos de governo para criarem uma estratégia ao mesmo tempo abrangente e sustentável”, observou o secretário de Estado assistente para Assuntos Africanos, Johnnie Carson, em 20 de maio de 2009, diante da Comissão das Relações Exteriores do Senado. A maior assistência ao governo da Somália e à Amisom seria prioritária, mas o foco permaneceria voltado para a liderança da Al-Shabab e da Al-Qaeda. As prioridades evidenciadas na primeira proposta de orçamento de Obama, no início de maio, eram evidentes: o presidente dava continuidade a uma política militarizada para a África e aumentava a assistência de segurança aos Estados africanos. O orçamento, observou Daniel Volman, diretor do Projeto de Pesquisa Segurança Africana, mostrava que “o governo está seguindo o curso25 estabelecido para o Africom pelo governo Bush, em vez de manter esses programas em suspenso até que se pudesse fazer uma revisão séria da política americana de segurança para a África”. O orçamento para a venda de armas para a África ascendeu a 25,6 milhões de dólares, contra os 8,3 milhões do ano fiscal de 2009, inclusive 2,5 milhões reservados para o Djibuti, 3 milhões para a Etiópia e 1 milhão para o Quênia. Da mesma forma, expandiram-se os programas de treinamento militar para esses países. Foram propostos mais gastos com Camp Lemonnier, assim como equipamentos navais para operações de segurança no oceano Índico. Além do uso de Camp Lemonnier como base de drones, o governo Obama chegou a um acordo com o governo das Seychelles26 para estacionar nas ilhas um esquadrão de drones MQ-9 Reaper a partir de setembro de 2009. Embora o objetivo declarado da presença dos drones fosse a vigilância desarmada em apoio a operações antipirataria, funcionários do contraterrorismo americano começaram a pressionar para que eles fossem armados e usados na caça aos homens da Al-Shabab. “Seria um erro27 supor que Obama não levará mais longe a ação militar se a situação da Somália se agravar”, concluiu Volman. Ele tinha razão. Enquanto a equipe de segurança nacional de Obama começava a esboçar uma nova e letal estratégia para lidar com a Al-Shabab na Somália e com a AQPA no Iêmen, a Al-Shabab também estava se reorganizando. Fazul tinha assumido o posto de Nabhan e estava profundamente envolvido na estrutura de liderança da organização. No fim de 2009, a Al-Shabab tinha tirado enorme proveito da invasão etíope. “Agora estamos lidando com um grupo que está lá dentro e bem entrincheirado”, disse-me Nance. Em setembro de 2009, as forças da Amisom em
Mogadíscio tinham passado de 1700 homens para 5200,28 graças, em parte, a um maior financiamento e apoio de Washington. Depois da morte de Nabhan, correram boatos de que as forças da Amisom estavam se preparando para uma ofensiva pós-Ramadã29 contra a Al-Shabab ainda naquele ano. Depois que Nabhan foi morto, quadros operacionais da Al-Shabab roubaram dois Land Cruiser30 das Nações Unidas na Somália Central e levaram-nos a Mogadíscio. Em 17 de setembro, agentes da Al-Shabab conduziram os veículos até os portões do aeroporto internacional de Mogadíscio, onde as forças da Amisom estavam reunidas em sua base com funcionários da segurança da Somália. Estacionaram os utilitários diante dos escritórios de uma empresa americana prestadora de serviços de segurança e de um depósito de combustível. Os veículos das Nações Unidas foram pelos ares numa espetacular explosão suicida. No fim, mais de vinte pessoas morreram no ataque, entre elas dezessete soldados da União Africana. Na lista de mortos estava o vice-comandante das forças da Amisom, general Juvenal Niyoyunguruza, do Burundi. “Foi muito bem-feito do ponto de vista tático”, disse um porta-voz da Amisom ao New York Times. “É como se esses caras tivessem um mapa do lugar.” Foi o ataque mais mortífero31 sofrido pela Amisom desde sua chegada à Somália, em 2007. O porta-voz da Al-Shabab, xeque Ali Mohamud Rage, reivindicou a autoria do ataque e disse que ele vingara a morte de Nabhan. “Tivemos nossa vingança32 pela morte de nosso irmão Nabhan”, declarou Rage. “Dois carros-bomba suicidas visando a base da União Africana, louvado seja Alá.” E acrescentou: “Sabíamos que o governo infiel e as tropas da UA pretendiam nos atacar depois do mês sagrado. Isto é um recado para eles”. Rage disse que no total cinco agentes da Al-Shabab participaram do ataque suicida. Pouco depois, testemunhas que tinham visto os Land Cruisers sendo preparados para a missão disseram ter ouvido dois homens-bomba falando inglês.33 “Eles falavam inglês e se identificaram como sendo das Nações Unidas”, disse Dahir Mohamud Gelle, ministro da Informação da Somália. Um site de notícias somaliano, tido como confiável, noticiou mais tarde que um dos atacantes era cidadão americano.34 Enquanto os Estados Unidos festejavam a morte de Nabhan, a Al-Shabab lançava sua própria campanha de assassinatos dirigidos.
Em 3 de dezembro de 2009, dezenas de jovens e orgulhosos somalianos estavam reunidos no Shamo Hotel, em Mogadíscio, usando becas e capelos azuis e amarelos. Numa cidade que precisava desesperadamente de médicos, eles se tornariam tábuas de salvação. Todos estavam ali para receber o diploma de medicina, concedido pela Universidade Benadir, fundada em 200235 por um grupo de médicos e acadêmicos somalianos. Num vídeo da cerimônia,36 que me foi mostrado em Mogadíscio, os jovens recém-formados sorriam para as câmeras, observados com orgulho pelas famílias e por amigos. Ao iniciar-se a cerimônia, todos se sentaram, com as autoridades na primeira fileira. Entre estas havia cinco ministros de Estado,37 inclusive os da
Educação, dos Esportes e da Saúde. Três deles pertenciam à diáspora somaliana e tinham retornado ao país para tentar reconstruir o governo. O ministro da Educação Superior,38 Ibrahim Hassan Addou, era cidadão americano, e a ministra da Saúde,39 Qamar Aden Ali, era uma somali-britânica. Cinegrafistas lotavam a beira do palco, à espera de uma momentosa entrevista coletiva. A formatura deveria ser uma mensagem à Somália e ao mundo: este é nosso brilhante futuro. Entre as pessoas que entravam no auditório do Shamo Hotel havia várias mulheres vestidas com burcas que lhes cobriam todo o corpo e quase toda a cabeça. O ex-ministro da Saúde Osman Dufle deu as boas-vindas aos presentes e começou os procedimentos quando uma das pessoas vestidas com burcas se pôs de pé, voltou-se para as autoridades da primeira fila e numa voz inequivocamente masculina disse “paz”. Antes que qualquer pessoa pudesse esboçar uma reação, o homem que estava sob a burca explodiu-se. A câmera que filmava o evento mostrou tudo branco por um momento. Quando o vídeo recomeçou, o salão cheio de fumaça tinha se tornado um cenário pavoroso. Havia membros decepados junto dos corpos a que pertenciam, e três dos ministros de governo mortos.
De repente,40 o salão tremeu e ouvi um barulho, BUM!, que vinha da frente do palco, onde a maior parte das autoridades e representantes do governo estavam sentados. Atirei-me ao chão e olhei para trás. Dezenas de pessoas estavam no chão sob uma enorme nuvem de fumaça. Outros corriam em busca da saída [...],
lembrou o jornalista somaliano Abdinasir Mohamed, que tinha saído para beber água quando o homem-bomba explodiu.
Olhei para a direita e vi um de meus colegas morto e sangrando. Não pude fazer nada. Vi as cadeiras dos representantes do governo vazias e com sangue, e muita gente ferida com gravidade. O local ficou muito escuro, parecendo um abatedouro com sangue escorrendo pelo chão.
Ao todo, morreram 25 pessoas naquele dia, entre as quais formandos, membros de suas famílias e jornalistas. Um quarto ministro de governo morreria mais tarde em decorrência dos ferimentos. Cerca de 55 pessoas ficaram feridas. O que tinha sido planejado como uma mensagem de esperança havia sido transformado numa “catástrofe nacional”,41 nas palavras do ministro da Informação. O presidente xeque Sharif culpou a Al-Qaeda pelo ataque e suplicou desesperadamente ajuda externa. “Imploramos ao mundo42 ajuda para nos defendermos desses combatentes estrangeiros”, disse. O homem-bomba foi identificado como cidadão dinamarquês43 de ascendência somaliana.
As notícias do massacre começaram a correr o mundo, e a Al-Shabab negou sua responsabilidade no caso. “Declaramos que a Al-Shabab não planejou aquela explosão”,44 disse o xeque Rage. “Acreditamos que tenha sido um complô do próprio governo. Não é próprio da Al-Shabab atacar pessoas inocentes.” Embora os ataques contra as forças estrangeiras da Amisom, apoiadas pelos Estados Unidos, possam não ter despertado a indignação entre os somalianos comuns — e é bem provável que fossem apoiadas em silêncio por grande parte da população de Mogadíscio —, mandar pelos ares uma cerimônia de formatura de médicos era indefensável. Talvez a Al-Shabab quisesse se desvincular do atentado por esse motivo, ou talvez tenha sido uma operação unilateral da Al-Qaeda, executada por um quadro operacional estrangeiro. Seja quem for que tenha planejado o ataque, o medo se instalou entre somalianos de todas as classes e posições sociais.
* * *
No começo de dezembro, o presidente Obama fez um importante discurso na Academia Militar de West Point em Nova York. Embora tenha se centrado na iminente expansão do número de soldados americanos no Afeganistão, o presidente abordou as guerras assimétricas em curso e em ampliação que seu governo vinha travando debaixo dos panos. “A luta contra o extremismo violento45 não acabará depressa e irá além do Afeganistão e do Paquistão”, declarou Obama.
Vai ser uma prova de resistência para nossa sociedade livre e para nossa liderança no mundo. E ao contrário dos conflitos entre grandes potências e as claras linhas divisórias que caracterizaram o século XX, nosso esforço vai envolver regiões caóticas, Estados falidos, inimigos difusos.
E acrescentou:
Teremos de ser ágeis e precisos no uso da força militar. Onde quer que a Al-Qaeda e seus aliados tentem estabelecer uma cabeça de ponte — seja na Somália, no Iêmen ou noutro lugar —, devem ser enfrentados com pressão crescente e parcerias fortes.
Uma semana depois do discurso em West Point, o presidente Obama recebeu o prêmio Nobel da Paz em Oslo, na Noruega. Suas afirmações conquistaram o louvor de republicanos linha-dura por sua firme defesa da projeção do poderio americano no mundo e pela afirmação segundo a qual as guerras travadas pelos Estados Unidos eram “guerras justas”. “Talvez a questão mais profunda46 sobre o recebimento deste prêmio seja o fato de que sou o comandante
em chefe das Forças Armadas de uma nação envolvida em duas guerras”, disse Obama. Elogiou os lendários militantes pacifistas Gandhi e Martin Luther King Jr. — este também contemplado com o prêmio, em 1964 — antes de expor por que discordava do pacifismo deles. Obama afirmou:
Como uma pessoa que está aqui em consequência direta do trabalho a que o dr. King dedicou a vida, sou um depoimento vivo da força moral da não violência. Sei que não há fraqueza alguma, nenhuma passividade e nenhuma ingenuidade nas convicções e na vida de Gandhi e King [...]. Mas como um chefe de Estado que jurou proteger e defender sua nação, não posso me guiar apenas pelo exemplo deles. Deparo com o mundo como ele é, e não posso ficar inerte diante das ameaças ao povo americano. Para que não restem dúvidas: o mal existe no mundo. Um movimento não violento não poderia ter detido os exércitos de Hitler. A negociação não vai convencer os líderes da Al-Qaeda a depor suas armas. Dizer que às vezes o uso da força é necessário não é um apelo ao cinismo — é o reconhecimento da história, das imperfeições do homem e dos limites da razão.
Karl Rove, que fora um dos altos assessores de Bush, disse que o discurso tinha sido “excelente”, “firme” e “eficaz”,47 enquanto muitos neoconservadores aderiam aos elogios a Obama. Newt Gingrich, ex-porta-voz republicano da Casa Branca, elogiou o fato de um “presidente liberal”48 ter ido “a Oslo para um prêmio de paz e lembrar aos integrantes do comitê que eles não teriam liberdade nem condições de conceder um prêmio de paz sem que houvesse uso da força”. Comentando os elogios de republicanos linha-dura ao discurso de Obama, o colunista Glenn Greenwald observou que tinha sido “o mais explícito discurso próguerra49 já pronunciado por alguém ao receber o prêmio Nobel da Paz”. Quando Obama voltou de Oslo com o Nobel, seu governo estava a ponto de iniciar uma nova guerra secreta e anunciar uma era na política externa dos Estados Unidos em que teria em seu cerne a expansão do programa global de assassinatos.
32. “Se matam crianças inocentes e dizem que elas são da Al-Qaeda, todos nós somos da Al-Qaeda”
WASHINGTON, DC, E IÊMEN, 2009 — Em 16 de dezembro de 2009, autoridades do mais alto escalão da segurança nacional receberam um “álbum de figurinhas” com a biografia de três supostos membros da AQPA1 que o almirante McRaven pretendia mandar matar pelo JSOC, numa “série de assassinatos dirigidos” no Iêmen. Seus codinomes eram Objetivos Akron, Toledo e Cleveland. O JSOC queria ir atrás dos alvos em menos de 24 horas e precisava da resposta dos assessores jurídicos: sim ou não. Os funcionários que organizaram a comissão da morte tinham pouco tempo para rever as informações. Tanto Harold Koh, assessor jurídico do Departamento de Estado, quanto seu congênere do Pentágono, Jeh Johnson, tiveram, segundo se relatou, apenas 45 minutos2 desde que receberam os documentos até o início da teleconferência presidida pelo JSOC que decidiria se as missões seriam ou não empreendidas. Essa reunião foi mais demorada que a maior parte das outras de mesmo tipo e envolveu algo como 75 autoridades.3 O governo Obama estava a ponto de iniciar o bombardeio do Iêmen e toda a estrutura de segurança nacional estava mobilizada. O almirante McRaven participou da reunião via teleconferência e, com o tom frio e direto que lhe era peculiar, expôs o plano militar da “ação fulminante” contra os “alvos”. O alvo principal, “Akron”, era Mohammed Saleh Mohammed Ali al-Kazemi, identificado como o homem forte da AQPA na província iemenita de Abyan. O JSOC estava à caça de Kazemi, e os homens de McRaven tinham conseguido “rastreá-lo num campo de treinamento perto da cidade de Al-Majalah”.4 Kazemi vinha escapando do JSOC havia meses. Agora, disse McRaven, a Inteligência americana havia localizado seu paradeiro com segurança. Depois de descartada uma operação de captura e da avaliação das demais opções militares, decidiu-se que o JSOC atacaria o campo com mísseis de cruzeiro. Jeh Johnson sentiu “a forte pressão exercida5 pelos militares para matar” e se considerou “atropelado e despreparado” para avaliar todas as opções. Mesmo assim, deu seu consentimento. Pouco tempo depois, num centro de comando do Pentágono, Johnson pôde ver imagens de satélite de Majalah. Vultos que pareciam do tamanho de formigas moviam-se de lá
para cá. E então, com um grande clarão, elas se evaporaram. O que Johnson presenciara via satélite era chamado, dentro do JSOC, de “TV Morte”. Agora Johnson sabia por quê. Na manhã de 17 de dezembro, o BlackBerry do xeque Saleh bin Fareed começou a tocar.6 Gente de sua tribo, a aulaq, disse-lhe que tinha havido um incidente horrível numa minúscula aldeia beduína chamada Majalah, na província de Abyan. Naquela manhã bem cedo, tinham chovido mísseis sobre as modestas casas de uma dúzia de famílias que viviam na remota e árida aldeia de montanha. Dezenas de pessoas tinham sido mortas, contaram a Bin Fareed, entre elas muitas mulheres e crianças. Bin Fareed sintonizou a Al-Jazeera bem no momento em que a notícia era dada. O locutor leu um comunicado à imprensa7 do governo iemenita que dizia que aviões de guerra iemenitas tinham atacado um campo de treinamento da Al-Qaeda, impondo um golpe devastador aos militantes. Bin Fareed ligou para o chefe de sua segurança e para seu motorista, ordenando que preparassem seu SUV para uma viagem de Áden a Al-Majalah que lhes tomaria a metade do dia.
Bin Fareed é um dos homens mais poderosos do sul do Iêmen. Sua linhagem familiar remonta aos sultões que outrora governavam a Península Arábica. Depois que o colonialismo britânico chegou ao sul do Iêmen,8 em 1839, a tribo aulaq tornou-se um de seus mais apreciados aliados tribais. De 1937 a 1963, a cidade sul-iemenita de Áden foi uma colônia da Coroa,9 com suas áreas mais remotas governadas por meio de uma série de tratados com as tribos. Bin Fareed, filho de um sultão, estudou em escolas britânicas e foi criado como membro da realeza. Em 1960, viajou ao Reino Unido para cursar a faculdade e frequentar a academia militar, e depois disso voltou ao Iêmen, onde entrou para o Exército. Em 1967, o sul do país passou a ser controlado por marxistas, e os britânicos se retiraram.10 Bin Fareed e sua família fugiram do país, acreditando que poderiam retornar em poucos meses. Levou um quarto de século. Bin Fareed acabou se acostumando à ideia de uma vida no exílio. Passou grande parte da juventude em empreendimentos de negócios em todo o Golfo e longos períodos na propriedade da família no sul da Inglaterra. Com os anos, tornou-se grande prestador de serviços de transportes e de construção no Golfo. Em 1990, Bin Fareed era um homem extremamente rico. Naquele ano, o presidente Saleh unificou o norte e o sul do Iêmen e procurou Bin Fareed. Saleh precisava da ajuda das tribos para consolidar seu controle sobre o sul do país, e fez um acordo com os xeques tribais para que retornassem. Em 1991, Bin Fareed estava de volta ao Iêmen. Na ocasião em que a Al-Qaeda começou a organizar formalmente uma base no Iêmen, em 2009, Bin Fareed tinha se tornado, mais uma vez, uma figura poderosa no país. Era membro do Parlamento, líder de uma grande tribo e estava construindo um vasto resort particular no golfo de Áden. Sabia que havia um punhado de pessoas que mantinha vínculos com a Al-Qaeda, inclusive membros de sua própria tribo, mas via-os basicamente como membros da tribo e não se preocupava muito com jihadistas, uma vez que o Iêmen estava cheio de veteranos da guerra
dos mujahedin no Afeganistão e em outros países. Mais ainda, esses homens eram considerados heróis nacionais por muita gente. Bin Fareed se lembrava do tempo em que Fahd al-Quso tinha sido preso por participação na explosão do Cole. A função de Quso teria sido filmar a explosão, mas ele não acordou a tempo.11 Quando o governo o prendeu como um dos conspiradores do atentado, Bin Fareed foi chamado como mediador, já que Quso era membro da tribo aulaq. “É a primeira vez que ouço dizer que um Awlaki pertence à Al-Qaeda”, disse ele. “E era somente ele, e talvez, acho eu, mais um ou dois.” Agora, nove anos depois, Bin Fareed via a imprensa anunciar a existência de um baluarte da Al-Qaeda bem no meio de suas áreas tribais. As notícias diziam que “nosso governo atacou a AlQaeda em Al-Majalah, onde ela tem uma base e um campo de treinamento. E tem grandes arsenais de todo tipo de armas e munições, foguetes e tudo o mais. E o ataque foi um sucesso”, disse Bin Fareed. “E as notícias nem sequer mencionaram os americanos.” Bin Fareed achava impossível que houvesse uma base da Al-Qaeda em Al-Majalah. Mesmo que lá houvesse membros da organização, pensou, o governo poderia facilmente ter enviado uma força terrestre para erradicá-los. As notícias que estava recebendo a respeito do ataque aéreo não faziam nenhum sentido para ele. Era uma área remota, mas não era Tora Bora. Ao chegar a Al-Majalah, Bin Fareed ficou horrorizado. Ele me revelou:
Quando chegamos lá, não pudemos acreditar em nossos próprios olhos. Isto é, se alguém tivesse problema de coração, acho que ia ter um ataque. Viam-se cabras e ovelhas para todo lado, viam-se cabeças de pessoas mortas aqui e ali. Viam-se corpos, viam-se crianças. Alguns deles não morreram imediatamente, mas queimando no fogo.
Havia partes de corpos distribuídas por toda a aldeia. “Não se sabia se aqueles restos eram humanos ou de animais”, lembrou ele. Eles tentaram reunir todas as partes de corpos que puderam para incinerar. “Mas nem tudo pôde ser recuperado. Parte da carne foi comida pelas aves.” Ao examinar a carnificina, Bin Fareed viu que a maior parte das vítimas era de mulheres e crianças. “Eram todos crianças, velhas, todo tipo de ovelhas, cabras e vacas. Inacreditável.” Examinou o lugar e não achou indícios de nada que pudesse se assemelhar vagamente a um campo de treinamento. “Por que fizeram isso? Por que diabos eles estão fazendo isso?”, perguntou. “Não há depósitos [de armas], não há campo de treinamento. Não há ninguém, salvo uma tribo muito pobre, uma das tribos mais pobres do sul.” Mais tarde estive com diversos sobreviventes do ataque em Abyan, entre eles um líder tribal local chamado Muqbal, poupado porque tinha ido fazer algum serviço numa aldeia próxima. “As pessoas viam a fumaça12 e sentiam a terra tremer — nunca tinham visto nada como aquilo. A maior parte dos mortos era de mulheres, crianças e velhos. Morreram cinco mulheres grávidas”, disse-me ele. Depois que os mísseis caíram, “corri para lá. Encontrei corpos
espalhados, mulheres e crianças feridas”. Uma sobrevivente gemia ao lembrar e me contar os acontecimentos.
Às seis da manhã [minha família] dormia e eu estava fazendo pão.13 Quando os mísseis explodiram, perdi os sentidos. Não sei o que aconteceu com meus filhos, minha filha, meu marido. Só eu sobrevivi, com este senhor e minha filha. Eles morreram. Todos eles morreram.
Ao todo, mais de quarenta pessoas foram mortas em Al-Majalah, entre elas catorze mulheres e 21 crianças.14 Muqbal, que adotou uma criança órfã, ficou assombrado ante a acusação de que sua aldeia era uma base da Al-Qaeda. “Se matam crianças inocentes e dizem que elas são da Al-Qaeda, então somos todos da Al-Qaeda”, disse-me ele. “Se as crianças são terroristas, somos todos terroristas.” Enquanto examinava os escombros, Bin Fareed viu objetos que pareciam ser partes de mísseis de cruzeiro Tomahawk. “É claro que nosso governo não tem esse tipo de foguete. O que quero dizer é que qualquer pessoa poderia dizer que isso pertencia a uma grande nação, a um grande governo”, disse-me ele. Foi então que eles encontraram uma parte de um míssil com etiqueta: “Made in the United States” [fabricado nos Estados Unidos]. Al-Majalah estava também cheia de bombas de fragmentação. Poucos dias depois do ataque, morreram mais três pessoas15 quando uma dessas bombas explodiu. Bin Fareed achou que o governo do Iêmen estava mentindo e que os americanos tinham bombardeado Al-Majalah e massacrado dezenas de inocentes. E decidiu provar isso. Como também fez um jovem repórter iemenita.
Abdulelah Haider Shaye era uma espécie rara de jornalista num país cuja imprensa era dominada por aduladores do regime. “Só tínhamos acesso à imprensa ocidental16 e à imprensa árabe financiada pelo Ocidente, que apresenta uma única imagem da Al-Qaeda”, lembrou seu grande amigo Kamal Sharaf, chargista político e conhecido dissidente. “Mas Abdulelah tinha uma outra visão.” Segundo Sharaf, Shaye não reverenciava a Al-Qaeda, porém via a ascensão do grupo no Iêmen como uma notícia importante. Shaye conseguia ter acesso a personalidades da Al-Qaeda em parte por causa de seu parentesco, por meio de um casamento,17 com o clérigo islâmico radical Abdul Majeed al-Zindani, fundador da Universidade da Fé e apontado pelo Departamento do Tesouro18 dos Estados Unidos como terrorista. Embora Sharaf admitisse que Shaye usava suas relações para ter acesso à Al-Qaeda, ressalvava que ele também criticava “com ousadia” Zindani e seus seguidores: “Dizia a verdade
sem medo”. Shaye tinha traçado detalhados perfis de Wuhayshi e Shihri, líderes da AQPA, e documentara suas habilidades de fabricantes de bombas. Consta que Shaye chegou a provar, nervoso, um traje de homem-bomba19 produzido pela AQPA. Era o principal cronista da ascensão do movimento. Seu trabalho jornalístico era famoso dentro e fora do Iêmen. Shaye já era bem conhecido no país como um corajoso jornalista independente, e aparentemente entrou em rota de colisão com o governo dos Estados Unidos com o bombardeio de Al-Majalah. Enquanto o caso se difundia pelo mundo, Shaye viajou para a aldeia e descobriu restos de mísseis de cruzeiro Tomahawk e das bombas de fragmentação, armas que não faziam parte do arsenal iemenita. Fotografou partes de mísseis, algumas delas com a etiqueta “Made in the United States”, e distribuiu as fotos entre as agências internacionais de notícias e as organizações de direitos humanos. Informou ainda que mulheres, velhos e crianças tinham sido a maior parte das vítimas. Depois de fazer sua própria investigação, Shaye concluiu que se tratava de um ataque dos Estados Unidos e anunciou sua conclusão para toda a imprensa e para quem quer que se dispusesse a ouvi-lo. O jovem jornalista estava se tornando uma pedra no sapato dos Estados Unidos. Mas quando passou a entrevistar Anwar Awlaki, transformou-se num alvo.
Bin Fareed e Shaye tinham razão. Al-Majalah tinha sido o tiro de largada da mais nova guerra dos Estados Unidos. Ao contrário dos programas de “ações secretas” da CIA, que exigiam notificação formal às comissões de Inteligência da Câmara e do Senado, essa operação foi executada dentro do “Programa de Acesso Especial”,20 que dava às Forças Armadas ampla liberdade para executar operações letais e secretas com pouca ou nenhuma fiscalização. No Iêmen, todas essas operações estavam sendo coordenadas pelas Forças de Operações Especiais com base no centro de operações conjuntas Estados Unidos-Iêmen em Sana’a,21 com a divisão de Inteligência do JSOC coordenando as informações, dirigindo as forças iemenitas no teatro de operações e dando as coordenadas para ataques americanos com mísseis. Dentro da base, o pessoal das Forças Armadas e da Inteligência dos Estados Unidos e do Iêmen tinha acesso a vigilância eletrônica em vídeo em tempo real, assim como a mapas tridimensionais do terreno. O pessoal dos Estados Unidos que trabalhava no Iêmen enviava informações e detalhes operacionais para a NSA em Fort Meade, para o Comando de Operações Especiais em Tampa e para outros órgãos militares e de Inteligência. Foi assim que se deu a destruição de Al-Majalah. Era 17 de dezembro. Pouco depois que a comissão de Obama se reuniu em Washington e aprovou a operação que assassinaria Kazemi e outros membros da Al-Qaeda que estavam na lista negra do almirante McRaven, o JSOC enviou aeronaves de vigilância22 para monitorar os alvos. Foi dada a largada para a operação nas primeiras horas da manhã, quando um míssil de cruzeiro Tomahawk foi disparado de um submarino ao largo da costa do Iêmen carregado com munição de fragmentação. O míssil caiu sobre um grupo de moradias em Al-Majalah. Nesse meio-tempo, outro ataque23 estava sendo
lançado em Arhab, subúrbio da capital, seguido de incursões em casas suspeitas de ligação com a Al-Qaeda executadas por homens de Operações Especiais iemenitas da unidade de contraterrorismo, onde eram treinados por americanos e apoiados pelo JSOC. A autorização para os ataques americanos foi dada a toque de caixa pelo gabinete do presidente Saleh por causa de “informações acionáveis”, segundo as quais homens-bomba da Al-Qaeda estavam se preparando para ataques24 na capital do Iêmen. O alvo em Arhab, segundo relatórios da Inteligência, era uma casa da Al-Qaeda na qual se supunha que estivesse escondido um peixe graúdo:25 Qasim al-Rimi, líder da AQPA. Em Abyan, um funcionário anônimo dos Estados Unidos disse à ABC News “que estava sendo planejado um ataque iminente26 contra um alvo americano”. Uma fonte militar que conhecia a operação contou-me que Al-Majalah tinha sido uma “operação do JSOC com submarinos e fuzileiros navais tomados de empréstimo à Marinha,27 à vigilância aérea da Força Aérea e da Marinha com estreita colaboração da CIA e da DIA na frente do Iêmen. Contando com a tripulação dos submarinos, estamos falando de 350 a quatrocentas [pessoas] na jogada”. Assim que se teve notícia dos ataques, o governo de Saleh assumiu publicamente a responsabilidade. O Ministério da Defesa do Iêmen disse que suas forças tinham empreendido “operações preventivas de sucesso”28 contra a Al-Qaeda, que 34 terroristas tinham sido mortos e dezessete presos. O Pentágono recusou-se a comentar o fato e encaminhou todos os questionamentos ao governo iemenita, que deu uma declaração assumindo a autoria dos ataques coordenados, dizendo num comunicado à imprensa que suas forças “executaram incursões simultâneas29 em que mataram e prenderam militantes”. O presidente Obama ligou para Saleh, “felicitou-o”, “agradeceu por sua cooperação30 e prometeu continuar lhe dando o apoio americano”. O ditador egípcio Hosni Mubarak também telefonou31 para expressar sua satisfação. Mas quando analistas de assuntos militares viram as imagens de Al-Majalah depois do ataque, questionaram a posse daquele tipo de armamento pelo Iêmen.32 A Al-Jazeera transmitiu imagens de cartuchos de artilharia com números de série visíveis e sugeriu que o ataque tinha sido feito com um míssil de cruzeiro americano. Abdulelah Haider Shaye foi entrevistado pela emissora e descreveu os corpos de civis que tinha visto em Al-Majalah. Entre a munição encontrada no lugar havia sub-bombas BLU 97 A/B,33 que ao explodir lançam cerca de duzentos fragmentos penetrantes a uma distância de mais de cem metros. São, essencialmente, minas terrestres voadoras capazes de triturar corpos humanos. As sub-bombas estavam equipadas também com zircônio inflamável, material incendiário que ateia fogo a objetos combustíveis com que entra em contato. O míssil usado no ataque, um BGM-109D Tomahawk, pode transportar mais de 160 bombas de fragmentação. Nenhum desses projéteis fazia parte do arsenal do Iêmen.34 Quando as notícias sobre o ataque se espalharam, o almirante Mike Mullen, chefe do Estado
Maior Conjunto, retornava, num avião militar, de uma viagem ao Iraque e ao Afeganistão e elogiou o que chamou de operações iemenitas apoiadas pelos Estados Unidos. “Realmente, dessa vez lavramos um tento.35 Acho que estamos no caminho certo”, disse. Em relação aos ataques, Mullen disse: “Aplaudo com vontade o que eles fizeram, o fato de estarem procurando especificamente aquelas pessoas, o fato de terem atacado a célula da Al-Qaeda, que cresceu substancialmente nos últimos anos ali”. Todavia, a grande maioria das vítimas do ataque não era formada por terroristas da AlQaeda. Muitas delas, segundo um telegrama diplomático confidencial americano, “eram de famílias beduínas nômades36 que moravam em tendas próximas do campo de treinamento da AQPA”. Um alto funcionário de Defesa iemenita disse que se tratava de “gente pobre que vendia alimentos e demais suprimentos a terroristas e que atuava em conluio com eles, tirando vantagem financeira da presença da AQPA na região”. Para a Al-Qaeda, a mensagem era clara: o ataque tinha sido obra dos Estados Unidos. A AQPA poderia usar as imagens da destruição, inclusive as de crianças mortas e desfiguradas, para atrair iemenitas para sua causa.
Saleh bin Fareed ficou furioso ao ver como o bombardeio de Al-Majalah estava sendo coberto pela imprensa ocidental. Praticamente todas as agências de notícias que cobriram o caso diziam que o Iêmen tivera como alvo um campo de treinamento da Al-Qaeda e que o ataque tinha sido um sucesso. Mas Bin Fareed tinha ido lá. Tinha ajudado a raspar os restos de corpos de beduínos pobres incrustados nas árvores. Tinha visto corpos de crianças retirados dos escombros. Tinha prometido a crianças órfãs que cuidaria delas, e vira as etiquetas em partes do míssil que mostravam que ele vinha dos Estados Unidos. Estava decidido a fazer com que o mundo soubesse que as vítimas do ataque não eram da Al-Qaeda — e que os Estados Unidos eram responsáveis. Em 20 de dezembro, Bin Fareed organizou uma grande reunião de líderes tribais37 de todo o Iêmen da qual participaram cerca de 150 xeques dos mais poderosos do país. Não era pouca coisa. Havia rivalidades antigas, hostilidades atuais e ódio mortal entre alguns dos mais destacados chefes presentes à reunião. Contudo, Bin Fareed convenceu todos a deixar de lado suas diferenças em favor da tarefa que tinham pela frente. “Fizemos um convite extensivo a muitos xeques de todas as tribos. Eles vieram de Marib, de Al-Jawf. Vieram do norte, vieram do sul”, ele lembrou. “Levamos gente vinda de todas as partes do país a Majalah, só para provar e mostrar a toda a imprensa que nosso governo não estava dizendo a verdade. O desastre de Majalah era obra dos americanos. E não havia Al-Qaeda nenhuma.” O objetivo de Bin Fareed era reunir milhares de iemenitas de todo o país em Al-Majalah para manifestar solidariedade às vítimas do míssil. Como tinha uma propriedade a 160 quilômetros de Al-Majalah, hospedou ali todos os líderes tribais visitantes na noite anterior, de modo que pudessem viajar juntos para a manifestação do dia seguinte.
