43. “É provável que a cabeça de ponte da Al-Qaeda na Somália tenha sido facilitada”
SOMÁLIA, 2010 — Enquanto se desenrolava a batalha legal sobre a legitimidade do assassinato de um cidadão americano por seu próprio governo, a equipe de contraterrorismo da Casa Branca não estava preocupada apenas com Awlaki ou com a AQPA no Iêmen. Enfrentava também uma ameaça cada vez mais ampla na Somália, devido ao recente processo de fortalecimento e unificação de um movimento islâmico naquele país. O grupo militante AlShabab firmara um “acordo para unificação”1 com a milícia Ras Kamboni, de Hassan Turki, com o objetivo explícito de “criar um Estado islâmico que ponha em vigor a sharia, a legislação islâmica”. No entanto, o que mais preocupava a comunidade de contraterrorismo americana era o último ponto do acordo. “Com o fito de restaurar a dignidade danificada dos muçulmanos, seu poder político, sua força econômica e seu poderio militar, todos os muçulmanos na região devem se unir e pôr fim à hostilidade entre si, criada pelas potências coloniais”, dizia a declaração. “Para impedir a invasão pelos cruzados internacionais e os ataques que eles vêm realizando contra o povo muçulmano, a jihad no Chifre da África deve se fundir com a jihad internacional, liderada pela rede Al-Qaeda e por seu amir xeque Osama bin Laden.” Para justificar sua aliança com a Al-Qaeda, a Al-Shabab fundiu seu apoio ao grupo terrorista com a resistência à agressão estrangeira. A possibilidade de assumir essa postura era algo com que Osama bin Laden nem teria sonhado na década de 1990. E os erros de conduta e de cálculo de Washington tinham ajudado a levar a isso. “Os Estados Unidos lançaram ataques aéreos2 contra membros de alto nível da Al-Shabab, que acreditavam vinculados à Al-Qaeda. No entanto, os especialistas afirmam que esses ataques só serviram para aumentar o apoio popular à Al-Shabab. Na verdade, afirmam que as únicas ações capazes de galvanizar a Al-Shabab e aumentar o apoio a essa organização na Somália são novos ataques por parte dos Estados Unidos ou uma volta das tropas etíopes”, concluiu um informe da Comissão das Relações Exteriores do Senado no começo de 2010. “A Al-Qaeda é agora uma organização mais sofisticada e mais perigosa na África”, declarava o informe, observando que “é provável que a cabeça de ponte [da Al-Qaeda] na Somália tenha sido facilitada pelo envolvimento das potências ocidentais e de seus aliados”. Embora a jihad da Al-Shabab, até aquele ponto, estivesse confinada aos limites da Somália, o
grupo em breve faria acompanhar sua declaração formal de unidade com a Al-Qaeda atacando seus inimigos no próprio território deles.
Alguma coisa aconteceu a Ahmed Madobe, chefe de uma milícia somaliana, nos dois anos em que esteve sob custódia etíope depois de ter sido quase morto pelo JSOC, em 2007. Em 2009, Madobe fez um acordo3 com os governos da Etiópia e da Somália pelo qual renunciaria à AlShabab e combateria ativamente essa organização. Depois disso, voltou para a sua região na Somália. Segundo suas palavras,4 tinha planejado voltar para Jubba e tentar definir o melhor acordo que pudesse fazer. Se fosse com o governo somaliano, muito bem. Se não fosse, bem, uma vez guerrilheiro, sempre guerrilheiro. Entretanto, ao voltar para sua região, Madobe descobriu que ela não era mais dele. Seu mentor, Hassan Turki, fundira a Ras Kamboni com a Al-Shabab e prometera fidelidade à AlQaeda. Madobe foi posto contra a parede pelos ex-companheiros: ou você está conosco ou está contra nós. Madobe diz que tentou negociar um acordo de partilha de poder na região, mas a AlShabab o rejeitou. Por isso, ele ficou com a única opção real de que dispunha. Pelo menos é assim que prefere expor a situação. “A visão que eu tinha da Etiópia mudou bastante, da mesma forma que a que eu tinha da política internacional na Somália”, ele me disse. No começo de 2010, Madobe anunciou5 que suas forças estavam em guerra com a Al-Shabab e que apoiavam o governo da Somália. E ficou evidente que ele forjara uma nova relação com os etíopes, que durante muito tempo haviam financiado vários chefes de milícias e políticos somalianos. “Estávamos lutando contra os etíopes e os americanos, e os considerávamos inimigos”, afirmou.
Mas esses sujeitos da Al-Shabab são piores do que eles, pois conspurcaram a imagem do Islã e os valores de nosso povo. Por isso, agora, as divergências entre mim, os etíopes e os Estados Unidos são pequenas em comparação com as divergências que tenho com a Al-Shabab.
A aliança de Turki com a Al-Shabab causava especial preocupação aos Estados Unidos, uma vez que dava à aliança o controle total da importante cidade portuária de Kismayo. O controle desse porto, junto com o dos “portos secundários de Marka e Baraawe […] tornou-se a principal fonte de renda6 para [a Al-Shabab]”, segundo um relatório da ONU. A Al-Shabab “recebe entre 35 milhões e 50 milhões de dólares anuais em receitas portuárias, dos quais pelo menos 15 milhões são provenientes do comércio de carvão e açúcar”. Os Estados Unidos queriam interromper esses fluxos de caixa, e por isso começaram a apoiar Ahmed Madobe, ex-membro da União das Cortes Islâmicas que o JSOC tentara matar em 2007. Madobe fora no passado aliado da Al-Shabab e da milícia Ras Kamboni, de Hassan Turki. Madobe e seus homens começaram a receber “treinamento e apoio”7 de forças militares quenianas apoiadas pelos Estados Unidos.
Trafegavam em caminhonetes novas, dotadas de metralhadoras, e, durante batalhas com forças da Al-Shabab, recebiam apoio de artilharia de forças quenianas e apoio aéreo de helicópteros militares. Madobe tornou-se integrante de uma nova geração de chefes de milícias cooptados dos destroços da União das Cortes Islâmicas. Não seria o