Por volta das 21h30, quando os líderes tribais acabavam de jantar e de discutir a logística do dia seguinte, um dos seguranças de Bin Fareed aproximou-se dele e lhe segredou que meia dúzia de homens tinham chegado à propriedade. “Eles querem vê-lo”, disse o segurança a Bin Fareed, que com um gesto autorizou que fossem levados ao interior da casa. “Mas eles estão portando metralhadoras pesadas, granadas de mão e lançadores de foguetes”, disse o segurança. “Não tem importância”, replicou Bin Fareed. “Temos o mesmo equipamento. Eles não são inimigos.” Os homens entraram na casa. Eram jovens, bem vestidos e de boa aparência. Conversaram um pouco e Bin Fareed perguntou como se chamavam. Conhecia suas tribos, mas não as pessoas. Perguntou em que trabalhavam. Os homens riram e se entreolharam. “Estamos desempregados”, disse um deles. E acrescentou: “Dizem que somos da Al-Qaeda”. “E são?”, perguntou Bin Fareed. Os homens acabaram admitindo que eram. “Não há um só americano, um só israelense, um só britânico aqui em Shabwah”, Bin Fareed advertiu-os. “Vocês estão causando um monte de problemas para seu povo. Estão criando uma má reputação para nós e para as nossas tribos. Se querem lutar contra israelenses, compro umas passagens e mando vocês para a Palestina.” Bin Fareed estava perdendo a paciência. “O que posso fazer por vocês?”, perguntou. Os homens disseram que tinham ficado sabendo da manifestação em Al-Majalah e perguntaram se podiam falar ao público. “Se amanhã vocês forem lá como membros comuns de uma das tribos, serão bem recebidos”, disse-lhes Bin Fareed, mas não como representantes da Al-Qaeda. “Não”, respondeu um deles. “Queremos ir lá, fazer um discurso e falar sobre a Al-Qaeda.” Bin Fareed perdeu o controle. “Isso quer dizer que vocês são mesmo uns idiotas. Idiotas mesmo”, disse ele aos jovens. “Nossa manifestação é para provar ao mundo inteiro que não existe Al-Qaeda” em Al-Majalah e que “as pessoas mortas eram inocentes”. Se eles fossem, disse-lhes, a “imprensa vai dizer que todos nós somos da Al-Qaeda”. E advertiu-os a não comparecerem. “Se vocês forem, podem raspar minha barba se sobreviverem três dias.” Era uma advertência grave. No Iêmen, pelos costumes tribais, ter a barba raspada publicamente por outro homem é uma humilhação para toda a vida. Bin Fareed estava dizendo aos jovens da Al-Qaeda que mandaria matá-los se pusessem os pés em Al-Majalah. Na manhã seguinte, às 4h30, Bin Fareed e dezenas de líderes tribais que ele reunira em sua propriedade se dirigiram para Al-Majalah. Ao chegar, já havia dezenas de milhares de iemenitas reunidos. Havia tendas armadas e carros até onde a vista podia alcançar. “Naquele dia, calculamos que havia ali entre 50 mil e 70 mil pessoas, outras estimativas diziam que eram mais”, disse Bin Fareed. Depois que ele se instalou numa das grandes tendas e começou a repassar a programação do dia, seus seguranças irromperam. Disseram-lhe que os homens da noite anterior — os membros da Al-Qaeda — estavam num carro com um megafone fazendo um discurso. Bin Fareed pegou sua arma automática e se lançou para fora da tenda. Seus homens o seguraram. “Ou eles me matam ou eu os mato”, disse Bin Fareed. “Eu avisei.” Era tarde demais. Os homens da Al-Qaeda já tinham conseguido seu objetivo.
Enquanto Bin Fareed pegava sua metralhadora, um dos homens da Al-Qaeda, Muhammad Al-Kilwi, estava de pé num veículo falando para uma multidão na periferia da manifestação. Com a barba tingida com hena e uma jaqueta militar, ele dizia: “A guerra da Al-Qaeda no Iêmen38 é contra os Estados Unidos, não contra as Forças Armadas iemenitas”. Tendo ao lado os outros homens do grupo, que empunhavam fuzis, Kilwi jurou vingar os mortos de Al-Majalah. “Nosso problema é com os americanos e seus lacaios.” Encerrou seu breve discurso e junto com seus acompanhantes saltaram para dentro de seus veículos e desapareceram nas montanhas. Naquela noite, um vídeo do discurso foi ao ar no mundo inteiro. A manifestação de Bin Fareed foi mostrada como obra da Al-Qaeda, justamente o que ele temia. “Eles conseguiram pôr a perder nossa manifestação”, lembrou Bin Fareed. Mas no fim ele foi vingado. Os homens que tinham se apropriado de sua manifestação foram mortos poucos dias depois em outro ataque americano com míssil de cruzeiro.39 Talvez tenham sido rastreados pelos americanos depois de aparecer na manifestação, supôs Bin Fareed. “Foram mortos”, disse. “Todos eles.”
No Iêmen, a indignação com os acontecimentos de Al-Majalah se generalizava, alimentada em grande medida pela suposição de que se tratava de um bombardeio americano. O Parlamento iemenita enviou uma delegação para uma investigação in loco.40 Quando seus integrantes chegaram à aldeia, “encontraram todas as casas e seu conteúdo queimados, tudo o que restava eram pedaços de mobília” junto com “resíduos de sangue das vítimas e numerosos buracos escavados no chão pelo bombardeio […], além de muitas bombas não detonadas”. A investigação concluiu que o ataque tinha matado 41 membros de duas famílias, inclusive catorze mulheres e 21 crianças. Alguns dos que foram mortos dormiam quando o míssil caiu. O governo de Saleh insistia que tinham sido mortos catorze quadros operacionais da Al-Qaeda, mas os representantes do Parlamento que participaram da investigação disseram que o governo só tinha sido capaz de dar o nome de um deles — Kazemi, o “líder” conhecido como Akron na lista do JSOC. Jornalistas iemenitas e analistas de segurança que entrevistei estavam pasmos41 com o fato de Kazemi estar sendo mostrado como líder da Al-Qaeda, esclarecendo que ele era um veterano, já idoso, das primeiras guerras do Afeganistão e não era uma personalidade importante na AQPA. Depois do ataque, uma alta autoridade iemenita disse ao New York Times que “o envolvimento dos Estados Unidos42 gera simpatia pela Al-Qaeda. A cooperação é necessária — mas não há dúvida de que isso influencia o homem comum. Ele simpatiza com a Al-Qaeda”. Em 21 de dezembro, o embaixador Stephen Seche enviou um telegrama de Sana’a43 para Washington em que dizia que o governo iemenita “não parece muito preocupado com vazamentos não autorizados a respeito do papel dos Estados Unidos” no ataque com “a repercussão negativa da morte de civis”. Seche informou que o vice-primeiro-ministro Rashad
al-Alimi lhe dissera que “qualquer indício de envolvimento dos Estados Unidos, tal como fragmentos de munição americana encontrados nos lugares atingidos — poderiam ser explicados como equipamento adquirido dos Estados Unidos”. Mas os Estados Unidos e o Iêmen sabiam que as forças de Saleh não tinham aquele tipo de bomba. Em seu telegrama, o embaixador Seche afirmava que o Iêmen “precisa pensar com seriedade em sua posição pública e se sua estrita adesão à versão segundo a qual o ataque foi unilateral não estará prejudicando o apoio público a operações de contraterrorismo legítimas e urgentes, no caso de vir à tona evidências em contrário”. Com efeito, meses depois do ataque, a Anistia Internacional publicou provas fotográficas da existência de bombas americanas no local. O Pentágono não respondeu44 às indagações do grupo sobre a munição. “Um ataque militar desse tipo45 contra supostos militantes sem uma tentativa de prendê-los é no mínimo ilegal”, disse Philip Luther, vice-diretor da divisão da Anistia Internacional para o Oriente Médio e o norte da África. “O fato de que tantas das vítimas fossem na verdade mulheres e crianças indica que o ataque foi grosseiramente irresponsável.” A Anistia Internacional observou que nem os Estados Unidos nem o Iêmen eram signatários da Convenção sobre Bombas de Fragmentação, um tratado voltado justamente para a proibição das armas usadas no ataque. Sem confirmar publicamente que o ataque tinha sido executado pelos Estados Unidos, funcionários do governo americano não identificados “referiram-se à carência de recursos”46 quanto à decisão de usar o míssil de cruzeiro, alegando que como “os drones armados da CIA estavam comprometidos com a campanha de bombardeio do Paquistão […], só os mísseis de cruzeiro estavam disponíveis na ocasião”. Autoridades iemenitas disseram ao embaixador americano que tinham dado 100 mil dólares47 ao governador de Abyan para indenizar as famílias dos mortos. Enquanto isso, altos funcionários do contraterrorismo americano defendiam o ataque. Um deles disse ao New York Times que o ataque tinha sido “executado de forma muito metódica”48 e que as denúncias de morte de civis eram “muito exageradas”. Mas segundo o jornalista Daniel Klaidman, Jeh Johnson, o advogado do Pentágono que autorizara o ataque, teria dito a respeito de sua responsabilidade no bombardeio de Al-Majalah que “se eu fosse católico, teria de me confessar”.49 Saleh, por sua vez, disse aos Estados Unidos que queria a continuidade dessas operações “sem interrupção até erradicar esse mal”,50 e Alimi acrescentou que o Iêmen “‘deve manter o status quo’ no que se refere à negativa oficial de envolvimento dos Estados Unidos para garantir novas ‘operações positivas’ contra a AQPA”, segundo um telegrama americano enviado quatro dias depois do ataque. O ministro das Relações Exteriores do Iêmen, Abu Bakr al-Qirbi, pediu aos Estados Unidos que “mantivessem o silêncio”51 sobre seu papel nos ataques e “continuassem a encaminhar as sindicâncias ao governo iemenita, a destacar a eficiência do contraterrorismo local [do governo do Iêmen] e a acentuar que a Al-Qaeda representa uma ameaça não só para o Ocidente, como também para a segurança do Iêmen”. Enquanto diplomatas americanos continuavam a elaborar, com seus congêneres iemenitas, a versão de
acobertamento, novas operações estavam sendo programadas. O papel do governo dos Estados Unidos nos ataques praticados no Iêmen só foi revelado por vazamento de informações. Mas era claro quem estava dando as cartas. Em meio a exigências do Parlamento iemenita, que queria explicações sobre o massacre de Al-Majalah, o viceprimeiro-ministro Alimi começou a fazer circular uma versão atualizada a respeito de acobertamento, declarando: “As forças de segurança iemenitas executaram as operações com a ajuda da Inteligência da Arábia Saudita52 e dos Estados Unidos da América em nossa luta contra o terrorismo”. Embora mais perto da verdade, essa versão dos acontecimentos também era falsa. “Foram ataques com mísseis de cruzeiro53 combinados com unidades militares terrestres”, disse Sebastian Gorka, instrutor da Universidade de Operações Especiais Conjuntas do Comando de Operações Especiais dos Estados Unidos, que tinha treinado forças iemenitas.
Foi um sinal claro, dado pelo governo Obama, de que os americanos estavam levando a sério a ajuda dada ao Iêmen para eliminar as instalações da Al-Qaeda de seu território. Essas ações eram, em grande parte, executadas pelos Estados Unidos, mas com forte apoio do governo iemenita.
Segundo um alto militar dos Estados Unidos e funcionários da Inteligência, durante a incursão terrestre que se seguiu ao ataque aéreo a Ahrab em 17 de dezembro, Forças de Operações Especiais iemenitas que trabalhavam em conjunto com o JSOC encontraram um homem que seria sobrevivente de uma operação suicida da Al-Qaeda que ainda usava seu colete de homembomba. Foi preso e interrogado,54 produzindo o que os Estados Unidos acreditavam ser informações acionáveis. Uma semana depois do ataque aéreo a Abyan e das incursões terrestres na periferia de Sana’a, o presidente Obama autorizou outro golpe, baseado em parte em informações dadas pelo homem preso na incursão de Arhab. Dessa vez o alvo era um cidadão americano.
33. “Os americanos queriam mesmo matar Anwar”
IÊMEN, FIM DE 2009 - COMEÇO DE 2010 — Nasser Awlaki não tinha notícias do filho desde maio. Em 20 de dezembro de 2009, ele recebeu uma ligação do presidente Saleh que lhe causou um nó na garganta. “Ele me ligou às três da tarde1 e disse: ‘Nasser, você soube das notícias?’. Perguntei ‘Que notícias?’. E ele: ‘Há quatro horas, seu filho foi morto por um avião americano’. Perguntei: ‘Que avião americano? Onde?’.” Saleh lhe disse onde tinha sido, uma área montanhosa de Shabwah. Nasser desligou e começou a telefonar para líderes tribais da região, desesperado por informações. Não se registrara nenhum ataque aéreo. “Não sei por que o presidente me falou aquilo”, disse-me Nasser mais tarde, acrescentando que acreditava que os americanos tivessem dito a Saleh que iam pegar Anwar naquele dia, mas a operação fora cancelada por algum motivo. Qualquer que fosse a razão, agora estava claro: “Os americanos queriam mesmo matar Anwar”. Quatro dias depois do telefonema do presidente Saleh para Nasser, em 24 de dezembro, forças americanas executaram um ataque aéreo2 numa área a 650 quilômetros a sudeste de Sana’a, no vale de montanha de Rafd, província de Shabwah. Segundo registros oficiais,3 a Inteligência americana e a iemenita indicaram que Awlaki estava reunido com as duas pessoas mais importantes da florescente organização AQPA, Nasir al-Wuhayshi, ex-secretário de Bin Laden, e o líder da AQPA, Said Ali al-Shihri. Autoridades do Iêmen acusaram-nos de estar “planejando um ataque a alvos iemenitas e estrangeiros relacionados ao petróleo”.4 Os ataques aéreos mataram trinta pessoas, e as agências de notícias começaram a anunciar a morte de Awlaki e dos dois outros homens da Al-Qaeda. Antigos funcionários da Inteligência e “especialistas” em Iêmen apareceram em programas de notícias classificando essas mortes como “uma grande vitória5 na luta contra a Al-Qaeda no Iêmen”. Um alto funcionário do governo, não identificado, disse ao Washington Post que o governo Obama não tinha problema em atingir um cidadão americano que acreditava ter aderido à Al-Qaeda e afirmou: “Isso na verdade não muda nada6 do ponto de vista da possibilidade de visá-los” porque “eles são agora parte do inimigo”. O fato de o presidente ter autorizado um ataque assassino contra um cidadão americano passou quase sem questionamento tanto por democratas quanto por republicanos. Apesar de os relatos dos ataques como obra de americanos terem chegado a grandes agências
de notícias, principalmente por meio do vazamento de informações propiciado por funcionários americanos que tentavam mostrar que estavam atacando a Al-Qaeda, não houve reivindicação oficial das ações pela Casa Branca ou pelo Pentágono. “Embora os Estados Unidos tivessem conseguido evitar críticas mais pesadas,7 o contínuo vazamento de informações procedentes de Washington e a cobertura da imprensa internacional sobre o envolvimento americano poderiam despertar ressentimentos antiamericanos no Iêmen”, dizia um telegrama enviado da embaixada dos Estados Unidos em Sana’a a Washington. Nasser assistiu aos noticiários que davam seu filho por morto. Conseguiu achar na tribo uma pessoa proeminente que estava em contato com Anwar. “Fui informado naquele dia de que meu filho não estava lá, mas não estava morto”, lembrou ele. Quando um repórter do Washington Post lhe telefonou e pediu-lhe que comentasse a morte de Anwar, Nasser disse que ele estava vivo. Nesse meio-tempo, a CBS News entrevistou uma fonte no Iêmen que disse que Anwar não apenas estava vivo como os ataques tinham ocorrido “longe de sua casa8 e que ele nada tinha a ver com os mortos”. Estivessem ou não no local, nem Wuhayshi nem Shihri tinham sido mortos no ataque. “Eles decidiram matar [Anwar] no fim de 2009”, disse-me Nasser.
É legítimo que os Estados Unidos matem um cidadão americano sem o devido processo legal? Quero que algum advogado americano decente me diga se está certo o governo matar um cidadão americano com o pretexto de que ele disse alguma coisa contra os Estados Unidos ou contra seus soldados. Não conheço integralmente a Constituição americana, mas não creio que ela permita que se mate um cidadão americano por ter dito algo contra os Estados Unidos.
Enquanto o governo americano caçava Anwar Awlaki, o jornalista iemenita Abdulelah Haider Shaye conseguiu localizá-lo para uma entrevista exclusiva que foi transmitida mundialmente e traduzida para uma porção de línguas. Nos Estados Unidos, ela foi transmitida pela principal rede americana de TV e saiu nos jornais. A entrevista não teve nada de cordial, pois Shaye chegou a ser rude9 e deu a impressão de realmente querer respostas. Entre outras coisas, Shaye perguntou a Awlaki: “Como o senhor pode concordar com o que Nidal Hasan fez ao trair sua nação americana? Por que o senhor abençoa os atos de Nidal Hasan? O senhor tem alguma relação direta com o incidente?”. Shaye também apertou Awlaki quanto a incoerências de suas entrevistas anteriores. Com o questionamento de Shaye, Awlaki articulou em profundidade a defesa do massacre perpetrado por Nidal Hasan em Fort Hood e disse a Shaye que queria “esclarecer” sua posição sobre o múltiplo assassinato. Awlaki disse ao jornalista:
Eu não recrutei Nidal Hasan, mas os Estados Unidos sim, com seus crimes e suas injustiças, e é isso que os Estados Unidos não querem admitir. Não querem admitir que o que Nidal fez, e o que milhares de muçulmanos como ele estão fazendo ao lutar contra os Estados Unidos, decorre de sua política opressiva contra o mundo islâmico [...]. Nidal Hasan, antes de ser americano, é muçulmano, e também é da Palestina e vê o que os judeus estão fazendo ao oprimir seu povo com o apoio e a cobertura dos americanos. Sim, eu devo ter tido uma influência na orientação intelectual de Nidal, mas a questão não passa disso, já que não tento me desvincular do que Nidal fez por discordar dele, mas seria uma honra para mim ter tido um papel maior nisso.
Awlaki mostrou ao jornalista sua correspondência por e-mail com Hasan, para que Shaye pudesse tirar suas próprias conclusões sobre seu conteúdo. “Entreguei-a a você para publicação porque o governo americano proibiu que fosse publicada”, disse-lhe Awlaki.
Por que eles não querem que isso venha à tona? Qual é o motivo? Será que querem esconder suas falhas de segurança? Ou não querem admitir que Nidal Hasan era um homem de princípios e que prestou um serviço ao Islã? Será que [querem] mostrar o fato como um ato individual que não tem relação com os atos do criminoso Exército americano?
Awlaki disse que o governo americano tinha interceptado os e-mails que ele trocara com Hasan, inclusive o primeiro, enviado um ano antes dos tiros em Fort Hood, no qual Hasan “perguntava se matar soldados e oficiais americanos era legal ou não”. Awlaki disse que os e-mails revelavam o fracasso dos órgãos da Inteligência americana. “Fico imaginando onde estariam as forças de segurança americanas que um dia proclamaram-se capazes de distinguir, do espaço, os números de qualquer placa de carro do mundo.” Shaye causara problemas para os Estados Unidos e para o governo iemenita ao revelar o papel dos Estados Unidos no bombardeio de Al-Majalah e em outros ataques. Agora ele estava em contato com Anwar Awlaki, dando ao pregador outra oportunidade de enviar sua mensagem. Shaye era um jornalista sério, que investigou assuntos importantes em seu país. Pelo menos suas entrevistas trouxeram à IC dos Estados Unidos, a políticos e teóricos do assassinato munição para apoiar sua campanha pela eliminação de Awlaki. Não obstante, os Estados Unidos percebiam Shaye como uma ameaça — e uma ameaça com a qual era preciso lidar. Enquanto isso, Awlaki estava se tornando rapidamente um nome conhecido. Depois dos ataques e das incursões de dezembro, a imprensa e o Congresso começaram a acordar para o fato de que os Estados Unidos pareciam encaminhar-se para uma guerra não declarada no Iêmen. Os acontecimentos do Natal de 2009 abalariam o país inteiro.
O presidente Barack Obama e sua família entoavam canções natalinas10 no Havaí quando um de seus assessores interrompeu a festa, chamou Obama a um canto para um telefonema urgente de John Brennan, seu principal conselheiro para contraterrorismo. Poucas horas antes, um jovem nigeriano, Umar Farouk Abdulmutallab, embarcara no voo 253 da Northwest Airlines11 no aeroporto de Schiphol em Amsterdam. Três dias antes, ele fizera 23 anos. Por volta das oito da manhã, hora local, ele percorreu o corredor do avião e acomodouse na poltrona 19A. Às 8h45, o avião decolara e sobrevoava o Atlântico em direção a Detroit. O pai de Abdulmutallab,12 Alhaji Umaru Mutallab, era um empresário aposentado que servira como comissário de Desenvolvimento Econômico na Nigéria e um dos homens mais ricos do continente africano. O caminho que levou o jovem e rico nigeriano ao voo 253 passava pelo Iêmen. Abdulmutallab frequentara escolas particulares de elite em Lomé, Togo, onde era conhecido por ser um muçulmano fervoroso, e foi lembrado por um de seus mestres como “o sonho de todo professor”.13 O jovem passou parte do ano de 2005 estudando árabe14 em Sana’a e, como muitas personalidades vigiadas no Iêmen pelo aparelho de contraterrorismo dos Estados Unidos, frequentou palestras na Universidade da Fé. No mesmo ano, mudou-se para Londres, onde matriculou-se numa faculdade.15 Foi lá que ele se tornou presidente do University College da sociedade islâmica de Londres e participou de protestos não violentos contra as guerras dos Estados Unidos e do Reino Unido em países muçulmanos. Organizou ainda uma conferência para denunciar a “guerra contra o terror”. Em pelo menos duas ocasiões, Abdulmutallab viajou aos Estados Unidos16 em visita e, em 2008, obteve um visto para entradas diversas no país. Em agosto de 2008, compareceu a palestras num instituto islâmico do Texas17 antes de voltar ao Iêmen para estudar árabe. O pai de Abdulmutallab disse que durante esse período o filho se tornara cada vez mais radical, ficou obcecado pela Sharia e pelo que ele chamava de “verdadeiro Islã”.18 Finalmente, Abdulmutallab sumiu do mapa. Seu pai ficou tão preocupado que, em 19 de novembro de 2009, foi até a embaixada americana na Nigéria,19 onde encontrou-se com dois funcionários da segurança americana, mais tarde identificados como agentes da CIA, e lhes disse que seu filho tinha desaparecido no Iêmen. Durante o encontro, ele mencionou “as opiniões religiosas extremas”20 do filho. Quando o voo 253 começou a descer em Detroit, Abdulmutallab queixou-se de uma dor de estômago e entrou no banheiro, onde ficou cerca de vinte minutos. Quando retornou a sua poltrona, cobriu-se com uma manta. Momentos depois, segundo o relato de outros passageiros, ouviu-se um barulho como o de um traque. Num piscar de olhos, um pedaço da calça de Abdulmutallab estava em chamas, assim como parte da parede interna do avião. Um passageiro que estava perto pulou sobre ele, e comissários de bordo correram para apagar o fogo. Quando
um comissário perguntou a Abdulmutallab o que ele tinha na calça, ele teria respondido: “Material explosivo”.21 Era a manhã de Natal, e por todos os Estados Unidos as famílias estavam abrindo presentes e se preparavam para as celebrações quando correu a notícia de que ocorrera um atentado num avião comercial americano. Logo depois que se tornou público que Abdulmutallab contrabandeava explosivos na roupa de baixo, ele se tornou conhecido como o “Homem da Bomba na Cueca”. Não demorou muito para que se descobrisse a ligação de Abdulmutallab com o Iêmen, com um intenso foco em seu possível envolvimento com a AQPA. O fato de haver PETN entre os explosivos da bomba improvisada da cueca de Abdulmutallab foi tido como indício22 do envolvimento de Ibrahim Asiri, que fez com esse material a bomba que seu irmão usara no atentado contra o príncipe Bin Nayef da Arábia Saudita meses antes. Enquanto o governo Obama se apressava em reagir, começaram a surgir boatos na IC americana e entre parlamentares republicanos. Em pouco, Abdulmutallab era apresentado como quadro operacional da AQPA enviado a uma missão suicida23 por Anwar Awlaki. A Inteligência iemenita informou aos Estados Unidos que Abdulmutallab tinha viajado a Shabwah, área tribal de Awlaki, em outubro de 2009, onde teria sido posto em contato com membros da AQPA. Uma fonte do governo americano disse que a Agência Nacional de Segurança tinha interceptado uma “comunicação de voz”24 entre Abdulmutallab e Awlaki no outono de 2009 e concluiu que este “estava envolvido de alguma forma na organização do transporte ou da viagem do rapaz pelo Iêmen. Podia ser para treinamento, uma porção de coisas. Não creio que saibamos com certeza”, declarou a fonte anônima ao Washington Post. Um líder tribal de Shabwah, Mullah Zabara, disse-me mais tarde que vira o jovem nigeriano na fazenda de Fahd al-Quso, suposto participante da conspiração que determinou o bombardeio do USS Cole. “Ele estava regando as plantas”,25 contou-me Zabara. “Quando vi [Abdulmutallab], perguntei a Fahd: ‘Quem é ele?’.” Quso disse a Zabara que o jovem era de outra região do Iêmen, o que Zabara sabia que era mentira. “Quando o vi na TV, Fahd me contou a verdade.” O papel de Awlaki no “complô da cueca” não estava claro. Mais tarde, Awlaki diria que Abdulmutallab era um de seus “alunos”.26 Fontes tribais de Shabwah27 disseram-me que quadros operacionais da Al-Qaeda procuraram Awlaki para dar aconselhamento religioso a Abdulmutallab, mas que Awlaki não estava envolvido no complô. Mesmo tendo elogiado o ataque, Awlaki disse que não esteve envolvido em sua concepção ou em seu planejamento. “Sim, houve algum contato entre mim e ele,28 mas não dei uma sentença permitindo-lhe que executasse essa operação”, disse Awlaki a Abdulelah Haider Shaye numa entrevista para a AlJazeera poucas semanas depois da tentativa de ataque:
Apoio o que Umar Farouk fez depois de ter visto meus irmãos sendo mortos na Palestina durante mais de sessenta anos, e outros sendo mortos no Iraque e no Afeganistão. Em minha tribo, mísseis americanos também mataram mulheres e crianças, então não me pergunte se a
Al-Qaeda matou ou se explodiu um avião civil americano depois de tudo isso. Os trezentos americanos não se comparam aos milhares de muçulmanos que foram mortos.
Shaye pressionou Awlaki sobre a tentativa de derrubar o avião, lembrando-lhe que era um avião de carreira civil. “O senhor apoiou Nidal Malik Hasan e justificou seu ato dizendo que o alvo era militar, e não civil. O avião de Umar Farouk Abdulmutallab era civil. Isso quer dizer que o alvo era o público americano?”, insistiu. “Teria sido melhor se fosse um avião militar ou um alvo militar americano”, respondeu Awlaki. Mas acrescentou:
O povo americano vive [em] um sistema democrático e por isso eles são responsáveis por suas políticas. Foi o povo americano que votou duas vezes no criminoso Bush e elegeu Obama, que não é diferente de Bush, já que em suas primeiras palavras afirmou que não abandonaria Israel, e isso apesar de haver outros candidatos contrários à guerra nas eleições americanas, que tiveram poucos votos. O povo americano participou de todos os crimes de seu governo. Se se opusessem a eles, mudariam o governo. Eles pagam os impostos que são investidos no Exército e mandam seus filhos para as Forças Armadas, é por isso que têm a responsabilidade.
Pouco depois da tentativa de explosão, a AQPA deu uma declaração pela internet em que louvava Abdulmutallab como um herói que tinha “superado toda a tecnologia, aparelhos modernos e sofisticados e as barreiras de segurança dos aeroportos” e “atingiu seu alvo”. A declaração se gabava de que “os irmãos mujahedin do Departamento de Manufatura” tinham construído o dispositivo, que não detonou por “uma falha técnica”.29 Quatro meses depois da tentativa de ataque, a AQPA divulgou um vídeo30 que mostrava Abdulmutallab armado com um fuzil Kalashnikov, usando um keffiyeh, num campo de treinamento no deserto do Iêmen. No vídeo, homens mascarados treinavam com munição real. Uma cena mostra quadros operacionais da AQPA atirando contra um drone em voo. No fim do vídeo, Abdulmutallab lia uma declaração de martírio em árabe. “Vocês, da irmandade muçulmana da Península Arábica, têm o direito de fazer a jihad porque o inimigo está em sua terra”, dizia ele, diante de uma bandeira e um fuzil, vestido de branco. “Deus disse que se vocês não revidarem, vai castigá-los e substituí-los.” O incidente deu munição aos republicanos e a ex-funcionários do governo Bush, que acusaram o presidente Obama e sua equipe de segurança nacional de ignorar repetidos sinais de alarme que prenunciavam o incidente, dizendo que o aviso do pai de Abdulmutallab à embaixada em Abuja, Nigéria, deveria ter sido levado mais a sério. Um funcionário da Inteligência retrucou, declarando à Newsweek:
Embora seja a hora das críticas e das acusações a posteriori,31 não vi nada na reunião de Abuja que justificasse incluir o nome de Abdulmutallab na lista de pessoas proibidas em aviões. O que se tinha era um jovem cada vez mais religioso que dava as costas à vida de opulência levada por sua família. Isso por si só não faz dele um são Francisco nem um pistoleiro. É claro que cada dado parece diferente quando se sabe a resposta, como todos sabem agora.
Ao mesmo tempo, os republicanos usavam o incidente para mostrar Obama como um pacifista ingênuo. “O governo Obama chegou dizendo32 ‘não vamos mais usar a palavra “terrorismo”. Vamos falar em “desastres provocados pelo homem”’, tentando, você sabe como, acho eu, minimizar a ameaça do terrorismo”, ironizou o representante Pete Hoekstra, na época vice-presidente da Comissão de Inteligência da Câmara, em declaração à Fox News dois dias depois do ataque frustrado. Em 30 de dezembro, o ex-vice-presidente Cheney desfechou outro ataque público destrutivo contra Obama: “Da maneira como vejo os acontecimentos dos últimos dias, fica claro mais uma vez que o presidente Obama está tentando fingir que não estamos em guerra”,33 declarou.
Ao que parece, ele pensa que se der uma resposta discreta à tentativa de explodir um avião de passageiros e matar centenas de pessoas nós não estaremos em guerra. Parece que pensa que se der aos terroristas os mesmos direitos dos americanos, permitindo que se recusem a responder a perguntas e informando-lhes sobre os direitos dos presos, não estaremos em guerra.
O ataque de Cheney foi ousado, sobretudo por sua hipocrisia. Quando o “homem da bomba no sapato”, Richard Reid, tentou explodir um avião de modo semelhante, o governo Bush processou-o em tribunais civis, e Rumsfeld declarou que “a questão estava em mãos dos agentes da lei”.34 Ao contrário de Obama, que manifestou-se prontamente após o incidente, o presidente Bush levou seis dias para se pronunciar sobre o ataque de Reid. Mais tarde, Cheney disse que Obama “ao que parece, pensa que livrando-se das palavras ‘guerra ao terror’ não estaremos em guerra. Mas estamos em guerra, e quando o presidente Obama finge que não estamos, provoca insegurança”.35 A declaração de Cheney foi uma fenomenal distorção dos fatos. Obama já havia bombardeado o Iêmen, em seu primeiro ano de governo, mais vezes do que Bush e Cheney nos oito anos de seus dois mandatos na Casa Branca. “Uma porção de imbecis36 que tenho visto na rede mostra que eles não sabem do que estão falando”, vociferou Brennan em declaração ao New York Times. “Quando dizem que o governo não está em guerra com a Al-Qaeda, é pura besteira. Eles estão é fazendo o jogo da Al-Qaeda em seu esforço estratégico, que consiste em nos fazer brigar internamente em vez de nos centrarmos nela.” Em sua posse, Obama tinha declarado que “nossa nação está em guerra37
contra uma grande rede de violência e ódio”. No que se refere ao Iêmen, Obama com certeza entendeu a presença da Al-Qaeda no país como um alvo prioritário, apesar das acusações públicas de Cheney. Enquanto o governo Obama enfrentava olhares perscrutadores sobre a maneira como lidava com o incidente, também intensificava a ação militar dos Estados Unidos contra a AQPA. “Estamos aumentando nossa presença ali,38 e temos de fazer isso, de nossas atividades de Operações Especiais, de boinas-verdes, da Inteligência”, afirmou o senador Joe Lieberman na Fox News. Lieberman, que viajou ao Iêmen em agosto, disse que “uma pessoa de nosso governo me disse em Sana’a, capital do Iêmen: ‘O Iraque é uma guerra de ontem. O Afeganistão é a guerra de hoje. E se não agirmos preventivamente, o Iêmen será a guerra de amanhã’. Esse é o risco que corremos”. Da mesma forma que Cheney, parecia que Lieberman estava atrasado. A guerra no Iêmen já estava em curso.
* * *
No começo de 2010, o governo Obama continuava a minimizar a interferência no Iêmen, e as autoridades repetiam variações da mesma história: os Estados Unidos estavam apenas dando apoio às operações de contraterrorismo do Iêmen. “As pessoas me indagam — a questão sempre vem à tona — se estamos enviando soldados ao Iêmen”,39 disse o almirante Mike Mullen, presidente do Estado-Maior Conjunto, numa palestra no Colégio Naval dos Estados Unidos em 8 de janeiro. “A resposta é: não temos planos para isso e não devemos nos esquecer de que se trata de um país soberano. E países soberanos escolhem quem vai entrar em seu território e quem não vai.” Esses comentários encontraram eco na fala do próprio presidente dois dias depois. “Vimos durante todo o último ano40 que a Al-Qaeda tornou-se um problema mais grave no Iêmen”, disse Obama em 10 de janeiro. “Em consequência disso, fizemos uma parceria com o governo iemenita para atacar os campos de treinamento e as células dos terroristas de uma forma muito mais determinada e contínua.” Sem meias palavras, Obama disse: “Não tenho intenção de mandar tropas à frente de batalha” no Iêmen. Incrível declaração de um comandante em chefe que, durante um ano inteiro, manteve soldados no campo de batalha, entrincheirados, ativos e em número crescente. A presença dos Estados Unidos era pequena, mas o JSOC estava em campo com autorização direta do presidente. Em Sana’a, o Departamento de Estado observou que havia “um número cada vez maior de elementos das Forças Armadas41 com base na embaixada [dos Estados Unidos]” como parte da expansão da “presença militar americana”. De acordo com a Resolução 38 — NSDD-38, emitida em 1982, o embaixador dos Estados Unidos tinha a atribuição de autorizar42 a entrada de todo o pessoal enviado ao Iêmen. Em junho de 2010, a embaixada relatou que estava lidando com um “fluxo diário de propostas de engajamento apresentadas pelas Forças Armadas dos Estados Unidos” e solicitações de pessoal de Inteligência e das Forças Armadas que solicitavam “vistos
de entrada” para o desempenho de “tarefas temporárias”. O oficial de ligação entre o Comando de Operações Especiais e a embaixada era o tenente-coronel Brad Treadway, que exercera a mesma função para uma equipe dos SEALs do Grupo Naval de Guerra Especial no Iraque nas primeiras fases da invasão americana. Era sem dúvida um homem ocupado, já que as equipes de Operações Especiais estavam em franca expansão. No fim de janeiro, o JSOC já tinha participado de mais de duas dúzias43 de incursões terrestres e ataques aéreos no Iêmen desde o bombardeio de Al-Majalah em 17 de dezembro. Dezenas de pessoas morreram nessas operações e outras tantas foram presas. Ao mesmo tempo, o JSOC começou a operar seus próprios drones no país.44 O que tinha começado como ataques coordenados estava se transformando numa campanha permanente de assassinatos dirigidos no Iêmen, coordenada pelo JSOC. “Depois daquele negócio com Abdulmutallab em dezembro,45 [o presidente Saleh] de certo modo teve de mostrar mais apoio a nossas ações”, lembrou o dr. Emile Nakhleh, ex-dirigente da CIA. “Ele fazia o jogo, e de certa forma fazia vista grossa quando executávamos certos tipos de operação militar, operações fulminantes contra alguns grupos radicais. Quando foi pressionado, disse que eram ações deles mesmos. Ele fazia o jogo.” Enquanto as Forças Armadas e os órgãos de Inteligência dos Estados Unidos começavam a planejar mais ataques no Iêmen, o general Petraeus viajou a Sana’a para outra rodada de negociações46 com o presidente Saleh e seus principais oficiais militares e de Inteligência para garantir a continuidade depois das missões de dezembro e do fracassado complô do Natal. Em 2 de janeiro, Petraeus deu o pontapé inicial na reunião, informando a Saleh que os Estados Unidos mais que dobrariam a “assistência para a segurança” do Iêmen, o que incluiria 45 milhões de dólares para treinar e equipar Forças de Operações Especiais iemenitas para a guerra aérea contra a AQPA. Saleh pediu a Petraeus doze helicópteros de ataque, dizendo que se a “burocracia” americana obstruísse a cessão dessas máquinas, Petraeus poderia fazer um acordo de bastidores com a Arábia Saudita e com os EAU para que esses países se incumbissem da transferência dos helicópteros. Petraeus disse a Saleh que já tinha discutido esse acordo com os sauditas. Saleh informou a Petraeus que os Estados Unidos podiam posicionar aviões em território iemenita “às ocultas” e autorizou-os a atacar a AQPA quando houvesse “informações úteis”. Oficialmente, disse Saleh a Petraeus, o Iêmen não queria forças americanas executando operações militares no Iêmen. “Vocês não podem entrar na área de operações, devem permanecer no centro de operações conjuntas”, disse Saleh. Mas todos os que estavam presentes devem ter entendido que essa “exigência” não seria observada, como não tinha sido observada no passado. Embora elogiando os ataques de dezembro, Saleh “lamentou” o uso de mísseis de cruzeiro para bombardear Al-Majalah, segundo um telegrama diplomático sobre a reunião, porque eles “não eram muito precisos”. Na reunião, Petraeus alegou que “os únicos civis mortos no local tinham sido a mulher e os dois filhos de um quadro operacional da AQPA”, o que era uma mentira
deslavada. Saleh disse a Petraeus que preferia “bombas dirigidas de precisão” disparadas de aviões. Saleh chegou a explicitar o engodo, dizendo “vamos continuar afirmando que as bombas são nossas, não de vocês. O vice-primeiro-ministro do Iêmen, Rashad al-Alimi, disse de brincadeira que acabava de “mentir” ao declarar ao Parlamento iemenita que as bombas lançadas contra Arhab, Abyan e Shabwah eram produzidas nos Estados Unidos mas acionadas pelo Iêmen. Pouco depois da reunião, Alimi disse aos repórteres que estavam no Iêmen que
as operações em questão […] foram executadas totalmente por forças iemenitas.47 O aparato de segurança do Iêmen tinha recebido apoio, informações e tecnologia não disponíveis no país principalmente dos Estados Unidos, da Arábia Saudita e de outros países amigos.
Contudo, a maior parte dos iemenitas não engoliu a história. Ahmed al-Aswadi, líder do partido de oposição Al Islah, disse que “a maior parte dos iemenitas acredita”48 que os ataques recentes foram “na verdade executados por forças americanas” e que “a política dos Estados Unidos para esta região do mundo não é nenhum segredo. Se o governo não atende às exigências dos Estados Unidos, eles trazem seus drones”. Durante sua reunião com Saleh, Petraeus reclamou que “só quatro das cinquenta missões de treinamento do Comando de Operações Especiais dos Estados Unidos com a Força Aérea iemenita tinham sido efetivamente executadas no ano passado”. Em entrevistas, quadros operacionais das Forças Especiais com experiência no Iêmen revelaram que as Forças de Operações Especiais que eles estavam treinando não tinham vontade de lutar e me disseram que cada vez mais sentiam necessidade de assumir eles mesmos as tarefas.49 No começo de 2010, o governo Obama cancelou a repatriação de mais de trinta iemenitas de Guantánamo cuja libertação já tinha sido autorizada. “Dada a indefinição da situação50 [no Iêmen], conversamos com o procurador-geral e concordamos em não transferir mais presos de volta ao Iêmen por ora”, disse Obama em 5 de janeiro. Advogados de alguns dos presos classificaram a decisão de “injustificável”,51 dizendo que ela “na prática impediria qualquer progresso significativo na questão do fechamento de Guantánamo, que o presidente Obama afirmou repetidamente que tornará nossa nação mais segura”. Estava claro que para o governo Obama a questão de Guantánamo, um dos pilares de sua campanha eleitoral, era muito menos urgente que seu programa de contraterrorismo no Iêmen, país que tinha mais cidadãos presos do que qualquer outro. No Departamento de Estado, Hillary Clinton declarou que “a instabilidade do Iêmen52 é uma ameaça à estabilidade regional e até mesmo à estabilidade mundial”. Em 15 de janeiro, novos ataques aéreos53 foram disparados contra supostos quadros operacionais da AQPA, com mísseis que atingiram dois veículos. Quatro dias depois, em 19 de janeiro, o governo americano qualificou formalmente54 a AQPA como “Organização Terrorista Estrangeira”. Naquele dia, a
pedido da embaixadora americana Susan Rice, o Conselho de Segurança das Nações Unidas tomou atitude similar.55 O porta-voz do Departamento de Estado, P. J. Crowley, disse que essas atitudes “apoiam o esforço americano56 para minar as potencialidades desse grupo. Estamos decididos a eliminar a possibilidade de a AQPA executar ataques violentos e a interromper, desmantelar e derrotar suas redes”. Em 20 de janeiro, mais uma vez, ataques com mísseis foram disparados contra supostos quadros operacionais da AQPA em Marib. Como ocorrera em 15 de janeiro, as autoridades iemenitas declararam mortos quadros importantes da AQPA57 que mais tarde viu-se que estavam vivos, entre eles Qasim al-Rimi. Os ataques, um deles contra um comboio, levaram à suposição de que drones americanos armados estavam sendo usados no Iêmen. Essas duas séries de ataques pareciam dirigidas a decapitar a AQPA, exterminando sua liderança em Marib, centrada em Ayad al-Shabwani, que se suspeitava ser o líder local.58 Nas incursões de 20 de janeiro, o editor-chefe do Yemen Post, Hakim Almasmari, falou em ataques aéreos continuados. “Hoje foram realizadas dezessetes incursões aéreas59 em Marib, a maior parte delas tentando atingir Shabwani e seus amigos”, disse. “Até agora, foi morto apenas um líder da Al-Qaeda. [As forças de segurança iemenitas] têm tropas em campo, mas não fazem nada. Os ataques, em sua maior parte, foram aéreos.” Testemunhas oculares disseram que os aldeões estavam usando canhões antiaéreos para atingir os aviões.
34. “Sr. Barack Obama […] espero que reconsidere sua ordem de matar […] meu filho”
WASHINGTON, DC, E IÊMEN, COMEÇO DE 2010 — Em janeiro de 2010, notícias que vazaram para a imprensa americana diziam que o JSOC tinha promovido oficialmente Anwar Awlaki à categoria de captura ou morte em sua lista de Alvos de Grande Valor. A decisão de aprovar o assassinato dirigido de um cidadão americano foi tomada após uma revisão por parte do NSC, que deu luz verde para o assassinato de Awlaki. “Tanto a CIA quanto o JSOC1 têm listas de pessoas chamadas ‘Alvos de Grande Valor’ e ‘Pessoas de Grande Valor’ que eles pretendem capturar ou matar”, publicou o Washington Post. “Na lista do JSOC há três americanos, entre eles Awlaki, cujo nome foi incluído no fim do ano passado. Há coisa de alguns meses, a lista da CIA incluiu três cidadãos americanos, e um funcionário da Inteligência disse que o nome de Awlaki tinha sido incluído.” Quando a matéria do Post foi publicada, em 26 de janeiro, a CIA apressou-se a declarar que não tinha autorizado o assassinato de Awlaki. O Post publicou uma correção na qual afirmava que “o Comando Conjunto de Operações Especiais das Forças Armadas tem uma lista de alvos em que figuram diversos americanos”. A evasiva destacava a vantagem para a Casa Branca de usar o JSOC para executar operações letais. “Acho a legalidade disso muito discutível,2 devido ao fato de não estarmos em guerra”, disse-me o coronel Patrick Lang pouco depois da revelação do nome de Awlaki na lista do JSOC. “E ele não é membro de uma força inimiga que esteja legalmente em guerra com os Estados Unidos. Gosto de lei, quando o assunto é guerra. De outra forma, as coisas logo se tornam confusas.” Glenn Greenwald, especialista em direito constitucional, observou na época:
É óbvio que as forças americanas estão lutando num campo de batalha real,3 de modo que elas (como qualquer outra força) têm o direito de matar combatentes lutando ativamente contra eles, mesmo sendo cidadãos americanos. Isso é apenas a essência da guerra. É por isso que se permite matar um combatente numa batalha real numa zona de guerra mas não, por exemplo, torturá-los quando capturados e definitivamente controlados. Porém aqui não estamos falando de combate. As pessoas dessa “lista de alvos” provavelmente serão mortas
em casa, dormindo, dirigindo um carro com amigos ou parentes, ou desempenhando diversas outras atividades. Ainda mais grave, o governo Obama — da mesma forma que o de Bush anteriormente — define “campo de batalha” como o mundo todo.
A representante democrata Jane Harman, que na época presidia a Subcomissão de Segurança Interna da Câmara para Inteligência, falou de Awlaki como “provavelmente o terrorista número um4 em termos de ameaça para nós”. Acrescentou que o governo Obama tinha “deixado muito claro que as pessoas, inclusive americanos, que estão tentando atacar nosso país são pessoas que perseguiremos com certeza […] são alvos para os Estados Unidos”. Em 3 de fevereiro, o almirante Dennis Blair, na época diretor de Inteligência nacional, depôs diante da Comissão Especial Permanente de Inteligência da Câmara e confirmou que o governo Obama se achava no direito de matar cidadãos americanos, ao dizer que “a decisão de usar força letal5 contra um cidadão americano exige permissão especial” e afirmou que “ser cidadão americano não evita que uma pessoa seja assassinada por quadros operacionais das Forças Armadas ou da Inteligência se ela estiver trabalhando com terroristas e planejando ataques contra concidadãos americanos”. “Nada sei do desconforto das pessoas que acompanham esses acontecimentos quando se passa a situar cidadãos americanos na mesma categoria que não cidadãos”, disse-me Nakhleh, que tinha saído da CIA antes que Awlaki fosse parar na lista do JSOC de candidatos ao assassinato. “Notei alguma inquietação6 quanto a essa posição entre pessoas com quem falei a respeito de eliminar cidadãos americanos sem o devido processo.” No entanto, ao que parece o governo Obama pouco se incomoda com isso. Ao falar da relação dos Estados Unidos com o Iêmen, que lhes permite atacar à vontade dentro do país, um alto funcionário do governo disse ao Washington Post: “Estamos satisfeitos7 com o rumo que isso está tomando”. No Iêmen, Nasser Awlaki leu a matéria e decidiu escrever diretamente a Obama.8 Sua carta, que um jornalista americano passou a autoridades dos Estados Unidos, não recebeu resposta:
Para: Sr. Barack Obama, presidente dos Estados Unidos da América
Fiquei muito feliz quando o senhor foi eleito presidente dos Estados Unidos da América. Na verdade, passei toda a noite da apuração sem dormir, até que a imprensa declarou que o senhor era o “presidente eleito”. Li seu livro A origem dos meus sonhos e fiquei muito tocado. O senhor sabe que eu mesmo fui para os Estados Unidos em 1966, aos vinte anos, com uma bolsa da Fulbright para estudar economia agrícola. Anwar foi meu filho primogênito e quando nasceu, em 1971, distribuí muitos charutos a amigos e colegas da Faculdade Estadual do Novo México. Em razão de meu amor pelo seu país, mandei Anwar para a Universidade Estadual do Colorado para que recebesse uma formação americana. Meu filho continuou seus estudos de pós-graduação e iniciou seu doutorado na Universidade George Washington em 2001. Por causa dos infelizes acontecimentos do Onze de Setembro, tornou-se difícil para ele dar continuidade aos estudos em razão do mau tratamento que recebeu na universidade e por isso ele decidiu ir para o Reino Unido a fim de completar sua
formação, mas, sem poder arcar com os custos de seus estudos, retornou ao Iêmen. Desde então, vem se dedicando a estudar e a pregar sua religião, e nada mais. No entanto, ele foi mantido preso por mais de dezoito meses em decorrência de um pedido do governo americano. Em 2007, foi entrevistado durante dois dias pelo FBI, que não encontrou ligação entre ele e os acontecimentos do Onze de Setembro. Depois de posto em liberdade, continuou sendo assediado, o que o levou a sair de Sana’a, capital do Iêmen, para viver numa pequena cidade do sul do país. Durante muitos meses, um avião espião dos Estados Unidos sobrevoou a cidade, e quando se soube que ele estava sendo rastreado para ser preso mais uma vez, foi para as montanhas da província de Shabwah, terra de seus ancestrais. Na quarta-feira 27 de janeiro de 2007, o Washington Post publicou um artigo de Dana Priest no qual ela diz que o senhor ordenou o ataque de 24 de dezembro ao lugar onde “se supunha que Anwar estivesse reunido com líderes da Al-Qaeda”. O Post informou que a CIA e o JSOC incluíram Anwar numa lista de chamados “Alvos de Grande Valor” que esses órgãos pretendem matar ou capturar, na suposição de que Anwar Awlaki seja um personagem da Al-Qaeda. O senhor sabe, como eu sei, que Anwar Awlaki nunca foi membro dessa organização e espero que nunca seja. Ele é simplesmente um pregador que tem o direito de divulgar a palavra do Islã onde quiser, o que é absolutamente legal e protegido pela Constituição americana. Assim, peço que o senhor reconsidere a ordem de matar ou capturar meu filho, baseada na falsa suposição de que ele é membro da Al-Qaeda. Mais uma vez, gostaria de lhe informar, senhor presidente Obama, que meu filho é inocente, nada tem a ver com violência, é apenas um acadêmico do Islã e acredito que nada tem a ver com o terrorismo. Assim, apelo mais uma vez para que o senhor respeite a lei americana. Se alguma vez Anwar fez algo errado, deve ser processado de acordo com a lei americana.
Atenciosamente, Nasser A. Awlaki Professor de economia agrícola Universidade de Sana’a República do Iêmen
35. Uma noite em Gardez
WASHINGTON, DC, 2008-10; AFEGANISTÃO, 2009-10 — Stanley McChrystal estava no campo de batalha desde o começo de 2008. Depois que McRaven assumiu o comando do JSOC, McChrystal voltou a Washington para servir como diretor do Estado-Maior Conjunto, cargo importante dentro na burocracia do Pentágono. Sua indicação foi freada1 por um grupo de senadores que pretendiam que sua participação em sevícia e tortura de prisioneiros no Iraque e em outros países fosse investigada, mas ela acabou sendo confirmada. Não foi um rebaixamento para McChrystal. No mínimo, ele foi posto no centro de futuras decisões sobre mobilização de tropas e formação de forças que seriam utilizadas em operações militares. No Estado-Maior Conjunto, McChrystal conseguiu convencer2 Obama a descentralizar o controle sobre as Forças de Operações Especiais e transferir alguma autoridade sobre táticas de guerra não convencionais aos comandantes em combate. Essas mudanças, por sua vez, ampliaram o campo de batalha secreto e facilitaram as operações letais que Obama autorizava cada vez mais no Iêmen e em outros países. Durante os primeiros meses do governo Obama, sua equipe de segurança nacional envolveuse num acalorado debate3 sobre como proceder no Afeganistão. Alguns comandantes militares defendiam um aumento considerável nas forças americanas e uma retomada das táticas de contrainsurgência transformadas em mito nos relatos sobre o “sucesso” do reforço das tropas no Iraque, mas o vice-presidente Joe Biden e o conselheiro de Segurança Nacional James Jones defendiam o deslocamento do foco da campanha4 para o Paquistão, usando uma combinação de Forças de Operações Especiais e drones. “Não prevejo5 uma volta do Talibã e quero expressar com clareza que o Afeganistão não se encontra em risco iminente”, disse o general Jones em outubro de 2009. “A presença da Al-Qaeda diminuiu muito. Estima-se em no máximo cem os quadros da organização em atividade no país, sem bases e sem capacidade de lançar ataques contra nós ou contra nossos aliados.” McChrystal e McRaven tinham pressionado Obama a intensificar as forças americanas no Afeganistão e, juntamente com outros militares poderosos, entre eles Petraeus, convenceram o novo comandante supremo que esse era o caminho certo. Obama e McRaven “na verdade têm um relacionamento bastante bom, e McRaven,6 enquanto McChrystal esteve no Afeganistão, trabalhou com ele como unha e carne, formulando a maneira de neutralizar as estratégias da Al
Qaeda”, disse-me uma fonte próxima ao governo na época. McRaven “desempenhou um papel significativo e oculto na execução dos planos de McChrystal, que Obama acabou subscrevendo”. Em dezembro de 2009, Obama anunciou um reforço7 de tropas no Afeganistão. No verão de 2010, o presidente queria aumentar de 68 mil para 100 mil o número de soldados americanos no país. Seu objetivo, como explicou no fim de 2009, era “desarticular, desmantelar e derrotar8 a Al-Qaeda no Afeganistão e no Paquistão, evitar que ela possa ameaçar os Estados Unidos e nossos aliados no futuro” e “deter o ímpeto do Talibã”. Obama afirmou estar “convencido de que nossa segurança está em jogo” e “de que novos ataques estão sendo planejados no momento mesmo em que estou falando. Não é um perigo sem propósito, não é uma ameaça hipotética”. Para enfrentar essa “ameaça”, Obama escolheu o general McChrystal como seu homem no Afeganistão. Ao indicar McChrystal para o comando da ISAF e para o comando das forças americanas no Afeganistão, Obama revelou em que medida sua política contraterrorista estava centrada no JSOC. Obama escolheu um homem identificado, mais do que qualquer outro, com as políticas militares mais agressivas do governo Bush, com exceção, talvez, do general Petraeus, para comandar a guerra que em pouco ele reivindicaria como sua. “Fiquei um tanto surpreso9 quando McChrystal foi escolhido comandante no Afeganistão”, lembrou o coronel Lawrence Wilkerson, que entrara em conflito com a opacidade do JSOC durante o governo Bush. “Esse cara tem sido mantido longe do público. Tem sido um quadro clandestino. É um cara acostumado à ação direta, habituado a fazer as coisas à sua maneira. É um cara habituado a fazer tudo sem nenhuma transparência.” Outras fontes com quem falei deram uma interpretação diversa à indicação de McChrystal. Falaram dos problemas que o comando convencional teve durante um longo tempo com as forças do JSOC, que executavam operações sem informá-los, e disseram que viam esse modo de agir como prejudicial à COIN, ou estratégia contrainsurrecional. “O Comando de Cabul10 se sentia posto de lado, pois o JSOC dirigia seu próprio espetáculo, sem se ajustar à doutrina da contrainsurreição”, e “a maior parte das táticas usadas pelo JSOC na verdade solapava a legitimidade do governo [afegão]”, disse Scott Horton, advogado de direitos humanos que estudou profundamente o JSOC. “Portanto, acho que a maneira de conciliar essas coisas era mesmo pôr Stanley McChrystal no comando em Cabul. E fazê-lo observar a doutrina contrainsurrecional. Nomear alguém a quem o JSOC seria obrigado a dar ouvidos.” Embora muitas dessas Forças de Operações Especiais atuassem por fora da cadeia de comando da coalizão, em sua análise do esforço de guerra no Afeganistão, McChrystal deixou claro11 que uma coordenação estreita com o JSOC estava entre seus principais objetivos e que ele pretendia integrar as Forças de Operações Especiais na estratégia geral de combate à insurreição. Os vice-almirantes McRaven e Robert Harward (veterano do JSOC e chefe de uma nova força-tarefa de detenção) foram levados a reuniões estratégicas sobre o Afeganistão realizadas na Casa Branca no outono de 2009. Da mesma forma que McChrystal, McRaven e
Harward defendiam “uma pesada, pesadíssima presença da COIN”12 nos principais centros populacionais, usando equipes de contraterrorismo para perseguir alvos em todo o país. A região próxima da fronteira com o Paquistão receberia maior atenção, e o próprio McRaven queria também ter certeza de que as operações dentro do Paquistão não ficariam de fora. “Eles estão se concentrando nos principais centros populacionais,13 que acham que podem salvar com efetivos terrestres, e qualquer coisa além disso seria avançar o sinal”, disse um funcionário da NSC ao jornalista Spencer Ackerman em novembro de 2009. “O JSOC já está se reforçando para isso.” Por ser o homem a quem se atribuía a sistematização da prisão e do assassinato em massa de suspeitos de insurreição no Iraque, era pouco provável que McChrystal fosse visto como paladino da contrainsurreição no Afeganistão. Mas ele fez uma profissão de fé em seus dogmas básicos,14 como um significativo aumento no contingente, um novo foco da segurança de grandes centros populacionais e a promoção da boa governança. Em sua audiência de confirmação, em junho, McChrystal destacou que a redução no número de mortos e feridos pela coalizão seria “essencial para [a] credibilidade”15 da missão e que uma vitória tática seria “vazia e insustentável” se resultasse em indignação popular. A “completa eliminação da Al-Qaeda” do Paquistão e do Afeganistão ainda era um objetivo principal. No entanto, disse ele, a medida do sucesso no Afeganistão “não seria [o número de] inimigos mortos”, mas “o número de afegãos protegidos da violência”. McChrystal deu ordens que reduziram bastante os ataques aéreos16 no Afeganistão, ataques esses que eram vistos como responsáveis pelo número descomunal de civis mortos. Em maio de 2009 — um mês antes da confirmação de McChrystal —, um ataque aéreo americano matou pelo menos 97 civis17 na província de Farah, entre eles mulheres e crianças. McChrystal também implantou novas regras para incursões em domicílios, segundo as quais se exigia que “qualquer entrada numa casa afegã18 devia ser efetuada pelas Forças de Segurança Nacional do Afeganistão [Afghan National Security Forces, ANSF], com apoio das autoridades locais”. Enquanto McChrystal e a “doutrina da COIN” eram festejados pela imprensa, na realidade os Estados Unidos estavam expandindo duas guerras simultâneas no Afeganistão: a campanha pública das Forças Armadas convencionais, centrada na COIN, e a guerra secreta travada pelas Forças de Operações Especiais. Na semana em que McChrystal foi confirmado como comandante da guerra do Afeganistão, também foram enviados ao país mil homens das Forças de Operações Especiais19 e pessoal de apoio, elevando seu total para cerca de 5 mil. A lista do JSOC de Alvos de Grande Valor já não se limitava à Al-Qaeda; a estratégia de contrainsurreição de McChrystal precisava de resultados, e à medida que as forças convencionais trabalhavam para dar segurança às cidades, as equipes das SOF20 dedicavam-se a ceifar as lideranças intermediárias do Talibã, assim como de outros grupos militantes, como a rede Haqqani. “De qualquer ângulo objetivo,21 [McChrystal] era completamente despreparado para qualquer coisa que não fosse assassinato dirigido. Foi tudo o que ele fez durante cinco anos, de 2003 a 2008”,
disse-me o historiador Gareth Porter, que passou longo tempo no Afeganistão durante o mandato de McChrystal e achava que fazer de McChrystal o responsável pela guerra “dava sinais claros de que os Estados Unidos tendiam a dar ênfase cada vez maior ao assassinato dirigido no Afeganistão. Simplesmente isso — e, é claro, foi exatamente o que aconteceu”. Depois de assumir o comando no Afeganistão, McChrystal ampliou as incursões noturnas ao estilo do JSOC e incluiu mais nomes na lista da morte. Em outubro de 2009, havia mais de 2 mil pessoas22 na Lista Conjunta de Alvos Prioritários. Em maio de 2009, as Forças de Operações Especiais estavam executando cerca de vinte incursões por mês no Afeganistão. Em novembro, sob o comando de McChrystal, esse número subira para noventa e ascendia com firmeza. Forças afegãs podiam ser empregadas para a entrada, mas segundo as novas regras, as incursões eram executadas pelas Forças Especiais americanas. Em dezembro de 2009, o número de incursões executadas pelo JSOC tinha quadruplicado.23 “Isso é coisa do general McChrystal”,24 disse ao Los Angeles Times um alto funcionário americano. “Eles precisam mostrar que são capazes de inverter a relação de forças. Ele precisa mostrar que está fazendo progresso.” A multiplicação de incursões resultou também num inchaço da quantidade de presos. Como tinha ocorrido no Iraque anteriormente, o JSOC executava suas próprias operações com presos25 no Afeganistão. Os prisioneiros que supostamente tinham informação que pudesse levar a Alvos de Grande Valor eram conduzidos a centros de detenção dirigidos pelos Estados Unidos conhecidos como Áreas de Prisão no Campo,26 localizados em bases americanas em todo o Afeganistão. Embora a OTAN desse orientação para limitar a detenção de militantes pelas forças de coalizão a 96 horas,27 as Forças de Operações Especiais encontravam meios de manter os presos em suas dependências por até nove semanas.28 Havia também uma prisão secreta dentro da prisão de Bagram, conhecida como Cadeia Negra,29 onde os Alvos de Grande Valor eram mantidos. Como acontecia em Camp Nama, no Iraque, a Cadeia Negra era inacessível à Cruz Vermelha. Pessoas que trabalhavam com direitos humanos e investigaram o lugar denunciaram nudez forçada, manipulação do ambiente e confinamento solitário,30 e exprisioneiros disseram ter sido espancados.31 Embora Obama tivesse prometido derrotar a Al-Qaeda no Afeganistão, o período em que McChrystal esteve no comando durante a guerra representaria um aumento notável do apoio dado ao Talibã e um número recorde32 de soldados americanos mortos.
As nascentes “guerras de mentira” de Obama no Paquistão, Iêmen e Somália receberam pouca atenção da imprensa nos primeiros tempos de sua presidência. O foco esmagador estava no Afeganistão e no debate sobre o aumento do contingente, mas havia um desdobramento muito mais significativo a caminho. A Casa Branca, trabalhando em estreita colaboração com o general McChrystal, começou a adotar sua nascente lista de mortes globais dentro do Afeganistão, sepultada dentro da guerra pública maior que envolvia as forças americanas
convencionais. Quando visitei o Afeganistão em 2010, comandantes da polícia afegã me disseram que equipes de Operações Especiais americanas entravam em sua jurisdição33 sem coordenação com as autoridades locais e sem informar às principais bases americanas da região. Executavam operações, matavam gente em incursões noturnas, capturavam pessoas que eram levadas para outras províncias. As incursões, explicaram os oficiais da polícia, estavam causando uma importante reação negativa que prejudicava as forças americanas convencionais e as unidades policiais afegãs apoiadas pelos Estados Unidos. Disseram-me que na verdade as incursões noturnas estavam ajudando o Talibã. A Casa Branca estava bem consciente, àquela altura, da seriedade dos danos causados no Afeganistão. Em setembro de 2009, um diplomata americano no país apresentou sua carta de renúncia, na qual fazia uma contundente denúncia da guerra americana. Matthew Hoh, fuzileiro naval condecorado que fez diversas viagens pelo Iraque e depois serviu como principal funcionário civil na província afegã de Zabul, garantiu que “a presença e as operações dos Estados Unidos e da OTAN34 em vales e aldeias pashtuns” chegavam a representar “uma força de ocupação contra a qual a insurreição se justificava”. Numa carta ao Departamento de Estado, Hoh declarou sem meias palavras que “a presença militar dos Estados Unidos no Afeganistão contribui em grande medida para a legitimação e a aceitação da mensagem estratégica da insurreição pashtun”. E escreveu:
Acho enganosas as razões que alegamos para o banho de sangue e para o sacrifício de nossos homens e mulheres jovens no Afeganistão. Para que fosse honesta, nossa estratégia estabelecida para garantir que o Afeganistão evite o ressurgimento ou o reagrupamento da Al-Qaeda exigiria que além disso invadíssemos e ocupássemos o Paquistão ocidental, a Somália, o Sudão, o Iêmen etc. Nossa presença no Afeganistão só aumentou a desestabilização e a insurreição no Paquistão, onde tememos, com razão, que um governo deposto ou enfraquecido possa perder o controle sobre as armas nucleares do país.
O Washington Post noticiou que a carta de Hoh “repercutira de alto a baixo35 na Casa Branca”. Autoridades americanas, entre as quais o embaixador e o enviado de Obama para o Afeganistão e o Paquistão, Richard Holbrooke, tentaram oferecer a Hoh outros cargos para evitar sua renúncia. Holbrooke declarou ao Post que tinha perguntado a Hoh: “Se o senhor quer realmente influenciar a política36 e ajudar a reduzir o custo da guerra em vidas e em recursos”, não deveria permanecer “dentro do edifício, e não do lado de fora, onde vai poder atrair muita atenção mas sem o mesmo impacto político?”. Hoh afinal recusou as ofertas e tornou pública sua oposição à guerra. Quando estive com Hoh, pouco depois de sua renúncia, discutimos as incursões noturnas e o papel que o JSOC estava desempenhando no Afeganistão. Ele esclareceu que tinha enorme
respeito pelas equipes de Operações Especiais e que acreditava que havia pessoas perigosas que “precisam ser mortas”.37 Mas questionava o uso dessas tropas de elite para combater o que tinha se transformado efetivamente numa insurreição popular contra a ocupação estrangeira. O JSOC, disse ele, é “a melhor tropa de choque que o mundo já conheceu”, mas “está lá no Afeganistão, correndo atrás de líderes intermediários do Talibã que não ameaçam os Estados Unidos, só estão lutando contra nós porque estamos na seara deles”. Disse-me ainda: “Nos metemos nessa forma de guerra de desgaste de Operações Especiais”. Ele calculava que haveria “de cinquenta a cem” quadros operacionais da Al-Qaeda na época. Sob o comando de McChrystal, o ritmo das incursões noturnas aumentava à medida que o JSOC ia assinalando nomes na lista da morte, que parecia não ter fim. McChrystal sabia bem como promover38 seus planos junto à Casa Branca, e quando lutava para que sua opinião fosse adotada, fazia-o “com a mesma temeridade que usava para rastrear terroristas no Iraque: calcule como o inimigo atua, seja mais rápido e mais brutal do que qualquer outro e acabe com os filhos da puta”, observou o jornalista Michael Hastings, que viajou com McChrystal e passou um tempo no Afeganistão. As forças-tarefas de Operações Especiais de McChrystal e McRaven começaram a expandir a lista de alvos, perseguindo “colaboradores” e “suspeitos de militância”39 do Talibã. As informações que alimentavam as operações se apoiavam em grande parte em fontes afegãs. Hoh disse-me que era comum que afegãos acusassem seus inimigos de ser quadros operacionais do Talibã como vingança em casos de disputa de terras ou conflitos tribais. O fornecimento dessas informações falsas às forças americanas, por sua vez, criou um ambiente em que um número enorme de afegãos inocentes se viu enfrentando comandos americanos que invadiam sua casa no meio da noite, capturando ou matando gente. “Sim, muitas vezes os caras certos foram perseguidos e os caras certos foram mortos”, lembrou Hoh.
E então, muitas outras vezes, pessoas erradas foram mortas. Às vezes eram famílias inocentes. Em outros casos, podiam ser pessoas e famílias que tinham sido denunciadas por vingança ou por rivalidades que existiam muito antes de que fôssemos para lá. Acontecia muito, aquele que procurava os americanos primeiro era quem entregava o rival, ou seu inimigo, ou seu antagonista.
Hoh disse que havia também vezes em que uma força-tarefa do JSOC “matava alguém que era importante para nós. Matavam um líder tribal ou algum tipo de administrador do governo que estava trabalhando conosco, ou com quem estávamos fazendo progressos. No meio da noite, você acabava baleando o cara”. E acrescentou: “Não há nada que se compare ao ato de entrar numa aldeia no meio da noite, derrubar uma porta e matar uma mulher ou uma criança só para destruir” qualquer progresso civil ou militar que as Forças Armadas convencionais tivessem feito em áreas que circundam o Afeganistão. Investiguei diversas incursões noturnas malfeitas
no país em que ficou claro que gente inocente tinha sido atingida. Nenhuma delas foi mais aterradora do que a que ocorreu perto de Gardez, na província de Paktia, em fevereiro de 2010.
Em 12 de fevereiro de 2010, Mohammed Daoud Sharabuddin tinha muito o que comemorar. O respeitado oficial da polícia recebera uma promoção importante40 com a qual tornara-se chefe de Inteligência num dos distritos da província de Paktia, no sudeste do Afeganistão. Era também pai de um recém-nascido.41 Naquela noite, Daoud e a família estavam celebrando a atribuição de nome ao menino, ritual que ocorre no sexto dia de vida de uma criança.42 A festa se realizava na propriedade deles, na aldeia de Khataba, a curta distância de Gardez, capital da província. Duas dezenas de pessoas estavam na casa para a festa, além de três músicos.43 “Tínhamos muitos convidados44 e música”, contou-me Mohammed Tahir, cunhado de Daoud, quando visitei a família. “Durante a festa, as pessoas dançavam o attan, nossa dança tradicional”. A família Sharabuddin não pertencia à etnia pashtun,45 dominante e quase exclusiva entre os talibãs. Sua língua principal era o dari. Muitos dos homens da família não usavam barba, alguns tinham apenas bigodes. Havia muito que se opunham ao Talibã. Daoud, o comandante de polícia, tinha passado por dezenas de programas de treinamento dos Estados Unidos, e sua casa estava cheia de fotos dele com soldados americanos. Outro membro da família era promotor da administração municipal, apoiada pelos Estados Unidos, e um terceiro era vice-reitor da universidade local. A área onde viviam era próxima a um quartel-general do Talibã, e a rede Haqqani — grupo insurgente que segundo os Estados Unidos era estreitamente vinculado à AlQaeda e à ISI, organização de espionagem paquistanesa — tinha executado ataques contra o governo e forças da OTAN. Assim, quando começou a notar alguma coisa errada diante da propriedade, a família receou que se tratasse de um ataque do Talibã a sua casa. Eram cerca de 3h30 da madrugada e a festa estava acabando quando a família e seus convidados notaram que a luz46 tinha sido cortada por alguém de fora. Nessa hora, um dos músicos, que tinha saído para o quintal para usar o banheiro, viu miras a laser que, do exterior da casa, varriam o terreno.47 O homem correu para dentro e avisou os demais. “Daoud saiu para ver o que estava acontecendo”, contou-me Tahir. “Ele pensou que o Talibã tinha chegado. Já estavam no telhado.” Assim que Daoud e o filho de quinze anos, Sediqullah, puseram os pés no quintal, foram atingidos por projéteis disparados por franco-atiradores48 e caíram. A família começou a ouvir as vozes de seus agressores. Algumas davam ordens em inglês, outras em pashtun. A família começou a suspeitar que os agressores eram americanos. O pânico tomou conta dos que estavam na casa. “Todas as crianças gritavam: ‘Atiraram em Daoud! Atiraram em Daoud!’”, lembrou Tahir. O filho mais velho de Daoud estava atrás do pai e do irmão quando eles dois foram atingidos. “Quando meu pai caiu, eu gritei”,49 contou-me ele. “Todo mundo — meus tios, as mulheres, todos saíram da casa e se precipitaram para a varanda. Corri até eles e recomendei que não
saíssem, pois havia americanos atacando e matariam todos.” Enquanto isso, os irmãos de Daoud, Mohammed Saranwal Zahir e Mohammed Sabir, tentavam socorrê-lo. “Quando saí correndo,50 Daoud estava caído bem aqui”, disse-me Mohammed Sabir, referindo-se ao lugar em que estávamos de pé no quintal poeirento. “Levamos Daoud para dentro.” Enquanto ele sangrava no piso de um corredor dentro da propriedade, seu irmão Zahir disse que ia tentar deter o ataque conversando com os americanos. Por ser promotor, ele sabia um pouco de inglês. “Trabalhamos para o governo!”, ele gritou para fora. “Olhem para nossos carros de polícia. Vocês balearam um comandante da polícia!” Três mulheres da família, Bibi Saleha, de 37 anos; Bibi Shirin, de 22, e Gulalai, de dezoito, agarraram-se às roupas de Zahir e imploraram-lhe que não saísse. Não teria feito diferença. Zahir foi abatido ali mesmo onde estava, atingido por projéteis que feriram também as três mulheres. Zahir, Bibi Saleha e Bibi Shirin morreram na hora. Gulalai e Daoud sobreviveram durante horas, mas a família, sitiada, não pôde fazer nada por eles, que acabaram morrendo também. De alguma forma, em questão de minutos, um evento familiar festivo se transformou num massacre. Sete pessoas morreram, segundo membros da família. Duas das mulheres estavam grávidas.51 No total, as mulheres tinham dezesseis filhos.52
Eram sete da manhã. Poucas horas antes, Mohammed Sabir vira o irmão, a mulher, a sobrinha e a cunhada caídos. Agora, traumatizado, estava debruçado sobre os corpos numa sala cheia de soldados americanos. Os comandos mascarados tinham invadido a casa e começaram a revistá-la, vasculhando cada um dos aposentos. Sabir contou-me que Daoud e Gulalai ainda estavam vivos. Soldados americanos ficaram dizendo que iam providenciar assistência médica. “Eles não permitiram que levássemos os feridos ao hospital e ficaram dizendo que tinham médicos e iam cuidar dos feridos”, disse ele. “Pedi com insistência que me deixassem levar minha filha ao hospital, ela tinha perdido muito sangue e nosso carro estava bem ali”, disse Mohammed Tahir, pai de Gulalai. “Mas eles não deixaram. Minha filha e Daoud ainda estavam vivos. Continuamos pedindo, porém eles disseram que um helicóptero estava a caminho para levar nossos feridos ao hospital.” Os dois morreram antes que chegasse um helicóptero para resgatá-los. Ainda durante a incursão americana, Mohammed Sabir e seu sobrinho Izzat, juntamente com as mulheres de Daoud e Sabir, começaram a preparar mortalhas53 para as vítimas. O costume afegão manda enfaixar os pés e a cabeça dos mortos. Um lenço amarrado sob o queixo evita que a boca fique aberta. Eles conseguiram fazer isso antes que os americanos começassem a algemálos54 e pusessem homens e mulheres sobreviventes em espaços separados. Foi nesse momento que os homens da família presenciaram uma cena pavorosa: os soldados americanos extraindo os projéteis dos corpos das mulheres. “Eles metiam a faca nos ferimentos e tiravam as balas”, contou-me Sabir. Perguntei-lhe sem rodeios: “Você viu os americanos extraindo balas do corpo
das mulheres?”. Sem hesitar, ele respondeu: “Sim”. Tahir disse-me que viu americanos com facas junto aos corpos. “Estavam extraindo as balas para eliminar as provas do crime”, disse. Mohammed Sabir não pôde comparecer ao sepultamento da esposa nem ao dos outros mortos da família. Depois da incursão, os americanos fizeram com que todos eles se ajoelhassem ou ficassem de pé no quintal, descalços, numa manhã de inverno rigoroso, com as mãos atadas às costas.55 Testemunhas disseram que os que tentavam falar com os soldados ou pedir-lhes algo eram espancados. “Eles me mandaram pôr as mãos ao alto, mas pensei que, se estava em minha própria casa, por que deveria fazer isso?”, disse-me o filho mais velho de Daoud, Abdul Ghafar.
Eles me bateram diversas vezes. Atiraram em minha direção e à minha volta. Joguei-me no chão. Pedi ao tradutor [afegão dos americanos] que lhes dissesse para não matar mulheres, só fazer sua busca. Nós apoiamos o governo. Trabalhamos com o governo. Eles me chutaram diversas vezes. Tentava ficar de pé, mas eles me chutavam.
Mais tarde, uma testemunha disse a um investigador das Nações Unidas que pelo menos dez pessoas tinham sido agredidas pelo grupo de americanos e afegãos,56 entre elas Hajji Sharabuddin, o chefe da família, de 65 anos. “Eles nos disseram que tinham sido informados57 da presença de quarenta ou cinquenta talibãs aqui”, disse Sharabuddin. “Mas na verdade eram todos membros de minha família que trabalham para o governo.” Sharabuddin exigiu que explicassem por que tinham invadido sua casa no meio da noite. “Vocês poderiam ter revistado minha casa de manhã”, disse-lhes. “E se encontrassem algum talibã aqui, poderiam fazer comigo o que quisessem, ou destruir e depredar minha casa, e eu não os culparia.” Uma investigação das Nações Unidas, realizada dois dias depois da incursão que nunca viera a público, concluiu que os sobreviventes “foram vítimas de tratamento desumano, cruel e degradante58 por terem sido agredidos fisicamente por tropas americanas e afegãs, dominados e obrigados a permanecer de pé e descalços durante horas à intempérie”, acrescentando que as testemunhas disseram “que as tropas americanas e afegãs negaram-se a dispensar atendimento médico adequado e a tempo a duas pessoas que apresentavam graves ferimentos a bala, o que resultou na morte delas horas mais tarde”. Mohammed Sabir foi um dos homens escolhidos para interrogatório depois da incursão. Com as roupas ainda empastadas do sangue de seus entes queridos, ele e outros sete homens foram encapuzados e algemados. “Amarraram nossas mãos e vendaram nossos olhos”, lembrou ele. “Duas pessoas nos agarraram e nos empurraram, um a um, para dentro da aeronave.” Foram levados a outra província afegã, Paktia, onde ficaram em poder dos americanos durante dias. “Meus sentidos não estavam funcionando”, lembrou ele. “Não conseguia chorar, estava paralisado. Fiquei três dias e três noites sem comer. Não nos deram água para lavar o sangue.”
Os americanos submeteram os homens a exames biométricos, fotografaram-lhes as íris e tiraram suas impressões digitais. Grupos de interrogadores americanos e afegãos, contou-me Sabir, perguntaram-lhe sobre as ligações de sua família com o Talibã. Ele lhes disse que sua família era contra o Talibã, tinha lutado contra ele, e alguns de seus membros tinham sido sequestrados por talibãs. “Os interrogadores americanos tinham barbas curtas e não usavam farda. Eram musculosos”, lembrou Sabir, acrescentando que às vezes era sacudido com violência. “Dissemos honestamente que não havia talibãs em nossa casa.” Um dos americanos disse a ele que “havia informações de que um homem-bomba se escondera em sua casa e planejava uma operação.” Sabir retrucou: “Se tivéssemos um homem-bomba em casa, estaríamos tocando música? Quase todos os convidados eram funcionários do governo”. Depois de três dias em cativeiro, disse-me Sabir, ele e os demais foram postos em liberdade pelos americanos. “Disseram que éramos inocentes, que lamentavam muito, e que era errado o que tinham feito em nossa casa.” Contudo, publicamente os Estados Unidos e seus aliados contaram uma história muito diferente sobre o que tinha acontecido em Gardez naquela noite.
Enquanto Mohammed Sabir e os demais estiveram sob custódia americana, o quartel-general da Força Internacional de Assistência para a Segurança (International Security Assistance Force, ISAF) apressou-se a dar uma declaração sobre o incidente. Horas depois da incursão, a ISAF e o Ministério do Interior afegão emitiram um comunicado conjunto à imprensa. Afirmavam que uma “força de segurança” integrada por afegãos e elementos internacionais tinha feito uma “descoberta tenebrosa” na noite anterior. A força estava numa operação de rotina perto da aldeia de Khataba. A Inteligência tinha “confirmado” que a propriedade era local de “atividade de militantes”. Assim que se aproximaram do local, viram-se “envolvidos” num “tiroteio” com “diversos rebeldes”, dizia a declaração. A força matou os rebeldes e estava revistando a propriedade quando fez a descoberta: três mulheres tinham sido “amarradas”, “amordaçadas” e finalmente executadas dentro da propriedade. A força, dizia o comunicado, achou-as “escondidas numa sala adjacente”.59 “A ISAF trabalha permanentemente com nossos parceiros afegãos no combate a criminosos e terroristas60 que não se importam com a vida de civis”, disse à imprensa o general do Exército canadense Eric Tremblay, porta-voz da ISAF, em relação à incursão. Referiu-se aos comandos que invadiram a casa como heróis. Vários homens, mulheres e crianças foram detidos pela força ao tentar sair da propriedade, afirmava a declaração, e oito homens tinham sido presos para averiguações. Durante o incidente, foi solicitado atendimento médico.61 Algumas agências divulgaram a notícia naquele dia e publicaram mais declarações de autoridades americanas, afegãs e da ISAF . Um “militar americano de alta patente” disse à CNN que quatro vítimas tinham sido encontradas na propriedade, dois homens e duas mulheres.
Confirmou os detalhes sinistros da declaração sobre a execução das mulheres, acrescentando que aparentemente os assassinatos tinham motivos culturais extremos. “Apresentavam os sinais de crimes de honra tradicionais”,62 disse o militar, deixando implícito que as quatro pessoas tinham sido mortas por membros da própria família. Ainda deu a entender que adultério ou conivência com forças da OTAN poderia ter sido o motivo. O New York Times publicou uma nota no dia seguinte, basicamente um resumo da versão da OTAN. Rob Nordland, repórter do Times, falou com o chefe de polícia da província de Paktia,63 Aziz Ahmad Wardak, que, segundo Nordland, confirmou muitos detalhes do incidente, mas disse que três mulheres e dois homens tinham sido mortos. Alegou que o grupo tinha sido assassinado por militantes talibãs que atacaram durante uma festa comemorativa de um nascimento. Autoridades americanas mais tarde diriam à imprensa que os corpos das vítimas apresentavam cortes e perfurações,64 levando a crer que tinham sido esfaqueadas. Enquanto as agências internacionais de notícias veiculavam a versão americana dos eventos, repórteres locais começaram a falar com funcionários afegãos e membros da família. A Pajhwok Afghan News Agency falou com o subchefe de polícia da província, general Ghulam Dastagir Rustamyar, que disse que “Forças Especiais dos Estados Unidos” tinham matado as cinco pessoas durante uma operação, evidentemente em consequência de uma informação imprecisa ou falsa.65 “A noite passada, os americanos executaram uma operação numa casa e mataram cinco inocentes, entre eles três mulheres”, disse Shahyesta Jan Ahadi, membro suplente do conselho provincial de Gardez, a um repórter local da Associated Press. “As pessoas estão muito zangadas.” Ahadi negou a afirmação da OTAN de que a incursão fora obra de uma força mista americana e afegã. “O governo [afegão] não sabia nada sobre isso”, disse ele. “Condenamos com veemência esse ato.”66 Dias depois da incursão, investigadores de direitos humanos das Nações Unidas conversaram com “autoridades locais”, segundo as quais Forças Especiais americanas tinham vindo de Bagram a Gardez dias antes da operação. Essas autoridades disseram também que funcionários da segurança afegã tinham sido avisados sobre uma operação iminente, mas sem que lhes dessem informações sobre o lugar ou o momento em que seria executada. As Nações Unidas concluíram que nem as ANSF nem tropas da ISAF estavam envolvidas na incursão. A OTAN tinha prometido uma “investigação conjunta”, que nunca se realizou. Depois do incidente, autoridades afegãs da capital da província foram impedidas de entrar na propriedade.67 “Quando chegamos lá, havia um rapaz estrangeiro guardando os corpos, e não deixou que nos aproximássemos,68 disse Wardak, da polícia de Paktia. Por fim, o Ministério do Interior enviou de Cabul uma delegação para investigar a incursão, liderada pelo principal investigador criminal69 da capital afegã. Ao que parece, esse grupo trabalhou de forma bastante independente em relação à OTAN. Quando Mohammed Sabir voltou para casa, depois de ser mantido preso pelos americanos, já tinha perdido o sepultamento da mulher e dos outros membros da família. Louco de tristeza,
pensou em vingar seus entes queridos. “Perdi a vontade de viver”, disse-me ele. “Queria vestir um colete de homem-bomba e explodir entre americanos. Mas meu irmão e meu pai não deixaram. Eu queria fazer a jihad contra os americanos.”
Estava havendo, sem dúvida, um acobertamento da verdade. A família sabia. As Nações Unidas sabiam. E os investigadores afegãos sabiam. A tropa que invadiu a casa tinha sido enviada pelos Estados Unidos, mas quem eram os americanos que invadiram aquela casa no meio da noite? O caso só começou a ser completamente desvendado um mês depois, quando um repórter britânico, Jerome Starkey, deu início a uma séria investigação dos homicídios de Gardez. Quando Starkey leu o comunicado de imprensa da ISAF, “não vi motivo para supor que não fosse verdade”, disse. Quando estive na casa de Starkey, em Cabul, ele me disse: “Achei que o caso era digno de atenção porque se o teor do comunicado da imprensa fosse autêntico — um crime de honra múltiplo, três mulheres mortas pelos talibãs que depois foram mortos pelas Forças Especiais —, daria uma reportagem vívida e fascinante”.70 Mas quando visitou Gardez e começou a reunir testemunhas da região que pudessem estar com ele, logo se deu conta de que a versão da ISAF era provavelmente falsa. A família tinha indícios significativos que desmentiam a versão divulgada pela ISAF e aceita por muitas empresas de notícias. A família em Gardez mostrou a Starkey e a mim um vídeo da noite da invasão, no qual aparecem os músicos tocando e Daoud com seus parentes dançando para comemorar a cerimônia de dar nome ao filho de Daoud. “Acho que a melhor comparação que podemos fazer é com uma festa de batizado”, lembrou Starkey. “Realiza-se na sexta noite após o nascimento da criança. Ela recebe um nome, geralmente dado por seus avós, e a família comemora convidando todos os amigos, vizinhos e parentes para uma espécie de ceia ou banquete em sua casa, com música e dança.” Starkey compreendeu que a natureza da celebração
não casava com a insinuação de que fossem talibãs. Os talibãs são conhecidos por suas normas muito estritas, e os instrumentos musicais foram proibidos quando eles estavam no poder. E ali estava o vídeo dos caras, de um conjunto de três músicos. Entrevistamos os músicos, que confirmaram a história. As coisas simplesmente não faziam sentido. Era óbvio que eles não eram talibãs.
Starkey esteve em Gardez cerca de um mês depois da invasão e falou com mais de uma dúzia de sobreviventes, com membros do governo municipal, agentes da lei e um líder religioso. Falou também com investigadores de direitos humanos das Nações Unidas que tinham feito
uma investigação por sua conta na região. Todas as pessoas com quem ele conversou afirmaram com insistência que misteriosos atiradores americanos e afegãos tinham matado as cinco pessoas. Além de saber de novos detalhes sobre os assassinatos de 12 de fevereiro, Starkey achou que as forças convencionais da coalizão provavelmente não estavam por trás do ataque, o que fazia crer que “Forças Especiais” dos Estados Unidos estivessem envolvidas. Soldados americanos com base na área negaram participação71 em qualquer incursão em Khataba naquele dia. E representantes afegãos que, segundo o protocolo da OTAN, deveriam ter sido notificados de qualquer operação em sua área de jurisdição disseram que não tinham tido notícia do planejamento de uma incursão. “Ninguém nos informou”, disse o vice-governador de Gardez, Abdul Rahman Mangal. “Essa operação foi um erro.”72 De acordo com as regras da OTAN, a equipe que executou a operação deveria ter deixado informações73 sobre sua unidade com o pessoal local, mas a família disse que não tinha recebido nada. Mais tarde, a família acusou os soldados de tentar ocultar a invasão, ajudados pela desinformação da OTAN. Starkey fez contato com o contra-almirante Greg Smith, vice-chefe da equipe de comunicações do general McChrystal e lhe expôs as discrepâncias. Smith disse que a OTAN era culpada… de escolher mal as palavras. As mulheres, ele concordou, provavelmente estariam amortalhadas para o funeral, e não “amarradas e amordaçadas.” Mas Smith negou que tivesse havido um “acobertamento” e insistiu que as mulheres estavam mortas havia horas. Confirmou que os homens tinham sido mortos por tropas americanas e afegãs. “Eles não eram os alvos dessa incursão específica”, admitiu Smith. Mas estavam armados e mostraram “intenções hostis”, afirmou, justificando a intensificação do uso da força. “Não sei se fizeram alguns disparos”, disse ele. “Se você vê uma pessoa saindo de uma propriedade, e sua força de assalto está ali, esse é o sinal habitual para neutralizar a pessoa. Você não vai esperar ser atingido para então disparar.”74 Apesar da investigação das Nações Unidas e de vários noticiários locais que contestaram a versão da ISAF, o comando na OTAN liderado pelos Estados Unidos não foi obrigado a prestar contas públicas sobre as graves discrepâncias entre o que a família dizia e as afirmações da ISAF. Isto é, até que Starkey publicou uma matéria no Times de Londres intitulada: “OTAN acobertou uma incursão noturna malfeita no Afeganistão que deixou cinco mortos”. Horas depois da publicação da matéria, Starkey começou a receber telefonemas de advertência de seus colegas. “Fui informado por outros jornalistas de Cabul, amigos meus, que a OTAN estava fazendo briefings contra mim”, contou-me Starkey. “A OTAN estava tentando me desacreditar, tentando dizer que a reportagem era inexata, tentando, na verdade, desacreditá-la.” O contra-almirante Smith fez uma declaração que prescindia da linguagem diplomática e indireta típica das notas oficiais. A assessoria de imprensa de McChrystal tinha passado a citar nomes. “A acusação levantada por Jerome Starkey, repórter do Times britânico, segundo a qual a OTAN ‘acobertou’ um incidente ocorrido em Gardez, na província de Paktia, é absolutamente
falsa”,75 dizia a declaração. Prosseguia acusando Starkey de distorcer palavras do almirante Smith e afirmava que o Comando Conjunto da ISAF tinha enviado uma equipe para fazer uma investigação na propriedade doze horas após o incidente. Smith e Duncan Boothby, assessores de imprensa civis de McChrystal na época, também “convidaram agências de notícias rivais,76 bem como outros repórteres, a desmerecer Starkey, dizendo que ele não era um jornalista confiável”, pelo fato de ter trabalhado num tabloide britânico. “Morei no Afeganistão durante quatro anos”, disse Starkey. “E não me lembro de nenhum caso em que isso tenha acontecido. Que eu saiba, foi a única vez que eles mencionaram um jornalista pelo nome e deram destaque a um jornalista de maneira tão específica num desmentido.” A OTAN “anunciou que tinha uma gravação de minha conversa que contradizia meu texto taquigrafado”, postou Starkey no blog Nieman Watchdog na semana seguinte, em relação à suposta citação errada. “Pedi para ouvir a gravação, mas não me atenderam. Pressionei, e disseram que tinha havido um mal-entendido. Por gravação, tinham querido dizer registro escrito, de alguém que tomou notas. As fitas, disseram, não existiam.”77 Starkey insistiu e publicou outra matéria em que falava da cólera que a incursão despertara na comunidade e das respostas da OTAN e das autoridades afegãs. “Não quero dinheiro.78 Quero justiça”, disse Hajji Sharabuddin, o patriarca da família, a Starkey. Contou que, depois que os protestos paralisaram a capital da província, o governo tinha oferecido a eles uma compensação por cada parente morto. “Nossa família inteira já não se importa com a vida. Todos nós vamos cometer ataques suicidas e [toda a província] vai nos apoiar.” “Ontem, funcionários da OTAN continuavam dizendo aos jornalistas em Cabul que as mulheres tinham sido vítimas de um ‘crime de honra’”, escreveu Starkey. “No entanto, não explicam por que os corpos foram mantidos na casa durante toda a noite, contrariamente ao costume islâmico, nem por que a família tinha convidado 25 pessoas para celebrar a atribuição de nome a um recém-nascido naquela mesma noite.”79 “Meu pai era amigo dos americanos e foi morto por eles”, disse a Starkey o filho de Daoud, Abdul Ghafar, mostrando-lhe uma foto do pai com três soldados americanos sorridentes. “Eles mataram meu pai. Quero matá-los. Quero que os assassinos sejam levados à justiça.”80
Em 15 de março de 2010, o New York Times afirmou que o general McChrystal tinha decidido81 tomar sob seu comando a maior parte das Forças de Operações Especiais dos Estados Unidos no Afeganistão. A decisão tinha sido motivada em parte pela preocupação com baixas civis, lembrou o artigo, causadas com frequência por tropas de elite que operavam fora da estrutura de comando da OTAN. A matéria do Times baseou-se em boa medida no relato de Starkey sobre a incursão em Gardez, confirmando que “Forças Especiais da polícia afegã junto de forças americanas de Operações Especiais” estavam por trás da operação. Mais uma vez, o almirante Smith evitou assumir a responsabilidade pela morte das mulheres. “O lamentável foi a morte de
dois homens inocentes”, disse o almirante. “Quanto às mulheres, não creio que algum dia se saiba como elas morreram.”82 No entanto, acrescentou: “Não sei se existe uma perícia criminal que mostrem perfurações de bala ou sangue no corpo das mulheres”. Disse que as mulheres pareciam ter sido esfaqueadas e cortadas com facas, e não atingidas por arma de fogo. O Times conversou com Sayid Mohammed Mal, pai do noivo de Gulalai e vice-reitor da Universidade de Gardez. “Eles foram mortos pelos americanos”, disse ele. “Se o governo não nos der ouvidos, vou levar todos os cinquenta membros de minha família a Gardez, vamos derramar gasolina no corpo e morrer queimados.”83 Semanas depois, no início de abril, Starkey recebeu um telefonema inesperado. “A OTAN me ligou”, contou-me Starkey. “Eles disseram: ‘Jerome, queríamos lhe avisar de que estamos preparando um comunicado à imprensa. Estamos mudando nossa versão dos fatos’.” Uma suposta investigação conjunta tinha “concluído que forças internacionais tinham sido responsáveis pela morte de três mulheres que estavam na mesma propriedade em que dois homens foram mortos pela patrulha afegã-internacional que procurava um rebelde talibã”. O comunicado prosseguia: “Embora os investigadores não tenham conseguido determinar conclusivamente como ou quando as mulheres morreram, por falta de indícios periciais, chegaram à conclusão de que foram mortas acidentalmente pelos disparos efetuados contra os homens”.84 A declaração sustentava que os homens tinham manifestado “intenções hostis”, mas que “mais tarde determinou-se que não se tratava de rebeldes”. “A declaração [original] dizia que as mulheres tinham sido amarradas e amordaçadas, porém essa informação havia sido fornecida por um relatório preliminar feito por membros não afegãos da força conjunta que não conheciam bem os costumes fúnebres islâmicos”, dizia o texto. Quando Starkey recebeu o telefonema, acabava de enviar outro texto para o Times de Londres. Era sua matéria mais explosiva até o momento e se baseava na conversa com um alto funcionário afegão envolvido na investigação do governo e com membros da família. A delegação encerrara seu relatório, e McChrystal também foi informado de suas descobertas. O comunicado à imprensa, seguido da notícia de que McChrystal estava determinando uma segunda revisão do incidente, pretendia esvaziar uma terrível revelação. “Soldados das Forças Especiais americanas extraíram projéteis85 do corpo de suas vítimas na sequência sangrenta da desastrada incursão noturna, depois lavaram os ferimentos com álcool e mentiram a seus superiores sobre o que tinha acontecido”, afirmava Starkey em sua matéria, que saiu no dia seguinte. Investigadores afegãos disseram-lhe que os soldados americanos também tinham retirado os projéteis do local. A investigação concluiu que, dos onze tiros disparados, apenas sete projéteis tinham sido encontrados. Os quatro que faltavam, combinados com as provas fotográficas e o depoimento de testemunhas, levaram os investigadores àquela conclusão sobre o que as Forças de Operações Especiais tinham feito. “Em que cultura do mundo alguém convida […] pessoas para uma festa e mata três mulheres?”, disse a Starkey o
alto funcionário afegão. “Os corpos estavam a oito metros do lugar onde preparavam a comida. Os americanos nos disseram que as mulheres tinham sido mortas catorze horas antes.” Os investigadores do governo afegão confirmaram o que a família dissera a Starkey — e mais tarde a mim — sobre a extração dos projéteis do corpo das mulheres. “Sabíamos que o que estávamos esclarecendo era tão grave que teríamos que ter certeza de estarmos pisando em terreno firme”, disse-me Starkey sobre a extração dos projéteis. “Deixei aquela acusação de fora da minha primeira matéria. Mas ao ouvi-la novamente de uma fonte afegã muito graduada, muito confiável, decidimos publicá-la.”
Naquele mesmo dia, o New York Times publicou algumas conclusões da investigação afegã. “Chegamos à conclusão de que a patrulha da OTAN foi responsável pela morte de dois homens e três mulheres e que havia indícios de ocultação de provas na varanda da propriedade” por parte da equipe de ataque, declarou o chefe da investigação, Merza Mohammed Yarmad. “A cena estava revirada.”86 A OTAN declarou que as acusações dariam ensejo a novas investigações, mas mesmo assim rejeitou-as por completo. “Negamos enfaticamente que tenha havido extração de projéteis dos corpos. Simplesmente não há indícios”,87 disse um militar da OTAN. O oficial nomeado para realizar a segunda investigação foi posto sob o “controle operacional”88 direto de McChrystal enquanto conduzia o inquérito. Os resultados continuaram sigilosos, mas a OTAN continuou insistindo que “não havia indícios de ocultação de provas”.89
À medida que aumentava a indignação no Afeganistão pelas mortes de civis em incursões como a que ocorrera em Gardez, instalou-se um acirrado debate interno na OTAN acerca de como reagir. Em certo momento pensou-se numa viagem do próprio general McChrystal90 à aldeia para pedir desculpas à família. Em vez disso, decidiu-se que quem iria a Gardez seria o comandante da tropa responsável pela incursão e que no processo ele revelaria exatamente qual unidade estava por trás dos cruéis assassinatos e do acobertamento do massacre. Também seria revelada publicamente a face do JSOC. Na manhã de 8 de abril, pouco depois das onze horas, o almirante William McRaven, o discretíssimo comandante do JSOC, estacionava diante dos portões da propriedade dos Sharabuddin. A família tinha sido avisada na noite anterior de que receberia uma visita importante. Acharam que seria McChrystal em pessoa. Mohammed Sabir e outros membros da família disseram-me que tinham discutido a possibilidade de matar McChrystal quando ele chegasse no dia seguinte, mas o imã local aconselhou que mostrassem hospitalidade e ouvissem o que ele tinha a dizer. Diante da reunião iminente, a família decidiu então chamar uma testemunha não afegã: Jerome Starkey. A OTAN tentara dissimular os detalhes e a hora da visita, mas assim que Starkey recebeu a ligação, empreendeu a viagem de meio dia que o levaria de Cabul a Gardez.
Como não podia deixar de ser, estávamos muito ansiosos para garantir nossa presença no momento em que se desse o encontro, o que foi dificílimo, já que ninguém queria nos informar. E acho que, do ponto de vista das relações públicas, o pessoal que cuidava internamente da imagem da OTAN provavelmente não queria chamar a atenção [...]. Eles reconheciam que tinham cometido um erro. Mais uma vez, esperavam que a coisa ficasse por aí, mas não foi o que aconteceu.
Starkey chegou à casa da família de manhã cedo e ficou conversando e tomando chá com eles. “Por volta das onze, chegou um imenso comboio de grandes veículos blindados americanos, SUVs blindados e um número incontável, e digo incontável no sentido literal do termo, de oficiais e soldados afegãos”, lembrou Starkey. “Entre eles havia um homem que usava um uniforme que achei parecido com o dos fuzileiros navais, mas que tinha na lapela o dístico US Navy [Marinha dos Estados Unidos].” No crachá de identificação lia-se apenas “McRaven”. “Naquele tempo, eu não sabia quem era ele”, disse Starkey, um dos repórteres ocidentais mais experientes dos que estavam no Afeganistão.
E aí se desenrolou uma das cenas mais extraordinárias que presenciei no Afeganistão. Da caçamba de uma caminhonete do Exército afegão, eles tiraram uma ovelha. Três soldados afegãos ajoelharam-se diante da ovelha na frente da casa, exatamente no lugar de onde aqueles soldados tinham iniciado a invasão. Afiaram uma faca, e um mulá do Exército afegão começou a rezar e a oferecer a ovelha em sacrifício.
Hajji Sharabuddin, o ancião da família, interveio. “Não façam isso”, disse ele aos soldados. Starkey disse que as tropas afegãs e McRaven estavam tentando pôr a família numa situação difícil. “Quando uma pessoa chega a seu portão91 e pede perdão, segundo a lei afegã, é difícil negar”, tinha dito Sharabuddin a Starkey, e este acrescentou que a prática era “um antigo ritual afegão92 conhecido como nanawate, no qual se sacrifica uma ovelha diante da porta de alguém para pedir perdão.” A família, segundo Starkey, “ficou sem alternativa, sem nenhuma saída honrosa além de deixar que aqueles homens entrassem em [sua] casa”. Os soldados afegãos tentaram impedir o fotógrafo de Starkey, Jeremy Kelly, de fotografar e fizeram o possível para expulsar Starkey da sala depois que McRaven entrou. Mas a família insistiu que ele ficasse. Não fosse assim, nenhuma prova restaria de que aquele acontecimento extraordinário tinha ocorrido, nenhuma prova de quem eram os assassinos. No interior da casa, o comandante do JSOC ficou frente a frente com os sobreviventes da incursão, inclusive pais e maridos das mulheres que esses homens tinham matado. “O almirante McRaven se pôs de pé e fez um discurso extraordinário. Mencionou semelhanças entre ele e Hajji Sharabuddin, falou de
ambos como homens espirituais, como homens de Deus. Fez comparações e achou semelhanças entre o cristianismo e o islã”, lembrou Starkey. “O senhor e eu somos muito diferentes”,93 disse McRaven a Sharabuddin.
O senhor é um homem de família com muitos filhos e muitos amigos. Eu sou um soldado. Passei a maior parte de minha carreira no exterior, longe de minha família, mas também tenho filhos e meu coração está enlutado pelo senhor. Porém temos uma coisa em comum. Temos o mesmo deus. É um deus que demonstra muito amor e compaixão. Estou rezando pelo senhor, para que em seu luto Deus lhe demonstre amor e compaixão e aplaque sua dor. Estou rezando também para que Ele tenha piedade de mim e de meus soldados por essa terrível tragédia.
Starkey declarou que, a seguir, McRaven disse à família: “Meus soldados foram responsáveis pela morte de membros de sua família”, e pediu desculpas. Os generais afegãos entregaram à família um monte de dinheiro — quase 30 mil dólares,94 segundo parentes. As principais agências internacionais de notícias disseram que Hajji Sharabuddin aceitou as desculpas de McRaven.95 Meses depois, quando estive com Sharabuddin em sua casa, seu ódio só parecia ter aumentado. “Não aceito as desculpas deles. Não trocaria meus filhos nem por todo o reino dos Estados Unidos”, disse-me ele, segurando um retrato dos filhos.
No começo, pensávamos que os americanos eram amigos dos afegãos, mas agora achamos que os americanos é que são os terroristas. Os americanos são nossos inimigos. Eles trazem terror e destruição. Os americanos não só destruíram minha casa, destruíram minha família. Os americanos soltaram as Forças Especiais contra nós. Essas Forças Especiais, com suas barbas longas, fizeram coisas cruéis, criminosas.
“Dizemos que eles são o Talibã americano”, acrescentou Mohammed Tahir, pai de Gulalai, uma das mulheres assassinadas. Enquanto eu falava com outros membros da família, Mohammed Sabir, que perdera os irmãos e a mulher no massacre, aproximou-se de mim junto com a filha de seis anos, Tamana. Disse-me que devíamos ir embora logo porque os talibãs controlavam as estradas de noite. Diante de nós, ele perguntou à filha: “Tamana, quem foi que os americanos mataram?”. Ela abraçou as pernas do pai e recitou a lista de mortos. Depois seu olhar perdeu-se ao longe, inexpressivo. “Ela lembra cada detalhe daquela noite”, disse-me Sabir. “A chegada dos americanos, os disparos, a destruição, tudo.” Enquanto embarcávamos para partir, ele me disse: “Tenho um recado, para o povo dos Estados Unidos, que vai nos ajudar:
livrem-se dessas Forças Especiais e as ponham na cadeia, façam com que sejam condenados porque estão matando gente inocente”.
Durante mais de um ano, tentei ter acesso a algum documento das Forças Armadas americanas sobre o incidente de Gardez. Solicitei boletins pós-operacionais e qualquer informação existente sobre medidas disciplinares aplicadas aos soldados que mataram as três mulheres e os dois homens e extraíram projéteis do corpo das mulheres. Preenchi formulários, dentro da Lei de Liberdade de Informação, que circularam por diversas instâncias das Forças Armadas até irem parar numa “agência” não identificada à espera de apreciação. Até o momento em que escrevo, começo de 2013, não recebi documento algum. Starkey me contou que suas tentativas de obter documentos tiveram a mesma sorte. Não muito tempo depois que voltei do Afeganistão, no fim de 2010, estive com o general Hugh Shelton, ex-presidente do Estado-Maior Conjunto, e perguntei-lhe sobre o incidente de Gardez. Ele disse que não estava a par de todos os detalhes. E embora dissesse que deveria ser feita uma revisão interna do caso, por ordem do comandante, a fim de esclarecer o que tinha acontecido e determinar se alguns soldados deveriam ser submetidos à corte marcial, disse acreditar que o caso não voltaria a ser investigado. “Se aquele oficial da polícia [Daoud] e aquelas duas mulheres grávidas foram mortos por ação do JSOC, com base em todas as informações que eles tinham, segundo as quais ali estava sendo preparada uma operação terrorista, e se eles voaram para lá, tentaram entrar no local e encontraram algum tipo de resistência — quero dizer, houve tiros —, sinto muito que aquela gente tenha sido morta”, disseme ele.
Mas, embora no lugar errado e na hora errada, nossos rapazes estavam fazendo o que achavam que deviam fazer, protegendo a si mesmos e a seus camaradas no processo. Dou-me por satisfeito. Não acho que deva ser investigado; penso que deve ser posto na conta desses malditos atos de guerra.96
O fato de Daoud ser um comandante de polícia treinado pelos Estados Unidos pouco significava para Shelton. “O fato de ser um chefe de polícia não significa que não pudesse ser também um terrorista. Ele podia estar trabalhando nos dois lados”, disse ele.
As duas mulheres grávidas? O fato de que estivessem grávidas é muitíssimo lamentável. Mas também é lamentável o fato de serem mulheres. Por outro lado, já levei tiro de mulher. Portanto, isso… não quer dizer nada. Isso não é desculpa. Elas morrem igual a homens que atiram em nós.
À medida que aumentava o ritmo das incursões noturnas, sob o comando de McChrystal, as Forças de Operações Especiais continuaram tendo liberdade de operar sem ter de prestar contas de seus atos, fato que, aparentemente, não passou despercebido a McChrystal. “É bom que você esteja lá esta noite e que abata quatro ou cinco alvos”, disse McChrystal a um SEAL da Marinha no Afeganistão. A seguir, acrescentou: “Mas de manhã vou repreender você por ter feito isso”.97 No entanto, a cada nova incursão mais protestos se espalhavam pelo país. As condições que tinham levado Matt Hoh a renunciar a seu cargo no Departamento de Estado em protesto, no fim de 2009, mantinham-se em 2010. Se algo tinha mudado, foi para pior. As mortes de civis decorrentes de operações da OTAN subiram para noventa nos primeiros meses de 2010, um aumento de 75% em relação ao ano anterior.98 E não somente em incursões noturnas. Mais de trinta afegãos foram mortos a tiro em postos de controle desde que McChrystal assumiu o comando até a primavera de 2010. De acordo com McChrystal, em março de 2010, numa teleconferência com soldados americanos:
Nos mais de nove meses99 em que estou aqui, não houve um só caso em que tenhamos nos envolvido num incidente causado por escalada de força e machucado alguém que estivesse próximo a um veículo com bombas ou que estivesse preparado para um atentado suicida e, em muitos casos, eles levavam famílias [...]. Atiramos num número impressionante de pessoas, matamos uma porção delas e, que eu saiba, nenhuma representava uma ameaça real.
Embora McChrystal ostensivamente impusesse maiores restrições a incursões noturnas e suspendesse ataques aéreos quase que por completo, a realidade dos fatos ainda era a mesma: pessoas inocentes estavam morrendo, e os afegãos ficavam cada vez mais indignados. Em maio de 2010, os Estados Unidos executavam nada menos de mil incursões noturnas100 por mês. As Forças de Operações Especiais “foram autorizadas a atirar contra qualquer homem armado que surgisse”, informou Gareth Porter, “e com isso as incursões resultavam na morte de muitos civis afegãos, todos automaticamente classificados como rebeldes101 pelas Forças de Operações Especiais”. Quando conheci o mulá Abdul Salam Zaeef, ex-porta-voz dos talibãs, no fim de 2010, ele me disse claramente que as incursões americanas estavam ajudando o Talibã, exatamente como dissera Hoh. “Eles estão incentivando as pessoas a se tornarem extremistas”, disse-me ele em seu apartamento em Cabul, onde se encontrava em prisão domiciliar de fato, vigiado dia e noite por oficiais da polícia afegã diante de seu edifício. Os líderes políticos e militares dos Estados Unidos, disse ele,
pensam: “Quando assustamos as pessoas, elas deveriam ficar quietas”. Mas este é um país diferente. Quando você mata uma pessoa, quatro ou cinco outras se levantam contra você. Se você mata cinco pessoas, pelo menos vinte se levantam contra você. Quando você desrespeita as pessoas ou a honra das pessoas numa aldeia, a aldeia inteira se volta contra você. Isso está criando ódio contra os americanos.102
A morte de civis pelos Estados Unidos, combinada com a impressão generalizada de que o governo afegão só existia para facilitar a corrupção de poderosos chefes de milícia, traficantes de drogas e criminosos de guerra, criou uma situação em que o Talibã e a rede Haqqani ganharam apoio de comunidades da área pashtun que, de outra forma, não os apoiariam. Zaeef me disse que desde 2005,103 quando ele saiu da prisão de Guantánamo, “o Talibã tornou-se mais forte”. “Os talibãs estão caindo do céu?”, perguntou Zaeef. “Não, é gente nova.” Quando perguntei a Hoh o que achava a respeito dos comentários de Zaeef, ele respondeu que eram exatos. “Acho que estamos provocando mais hostilidade. Estamos desperdiçando muitos recursos na perseguição de caras de nível médio que não ameaçam os Estados Unidos nem têm capacidade de ameaçar os Estados Unidos”, disse-me ele. “Se dizemos que a Al-Qaeda recruta com base numa ideologia que defende o mundo muçulmano dos ataques do Ocidente, isso só faz alimentar essa ideologia.” Em junho de 2010, o Afeganistão se tornara a mais longa guerra da história americana.104 Naquele verão, o número de mortos americanos bateu a marca de mil.105 De junho de 2009 a maio de 2010, o número de ataques com artefatos explosivos improvisados tinha subido de 250 por mês para mais de novecentos.106 À medida que a situação no Afeganistão se deteriorava e os talibãs e outros grupos insurgentes ganhavam terreno, um escândalo que atingiu as Forças Armadas americanas e a comunidade de Operações Especiais acabou levando à renúncia e à aposentadoria do general McChrystal, um dos arquitetos da máquina de matar americana pósOnze de Setembro. Entretanto, seu afastamento nada teve a ver com suas ações com o JSOC no Iraque ou com sua participação no acobertamento do fogo amigo que causou a morte, em 2004, de Pat Tillman, jogador de futebol americano transformado em Ranger do Exército no Afeganistão, nem com seu papel na transformação do JSOC num esquadrão da morte em nível global. A queda de McChrystal foi provocada por uma matéria de Michael Hastings na revista Rolling Stone, que mostrava McChrystal e seu círculo mais próximo fazendo observações depreciativas sobre o presidente Obama, o vice Biden e outras autoridades civis americanas. Antes mesmo que a revista chegasse às bancas, trechos da matéria circularam pelos gabinetes do poder e pela mídia em Washington. McChrystal estava liquidado. Sua carreira de comandante das unidades de elite das Forças Armadas dos Estados Unidos fora encerrada por um artigo publicado numa revista que mostrava na capa Lady Gaga quase nua usando um sutiã do qual saíam dois fuzis.
Em 23 de junho, o presidente Obama, tendo a seu lado o vice Joe Biden, o almirante Mullen, o secretário de Defesa Gates e o general Petraeus, anunciou que, “com muito pesar”, tinha aceitado a renúncia de McChrystal. “É a coisa acertada para nossa missão no Afeganistão, para nossas Forças Armadas e para nosso país”, disse Obama diante da Casa Branca. “Acredito que seja a decisão certa para a segurança nacional”, acrescentou. “A conduta retratada no artigo recentemente publicado não se coaduna com o que se espera de um comandante.” Obama agradeceu a McChrystal “por sua notável carreira com a farda”.107 “Esta é uma mudança de pessoas”, declarou Obama. “Mas não uma mudança de política.” Essa questão ficou clara quando o presidente anunciou que o general Petraeus, um dos principais arquitetos da expansão do campo de batalha global dos Estados Unidos, assumiria o posto de McChrystal. Assim que Petraeus assumiu o comando da guerra, o ritmo das incursões noturnas aumentou108 e foram retomados os ataques aéreos.109 Com o aumento do número de civis mortos,110 a insurreição afegã se intensificou. O programa de assassinato “dirigido” dos Estados Unidos estava alimentando a ameaça que pretendia combater.
36. O ano do drone
IÊMEN E ESTADOS UNIDOS, 2010 — Enquanto milhares de soldados americanos eram enviados e reenviados ao Afeganistão, a campanha secreta em campos de batalha não declarados se ampliava. Os Estados Unidos estavam atacando o Paquistão com drones semanalmente, enquanto tropas do JSOC atuavam na Somália e no Iêmen, este último submetido também a ataques aéreos. Ao mesmo tempo, as sucursais da Al-Qaeda nesses países ganhavam força. Quando voltei a me encontrar com o Caçador, que tinha trabalhado com o JSOC durante o governo Bush e continuava trabalhando na área de contraterrorismo no governo Obama, perguntei-lhe que mudanças tinham ocorrido de um para outro governo. Ele respondeu de batepronto:
Está tudo na mesma.1 Se algo mudou foi a intensificação das operações do JSOC neste governo, uma intensidade maior nas coisas que pedem a eles, nos lugares que pedem a eles e na forma de fazer o que pedem a eles [...]. Agora há coisas que transpiram, no mundo todo, o que seria impensável no governo Bush, não apenas por causa da oposição ferrenha dentro do gabinete, ou dentro do Pentágono, mas porque não teriam o apoio final do presidente. Neste governo, o presidente fez uma avaliação política e militar — é prerrogativa sua — e concluiu que o melhor é deixar o Comando Conjunto de Operações Especiais agir à solta, como um cavalo selvagem, na busca dos objetivos que [Obama] estabeleceu.
O governo Obama, disse-me o Caçador, empenhou-se em pôr fim às divergências entre a CIA e o JSOC e reunir todas as forças numa campanha global unificada contra o terrorismo, embora essa fosse uma tarefa hercúlea. O que ficou claro no primeiro ano do governo Obama foi que o JSOC tinha ganhado a guerra de ideias de uma década dentro da comunidade americana de contraterrorismo. Suas ações diretas com foco paramilitar se tornariam a estratégia central das diversas pequenas guerras do novo governo, e não somente no Afeganistão. De acordo com o Caçador:
As operações foram institucionalizadas a ponto de se tornarem parte integrante de qualquer
campanha, em qualquer teatro de operações, e em certo momento cruzamos um limiar em que o Comando Conjunto de Operações Especiais se confunde com a campanha [...]. Em lugares como o Iêmen, é o Comando Conjunto de Operações Especiais e ponto. Eles dão as cartas. É a casa deles, e eles fazem o que precisam fazer.
Enquanto a identificação da política contraterrorista com o JSOC se generalizava, a CIA ia aumentando com firmeza sua competência paramilitar e expandindo seus ataques com drones e suas listas de alvos. De certa forma, aquilo parecia um cabo de guerra entre o JSOC e a CIA, que disputavam quem riscaria mais depressa os nomes constantes de suas listas de mortes. No começo de 2010, havia pelo menos três entidades2 dentro do governo americano que mantinham listas da morte: o NSC, com o qual Obama tratava diretamente por meio de reuniões semanais, a CIA e as Forças Armadas. A CIA tinha seu próprio “processo paralelo, mais enclausurado”3 de seleção de alvos e execução de ataques, na maior parte dos casos no Paquistão. O Conselho Nacional de Segurança e o Departamento de Estado tinham pouca ingerência4 sobre esse processo. Obama dava a última palavra em “ataques mais complexos e arriscados”5 no Paquistão. Pelo menos duas vezes por mês,6 o principal advogado da CIA recebia um documento do Centro de Contraterrorismo (quase sempre de duas a cinco páginas) com recomendações e informações sobre alvos. O advogado convocava pequenas reuniões com advogados do CTC e com o chefe do Serviço Nacional Clandestino, anteriormente chamado Diretório de Operações, que coordena as operações secretas da CIA no mundo. Advogados da Casa Branca e do Conselho Nacional de Segurança examinavam a lista da CIA, que devia ser aprovada também pela Gangue dos Oito na Colina do Capitólio. A lista das Forças Armadas, segundo os repórteres Dana Priest e William Arkin, “era na verdade mais de uma,7 já que os soldados de operações especiais clandestinas” do JSOC tinham sua própria lista interna. Essas listas com frequência se sobrepunham, mas como observaram Priest e Arkin, “mesmo essas listas da morte altamente confidenciais não eram feitas de maneira coordenada pelos três principais órgãos envolvidos em sua criação”.
Obama e sua equipe de contraterrorismo passaram o primeiro ano de sua presidência plenamente comprometidos com a formalização do processo de assassinato de suspeitos de terrorismo e outros “militantes”. À sua maneira, eles tinham abraçado a posição neoconservadora do mundo como um campo de batalha, e as listas da morte que tinham montado abrangiam o mundo. Ao contrário do presidente Bush, que com frequência delegava as decisões sobre assassinatos a seus comandantes e a funcionários da CIA, Obama insistiu em autorizar pessoalmente8 a maior parte dos ataques. Nas noites de terça-feira, Obama presidia reuniões apelidadas de Terças do Terror por altos funcionários do governo, durante as quais os
alvos propostos eram “indicados” para integrar a lista da morte. Muitos deles eram conhecidos quadros operacionais do Paquistão, do Iêmen ou da Somália, mas às vezes eram apenas vagamente ligados a outros suspeitos ou, simplesmente, residentes de certas regiões. “Esse processo secreto de ‘indicações’9 foi inventado pelo governo Obama, uma macabra sociedade de debates que examina slides de PowerPoint indicando nomes, apelidos e histórias de vida de supostos membros do ramo iemenita da Al-Qaeda ou seus aliados da milícia Shabab da Somália”, relatou o New York Times. “As indicações vão para a Casa Branca, onde por sua própria insistência e orientado pelo sr. Brennan, o sr. Obama deve aprovar cada um dos nomes. Ele autoriza cada ataque no Iêmen e na Somália e também os mais complexos e arriscados ataques no Paquistão”, observou o Times. Os encontros das Terças do Terror se realizavam depois que um grupo maior — às vezes mais de cem pessoas, entre advogados e funcionários da segurança nacional — discutia os nomes que seriam acrescentados ou subtraídos da lista. O JSOC, segundo fontes bem informadas sobre as reuniões, dominava o processo e, nas palavras de uma fonte do JSOC, “preparava”10 o pessoal do Departamento de Estado, da CIA e do governo para aceitar a campanha de assassinatos dirigidos que levaria a “infraestrutura” das redes a descer muito mais na “cadeia alimentar” em diversos países. Embora Obama tivesse baseado sua campanha, em parte, na promessa de usar unilateralmente forças dos Estados Unidos na perseguição a terroristas conhecidos, manteve seu escopo limitado a Osama bin Laden e seus principais seguidores. Uma vez na presidência, ele tornou muito mais abrangente o sistema que estava construindo. Em essência, a lista da morte tornou-se uma espécie de justiça “pré-criminal” em que as pessoas eram consideradas alvos legítimos desde que se enquadrassem em certos padrões biográficos próprios de suspeitos de terrorismo. Utilizando ataques por indícios, já não era preciso que os alvos estivessem envolvidos em complôs ou atos contra os Estados Unidos. Seu potencial para cometer atos futuros podia ser uma justificativa para que fossem mortos. Às vezes, o simples fato de pertencer ao grupo “masculino em idade militar” em dada região do Paquistão servia como indício de atividade terrorista suficiente para desencadear um ataque de drone. No Iêmen, Obama autorizou o JSOC a atacar alvos mesmo quando os planejadores da missão desconhecessem a identidade daqueles que estavam bombardeando. Esses atos levavam o rótulo de Ataques de Desmonte de Atos Terroristas,11 ou TADS [Terrorist Attack Disruption Concepts]. Enquanto Obama presidia as reuniões das Terças do Terror, a política de assassinato de seu governo era coordenada por dois arquitetos com vasta experiência em morte dirigida: John Brennan e o almirante William McRaven. Brennan trabalhara por longo tempo no programa de mortes do governo Bush; McRaven tinha ajudado a desenvolver a versão pós-Onze de Setembro do programa quando trabalhou no NSC de Bush. Com Obama, os dois homens estavam agora encarregados de formalizar e racionalizar os programas de morte em que tinham trabalhado nas sombras durante a maior parte de sua vida profissional. No Paquistão, a CIA assumiria a liderança em relação a ataques com drones, e Obama
concedeu à Agência ampla autoridade para efetuar os ataques e equipou-a com mais drones. No fim de 2009, Leon Panetta declarou que a CIA estava “executando as mais agressivas12 operações da história de nossa Agência”. A maior parte do resto do mundo caberia ao JSOC, que no governo Obama foi agraciado com uma parte muito maior do mundo para atacar. Embora alguns conflitos de bastidores surgidos entre o JSOC e a CIA no governo Bush tenham persistido, tanto McRaven quanto Brennan viram uma oportunidade de promover uma frente de contraterrorismo mais unificada do que fora possível nos oito anos anteriores. As credenciais do presidente Obama como democrata liberal e advogado especializado em direito constitucional, que prometera pôr fim aos excessos da máquina de guerra de Bush, seriam de enorme valor para vender a causa do grupo. Em entrevistas ao New York Times e outros importantes veículos, altos funcionários da Casa Branca insistiam no tema da “guerra justa”, teoria abraçada por Obama em seu discurso de aceitação do prêmio Nobel, observando que Obama era admirador de santo Agostinho e de santo Tomás de Aquino. “Se John Brennan for a última pessoa13 na sala com o presidente, fico tranquilo, porque Brennan é uma pessoa de uma retidão moral autêntica”, disse o advogado do Departamento de Estado Harold Koh, que fora um dos grandes críticos das políticas de contraterrorismo do governo Bush. Agora mudava de tom. “É difícil, como seria para um padre de valores morais extremamente fortes, de repente ver-se encarregado de comandar uma guerra.” Na frente do contraterrorismo, o primeiro ano de Obama na presidência foi marcado pela adoção agressiva do assassinato como peça fundamental da política de segurança nacional dos Estados Unidos. Em parte, os ataques preventivos foram motivados por medo de outro ataque aos Estados Unidos. Politicamente, os conselheiros de Obama sabiam que um ataque terrorista bem-sucedido poderia prejudicar sua presidência, e disseram isso claramente aos repórteres. Mas o uso intensivo dos quadros e dos drones do JSOC também serviu para sustentar a versão de que Obama estava travando uma guerra mais “competente” do que seu antecessor. Obama podia dizer que estava enfrentando os terroristas e, ao mesmo tempo, reduzindo a ocupação do Iraque, à qual se opusera. Embora Obama tenha recebido elogios de muitos republicanos por suas agressivas políticas contraterroristas, outros achavam que elas serviam para driblar a polêmica questão de como deter suspeitos de terrorismo dentro da lei. “A política deles é eliminar14 Alvos de Grande Valor em vez de capturá-los”, declarou o senador Saxby Chambliss, o mais proeminente republicano da Comissão de Inteligência do Senado. “Eles não vão proclamar isso, mas é o que estão fazendo.” Pouquíssimos democratas ergueram a voz contra a emergente campanha global de assassinatos de Obama. “É o mais vantajoso15 que temos a fazer do ponto de vista político — baixo custo, sem baixas americanas, dá a impressão de tenacidade”, disse o almirante Dennis Blair, ex-diretor nacional de Inteligência de Obama, explicando como o governo via sua política. “Funciona bem internamente, só é impopular em outros países. Qualquer prejuízo que possa causar ao interesse nacional só vai surgir a longo prazo.”
O governo utilizou intensamente o Instituto de Segredo de Estado e a alegação de estar protegendo a segurança nacional para esconder do público os detalhes de seu programa de mortes. Quando lhe convinha, o governo permitia o vazamento de detalhes de operações para jornalistas. Assim agindo, deu continuidade a muitas das práticas que os liberais democratas tinham censurado quando Bush e sua equipe estavam no comando. Jack Goldsmith, que tinha sido advogado do governo Bush, afirmou que “talvez a surpresa mais notável16 de sua presidência” tenha sido o fato de “Obama ter dado continuidade a quase todas as políticas de contraterrorismo de seus antecessores”. Quando Obama presidiu uma análise da proposta de assassinato de Anwar Awlaki, lembrou um de seus principais assessores, chegou a declarar: “Este é fácil”.17 Fácil ou não, o governo Obama recusou-se a divulgar suas conclusões18 sobre como uma operação daquelas poderia ser legal. “Este programa se baseia na legitimidade pessoal19 do presidente, e isso não é sustentável”, declarou ao New York Times o ex-diretor da CIA Michael Hayden.
Levei a vida como uma pessoa que age com base em memorandos secretos da Assessoria Jurídica do Departamento da Justiça (Office of Legal Counsel, OLC), e não foi uma vida boa. Uma democracia não faz guerra baseada em memorandos sobre legalidade trancados num cofre do Departamento de Justiça.
Obama e sua equipe criaram um sistema “em que as pessoas estão sendo mortas20 e não se sabe em razão de que provas, e não há meios de reparar a situação”, disse-me o ex-inspetor da CIA Phil Giraldi.
Não quer dizer que não haja terroristas lá fora, e de quando em quando um deles precisa ser morto por uma ou outra razão, mas quero saber qual é a razão. Não quero que alguém da Casa Branca venha me dizer “você tem de confiar em mim”. Essas atitudes já foram além da conta.
Em meados de 2010, o governo Obama tinha aumentado de sessenta para 7521 o número de países em que atuavam suas Forças de Operações Especiais. O Socom tinha cerca de 4 mil pessoas22 em outros países do mundo, além do Iraque e do Afeganistão. “As funções das Operações Especiais23 solicitadas pela Casa Branca vão além de ataques unilaterais. Incluem treinamento de forças contraterroristas locais e operações conjuntas com elas”, publicou o Washington Post na época. “Existem planos para ataques preventivos ou retaliatórios em muitos países, com o propósito de que sejam executados quando for identificado um complô ou depois de um ataque ligado a um grupo específico.” John Brennan expôs a nova visão de contraterrorismo do governo Obama: Nós “não vamos
simplesmente responder24 depois do fato consumado” aos ataques terroristas. Vamos “levar o combate à Al-Qaeda e a seus aliados extremistas onde quer que conspirem e treinem. No Afeganistão, Paquistão, Iêmen, Somália e por aí vai”. Fontes de operações especiais bem informadas disseram-me que entre os países a que foram enviados grupos do JSOC no governo Obama estavam Irã, Geórgia, Ucrânia, Bolívia, Paraguai, Equador, Peru, Iêmen, Paquistão (inclusive o Baluchistão) e Filipinas. Às vezes, esses grupos estiveram na Turquia, Bélgica, França e Espanha. O JSOC também apoiou as operações da Agência de Repressão às Drogas dos Estados Unidos na Colômbia e no México. Mas as duas grandes prioridades fora do Afeganistão e do Paquistão eram o Iêmen e a Somália. “Nesses dois lugares, há ações unilaterais em andamento”,25 revelou-me em 2010 uma fonte de Operações Especiais. Um oficial das Forças Armadas disse ao Washington Post que o governo Obama tinha dado sinal verde para coisas “que o governo anterior não autorizava”.26 Os comandantes de Operações Especiais, disse o jornal, tinham mais comunicação direta com a Casa Branca do que na era Bush. “Temos muito mais acesso”, disse um oficial das Forças Armadas ao jornal. “Eles falam publicamente muito menos, mas agem mais. Querem tornar-se agressivos muito mais rapidamente.” Com Obama, contou-me o Caçador, o JSOC tinha condições de ser mais “firme, forte e rápido, com pleno apoio da Casa Branca”. Enquanto o governo Obama intensificava seus ataques com drones e a campanha de assassinatos dirigidos, as sucursais da Al-Qaeda tornavam-se mais fortes, incentivadas em certa medida pela escalada americana. Embora o governo Obama apregoasse que a Al-Qaeda estava na lona, seu programa global de assassinatos vinha se tornando um instrumento de recrutamento para as próprias forças que os Estados Unidos pretendiam destruir.
37. Anwar Awlaki é empurrado para o inferno
IÊMEN, 2010 — No começo de fevereiro de 2010, um líder da AQPA, Said Ali al-Shihri, que os iemenitas haviam anunciado ter matado diversas vezes, divulgou uma fita de áudio. “Aconselhamos vocês,1 nosso povo da Península, a preparar e a portar suas armas, a defender sua religião e a si mesmos, e a unir-se a seus irmãos mujahidin”, declarava, acrescentando que os “aviões de espionagem” — presumivelmente drones — estavam matando mulheres e crianças. Em 14 de março, os Estados Unidos atacaram mais uma vez.2 Abyan, no sul do Iêmen, foi atingida por ataques aéreos que mataram dois supostos quadros operacionais da AQPA, inclusive seu chefe para o sul do país, Jamil al-Anbari. Como tinha feito depois do bombardeio de Majalah, o Iêmen assumiu a autoria do ataque e Washington permaneceu em silêncio. Outro líder da AQPA, Qasim al-Rimi, confirmou as mortes numa fita de áudio divulgada logo depois dos ataques. “Um ataque dos Estados Unidos atingiu nosso irmão”,3 declarava ele. “O ataque foi executado enquanto nosso irmão fazia uma ligação telefônica pela internet.” Quanto à reivindicação da autoria do ataque pelo Iêmen, Rimi disse: “Esse absurdo é equivalente ao de suas afirmações” por ocasião dos ataques de dezembro de 2009. “Que Deus castigue a mentira e os mentirosos.” Poucos meses depois, a AQPA vingaria seus mortos lançando um ousado ataque contra uma dependência de segurança do governo em Áden, matando onze pessoas. A reivindicação de responsabilidade levava uma assinatura: “Brigada do mártir Jamil al-Anbari”.4 Uma semana depois do ataque de 14 de maio, um dos principais elementos do comando das operações secretas no Iêmen, Michael Vickers, em companhia de James Clapper, subsecretário de Defesa para Inteligência, conversou com o presidente Saleh e outras autoridades iemenitas. A embaixada americana divulgou uma breve declaração sobre a reunião, dizendo que estavam lá para “discutir a cooperação contraterrorista em andamento”5 entre os dois países e para “manifestar o apreço dos Estados Unidos pelos esforços incessantes do Iêmen para combater” a AQPA. Um mês depois, Vickers resumiu à Comissão de Serviços Armados do Senado, a portas fechadas,6 a ação secreta dos Estados Unidos no Iêmen e na Somália. Um e-mail7 que circulou no gabinete de Vickers na época, ao qual tive acesso em confiança, admitia que “uma Forçatarefa em operação no Iêmen ajudara forças iemenitas a matar suspeitos de terrorismo, mas também tinha executado operações unilaterais”, acrescentando: “A IC, inclusive a DIA e a Agência Central de Inteligência, verifica as listas de alvos e decide quem deve ser capturado
para propósitos de coleta de informações ou quem deve ser morto”. Enquanto as forças do JSOC continuavam atuando no Iêmen, às vezes treinando tropas iemenitas ou executando ações fulminantes, os ataques aéreos permaneceram. No fim de maio, o general James “Hoss” Cartwright, vice-comandante do Estado-Maior Conjunto, informou o presidente Obama sobre um Alvo de Grande Valor que o JSOC tinha localizado por radar. O presidente deu sinal verde para o ataque.8 Em 24 de maio, um míssil americano atingiu um comboio de veículos9 no deserto de Marib que, segundo “informações acionáveis”, estava se dirigindo a uma reunião de quadros operacionais da Al-Qaeda. As informações estavam corretas em parte. Os homens que se encontravam naqueles veículos não eram membros da Al-Qaeda, mas importantes mediadores locais iemenitas que participavam da iniciativa do governo de desmilitarizar membros da AQPA. Entre os mortos estava Jabir al-Shabwani, vice-governador da província de Marib. Shabwani estava numa excelente posição para negociar, dado que seu primo Ayad10 era o líder local da AQPA, que as forças americanas e iemenitas tinham tentado eliminar com ataques em janeiro. Um tio de Shabwani e dois de seus acompanhantes também foram mortos no ataque. Um funcionário local disse que o “vice-governador se encontrava em missão de mediação11 que visava persuadir elementos da Al-Qaeda a se entregar às autoridades”. Como no caso dos outros ataques americanos, as autoridades iemenitas assumiram publicamente a responsabilidade, e o Supremo Conselho de Segurança do Iêmen pediu desculpas12 pelo que chamou de incursão malograda do governo. Contudo, esse ataque custou caro, por ter matado um de seus próprios membros. Poucas horas depois do ataque, a tribo de Shabwani atacou o principal oleoduto13 que liga Marib ao porto de Ras Isa, no mar Vermelho. Os homens da tribo tentaram também ocupar o palácio presidencial na província, mas foram detidos por tropas e tanques do Exército iemenita. Legisladores iemenitas exigiram que o governo de Saleh explicasse como tinha acontecido o ataque e quem estava realmente por trás da guerra aérea em expansão. Meses depois do ataque, alguns funcionários americanos começaram a desconfiar que o regime de Saleh tinha passado informações falsas aos Estados Unidos com a intenção de eliminar Shabwani, depois que explodiu uma contenda entre Jabir al Shabwani e “nomes-chave” da família do presidente Saleh. “Achamos que nos deram uma volta”,14 disse uma fonte americana com acesso a discussões de “alto nível” do governo Obama sobre o Iêmen. A Casa Branca, as Forças Armadas americanas e o embaixador dos Estados Unidos no Iêmen tinham aprovado o ataque. “Afinal, não se sabia, realmente, quem estava em todas aquelas reuniões [iemenitas]”, disse ao Wall Street Journal um ex-funcionário da Inteligência americana. Segundo ele declarou, o ataque demonstrava que os Estados Unidos “aceitavam candidamente quando os iemenitas diziam: ‘Ah, esse é um mau elemento, peguem ele’. E acaba que ele é um mau elemento do ponto de vista político, não é um mau elemento de verdade”. Brennan teria ficado “furioso” com o ataque. “Como isso pôde ter acontecido?”,15 Obama perguntou mais tarde ao general
Cartwright. O general lhe disse que era informação errada dada pelos iemenitas. Segundo Cartwright, “ele tinha levado uma boa descompostura do comandante supremo”. Depois dos ataques com mísseis Tomahawk que mataram dezenas de civis em Al-Majalah em dezembro de 2009 e do desastroso ataque que matou Shabwani, a CIA começou a defender uma mudança nos ataques do JSOC, com a troca dos mísseis Tomahawk16 pela arma preferida da CIA: drones. Os satélites de vigilância foram reposicionados, e enviaram-se mais drones Predator a bases secretas no Iêmen. “Os drones estão voando sobre Marib17 a cada 24 horas e não há um só dia em que não sejam vistos”, disse o xeque Ibrahim al Shabwani, outro irmão do mediador do governo assassinado no ataque de 25 de maio. “Às vezes voam baixo, outras vezes a grande altitude. O clima tornou-se pesado em decorrência da presença dos drones americanos e do medo que possam atacar a qualquer momento.” Fomentar a insegurança parecia parte central da nova estratégia dos Estados Unidos, ameaçando com perigo de morte as tribos locais que apoiassem a Al-Qaeda. Mas na opinião de outros era um tiro pela culatra, sobretudo com líderes tribais locais que muitas vezes tinham membros da família em vários lados da guerra. Há quem diga que Saleh, que dependia do apoio das tribos a seu regime, ao contrário de ter programado a morte de Shabwani, tinha pedido uma pausa nas ações secretas dos Estados Unidos depois do ataque. Entretanto, funcionários americanos insistiam que isso não abalava o acordo secreto que permitia que os Estados Unidos executassem ataques no Iêmen. “No fim das contas,18 não é como se ele dissesse ‘Chega disso’”, declarou ao New York Times um funcionário não identificado do governo Obama. “Ele não nos expulsou do país.” O que não se pode discutir é que os ataques, especialmente aqueles que mataram civis e figuras de destaque das tribos, estavam dando à Al-Qaeda valiosa munição para sua campanha de recrutamento no Iêmen e para sua batalha propagandística contra a aliança americanoiemenita de combate ao terrorismo. Autoridades iemenitas disseram que entre dezembro de 2009 e maio de 2010 os ataques americanos19 mataram mais de duzentos civis e quarenta pessoas ligadas à Al-Qaeda. “O que os Estados Unidos estão tentando fazer atualmente no Iêmen é perigosíssimo,20 já que cai como uma luva para a estratégia mais ampla da AQPA no que se refere a mostrar que o Iêmen não é diferente do Iraque e do Afeganistão”, afirmou em junho de 2010 Gregory Johnsen, professor de Princeton, depois que a Anistia Internacional divulgou um relatório que documentava o uso de munição americana nos ataques executados no Iêmen. “Isso lhes possibilita afirmar que o Iêmen é uma frente legítima para a jihad”, disse Johnsen, que em 2009 participou da equipe da USAID que avaliou o conflito do Iêmen. “Eles estão dizendo isso desde 2007, mas incidentes desse tipo funcionam como fermento para a argumentação deles.” No verão de 2010, depois de meses de incursões e ataques aéreos de forças americanas e iemenitas, a AQPA deu o troco. Em junho, um grupo de quadros operacionais da organização, usando uniformes militares, executou uma incursão21 contra a divisão da polícia secreta iemenita, a PSO. Durante a cerimônia matinal de hasteamento da bandeira, quadros da AQPA lançaram granadas propelidas por foguetes contra o edifício e abriram fogo com armas
automáticas, irrompendo pelos portões. Atingiram pelo menos dez oficiais e três faxineiras. O objetivo da incursão foi libertar suspeitos presos pela PSO, e teve sucesso. A incursão foi seguida de uma campanha sustentada de assassinatos que visava militares iemenitas de alta patente e funcionários da Inteligência. Durante o mês sagrado do Ramadã, que começara em agosto, a AQPA executou uma dúzia de ataques.22 Em setembro, sessenta funcionários tinham sido mortos, muitos deles baleados por assassinos em motocicleta.23 Esse método de ataque tornou-se tão comum que o governo acabou proibindo o trânsito de motos nas áreas urbanas de Abyan. O uso de “motocicletas em operações terroristas de assassinato de autoridades da Inteligência e funcionários da segurança” tinha “aumentado substancialmente nos nove últimos meses na província”, disse um funcionário do Ministério do Interior do Iêmen. Enquanto o governo do Iêmen se via sitiado e as ações secretas dos Estados Unidos se multiplicavam, Anwar Awlaki pronunciou uma “Mensagem ao Povo Americano” em que dizia que a tentativa de Umar Farouk Abdulmutallab de derrubar um aeroplano sobre Detroit tinha sido uma “retaliação aos mísseis de cruzeiro24 e às bombas de fragmentação que mataram mulheres e crianças”, e declarou: “Vocês têm seus B-52, seus Apaches, seus Abrams e seus mísseis de cruzeiro, e nós temos armas leves e artefatos explosivos improvisados. Mas temos homens, dedicados e sinceros, com coração de leão”. Awlaki lançou também uma diatribe contra o governo americano e o de Saleh. Se “Bush é lembrado como o presidente que levou os Estados Unidos a se atolar no Afeganistão e no Iraque, parece que Obama quer ser lembrado como o presidente que levou os Estados Unidos a se atolar no Iêmen”, declarou. Segundo ele,
Obama já deu início à guerra no Iêmen com o bombardeio aéreo de Abyan e Shabwah. Com isso, lançou uma campanha publicitária para os mujahedin no Iêmen que em poucos dias fez o trabalho deles de anos […]. Os membros corruptos do governo iemenita e alguns chefes tribais que se dizem aliados deles estão se dando bem. O boato que corre entre eles é que chegou a hora de extorquir os americanos simplórios. Políticos, militares e agentes da Inteligência estão mamando milhões. Os funcionários do governo iemenita estão fazendo grandes promessas a vocês e mandando grandes contas: bem-vindos ao mundo dos políticos iemenitas.
O que havia de notável nas afirmações de Awlaki sobre a relação dos Estados Unidos com Saleh era como soava verdadeira para muitos analistas iemenitas veteranos. Durante esse período, Awlaki começou a conquistar uma dimensão mítica no discurso da imprensa e do governo dos Estados Unidos sobre ameaças terroristas. Mas a questão real dizia respeito ao tamanho da ameaça realmente representada. Embora a disputa não se desse publicamente, havia na IC uma profunda divisão que não era dada a público sobre como considerar Awlaki. Eram fartas as evidências de que ele tinha elogiado a posteriori os ataques contra os Estados
Unidos, assim como de que tinha feito contato com Hasan e Abdulmutallab. Também havia provas de que ele incitava a violência jihadista contra os Estados Unidos e seus aliados. Mas nenhuma prova conclusiva tinha sido apresentada, pelo menos publicamente, de que ele tivesse desempenhado papel operacional em algum desses ataques. Em outubro de 2009, a CIA teria chegado à conclusão de que “não tinha provas específicas25 de que ele ameaçasse a vida de americanos — o que é o mínimo que se pode exigir para uma operação de captura ou morte” contra um cidadão americano. O presidente Obama agora discordava dessa avaliação. Awlaki tinha de morrer.
Em fevereiro de 2010, o jornalista Abdulelah Haider Shaye mais uma vez conseguiu encontrar Awlaki e fez a primeira entrevista com o cidadão americano desde que se tornaram públicas as notícias da ameaça de seu assassinato pelo governo americano. “Por que o senhor acha que os americanos querem matá-lo?”,26 perguntou Shaye a Awlaki. “Porque sou muçulmano e propago o islã”, respondeu Awlaki, acrescentando que as acusações contra ele — na imprensa, não num tribunal de justiça — se baseavam na ideia de que ele teria “incitado” Nidal Hasan e Abdulmutallab e que gravações de palestras suas tinham sido encontradas em poder de conspiradores em mais de uma dúzia de supostos complôs terroristas. “Tudo isso é parte da tentativa de liquidar as vozes que clamam pelos direitos da Ummah.” E acrescentou:
Pregamos o Islã que foi revelado por Alá ao profeta Maomé, o Islã da jihad e da sharia. Sempre que uma voz prega o Islã, eles acabam com a pessoa ou com sua reputação; acabam com a pessoa assassinando-a ou pondo-a na cadeia, ou acabam com sua reputação distorcendo sua imagem na imprensa.
Shaye perguntou a Awlaki: “O senhor acha que o governo do Iêmen facilitaria seu assassinato?”. “O governo do Iêmen vende seus próprios cidadãos aos Estados Unidos para ganhar os mal havidos recursos que implora ao Ocidente em paga do sangue deles. As autoridades iemenitas dizem aos americanos que ataquem onde quiserem, e pedem a eles que não anunciem a autoria dos ataques para evitar a indignação pública, e então o governo iemenita assume despudoradamente esses ataques”, respondeu Awlaki.
O povo de Shabwah, Abyan e Arhab viram os mísseis de cruzeiro, e algumas pessoas viram bombas de fragmentação que não explodiram. O Estado mente quando reivindica a responsabilidade pelos ataques, e faz isso para negar a colaboração. Drones americanos voam continuamente sobre o Iêmen. Que Estado é esse que permite que o inimigo espione seu
povo, considerado isso uma “cooperação consentida”?
No Iêmen, Awlaki estava agora completamente clandestino e tinha dificuldade para postar seus sermões. Seu blog tinha sido bloqueado pelo governo americano e havia drones cruzando os céus de Shabwah. Embora as agências de notícias americanas, “especialistas” em terrorismo e destacados funcionários do governo identificassem Awlaki como líder da AQPA, essas acusações eram ambíguas. Awlaki tinha pisado em terreno minado ao elogiar abertamente ataques terroristas contra os Estados Unidos e convocando os muçulmanos americanos a seguir o exemplo de Nidal Hasan. Contudo, os indícios existentes sobre a relação da Al-Qaeda com Awlaki em 2010 levam a crer que ele não era um quadro operacional do grupo, e sim estava à procura de uma aliança com pessoas de ideias afins. Algumas delas, como seu tio, até argumentaram que ele foi levado a se aliar à AQPA depois de marcado para morrer juntamente com os líderes da organização. O xeque Saleh bin Fareed tinha sido o protetor de Anwar no Iêmen. Foi a liderança de Bin Fareed sobre sua tribo que permitia a Awlaki transitar livremente por Shabwah e outras áreas tribais. Mas o regime iemenita pressionava o xeque para entregar Anwar. O pai de Awlaki, Nasser, estava convencido de que Anwar permaneceria escondido e que o governo americano continuaria tentando matá-lo. Bin Fareed decidiu fazer uma nova tentativa. Foi visitar Anwar em Shabwah. Disse que ao chegar viu drones “circundando nosso vale 24 horas por dia27 — sem parar um minuto. Claro que só podemos vê-los à luz do sol — mas podemos ouvi-los claramente. E acho que estavam atrás de Anwar”, disse-me ele. Quando Bin Fareed se encontrou com o sobrinho, este lhe disse que tinha ouvido falar que Obama o tinha marcado para morrer. “Em Sana’a agora, acho que eles estão sob pressão”, respondeu Bin Fareed. “Agora o presidente deu ordem a eles para capturar ou matar você.” Awlaki disse a Bin Fareed que não tinha sido acusado de crime algum pelo governo americano e que não ia se apresentar para responder a acusações que não existiam. “Pode dizer a eles, não tenho nada, até hoje, não tenho nada a ver com a Al-Qaeda”, disse Anwar ao tio. “Mas se [Obama] não desistir [de sua ordem], e eu continuar sendo procurado, talvez eles me mandem para o inferno. Não tenho escolha.” Bin Fareed me disse que acreditava que as ameaças contra Anwar sem querer aproximaramno da AQPA. “É claro, entendemos que [Anwar] não tinha escolha. E, na verdade, foram eles que o empurraram para o inferno.” O anúncio do governo dos Estados Unidos de que Anwar estava marcado para morrer, disse-me Bin Fareed, “foi um erro muito, muito grande”. Em 23 de maio de 2010, o braço midiático da Al-Qaeda no Iêmen, Al-Malaeim, divulgou um vídeo intitulado “O primeiro e exclusivo encontro28 com o xeque Anwar al-Awlaki”. No vídeo, Awlaki agradece a seu entrevistador, um homem barbado todo de branco, por “ter se dado tanto trabalho para chegar até aqui”. Usando o traje tradicional iemenita, Awlaki aparecia sentado diante de uma estante cheia de livros religiosos. Trazia na cintura uma jambiya, adaga
que é um símbolo tribal usado por muitos iemenitas. Na entrevista, Awlaki elogiou um discurso recente do número dois da Al-Qaeda, Ayman al-Zawahiri, mas também se referiu a “vocês, gente da Al-Qaeda”, e não se apresentou como membro do grupo. O entrevistador, que agradeceu muito a Awlaki pela entrevista “exclusiva”, não se dirigiu a ele como membro da AlQaeda. O entrevistador que aparece nesse vídeo propagandístico da Al-Qaeda foi incrivelmente direto e fez a Awlaki muitas perguntas sobre o ataque a civis, sua relação com Nidal Hasan e Abdulmutallab e sua interpretação de várias fatwas. Também perguntou a Awlaki sobre o que se dizia de sua condição de homem marcado. Falando em árabe, Awlaki disse ao entrevistador:
Não é verdade que eu seja um fugitivo. Circulo entre os membros de minha tribo e em outras partes do Iêmen porque o povo do Iêmen odeia os americanos e apoia a gente da verdade e os oprimidos. Circulo entre os membros da tribo aulaq e recebo apoio de amplos setores da população do Iêmen.
Awlaki elogiou vários movimentos mujahedin pelo mundo, do Iraque ao Afeganistão e à Somália. “Pelos muçulmanos em geral e pelos habitantes da Península em particular, devemos participar desta jihad contra os Estados Unidos”, disse ele. Awlaki estava sem dúvida desenvolvendo uma afinidade com os princípios da Al-Qaeda — e seus pronunciamentos vinham se confundindo com os da organização. Ainda assim, eram palavras, não atos. Para um ex-analista da DIA, Joshua Foust, era como se alguém na IC dos Estados Unidos estivesse aumentando a importância de Awlaki com medo do que ele pudesse inspirar com suas palavras. Embora recriminasse o elogio à Al-Qaeda e o convite a ataques terroristas contra os Estados Unidos, Foust não acreditava que essas declarações constituíssem provas de um papel operacional importante na Al-Qaeda. “Mesmo dentro da AQPA, ele é literalmente de nível médio”,29 disse-me ele na ocasião. “Até mesmo os líderes da AQPA o tratam como se fosse um subordinado que deve ficar de boca calada e fazer o que lhe é ordenado.” E acrescentou: “Estou convencido de que o foco em Awlaki não faz nenhum sentido, porque lhe atribuímos uma importância e uma influência que ele na verdade não tem”. Depois da conspiração da bomba do Natal, a Casa Branca mudou de tom ao falar de Awlaki, dizendo que ele tinha se tornado um quadro operacional, sendo que alguns funcionários chegavam a compará-lo a Osama bin Laden. “Acho que é um exagero,30 francamente, achar que ele é necessariamente um novo Bin Laden”, disse-me Nakhleh, o ex-dirigente da CIA. “Nem o teríamos levado em conta se não fosse Abdulmutallab, o Homem da Bomba na Cueca.” Embora Awlaki viesse travando relações com diversas figuras da Al-Qaeda em Shabwah e em outros lugares, e seu status na hierarquia da organização estivesse em ascensão, iemenitas bem informados que tinham entrevistado líderes da AQPA contaram-me que ele não era membro
operacional do grupo. “Anwar al-Awlaki não era líder31 da Al-Qaeda, não tinha nenhum cargo oficial na organização”, disse o jornalista Abdul Rezzaq al-Jamal. Ele me contou que a AQPA considerava Awlaki um aliado e que “o que o ligava à Al-Qaeda era a hostilidade aos Estados Unidos”. Awlaki “concorda com a Al-Qaeda em concepção, fundamentos e estratégias. Os esforços empreendidos por Awlaki no contexto do trabalho da AQPA, sobretudo em termos de recrutamento no Ocidente, foram muito grandes”. Nasser Awlaki reconheceu que nas entrevistas o filho estava começando a se referir aos membros da Al-Qaeda como “meus irmãos”, mas que não acreditava que Anwar fosse membro da AQPA. “Ele nunca disse32 que era membro da Al-Qaeda”, contou-me, imaginando que “talvez como ideologia, Anwar tenha chegado a crer em algumas das ideias da Al-Qaeda, como as que dizem que se você não consegue recuperar sua terra por meios pacíficos, deve lutar por ela. Se uma pessoa o agride, você tem de se defender”. Nasser acrescentou ainda que “Anwar é um homem muito corajoso. Posso lhe dizer, com certeza, que conheço meu filho. Se ele fosse membro daquela organização, não teria problema em dizê-lo”. Afinal, estando já marcado para morrer pelos Estados Unidos, ele nada tinha a perder. Até mesmo membros do governo iemenita estavam preocupados com a condição de líder terrorista a que os Estados Unidos estavam elevando Awlaki. O ministro das Relações Exteriores do Iêmen, Abu Bakr al-Qirbi, disse a repórteres em Sana’a que “Anwar al-Awlaki sempre foi visto mais como pregador33 do que como terrorista e não deveria ser tomado por terrorista a menos que os americanos tivessem provas de que ele está envolvido em terrorismo”. O governo dos Estados Unidos não acusava Awlaki de crime algum, nem deu publicamente nenhum indício de que Awlaki fosse o chefe da AQPA, como fazia parecer. O caso de Awlaki levaria às últimas consequências uma das principais questões levantadas pelo papel cada vez maior que o assassinato dirigido vinha desempenhando na política externa americana: poderia o governo americano assassinar seus próprios cidadãos sem o devido processo judicial?
38. A agência matrimonial da CIA
DINAMARCA E IÊMEN, 2010 — Enquanto se intensificava a caçada humana lançada pelos Estados Unidos contra Anwar Awlaki no Iêmen, Morten Storm estava ocupado tentando encontrar uma mulher europeia para Awlaki. Sem o conhecimento de Awlaki, o agente dinamarquês da Inteligência estava coordenando com a CIA a procura de uma noiva. Storm tinha postado mensagens em sites1 frequentados por admiradores de Awlaki e pouco depois recebeu uma nota de uma croata recém-convertida ao Islã. “Aminah” era o nome que ela adotara depois da conversão, embora tivesse sido criada como católica. Tinha sido uma estrela do atletismo no ensino médio2 e trabalhara com jovens problemáticos em Zagreb. “Estive pensando que se ele estava procurando uma segunda esposa,3 eu lhe proporia casamento. Não sei se isso é muita tolice”, escreveu Aminah para Storm. “Tenho profundo respeito por ele e por tudo o que ele faz […]. Iria com ele a qualquer parte. Tenho 32 anos e estou pronta para coisas perigosas. Não tenho medo da morte, ou de morrer em nome de Alá.” Storm continuou correspondendo-se com Awlaki e lhe falou de Aminah. Informou também o PET, Serviço de Inteligência da Dinamarca, que estava empenhado em arranjar casamento para Awlaki. O PET fez contato com a CIA. Storm declarou que os funcionários da Inteligência ficaram “radiantes”.4 Juntas, as duas Agências de Inteligência fizeram um plano, para o caso de o projeto de casamento dar certo: Storm entregaria a Aminah uma mala equipada com um dispositivo de rastreamento5 que revelaria o paradeiro de Awlaki. Awlaki contatou Storm novamente em 17 de fevereiro de 2010 e disse que queria conhecer Aminah. “Se você for visitá-la,6 posso pôr na internet uma gravação em vídeo de mim mesmo, num arquivo criptografado, e você pode mostrá-lo a ela, assim ela terá certeza de que sou eu”, escreveu. Dias depois, Awlaki escreveu mais uma vez para falar da melhora de suas condições de vida:
Normalmente não moro numa tenda, e sim numa casa [que] pertence a um amigo. Não saio de casa, e na minha situação minha mulher ficaria comigo o tempo todo. Prefiro esta residência [a] uma tenda nas montanhas porque me dá a possibilidade de ler, escrever e pesquisar.
Depois dessa mensagem, Storm disse ter se reunido com funcionários da CIA e da PET em Helsingør, na Dinamarca. Participou da reunião um veterano contato da CIA baseado na Dinamarca que usava o nome de Jed e, segundo Storm, um funcionário da CIA vindo de Washington que se apresentava como Alex. Storm reuniu-se com Aminah em Viena, Áustria, em 8 de março de 2010, diante da estação de ônibus internacionais.7 Sua viagem foi confirmada por grande número de notas fiscais8 examinadas pelo jornal dinamarquês Jyllands-Posten. Storm disse que ao encontrar-se com Aminah, estava sendo seguido por seus supervisores do PET e da CIA. Aminah, disse Storm, convenceu-o de que estava disposta a aceitar as consequências de sua decisão de viajar para o Iêmen para casar-se com Awlaki. A pedido de Awlaki, Storm ensinou à moça a enviar e-mails criptografados e num segundo encontro mostrou-lhe um vídeo que o clérigo fizera especialmente para ela. “Esta gravação foi feita especificamente para a irmã Aminah,9 a seu pedido, e o irmão que está levando esta gravação é de confiança”, dizia Awlaki no vídeo. “Dito isto, peço a Alá que a guie para o que for melhor, nesta e na outra vida. E que a guie para escolher o que for melhor quanto a esta proposta. Sugiro também que, se possível, você faça também uma mensagem gravada e me mande. Seria muito bom.” Segundo Storm, o vídeo levou Aminah às lágrimas. Aminah respondeu com dois vídeos de si mesma. No primeiro deles usava um hijab [véu], com apenas o rosto visível. Disse que se sentia “nervosa”10 e que a experiência era “embaraçosa”. No segundo vídeo, tinha removido o véu. “Irmão, sou eu sem a echarpe,11 para que possa ver meu cabelo”, disse ela num inglês com forte sotaque. “Espero que fique contente comigo, inshallah.” Os dois concordaram em se casar no Iêmen. Awlaki enviou a Storm um e-mail criptografado falando das coisas que Aminah precisaria no Iêmen: “Roupas para o calor,12 objetos de higiene pessoal etc. Tudo de que ela possa precisar durante um período de um ou dois meses. Não deve trazer mais do que uma mala de tamanho médio e uma sacola de rodinhas. Deve trazer consigo pelo menos 3 mil dólares”. Então, a CIA fez contato com Storm. Num documento obtido pelo Jyllands-Posten, Awlaki é chamado de “Gancho” e Aminah de “Irmã”.13 A CIA sugeriu que Storm “usasse as instruções do Gancho como pretexto para entregar à Irmã a mala e o estojo de cosméticos”. Storm voltou a Viena em 8 de maio de 2010 para comprar a passagem de Aminah para o Iêmen e entregar-lhe roupas e 3 mil dólares, tudo pago pela CIA, segundo ele. Entregou também a Aminah a mala marcada que, se tudo corresse de acordo com o planejado, conduziria Awlaki e sua noiva para a execução por um drone. Aminah viajou para o Iêmen em 2 de junho. Storm disse que foi para uma casa segura alugada pela CIA e pelo PET na Dinamarca. “Fomos para lá, fizemos churrasco14 e uma bela festa”, contou Storm ao Jyllands-Posten. A viagem de Aminah, lembrou ele, estava sendo constantemente monitorada. Dois dias depois Storm recebeu uma mensagem de texto de seu supervisor dinamarquês. “Parabéns, irmão,15 você acaba de ficar rico, muito rico”, dizia. O agente incluía emoticons
sorridentes no texto. Storm disse que apanhou sua recompensa em 9 de junho de 2010, no Crowne Plaza Hotel próximo de Copenhague, acrescentando que estavam presentes um oficial da CIA e outro do PET na entrega, e que o oficial do PET estava algemado à mala16 que continha sua recompensa. A mala continha 250 mil dólares em maços de notas de cem. Storm pediu o segredo para abrir a mala. “Tente 007”,17 disse a ele o agente da CIA. Storm tirou uma foto do dinheiro que estava dentro da mala e mais tarde ofereceu-a ao Jyllands-Posten como prova de sua história. Numerosas fontes confirmaram que ele recebeu o pagamento.18 A CIA e seus aliados celebraram o que acreditavam ser o fim da caçada a Awlaki, mas logo seu plano apresentou problema. Aminah devia frequentar uma escola de línguas em Sana’a durante duas semanas antes de encontrar seu prometido. Quando os assessores de Awlaki chegaram para levá-la até ele, disseram-lhe que não podia levar a mala,19 apenas uma sacola plástica com seus pertences. A mala marcada da CIA não faria a excursão. Pouco depois, Awlaki e Aminah estavam casados. Sem querer, a CIA tinha conseguido uma esposa europeia para um de seus alvos mais procurados. Mais tarde, Awlaki mandou uma mensagem a Storm20 agradecendo pelo enlace.
39. “O leilão do assassino”
WASHINGTON, DC, 2010 — Nos corredores do Congresso dos Estados Unidos, os legisladores se alinhavam em um ou outro dos dois grandes grupos de opinião quanto à questão do assassinato de Anwar Awlaki, um cidadão americano: o do silêncio e o do apoio. Só três meses depois do anúncio do plano foi que um membro da Câmara dos Representantes ergueu a voz contra ele. “Não apoio e ponto final”,1 disse-me na época o democrata Dennis Kucinich. “Acho que membros dos dois partidos que tenham consideração pela Constituição deveriam se manifestar sobre isso.” Kucinich disse que enviara diversas cartas ao governo Obama questionando a inconstitucionalidade daquela política, assim como sobre possíveis violações da lei internacional, mas sem receber resposta. “Como há muitas pessoas inteligentes no governo, eles sabem os riscos que estão correndo nesse caso em relação a violações da lei”, disse Kucinich. Chamou essa política de “extraconstitucional, extrajudicial”, dizendo que ela “perverte a presunção de inocência e [com ela] o governo torna-se investigador, policial, promotor, juiz, jurado e executor, tudo de uma vez só. Isso levanta enormes questões com respeito a nossa Constituição e nosso modo de vida democrático”. E acrescentou: “Tudo isso está sendo feito em nome da segurança nacional. Como vamos saber por que certas pessoas estão sendo mortas? Quero dizer, quem está tomando essa decisão? É como um poder divino. Você pode apontar o dedo para uma imagem e dizer ‘Essa pessoa já era’”. O fato de haver um cidadão americano na lista não era a única preocupação de Kucinich. Um presidente democrata popular e advogado especialista em direito constitucional que estendia os limites das políticas extremas do governo Bush, acreditava Kucinich, teria consequências de longo prazo. “Estamos agindo em função do medo. Estamos esquecendo quem somos”, disseme ele. “Estamos demolindo pilares das nossas tradições democráticas. O direito a julgamento? Acabou. O direito de confrontar seus acusadores? Acabou. O direito de não sofrer castigo cruel e inusitado? Acabou. Todas essas âncoras estão sendo removidas.” E acrescentou:
Não pensem nem por um momento que possamos fazer esse tipo de coisas sem que elas tenham consequências diretas para o país. Não se pode ter uma América lá fora e outra aqui. É tudo a mesma coisa. A erosão da integridade, a erosão dos valores democráticos, a erosão
das boas intenções, tudo isso prenuncia uma nação em que os direitos elementares de nosso próprio povo já não podem ser garantidos. Estão sendo incluídos no leilão do assassino.
Em julho de 2010, Kucinich apresentou o projeto de lei2 HR 6010, “que proibia a execução extrajudicial de cidadãos americanos”. No projeto, Kucinich fazia menção a todas as resoluções executivas, desde o governo Ford, que proibiam o assassinato, entre elas a Resolução Executiva 12333, que dizia: “Nenhuma pessoa empregada pelo governo dos Estados Unidos ou que aja em seu nome se envolverá ou conspirará para se envolver em assassinato”. Em suma, o projeto convocava o Congresso a afirmar que os cidadãos americanos tinham direito ao devido processo antes de serem executados. “O uso de força extrajudicial contra um cidadão dos Estados Unidos fora dos campos de batalha internacionalmente reconhecidos do Iraque e do Afeganistão constitui uma violação da lei de conflitos armados”, dizia o projeto de lei. “É do maior interesse para os Estados Unidos respeitar o império da lei e dar o exemplo, mantendo os princípios do direito internacional e do direito civil.” Apenas seis outros membros da Câmara dos Representantes, e nenhum senador, apoiaram o projeto de lei de Kucinich. O assunto morreu aí. Em julho, funcionários da Inteligência americana reconheceram que tinham sido executados “quase uma dúzia”3 de ataques com o objetivo de matar Awlaki. Nenhum deles tivera sucesso. As principais organizações americanas que tinham lutado contra as políticas da guerra ao terror do governo Bush — o Centro de Direitos Constitucionais (Center for Constitutional Rights, CCR) e a União Americana pelas Liberdades Civis (American Civil Liberties Union, Aclu) — estavam avaliando o programa de assassinatos dirigidos, focado principalmente no aumento de ataques com drones no Paquistão. No entanto, uma vez que um cidadão americano fora apontado como alvo do programa, elas acharam que o assunto devia ser contestado no sistema judiciário americano. Era “uma grande oportunidade4 para contestar o programa [de assassinatos], porque temos, concretamente, o nome de uma pessoa — e não se trata de um assassinato já consumado — sendo, portanto, o caso de tentarmos impedir o assassinato de uma pessoa que, com base no que foi informado, sabemos que está numa lista da morte”, disse Pardiss Kebriaei, alto representante do CCR. Kebriaei e seus colegas analisaram os fatos publicamente disponíveis sobre Awlaki e chegaram à conclusão de que os sermões e comentários de Awlaki em entrevistas, embora ofensivos a muitos americanos, “nos parecem ser uma atividade protegida pela Primeira Emenda” e que, “se representa alguma ameaça e se o que ele está fazendo não tem o amparo da lei e constitui crime, então que ele seja indiciado e julgado, com direito ao devido processo, como qualquer pessoa, em especial um cidadão americano”. Kebriaei disse que se os Estados Unidos matassem um de seus próprios cidadãos num país estrangeiro, no qual não havia guerra declarada, sem atribuir um crime à pessoa, isso equivaleria
a uma afirmação por parte dos Estados Unidos de que está de fato reivindicando essa autoridade e usando essa autoridade para usar força militar letal contra suspeitos de terrorismo onde quer que se encontrem. E as implicações legais, morais e políticas disso são para mim aterrorizantes.
Depois que os advogados do CCR e da Aclu contataram Nasser Awlaki por intermédio de seus parceiros no Iêmen,5 ele os contratou para representá-lo como voluntários num processo que questionava o direito de o governo Obama matar seu filho sem que houvesse processo. “Farei o que puder6 para convencer meu filho [a se apresentar], a voltar, mas eles não me dão tempo. Querem matar meu filho. Como pode o governo americano matar um de seus cidadãos? Essa é uma questão legal que precisa ser respondida”, disse Nasser. Dias depois da primeira conversa de Nasser com os advogados nos Estados Unidos, o governo Obama entrou em ação para tentar impedir que o caso chegasse aos tribunais americanos. Em 16 de julho de 2010, o Departamento do Tesouro atribuiu oficialmente a Anwar Awlaki o rótulo de “Terrorista Global Especialmente Designado”. Em lugar do presidente, do secretário de Defesa ou do diretor da CIA, a Casa Branca usou o subsecretário para terrorismo e Inteligência financeira do Departamento do Tesouro, Stuart Levey, para defender a tese segundo a qual Awlaki tinha se tornado um “quadro operacional”, acusando-o diretamente de “preparar” e instruir Abdulmutallab “para essa operação”, alegando que “depois de receber essas instruções de Awlaki, Abdulmutallab conseguiu o artefato explosivo que usou na tentativa de ataque do dia de Natal”. Levey declarou que Awlaki tinha “se envolvido em todos os aspectos7 da cadeia de fornecimento do terrorismo — levantamento de verbas para grupos terroristas, recrutamento e treinamento de quadros operacionais, planejamento e mando de ataques contra inocentes”, mas não apresentou provas de nenhuma dessas acusações. O rótulo imposto a Awlaki pelo Departamento do Tesouro tornava crime o fato de advogados americanos representarem Awlaki sem autorização do governo. Em 23 de julho, a Aclu e o CCR apresentaram uma solicitação urgente de autorização. Como não a conseguiram, processaram o Departamento do Tesouro.8 Em 4 de agosto, em reação ao processo, o Departamento do Tesouro mudou de parecer e permitiu que Awlaki fosse representado por advogados.9 Um mês depois, o CCR e a Aclu entraram com uma ação contra o presidente Obama, Panetta, o diretor da CIA, e Gates, secretário de Defesa, denunciando a ilegalidade de sua intenção de mandar assassinar Awlaki. “Fora de um conflito armado, tanto a Constituição quanto as leis internacionais proíbem o assassinato dirigido, exceto como último recurso para proteger contra ameaça concreta, específica e iminente de morte ou grave ferimento físico”, dizia o texto.
O uso sumário da força10 é legal nessas circunstâncias estritas somente porque a iminência da
morte torna inviável o processo judicial. Uma política de assassinatos dirigidos dentro da qual as pessoas são postas em listas de morte, depois de um processo burocrático, e nelas permanecem durante meses extrapola claramente o uso da força letal como último recurso contra ameaça iminente e, da mesma forma, extrapola o que a Constituição e as leis internacionais permitem.
Eles pediram a um juiz federal que impedisse o presidente, a CIA e o JSOC de “matar intencionalmente” Awlaki e ordenasse “a revelação dos critérios usados pelo governo para determinar o assassinato dirigido de um cidadão americano”. O governo Obama respondeu energicamente ao processo, invocando um argumento amplamente usado durante todo o governo Bush para invalidar processos que visavam responsabilizar Donald Rumsfeld e outros funcionários do governo por assassinatos extrajudiciais, tortura e prisões extraordinárias: a “prerrogativa” do segredo militar e de Estado. Os advogados do Departamento de Justiça pediram ao juiz que extinguisse o processo por outros motivos, mas disseram que se tudo o mais falhasse, usariam a prerrogativa de segredo militar e de Estado, alegando que isso seria “necessário para proteger contra o risco de dano significativo à segurança nacional”. O processo de Awlaki, argumentou o procurador-geral assistente Tony West, “põe diretamente em questão11 a existência e detalhes operacionais de supostas atividades militares e de Inteligência voltadas para o combate da ameaça terrorista aos Estados Unidos”. Caracterizou o processo como “um exemplo paradigmático de uma causa na qual nenhuma de suas partes pode ser litigada no mérito sem pôr em risco, de forma imediata e irreparável, a revelação de informações de segurança nacional altamente delicadas e sigilosas”. Referiu-se a Awlaki como “um líder operacional da AQPA”. O governo apresentou declarações de Panetta, Gates e Clapper, feitas sob juramento, afirmando o regime de segredo de Estado e resumindo a ameaça à segurança nacional que, eles acreditavam, seria causada pela litigação do processo. Panetta declarou por escrito que estava alegando segredo de Estado para “proteger fontes, métodos e atividades da Inteligência12 que poderiam ficar comprometidos pelas acusações contidas na petição inicial” e argumentou que, se revelasse o fundamento que o levava a invocar esse regime, poderia prejudicar a “segurança nacional americana”. Gates assegurou que “a revelação de informações relacionadas à AQPA e a Anwar al-Awlaki causaria um dano gravíssimo13 à segurança nacional” e que as Forças Armadas americanas “não podem revelar a uma organização terrorista estrangeira ou a seus líderes o que sabe a respeito de suas atividades e como obteve essa informação”. Em essência, o governo estava afirmando que tinha o direito de matar um cidadão americano, mas que era perigoso demais revelar a justificativa para isso ao público americano. Os advogados de Awlaki responderam:
O apelo ubíquo à prerrogativa14 de segredo de Estado para encerrar este litígio é tão irônico quanto extremo. O fato de Anwar al-Awlaki ter sido marcado para morrer só é de conhecimento de todos porque altos representantes do governo, numa estratégia de imprensa aparentemente coordenada, avisaram os principais jornais da nação que o Conselho Nacional de Segurança tinha autorizado o uso de força letal contra ele […]. Se o próprio governo tivesse aderido às preocupações prioritárias de segredo que invoca com tanta solenidade em suas alegações, esses funcionários do governo não teriam anunciado aos quatro ventos as intenções do governo, e funcionários da Inteligência, falando publicamente, em vez de reconhecer tacitamente que o filho do autor estava condenado, teriam se furtado a qualquer comentário a respeito.
E afirmaram:
O governo vazou sua intenção de autoridade incontrolada na linguagem doutrinária da legitimidade, da justiça, da equidade e do segredo, mas a conclusão dessa argumentação é que o Executivo, que precisa de autorização judicial para vigiar as comunicações de um cidadão americano ou revistar sua pasta, pode executar esse cidadão sem nenhuma obrigação de justificar seus atos ante um tribunal ou ante o público.
Dentro da Casa Branca, o governo Obama já preparava seu próprio arcabouço legal15 para matar um de seus próprios cidadãos. Embora a ameaça de matar Awlaki tenha sido recebida pelo Congresso praticamente sem escândalo, os que estavam no governo sabiam que uma vez morto Awlaki, era quase certo que o caso iria parar nos tribunais. Altos funcionários do governo começaram a passar a jornalistas as informações que diziam ter sobre Awlaki — informações que indicavam que Awlaki se tornara um quadro operacional e estava ativamente envolvido em complôs para atacar os Estados Unidos, usando inclusive armas químicas e biológicas. O governo já estava decidido a assassinar Awlaki, e o presidente Obama queria ter condições de sustentar ante o povo americano que essa fora a decisão certa. O principal conselheiro legal do Departamento de Estado, Harold Koh, desejava expor o caso publicamente antes que Awlaki estivesse morto. Estava cansado de ouvir críticas destrutivas ao programa de assassinatos dirigidos feitas por diplomatas europeus e grupos de direitos humanos. No passado, Koh tinha sido conhecido como um liberal, advogado dos direitos humanos e das liberdades civis, e por isso seu selo de aprovação era útil para o governo na defesa de sua política de assassinato em geral — e reforçava sua decisão de condenar um cidadão americano sem julgamento. A Casa Branca acreditava também que a defesa pública do programa por Koh seria um forte golpe preventivo contra as críticas. “Os militares e a CIA também adoraram a ideia”,16 comentou
Daniel Klaidman, correspondente da Newsweek e autor do livro Kill or Capture, sobre a campanha de assassinatos dirigidos. “Pelas costas, chamavam o advogado do Departamento de Estado de ‘Koh, o Matador’. Houve quem chegasse a falar em mandar imprimir camisetas com o dístico: ‘Drones: se são válidos para Harold Koh, são válidos para mim’.” Antes de seu discurso público, Koh teve acesso aos dados da Inteligência sobre Awlaki, que lhe foram passados pela CIA e pelas Forças Armadas. Koh instalou-se numa Dependência Protegida de Inteligência Confidencial para um longo dia de leitura. Segundo Klaidman, cujo livro se baseava quase que inteiramente em informações vazadas por intermédio de funcionários do governo, Koh
determinou seu próprio critério legal17 para justificar o assassinato dirigido de um cidadão americano: o mal, com informações blindadas para demonstrá-lo. Não era exatamente um critério técnico, legal, mas era um limiar em que ele se sentia à vontade. Ele agora estava lendo sobre numerosos complôs para matar americanos e europeus, e em todos eles Awlaki estivera profundamente envolvido em termos operacionais. Havia planos de envenenar água e alimentos no Ocidente com toxina botulínica, assim como atacar americanos com ricina e cianureto. A criatividade de Awlaki para inventar complôs mais originais e mortíferos era de arrepiar. Koh estava abalado quando saiu da sala. Awlaki não era apenas mau, era satânico.
Quando Koh fez seu discurso, em 25 de maio de 2010, declarou que “as práticas dos Estados Unidos contra seus alvos,18 inclusive operações letais com uso de veículos aéreos não tripulados, obedecem a todas as leis aplicáveis ao caso, inclusive as leis de guerra”. O discurso de Koh foi pronunciado na convenção anual da Sociedade Americana de Direito Internacional. Ele fez uma defesa irrestrita da política de assassinatos dirigidos do governo, dizendo:
Há quem diga que o uso de força letal contra algumas pessoas específicas não deixa espaço para o processo adequado e por isso constitui assassinato extrajudicial ilegal. No entanto, um Estado envolvido num conflito armado ou em legítima defesa não está obrigado a abrir processo legal contra seus alvos antes de usar força letal […]. Há quem diga que nossas práticas dirigidas violam as leis internas e, em especial, a proibição consagrada de assassinatos. Mas dentro das leis nacionais, o uso de sistemas de armamentos legais — coerentes com as respectivas leis da guerra — para atingir com precisão líderes beligerantes específicos de alto nível quando agindo em defesa própria ou durante um conflito armado não é ilegal e, portanto, não configura “assassinato”.
Os advogados de Nasser Awlaki não defenderam a tese de que Anwar Awlaki era inocente.
Em vez disso, alegaram, se ele era o que o governo dos Estados Unidos o julgava ser — um terrorista e quadro operacional da Al-Qaeda —, deveriam ser apresentadas provas que seriam apreciadas por um tribunal de justiça. Se fosse verdade o que o governo permitia que chegasse aos jornalistas acerca do profundo envolvimento de Awlaki em complôs terroristas, inclusive em ataques com armas químicas aos Estados Unidos, por que não indiciá-lo e pedir sua extradição ao Iêmen para levá-lo a julgamento? “Se uma pessoa constitui uma ameaça, se há indícios contra ela, muito bem, acusem-na e a submetam ao processo devido”, disse Kebriaei, um dos advogados de Awlaki. “O presidente e o DoD ou a CIA não podem, por sua conta, decidir secretamente que essas pessoas constituem ameaça e portanto podemos não apenas prendê-las como também matá-las.” O governo continuou permitindo o vazamento de informações que, na sua interpretação, provavam que Awlaki era membro operacional da Al-Qaeda, e assim a imprensa começou a se referir a Awlaki como um líder ou como o líder da AQPA. Quando os advogados dele tentaram contestar na justiça as afirmações do governo de que ele era um líder da AQPA e quadro de ação, os advogados do governo americano impediram a contestação. O advogado do governo “entrou no tribunal e começou assim: ‘O contexto deste caso é que estamos falando de um líder da AQPA, e tudo o mais é segredo de Estado. Não podemos falar sobre provas, mas vocês deveriam saber’”, lembrou Kebriaei.
Somos levados à loucura ao ouvir o governo fazer acusações completamente desprovidas de apoio em fatos reais que tenhamos visto e não poder ter acesso a essa informação, estar na posição de ver isso em reportagens [na imprensa] e não sermos capazes de responder. O governo Bush reivindicava uma autoridade de detenção global no contexto dessa guerra contra o terror, e o que o governo Obama está fazendo é na verdade ampliando aquilo e reivindicando uma autoridade global para matar, inclusive o direito de matar cidadãos americanos.
Anwar Awlaki, enquanto isso, passava seus dias e suas noites fugindo. Sabia que os americanos estavam tentando matá-lo ativamente. Via drones, e ocasionalmente via ataques de mísseis nas proximidades. Awlaki tinha com certeza se tornado cada vez mais radical em suas opiniões sobre os Estados Unidos, mas de seu ponto de vista tinham sido os Estados Unidos que mudaram, não ele. Não muito tempo antes, Awlaki tinha defendido o voto em George W. Bush e elogiado as liberdades americanas. Falou com paixão quando condenou a Al-Qaeda e os ataques do Onze de Setembro, e falava de uma coexistência pacífica de muçulmanos com os Estados Unidos. Mas com o endurecimento global que se seguiu ao Onze de Setembro e com a campanha do governo dos Estados Unidos para caçá-lo, alguma coisa mudou em Awlaki, e ele já não se encontrava dividido entre a lealdade a seu país natal e sua religião. Numa de suas
mensagens de áudio postadas na internet, Awlaki perguntou:
Eis o que tenho a dizer aos muçulmanos dos Estados Unidos:19 como é que sua consciência permite que vocês vivam em coexistência pacífica com a nação responsável pela tirania e pelos crimes cometidos contra seus irmãos e irmãs? Como podem sentir lealdade por um governo que está liderando a guerra contra o Islã e contra os muçulmanos? [...] A arrogância imperial está conduzindo os Estados Unidos a seu destino: uma guerra de desgaste, uma hemorragia incontida que só terminará com a queda e o estilhaçamento dos Estados Unidos da América.
Johari Abdul Malik, que sucedeu a Awlaki no posto de imã da mesquita de Dar al-Hijrah na Virgínia, ficou pasmo. Lembrava de Awlaki como um moderado e como líder muçulmano que unia dois mundos com habilidade. “Passar daquela pessoa20 para esta que está enviando essas palavras do Iêmen é um choque”, ele disse. “Não acho que tenhamos entendido mal. Acho que alguma coisa aconteceu com ele.”
40. “Estamos aqui para o martírio, meu irmão”
IÊMEN, 2009-10 — Nos primeiros tempos de sua estadia no Iêmen, Samir Khan perdeu o telefone celular. Essas coisas acontecem a turistas e estudantes no mundo todo. Mas para Khan, o prejuízo foi maior. O celular era o único meio de comunicação com as pessoas que ele tinha vindo encontrar no Iêmen: os mujahedin. Khan tinha o número de celular de um homem que, segundo lhe disseram, poderia levá-lo a contatar a AQPA, e eles estavam trocando mensagens de texto e combinando um encontro quando o telefone de Khan sumiu. O jovem paquistanêsamericano entrou em pânico. “Ele ficou desconsolado,1 já que esse era o único meio de contato entre ele e os mujahedin”, lembrou seu amigo Abu Yazeed, jihadista declarado. “Apesar disso, em nenhum momento ele pensou em voltar.” Khan foi a mesquitas na esperança de encontrar alguém que pudesse reconectá-lo. Uma noite, ele estava fazendo a ishaa, a oração noturna, quando sentiu que lhe batiam no ombro. “Você é Samir?”, perguntou-lhe o homem. Khan assentiu. “Sou o irmão com quem você estava trocando mensagens de texto”, respondeu. Pouco depois, Khan estava fazendo as malas, deixando para trás Sana’a e qualquer simulação de que estava ali para ensinar inglês ou aprender árabe numa de suas universidades. Ele estava mesmo se preparando para estudar a jihad com os mujahedin, que o acolheriam como um de seus muhajirin, ou emigrantes. Khan sentiu-se como se estivesse no carro “durante anos”,2 encaminhando-se pelas estradas irregulares que é preciso percorrer para ir de Sana’a ao sul do Iêmen. O motorista escolhido para levar Khan ao campo dos mujahedin ouvia um nashid, um hino, que tocava sem parar. Chamava-se “Senhor Ya Bin Laden”. Khan já ouvira a homenagem a Bin Laden anteriormente, mas agora que estava a ponto de se encontrar com os combatentes da AQPA, ela adquiria um novo significado. “Alguma coisa me tocou naquele momento. O nashid repetia versos relacionados ao combate aos tiranos do mundo com o objetivo de dar a vitória à nação islâmica. Mas também lembrava ao ouvinte que o xeque Osama bin Laden é o líder dessa luta global”, lembrou Khan num ensaio que escreveu meses depois. “Vi pela janela as casas altas de barro sob um lindo céu e fechei os olhos, deixando o vento soprar meu cabelo. Respirei fundo.” E Samir pensou:
Sou uma pessoa convencida de que a reivindicação do poder para o Islã no mundo moderno não vai ser fácil como desfilar por um tapete vermelho ou passar por um sinal aberto. Estou perfeitamente consciente de que partes de corpos serão decepadas, crânios serão esmagados e sangue será derramado para que isso se torne realidade. Quem não pensar assim é uma pessoa que não está preparada para fazer os sacrifícios que fazem os heróis e os lutadores.
Ao se aproximar do campo, Khan olhou a paisagem rural pela janela.
Enquanto meus olhos passeavam pelas dunas misteriosamente onduladas, lembrei-me do enigma da jihad no mundo contemporâneo. É nada menos que fascinante saber que as guerrilhas podem combater superpotências globais com o mínimo indispensável e causar graves perdas ao inimigo, drenar a economia do inimigo e aumentar o apoio popular aos mujahedin.
Na Carolina do Norte, agentes do FBI bateram na casa de Khan. “Eles souberam3 que Samir fora para o Iêmen”, lembrou a mãe dele, Sarah Khan. “E agora queriam saber como ele tinha ido para lá e coisas assim, e se tínhamos contato com ele. Perguntaram sobre a ida de [Samir] para o Iêmen.” Os agentes perguntaram aos Khan “com quem ele ia entrar em contato lá, esse tipo de coisa. Sabíamos, por informações que víamos nos noticiários, na internet e nos jornais, que o FBI vigiava os muçulmanos, então achamos que o que estava acontecendo era uma coisa assim”. Sarah Khan tinha ouvido as notícias sobre os ataques com mísseis de cruzeiro no Iêmen e sobre o complô da “bomba na cueca”. Ela me contou que, para a mãe de um filho que, segundo ela acreditava, estava estudando no Iêmen, “aquilo era muito assustador, é claro. Foi um momento muito assustador para nós”. Mas ela pensou que “Samir estava na universidade, por isso achamos que não corria perigo”. No entanto, Samir não estava mais na universidade. Estava indo direto para o núcleo de uma guerra em expansão dos Estados Unidos contra a AQPA. As pessoas que chegam a um campo da Al-Qaeda no Iêmen não são recebidas de braços abertos. Há um processo de checagem. Mas Khan não era uma incógnita. Já era uma grandeza conhecida, por meio de seus blogs e da revista virtual, e a liderança da AQPA gostava da ideia de ter um jihadista americano em suas fileiras. Khan passou por treinamento na área rural do Iêmen e estava ansioso para ver um combate. “O amor de Samir pelo martírio em nome de Alá era extraordinário”, disse seu amigo. Khan certa vez mandou-lhe uma mensagem de texto que dizia: “Foi para o martírio que vim para cá, meu irmão. Não desistiremos até conseguir o que nos fez vir para cá”. A AQPA acabaria publicando fotos de Khan empunhando armas e praticando combate corpo a corpo, mas os mujahedin acreditavam que a maior contribuição que ele podia dar à causa era em seu papel de propagandista. Quando ele finalmente chegou a uma base da AQPA, os jihadistas iemenitas e sauditas que ele conheceu ouviram suas histórias de vigilância
pelo FBI e assédio pelo governo americano. Repassaram seus escritos e trabalhos anteriores em suas publicações on-line. “Percebi que ele tinha viajado bastante em circunstâncias muito difíceis, para não mencionar o fato de que estava sendo procurado e caçado pela CIA”, lembrou Abu Yazeed. “Suas armas para defender o Islã eram muito simples: um laptop e uma câmera. No entanto, ele estava carregado de munição. Essa munição era a crença da jihad na trilha de Alá.” Os novos amigos de Khan acharam que seu sorriso largo era contagioso e sempre estavam pedindo a ele que risse “em inglês”. Eles “tinham-no como fonte de motivação e inspiração para eles mesmos, já que tinha atravessado o oceano para apoiar a causa do Islã”. Embora Khan estivesse entusiasmado com o treinamento com armas, a liderança da AQPA destinou-o a sua divisão de propaganda. Queriam sua ajuda para criar uma publicação em inglês que pudesse divulgar a mensagem deles pela diáspora muçulmana. Seria uma revista atraente e bem-acabada chamada Inspire. Khan tinha estudado tecnologia de internet4 durante o período em que frequentara uma faculdade comunitária na Carolina do Norte e criara diversos sites próprios, assim como uma revista on-line bem parecida com a que se pretendia para a AQPA. De acordo com Khan:
Depois de passar algum tempo em companhia dos mujahedin, reconheci prontamente que o sucesso não depende do trabalho que você faz de nove da manhã às cinco da tarde, nem da riqueza que você possa ter acumulado, nem de até onde você levou seus estudos na faculdade. Todas essas coisas são respeitáveis, mas estar com os mujahedin me ajudou a abrir os olhos para o fato de que nossa razão de viver não tem nada a ver com nenhuma dessas coisas [...]. A única coisa no mundo que me importa, agora mais do que nunca, é a situação de meu coração quando eu morrer.
Nesses primeiros tempos com a AQPA, sua principal tarefa passou a ser “conectar e facilitar a ligação5 entre diferentes grupos de pessoas na internet”, disse Aaron Zelin, intelectual que estudara e escrevera muito sobre a AQPA.
Ele era um tecido conectivo e um nodo tão importante que sem ele provavelmente o recrutamento teria sido mais difícil, principalmente depois do fim do site de Awlaki. Ele aprendeu a conectar-se com jovens no Ocidente sem arrogância, de igual para igual, como que mostrando “Veja, sou um cara como qualquer outro, nem mesmo sou um acadêmico religioso e cheguei aos campos da jihad para combater os apóstatas e os cruzados-sionistas: então você também pode fazer o mesmo”.
Quando o primeiro número da Inspire começou a ser produzido, Khan fez o projeto gráfico, editou e traduziu. Adotou mais de um nome de guerra, entre eles o de Qaqa al-Amiriki e o de Abu Shidah, ou Pai da Crueldade. “Ele — da maneira como entendo — queria escolher o mais agressivo dos nomes para aterrorizar os inimigos do Islã”, lembrou Abu Yazeed. Khan lançou-se ao trabalho na Inspire e pôs-se a estudar árabe com paixão. Quando seus colegas tentavam praticar inglês com ele, Khan respondia em árabe. “Não me lembro de uma só vez em que tenha estado com ele que não tenha me perguntado alguma coisa relacionada ao vocabulário árabe”, lembrou seu amigo. “A cada vez que eu o via, notava que seu árabe estava melhor. Durante o tempo em que permaneceu lá, progrediu tanto que já não era fácil perceber que ele era um irmão anglófono.” Khan envolveu-se com a AQPA no mesmo instante em que soavam numerosos sinais de alarme em Washington. A AQPA pretendia que a Inspire divulgasse sua missão entre o público anglófono e incentivasse jihadistas solitários do Ocidente a executar ataques, mas também tirava partido da campanha propagandística dos Estados Unidos, que pretendia apresentar a AQPA como uma grave ameaça. Em inglês, o programa da AQPA estaria acessível a todos. E Anwar Awlaki seria, desde o primeiro número, um destacado comentarista e analista religioso nas páginas da Inspire. Pouco havia na revista que já não tivesse sido dito muito antes pela publicação da AQPA em árabe, a Sada al-Malahim. Agora, o pessoal dos órgãos de Inteligência dos Estados Unidos, que tinham um número limitado de analistas fluentes em árabe, podia ler suas declarações em inglês. “Na ocasião do lançamento do primeiro número da Inspire, a AQPA já lançara treze números de sua revista em árabe, que tinha um conteúdo muito mais rico sobre a AQPA”, disse Zelin. O lançamento da Inspire, disse ele, coincidiu
com uma disposição, por parte da AQPA, de insistir mais amplamente em suas ambições globais em virtude do complô do dia de Natal. A AQPA sempre quis atingir os Estados Unidos. A Inspire era um meio de reunir seus simpatizantes no Ocidente e tentar ganhar maior penetração, de modo que pudessem planejar ataques ao Ocidente com mais facilidade.
O primeiro número da revista foi lançado pela internet, mas não se pode dizer que tenha sido um grande sucesso. De suas 67 páginas, apenas quatro eram realmente páginas da revista. As outras 63 continham um código de computador que, quando decifrado, revelava receitas de cupcake exibidas no popular programa de entrevistas da famosa apresentadora Ellen DeGeneres da TV americana. Não se sabe como o arquivo se corrompeu, mas dizem alguns que foi um ataque cibernético praticado por hackers anti-AQPA, pelo MI-66 ou pela própria CIA. Seja como for, o primeiro número da Inspire acabou chegando intacto à internet em junho de 2010. “Diz Alá: ‘E inspire os fiéis a lutar’”,7 começava a apresentação, assinada pelo anônimo
editor da Inspire. “É desse versículo que deriva o nome de nossa nova revista.” A Inspire, dizia o editor, era
a primeira revista lançada pela organização Al-Qaeda em inglês. No Ocidente; no sul, no leste e no oeste da África; no sul e no sudeste da Ásia e em outros lugares há milhões de muçulmanos cuja primeira ou segunda língua é o inglês. Queremos que esta revista seja uma plataforma para a apresentação das importantes questões que a Ummah enfrenta hoje ao amplo e disperso público leitor anglófono.
A Inspire publicou uma entrevista “exclusiva” com o líder da AQPA, Nasir al-Wuhayshi, também conhecido como Abu Basir, assim como textos traduzido-os de Bin Laden e Zawahiri. Entre eles havia um ensaio elogiando Abdulmutallab, o Homem da Bomba na Cueca. A revista era bem produzida, com um projeto gráfico que lembrava uma típica revista americana para adolescentes, embora sem mulheres e celebridades em trajes da moda. Em vez disso, mostrava fotos de crianças supostamente mortas por mísseis americanos e imagens de jihadistas mascarados e armados. Um artigo intitulado “Faça uma bomba na cozinha da mamãe”, assinado pelo “Chef da Al-Qaeda”, ensinava fabricar artefatos explosivos usando objetos domésticos comuns. Outro artigo dava instruções detalhadas sobre como baixar da internet programas de nível militar para criptografar e-mails e mensagens de texto. Ainda mais perturbador, talvez, a revista continha uma “lista de alvos” integrada por pessoas que, segundo afirmava, tinham criado “caricaturas blasfemas” do profeta Maomé. No fim de 2005, o Jyllands-Posten — jornal dinamarquês que mais tarde publicaria a história de Morten Storm — encomendou uma dúzia de histórias em quadrinhos do profeta,8 aparentemente para contribuir para o debate sobre a autocensura dentro do Islã. Isso irritou muçulmanos do mundo inteiro na época, inflamou protestos em massa e provocou ameaças de morte e de bombas contra o jornal. A lista de alvos publicada pela Inspire incluía nomes de editores de revistas, autoridades antimuçulmanas que tinham defendido os quadrinhos e o escritor Salman Rushdie. Incluía ainda Molly Norris, cartunista de Seattle que tinha criado o “Dia de todos desenharem Maomé”.9 Molly Norris disse que fez isso em reação à decisão da rede US Comedy Central, que, depois de receber ameaças, resolveu eliminar uma cena do desenho animado South Park que mencionava a polêmica. A lista de alvos da Inspire vinha acompanhada de um ensaio escrito por Awlaki incentivando os muçulmanos a atacar quem difamasse a imagem de Maomé. “Gostaria de expressar meus agradecimentos10 a meus irmãos da Inspire pelo convite para escrever o artigo principal do primeiro número de sua nova revista. Gostaria também de elogiá-los pela escolha desse tema, a defesa do Mensageiro de Alá, como o principal deste número”, escreveu Awlaki. Passou então a expor uma defesa do assassinato das pessoas envolvidas na blasfêmia contra Maomé. “O grande
número de participantes torna as coisas mais fáceis para nós por haver mais alvos para escolher e por dificultar o oferecimento de proteção por parte do governo.” Awlaki continuava:
Mas mesmo assim nossa campanha não deve limitar-se a participantes ativos. Esses criminosos não atuam no vácuo. Pelo contrário, atuam dentro de um sistema que lhes oferece apoio e proteção. O governo, os partidos políticos, a polícia, os serviços de Inteligência, os blogs, as redes sociais, a imprensa e assim por diante fazem parte de um sistema dentro do qual a difamação do Islã não é apenas protegida mas também promovida. Os principais elementos desse sistema são as leis que tornam legal essa blasfêmia. Como eles estão exercendo um “direito” defendido pela lei, têm o respaldo de todo o sistema político ocidental. Isso tornaria legal, do ponto de vista islâmico, o ataque contra qualquer alvo ocidental […]. Assassinatos, atentados a bomba e incêndios provocados são formas legítimas de vingança contra um sistema que aprecia o sacrilégio do Islã em nome da liberdade.
Quando a Inspire foi publicada, alguns integrantes da IC dos Estados Unidos entraram em pânico. A primeira preocupação foi proteger as pessoas identificadas como alvos para assassinato. O FBI tomou cuidados imediatos para proteger a cartunista de Seattle, temendo que pudesse ser morta. Ela acabou trocando de nome e se mudando.11 Órgãos de segurança de outros países tomaram medidas semelhantes. A “lista de alvos” personificava os temores de que Awlaki incitasse jovens muçulmanos ocidentais a cometer atos de terror “solitários”. A revista Inspire se tornaria uma das principais fontes de informação sobre a AQPA e Awlaki, com analistas de Inteligência perscrutando cada novo número em busca de pistas sobre seu paradeiro ou novos complôs possíveis. Quanto mais os Estados Unidos falavam sobre a Inspire12 e Anwar al-Awlaki, mais a imprensa focalizava a revista e o homem, o que resultou numa promoção cada vez maior de ambos pela AQPA, que tirava proveito da propaganda gratuita”, lembrou Gregory Johnsen, o especialista em Iêmen da Universidade Princeton.
Era um tanto chocante ver a reação dos Estados Unidos à Inspire, já que a AQPA vinha dizendo as mesmas coisas havia anos — com a diferença de que essas coisas eram ditas em árabe nas páginas da Sada al-Malahim. Quando a Inspire começou a ser publicada, muita gente do governo dos Estados Unidos que não tinha meios de ler a Sada al-Malahim de repente descobriu o que a AQPA vinha dizendo, o que, nos meses que se seguiram à tentativa de atentado a bomba do Natal de 2009, levou a uma reação exagerada e a uma sensação de pânico por parte de certos órgãos.
Ao que parece, Awlaki e Khan ficaram satisfeitos com a reação do governo dos Estados Unidos à Inspire. Em edições posteriores, a Inspire destacaria citações de autoridades americanas condenando a revista e reagindo às várias ameaças publicadas em suas páginas. Samir Khan tornou-se de repente uma personalidade estelar no cenário jihadista internacional. “Todos os observadores bem informados acreditam que Khan seja o editor da Inspire. Não só porque a revista publica seus artigos, mas pelas semelhanças entre ela e a Jihad Recollections, que ele editava e postava na internet antes de ir para o Iêmen”, disse Zelin. No Iêmen, Khan começou a criar uma relação próxima com Awlaki, homem que ele admirava de longe havia longo tempo. “É evidente, é claro, que Khan idolatrava Awlaki, tanto por sua pregação quanto pela postura que ele assumiu na vida”, disse Johnsen, acrescentando que Khan acabaria por se tornar “uma espécie de assessor executivo” de Awlaki. E Anwar Awlaki estava se colocando à frente, numa clara aliança com a AQPA. Suas relações com conspirações anteriores eram incertas, mas agora ele incentivava abertamente o assassinato de pessoas específicas no mundo todo. Nasir al-Wuhayshi, o líder da AQPA, via claramente o valor da obsessão dos Estados Unidos com Awlaki. Tanto que ele chegou a enviar uma mensagem a Osama bin Laden propondo o nome de Awlaki para novo chefe da AQPA. Em 27 de agosto de 2010, Bin Laden ordenou a seu braço direito,13 Shaykh Mahmud, tambem conhecido como Atiya Abdul Rahman, que transmitisse uma mensagem a Wuhayshi. Ao que parece, Bin Laden via Awlaki como aliado e como um efetivo potencialmente valioso para os objetivos da Al-Qaeda. O problema, explicou Bin Laden, era que Awlaki era uma grandeza desconhecida para a Al-Qaeda central, um homem que ainda tinha de provar sua determinação na verdadeira jihad. “A presença de certas características em nosso irmão Anwar […] é uma coisa boa, para servir à jihad”, escreveu Bin Laden, acrescentando que queria “uma oportunidade de conhecê-lo melhor”. E explicou: “Aqui geralmente temos certeza depois que a pessoa é enviada ao campo de batalha e é testada ali”. Pediu a Wuhayshi “o currículo detalhado e em toda a sua extensão do irmão Anwar al-Awlaki”, assim como uma declaração do próprio Awlaki explicando “em detalhe sua visão”. Wuhayshi, afirmou Bin Laden, deve “permanecer no cargo, no qual é qualificado e capaz de comandar as coisas no Iêmen”. Samir Khan saboreou sua recente fama e escreveu numerosos ensaios falando de sua própria experiência como exemplo para outros jovens ocidentais que poderiam unir-se à jihad. “Para os Estados Unidos, sou um traidor porque minha religião assim exige. Um traidor pode ser louvável ou desprezível. Aos olhos de uma pessoa, o bem e o mal se definem por uma agenda política”, escreveu ele.
Tenho orgulho de ser um traidor aos olhos dos Estados Unidos, tanto quanto tenho orgulho de ser muçulmano; e aproveito esta oportunidade para reafirmar meu juramento de lealdade (bai’yah) e o bai’yah dos mujahedin da Península Arábica ao leão feroz, ao herói da jihad, o
humilde servidor de Deus, meu amado xeque Osama bin Laden, que Alá o proteja. Ele é realmente o homem que abalou o trono dos tiranos do mundo. Juramos fazer a jihad pelo resto da vida, até implantarmos o Islã no mundo inteiro ou encontrarmos nosso Senhor como sustentáculos do Islã. E como é respeitável, aventuresca e prazerosa uma vida como essa, comparada à daqueles que ficam sentados, trabalhando das nove da manhã às cinco da tarde!
41. A perseguição de Abdulelah Haider Shaye
IÊMEN, VERÃO DE 2010 — Nos meses que se seguiram ao bombardeio de Al-Majalah, o jovem jornalista Abdullelah Haider Shaye não deixou de cobrir o que tinha ocorrido. De vez em quando levantava a questão na Al-Jazeera e continuou a fazer matérias sobre outros ataques americanos no Iêmen. Tinha entrevistado Awlaki várias vezes e ficara famoso, dentro e fora do Iêmen, como um importante crítico da guerra secreta americana, cada vez mais ampla, no Iêmen. “Ele estava se concentrando1 na forma com a qual Saleh usava a Al-Qaeda como trunfo para receber mais dinheiro e apoio logístico dos Estados Unidos”, lembrou o cartunista Kamal Sharaf, o mais íntimo amigo de Shaye. “Abdulelah era a única pessoa que criticava a Al-Qaeda e falava a verdade sobre a organização, de modo que era ouvido no mundo árabe e nos Estados Unidos.” Shaye estava trabalhando para o Washington Post, a ABC News, a Al-Jazeera e muitas outras fontes noticiosas internacionais de primeira linha, e com frequência fazia reportagens que mostrava a política americana no Iêmen sob um ângulo negativo. Em julho de 2010, sete meses depois do ataque de Al-Majalah, Shaye e Sharaf saíram de casa para resolver assuntos pessoais. Sharaf entrou num supermercado, e Shaye ficou esperando por ele do lado de fora. Ao sair da loja, contou-me Sharaf, “vi homens armados agarrando Shaye e levando-o para um carro”. Os homens, soube-se depois, eram agentes do Serviço de Informações iemenita. Agarraram Shaye, cobriram sua cabeça com um capuz e levaram-no para um local não revelado. Segundo Sharaf, ameaçaram Shaye e lhe disseram que não fizesse mais declarações à TV. As reportagens dele sobre o bombardeio e suas críticas ao governo dos Estados Unidos e do Iêmen, disse Shafar, levaram o regime a sequestrá-lo. Um dos interrogadores lhe disse: “Vamos destruir sua vida se você não calar a boca”. Por fim, na calada da noite, Shaye foi solto e deixado numa rua. “Agentes da Segurança Política ameaçaram Abdulelah várias vezes2 pelo telefone, e depois ele foi sequestrado, espancado e investigado por causa de suas afirmações e sua análise do bombardeio de Al-Majalah e da guerra americana contra o terrorismo no Iêmen”, disse-me o advogado iemenita de Shaye, Abdulrahman. “Creio que ele foi preso devido a um pedido dos Estados Unidos.” Shaye reagiu ao sequestro recorrendo à Al-Jazeera e relatando sua própria prisão. Mohamed Abdel Dayem, que dirigia o programa do Oriente Médio e do norte da África da Comissão de Proteção a Jornalistas, por acaso estava no Iêmen na noite em que Shaye foi sequestrado. Tinha
ido fazer pesquisas sobre um tribunal especial criado pelo governo do Iêmen para processar jornalistas que criticavam o governo. Dois dias antes da prisão de Shaye, Dayem se encontrara com ele. “Pude ver logo que ele era um jornalista muito inteligente3 e que estava disposto a se arriscar bastante para fazer as reportagens difíceis, porque as fáceis qualquer um pode fazer”, disse. Na noite em que Shaye foi preso, Dayem estava no estúdio da Al-Jazeera em Sana’a, preparando-se para uma entrevista, quando o telefone tocou. Era Shaye. “Estou saindo da prisão”, disse ele. “Vou para casa trocar de jaqueta. Esta está suja de sangue. Chego aí em vinte minutos.” Dayem disse que, no estúdio, Shaye “pôs a boca no mundo, no ar”, contando seu sequestro e explicando por que achava que estava sendo perseguido. Nessa época, o governo dos Estados Unidos começou a dizer, privadamente, aos principais órgãos de comunicação americanos que trabalhavam com Shaye, que deveriam interromper sua relação com ele. Uma fonte de uma importante organização jornalística americana me disse que o governo tinha avisado sua empresa que Shaye estava usando sua remuneração4 para ajudar a Al-Qaeda. Uma autoridade de Inteligência dos Estados Unidos disse a outro jornalista de uma importante revista americana que “informações sigilosas” indicavam que Shaye estava “cooperando” com a Al-Qaeda. “Fiquei convencido5 de que ele é um agente”, disse a autoridade. Da mesma forma que queria Awlaki silenciado, o governo americano queria calar qualquer pessoa que divulgasse as opiniões de Awlaki ou entrevistasse líderes da AQPA. Quando o conheci num café de Sana’a, em 2011, Sharaf abanou a cabeça diante da ideia de que Shaye apoiasse a Al-Qaeda. “Abdulelah continuou a noticiar fatos, não para agradar aos americanos ou a Al-Qaeda, mas por acreditar que sua versão dos fatos era verdadeira e que o papel do jornalista consiste em dizer a verdade”, disse Sharaf. “Ele é 100% profissional”, acrescentou. “É uma figura rara no jornalismo do Iêmen, onde 90% dos jornalistas escrevem sem pesquisar nada e carecem de credibilidade.” Shaye, ele explicou,
tem a mente muito aberta e não aceita extremismo. Foi contra a violência e a morte de inocentes em nome do Islã. Também foi contra a morte de muçulmanos inocentes sob o pretexto de combater o terrorismo. Em sua opinião, a guerra contra o terror deveria ter sido travada culturalmente, e não pela via militar. Ele acha que usar de violência só vai criar mais violência e incentivar a propagação de mais correntes extremistas na região.
Nesse ínterim, Sharaf estava enfrentando seus próprios problemas com o regime iemenita por causa de uns quadrinhos sobre o presidente Saleh e de suas críticas à guerra do governo iemenita contra a minoria houthi no norte do Iêmen. Tinha criticado também os salafis conservadores. E sua estreita amizade com Shaye o punha em risco. Em 16 de agosto de 2010, Sharaf e sua família tinham acabado de quebrar o jejum do Ramadã quando ouviram gritos do lado de fora da casa. “Saiam, a casa está cercada.” Sharaf saiu. “Vi
soldados que nunca tinha visto antes. Altos e corpulentos […]. Lembravam fuzileiros navais americanos. Logo entendi que eram da unidade de contraterrorismo. Portavam fuzis modernos, com mira a laser. Usavam uniformes como os dos fuzileiros americanos”, ele me contou. Disseram-lhe que tinham vindo buscá-lo. “Qual é a acusação?”, ele perguntou. “Eles responderam: ‘Você vai descobrir’.” Enquanto Sharaf estava sendo preso, forças iemenitas tinham cercado a casa de Shaye. “Como Abdulelah recusou-se a sair, eles invadiram a casa, pegaram-no à força, espancaram-no, quebraram um dente dele”, disse Sharaf. “Fomos levados, os dois, vendados e algemados, para a prisão de segurança nacional, mantida pelos americanos.” Lá, eles foram separados e jogados em celas escuras e subterrâneas, contou Sharaf. “Ficamos presos uns trinta dias, durante o Ramadã, na prisão de segurança nacional, onde éramos interrogados continuamente.” Naquele primeiro mês, Sharaf e Shaye não se viram. Por fim, foram transferidos da prisão de segurança nacional para a prisão de segurança política do Iêmen, onde ficaram juntos numa cela.6 Sharaf acabou sendo solto, depois de prometer às autoridades que não faria mais quadrinhos sobre o presidente Saleh. Shaye não quis fazer nenhum acordo desse tipo. Shaye foi mantido na solitária durante 34 dias,7 sem acesso a advogado. Sua família não sabia sequer para onde tinha sido levado e por quê. Por fim, um prisioneiro libertado informou a seus advogados que ele estava na prisão de segurança política, e ali puderam vê-lo. “Quando Abdulelah foi preso, foi deixado num banheiro estreito, sujo e fedorento durante cinco dias. Notei que lhe faltava um dos dentes e outro estava quebrado, além de cicatrizes em seu peito”, recordou Barman. “Havia muitas cicatrizes em seu peito. Ele foi torturado psicologicamente. Disseram a ele que todos os seus amigos e parentes o tinham abandonado e que ninguém tinha se interessado por sua sorte. Ele foi torturado com informações falsas.” Em 22 de setembro, Shaye foi levado a um tribunal. Os promotores pediram mais tempo para preparar a acusação.8 Um mês depois, ele foi trancafiado numa jaula no tribunal de segurança estatal do Iêmen, criado por decreto presidencial e amplamente denunciado por grupos de direitos humanos e da imprensa como ilegal e injusto. O governo do Iêmen chamou aquilo de julgamento. “Isso mesmo. O julgamento não passa pelo teste da gargalhada, não mesmo. E o tribunal também não passa nesse teste”, disse Dayem, da Comissão de Proteção a Jornalistas. “Não consegui localizar um só processo tramitado nesse tribunal criminal especializado […] que cumprisse, mesmo que mal, os requisitos de um julgamento justo.” O juiz leu uma lista de acusações contra Shaye. Ele era acusado de ser o “homem da imprensa” para a Al-Qaeda, recrutando novos quadros operacionais para o grupo e fornecendo a Al-Qaeda fotografias de bases iemenitas e de embaixadas de países estrangeiros para possíveis ataques. “O governo tinha protocolado muitas acusações contra ele”, disse Barman.
Algumas delas eram: aderir a um grupo armado que visava prejudicar a estabilidade e a segurança do país, incitar membros da Al-Qaeda a assassinar o presidente Ali Abdullah Saleh
e seu filho, recrutar novos membros para a Al-Qaeda, trabalhar como propagandista da AlQaeda em geral e de Awlaki em particular. Pela lei do Iêmen, muitas dessas acusações são puníveis com a pena de morte.
Enquanto as acusações contra ele eram lidas, disse a jornalista Iona Craig, experiente correspondente estrangeira que enviava matérias do Iêmen para o Times, de Londres, Shaye “caminhava lentamente pela cela branca,9 sorrindo e balançando a cabeça, atônito”. Quando o juiz acabou de ler as acusações, Shaye se pôs de pé junto das grades da cela e dirigiu-se a seus colegas jornalistas: “Quando eles esconderam assassinos10 de mulheres e crianças em Abyan, quando eu revelei a localização de campos de nômades e civis em Abyan, Shabwah e Arhab, onde seriam atingidos por mísseis de cruzeiro, foi nesse dia que eles decidiram me prender”, declarou. “Vocês aqui presentes podem notar que eles transformaram todas as minhas colaborações jornalísticas em acusações. Todas as minhas colaborações e citações para repórteres internacionais e para canais de notícias viraram acusações.” Enquanto guardas de segurança o tiravam dali, Shaye gritou: “Iêmen, aqui é um lugar onde, quando um jornalista jovem faz sucesso, é olhado com desconfiança”.
42. O presidente pode criar suas próprias regras
WASHINGTON, DC, E IÊMEN, FIM DE 2010 — Enquanto as operações americanas de contraterrorismo no Iêmen se expandiam, no verão de 2010, Washington e outras forças políticas e econômicas traçavam planos para uma reestruturação neoliberal da economia daquele país. Sob a bandeira de “Amigos do Iêmen”, o governo dos Estados Unidos e o do Reino Unido se uniram à União Europeia, ao Fundo Monetário Internacional e a alguns vizinhos do Iêmen. “O progresso contra os extremistas violentos1 e o progresso no sentido de um futuro melhor para o povo iemenita dependerão do fortalecimento das iniciativas de desenvolvimento”, disse Hillary Clinton, secretária de Estado americana, numa das primeiras reuniões do grupo, em janeiro de 2010. Essas iniciativas incluíam o que Aaron W. Jost, diretor de Assuntos da Península Arábica do NSC, chamou de “assistência econômica e humanitária muito ampliada […] ao povo iemenita”.2 O governo Obama aumentou os recursos da USAID destinados ao Iêmen para financiamento, assistência humanitária e “promoção da democracia”, que eram de 14 milhões de dólares em 2008, para 110 milhões de dólares em 2010. “Não resta dúvida de que a AQPA constitui uma ameaça grave para o Iêmen, para os Estados Unidos e para nossos aliados”, afirmou Jost. “Entretanto, o apoio a operações contra a AQPA é apenas uma parte da estratégia dos Estados Unidos para o Iêmen.” Todavia, como condição para a maior assistência que o Iêmen receberia, o presidente Saleh foi obrigado a aceitar ajustes estruturais do FMI (Fundo Monetário Internacional), entre eles “a redução gradual dos subsídios públicos aos combustíveis”. Uma declaração dos “Amigos” reconhecia abertamente que “as necessárias reformas econômicas teriam impacto adverso sobre os pobres”.3 Washington e seus aliados deixaram claro para Saleh que a continuidade da ajuda militar estava condicionada à sua cooperação com as reformas econômicas. “O povo iemenita e a comunidade internacional se confrontam com ameaças reais por parte da AQPA, e talvez levem anos para derrotá-la”, declarou Jost.
Não obstante, cremos que o futuro sorri para os que constroem e não para os que se
concentram em destruir. E os Estados Unidos põem-se ao lado do povo do Iêmen no momento em que procuram construir um futuro mais positivo e rejeitar os esforços da AQPA para matar homens, mulheres e crianças inocentes.
A prioridade maior de Saleh não era reprimir a AQPA, mas derrotar as rebeliões internas dos houthis e dos secessionistas do sul. No entanto, para continuar a receber a ajuda militar americana, de que ele precisava para combater as insurgências internas, teria de provar a Washington que falava sério a respeito de combater a AQPA. O coronel Lang, que, como adido de Defesa dos Estados Unidos, passara anos negociando com Saleh, disse que o presidente iemenita estava farto do que via como uma tentativa do governo Obama de aplicar ao Iêmen a doutrina da contrainsurreição, mas tinha de fazer o jogo para continuar recebendo ajuda militar. De acordo com Lang na época:
Na verdade, Saleh não quer4 nosso envolvimento ao ponto que as plenas implicações dessa doutrina exigiria, pois nesse caso ele seria relegado, cada vez mais, à situação de um governante como Karzai […] e, na verdade, enquanto o presidente afegão [Hamid] Karzai nunca foi capaz de jogar o jogo com muita habilidade, Saleh foi. Com muita habilidade.
Acrescentou que Saleh sabia que o dinheiro proporcionado pelos “Amigos do Iêmen” e pela USAID para reforma política seria monitorado pelos Estados Unidos, “de modo que alguma propina eventual não beneficie demais a ele e a seus camaradas, e outras coisas desse tipo, o que tenderá a reduzir seu poder. Por isso, na verdade ele não vai estar a favor do plano”. No entanto, com o intenso foco americano na AQPA — seu tíquete-alimentação, em forma de ajuda militar — Saleh tinha de aceitar o jogo. Em agosto de 2010, depois da série de mortes de militares e agentes de Inteligência iemenitas pelos assassinos de motocicletas, as forças iemenitas lançaram uma grande ofensiva no distrito de Lawdar, em Abyan, suposto reduto da AQPA. Em vários dias de batalhas, teriam morrido, segundo informes, uma dúzia de soldados do governo mais dezenove pessoas que o governo iemenita identificava como membros da Al-Qaeda. Ao menos três civis morreram também, e dezenas de outros deixaram suas casas. “As forças de segurança deram aos terroristas5 da AlQaeda uma dura lição e lhes infligiram golpes dolorosos, fazendo com que terroristas que tentavam se esconder fossem obrigados a fugir, depois que dezenas deles foram mortos e feridos”, declarou o vice-ministro do Exterior do Iêmen, general Saleh al-Zaweri. Essa avaliação não contou com a anuência de Washington. As forças do JSOC vinham obtendo vitórias ocasionais sobre a AQPA, mas as Forças de Operações Especiais iemenitas eram vistas como preguiçosas e, de modo geral, incompetentes por seus colegas americanos, e a hipocrisia de Saleh muitas vezes redundava em coleta de informações de má qualidade. Em suma, havia
no Iêmen aquilo que altas autoridades americanas classificavam como “escassez de informações consistentes”.6 As forças do JSOC estavam, com certeza, mais habilitadas a achar, atacar e acabar com seus alvos, mas essas operações exigiam um cuidadoso trabalho de Inteligência. “Todos os Land Rovers7 são muito parecidos entre si”, disse ao Washington Post um ex-agente de informações americano, de alta graduação e experiente em operações no Iêmen. “Você tem de ter alguma coisa que lhe diga que aquele ali é o que você deve seguir.” Historicamente, a CIA recrutara pessoal do JSOC e de outras unidades de operações especiais para missões letais, mas a ascensão do JSOC nos governos de Bush e Obama tinha alterado esse processo. O JSOC, como me disseram fontes militares, queria mandar no jogo — e a CIA não estava nada satisfeita com isso. Em 25 de agosto, quando terminou a ofensiva de Lawdar, o Washington Post e o Wall Street Journal publicaram matérias de primeira página que se baseavam, como era evidente, em dados que a CIA e seus aliados no governo deixaram vazar. “Pela primeira vez8 desde os ataques do Onze de Setembro, analistas da CIA veem uma das ramificações da Al-Qaeda — e não o núcleo do grupo, agora instalado no Paquistão — como a mais urgente ameaça à segurança dos Estados Unidos”, começava a matéria do Post. O Wall Street Journal acrescentou que o governo estava avaliando planos para “montar um programa mais intenso9 de assassinatos dirigidos no Iêmen”. A matéria do Post atribuía a uma alta autoridade do governo, sem revelar seu nome, a afirmativa de que a AQPA estava “em ascensão”10 e que, entre o Paquistão e o Iêmen, “os graus relativos de preocupação estão aumentando. Estamos agora mais preocupados com a AQPA do que antes”. Essa fonte disse: “Estamos pensando em apelar a todos os recursos à nossa disposição”, falando de planos para “uma escalada num período de meses”. Os vazamentos pareciam indicar um jogo de poder por parte da CIA para garantir um maior papel nas operações no Iêmen, que vinham sendo dominadas pelo JSOC. “Ninguém vai achar pedaços de bombas com marcas dos Estados Unidos nelas, disse a alta autoridade, referindo-se claramente ao ataque com mísseis Tomahawk a Al-Majalah, em dezembro de 2009, e ao ataque apoiado em informações falsas em Marib, que matou o vice-governador em sua missão de negociação. A autoridade deixou claro que a Casa Branca estava avaliando um plano para usar mais drones da CIA. “A Agência tirou proveito11 de todas as críticas feitas ao desempenho do JSOC como argumento para retomar o controle sobre as operações secretas”, disse o coronel Lang, que durante a carreira trabalhou tanto com as Forças de Operações Especiais quanto com a CIA, inclusive no Iêmen. “A concorrência entre os serviços militares clandestinos e a CIA é agora maior do que antes.” Embora a CIA estivesse obviamente procurando conquistar vantagem em sua luta pelo poder com o JSOC em relação ao controle das operações no Iêmen, havia também um importante interesse estratégico, por parte do governo, em fazer uma mudança no comando da CIA: pôr as forças do JSOC sob a orientação da CIA permitiria, dentro das leis americanas, que “equipes de elite para caça-e-morte”12 atuassem com muito mais liberdade no Iêmen sem o consentimento do governo local.
Em setembro de 2010, durante a visita que John Brennan, principal consultor de Obama para contraterrorismo, fez ao Iêmen, Saleh lançou mais uma ofensiva contra a AQPA,13 dessa vez na cidade de Hawta, na província de Shabwah, a 95 quilômetros da casa de Anwar Awlaki. Liderados por unidades de contraterrorismo treinadas e armadas pelos Estados Unidos, comandos iemenitas sitiaram a cidade usando disparos de artilharia e ataques de helicópteros. Embora a importância da participação dos Estados Unidos na operação ainda seja sigilosa, autoridades militares confirmaram que forças americanas estiveram presentes. Em 20 de setembro, enquanto milhares de pessoas fugiam de suas casas, Brennan estava em Sana’a para se reunir com Saleh. A data escolhida pelo presidente Saleh para a ofensiva foi significativa, permitindo-lhe apontar a Brennan uma operação concreta e em andamento contra a AQPA. Enquanto Saleh e Brennan se reuniam, o grupo Amigos do Iêmen preparava-se para realizar reuniões em nível ministerial em Nova York para tratar de ajuda ao país. De acordo com uma declaração divulgada pelo NSC, Brennan e Saleh “discutiram colaboração14 contra a ameaça permanente da Al-Qaeda, e Brennan transmitiu ao povo iemenita os pêsames dos Estados Unidos pela perda de autoridades de segurança e cidadãos iemenitas mortos em recentes ataques da Al-Qaeda”. Embora publicamente o governo do Iêmen apregoasse seu êxito em Hawta e Lawdar, as operações redundaram em fracasso, já que os principais alvos da Al-Qaeda nos dois lugares fugiram e cresceu a fúria tribal contra o governo.
Na noite de 28 de outubro de 2010, um mês depois da reunião com Saleh, Brennan15 recebeu um telefonema de seu amigo príncipe Mohammed bin Nayef. O Serviço de Informações saudita, disse o príncipe, descobrira um plano da AQPA para abater aviões de carga dos Estados Unidos. As bombas já estavam colocadas. Pouco depois das 22h30, Brennan avisou o presidente Obama de uma “possível ameaça terrorista”16 ao território americano. A Inteligência saudita forneceu aos Estados Unidos e ao Reino Unido dados que permitiriam localizar17 os pacotes que, segundo acreditava, continham explosivos. Quando Brennan soube da trama, um dos aviões que estaria levando uma bomba já tinha decolado de Sana’a. O pacote foi transferido para um avião da UPS e levado para a Alemanha, onde foi novamente transferido antes de chegar, às 2h13,18 hora local, ao aeroporto de East Midlands, em Leicestershire, 160 quilômetros ao norte de Londres. O pacote continha um cartucho de impressão equipado com um circuito impresso. Em vez de toner, tinha pólvora branca. Testes preliminares, realizados na Grã-Bretanha, inclusive com cães farejadores e equipamento de detecção de explosivos, indicaram que não se tratava de uma bomba. O pacote permaneceu na Grã-Bretanha para novos testes,19 e o avião foi liberado, continuando a viagem para Filadélfia. Nesse ínterim, o pacote suspeito foi levado de helicóptero para análise ao Laboratório de Ciência e Tecnologia de Defesa,20 em Fort Halstead. Revelou-se depois que a pólvora continha quatrocentos gramas de PETN, o mesmo explosivo usado na roupa de baixo de Abdulmutallab e no atentado malogrado contra o príncipe Bin Nayef. O pacote
estava armado com um despertador ligado ao circuito impresso de um telefone celular Nokia. Posteriormente a Scotland Yard declarou que se a bomba não tivesse sido removida, “a ativação poderia ter ocorrido21 sobre a costa leste dos Estados Unidos”, estando a detonação prevista para ocorrer às 5h30, hora local. Uma alta autoridade britânica de contraterrorismo declarou ao The Guardian que o artefato era “um dos mais sofisticados22 já vistos. O olho nu não o detectaria, experientes peritos em bombas não o viram e é muito pouco provável que exames com raios X o localizassem”. Uma segunda bomba, com trezentos gramas de PETN, foi descoberta em Dubai,23 a bordo de um avião da FedEx. Tal como o outro pacote, fora enviado a uma organização judaica em Chicago. Ironicamente, nenhum dos dois endereços era válido. Os investigadores suspeitaram que os remetentes tinham obtido dados desatualizados pela intenet. Embora endereçados a organizações judaicas em Chicago, os pacotes tinham como destinatários figuras históricas malvistas e mortas24 havia muito tempo. Um deles tinha sido enviado a Diego de Deza, o cruel grande inquisidor que, durante um período, liderou a Inquisição espanhola. O outro era para Reynald Krak, cavaleiro francês da segunda cruzada, conhecido pelo assassinato em massa de muçulmanos. Krak acabou decapitado por Saladino, o guerreiro muçulmano que derrotou os cruzados no século XII. Na sexta-feira, 29 de outubro, os americanos viram, pelo noticiário da TV, caças americanos escoltando um avião de carga num pouso de emergência25 no aeroporto FJK. Mostraram-se imagens de outros aviões sendo revistados26 nos aeroportos de Filadélfia e Newark, e correram rumores sobre outros pacotes perigosos. Naquela noite, o presidente Obama disse que os explosivos tinham constituído “uma ameaça terrorista digna de crédito”.27 Por fim, nenhuma das bombas detonou, e a especulação quanto a explosivos a bordo de outros aviões mostrou não ter fundamento. Assim que a ligação com o Iêmen ficou clara, não houve discussão alguma no governo: todos os olhos estavam fixados na AQPA. Em novembro, a AQPA publicou um “número especial” da Inspire. A capa mostrava uma imagem borrada de um avião de carga da UPS, com uma manchete simples: “US$ 4200”. Esse fora o custo, de acordo com a AQPA, das tentativas de atentados, que o grupo chamou de “operação hemorragia”. A revista publicou fotografias que mostravam as bombas feitas com cartuchos de impressora antes de despachadas, bem como artigos que expunham os objetivos e detalhes técnicos das bombas. A AQPA alegou também ter derrubado um avião da UPS meses antes, em 3 de setembro. “Tivemos êxito28 em abater o avião da UPS, mas como os meios de comunicação do inimigo não atribuíram a operação a nós, permanecemos em silêncio para poder repetir a operação”, declarou a revista. Com efeito, um avião da UPS acidentou-se naquele dia, matando dois membros da tripulação. Segundo investigadores, o acidente ocorreu depois de um incêndio no aparelho. Autoridades americanas desmentiram29 que o acidente tivesse sido causado por um ataque terrorista. “Gostaríamos de perguntar: Por que o inimigo não revelou a verdade sobre o que aconteceu com o avião da UPS acidentado?”, dizia a declaração da AQPA. “Será porque o inimigo não descobriu como o avião foi abatido? Ou porque o governo Obama quis
esconder a verdade, de modo a não expor seu fracasso, sobretudo […] num ano de eleição?” A AQPA chamou o 3 de setembro de “dia em que uma árvore caiu numa floresta sem ninguém ouvir”. Quanto às bombas de outubro, o “chefe de Operações Estrangeiras” da AQPA escreveu na Inspire que derrubar os aviões teria sido um bônus, mas que “o objetivo não era causar baixas máximas, e sim causar prejuízos máximos à economia americana.30 Foi também por isso que escolhemos as duas empresas de carga aérea dos Estados Unidos, a FedEx e a UPS, para nossa operação dupla”. Observando que o governo dos Estados Unidos e os de outros países provavelmente gastariam quantias substanciais para rever e mudar os procedimentos de segurança dos aeroportos, ele escreveu: “Ou você gasta bilhões de dólares para inspecionar cada pacote no mundo ou você nada faz e nós continuamos a tentar”. Disse que haviam escolhido endereços em Chicago porque essa era a “cidade de Obama”. A revista publicou também a fotografia de um surrado livro de Dickens, que Awlaki lera na prisão. “Estávamos muito otimistas quanto ao resultado dessa operação”, escreveu o suposto chefe de Operações Estrangeiras. “Foi por isso que pusemos numa das caixas um romance intitulado Grandes esperanças.” Quatro dias depois da descoberta das bombas nos aviões de carga, o Iêmen indiciou Awlaki, in absentia,31 com base em acusações não relacionadas com essa trama. A acusação oficial foi “incitar ao assassinato de estrangeiros e membros de serviços de segurança”. O juiz ordenou aos promotores que caçassem Awlaki e o trouxessem a juízo, vivo ou morto. Independentemente das acusações específicas contra Awlaki, ficou claro que o indiciamento fora coordenado com Washington e pretendia conferir legitimidade à perseguição e ao possível assassinato de Awlaki, ao mesmo tempo que mais uma vez jogava a responsabilidade nos ombros dos iemenitas.
O juiz John Bates, nomeado em 2001 pelo presidente George W. Bush, ouviu uma sustentação oral no processo Al-Awlaki V. Obama que contestava a inclusão de um cidadão americano na lista de pessoas a serem mortas elaborada pelo governo. “Como se explica a exigência de aprovação judicial32 para que os Estados Unidos imponham vigilância eletrônica a um cidadão americano no exterior e ao mesmo tempo, segundo os réus, fica vedado o escrutínio judicial quando os Estados Unidos decidem pôr um cidadão americano no exterior numa lista de assassinatos dirigidos?”, perguntou o juiz. Os advogados do governo insistiram que o caso de Anwar Awlaki era um segredo de Estado, dentro de uma política de segurança nacional determinada pelo presidente e não estava na esfera dos tribunais. O juiz Bates declarou o processo “uma causa singular e extraordinária” em que “estão em jogo considerações vitais de segurança nacional e de assuntos militares e de relações exteriores (e, portanto, possivelmente de segredos de Estado)”. Bates perguntou: Pode um cidadão americano
usar o sistema judicial dos Estados Unidos para reivindicar seus direitos constitucionais, ao mesmo tempo que procura escapar às autoridades de segurança dos Estados Unidos, instando pela “jihad contra o Ocidente” e atuando em planejamento operacional para uma organização que já realizou numerosos ataques terroristas contra os Estados Unidos? Pode o Executivo ordenar a morte de um cidadão americano sem primeiro abrir contra ele alguma forma de processo judicial, baseando-se na mera assertiva de que ele é um membro perigoso de uma organização terrorista?
E o juiz Bates concluiu: “Essas e outras questões legais e de política suscitadas por esse processo são controversas e de elevado interesse público”. No entanto, o juiz Bates extinguiu a causa em 7 de dezembro de 2010, por questões processuais, determinando que o pai de Anwar, Nasser, não tinha legitimidade para abrir um processo em nome do filho e que a causa não sobreviveria a uma revisão das “questões políticas” que levantava em relação à autoridade do presidente para fazer guerra. O juiz Bates concluiu que “as sérias questões referentes aos méritos da suposta autorização para o assassinato dirigido de um cidadão americano no exterior têm de esperar uma outra época”. Os advogados de Awlaki ficaram desapontados, mas não surpresos com a decisão. A CCR e a Aclu tinham passado oito anos lutando com o governo Bush por causa das mesmas questões, embora afirmassem que esse caso tinha implicações maiores. “Se a decisão do tribunal está correta,33 o governo tem autoridade incontestável de levar a cabo o assassinato dirigido de qualquer americano, em qualquer lugar, desde que o presidente o considere uma ameaça à nação”, disse Jameel Jaffer, da Aclu, ao ser anunciada a decisão. “Seria difícil imaginar uma afirmação mais incompatível com a Constituição ou mais perigosa para a liberdade americana.” De certa forma, o processo Awlaki foi um microcosmo da mudança da atitude do presidente Obama em relação ao contraterrorismo, que passou a ser muito semelhante ao de seu antecessor: o presidente pode criar suas próprias regras.
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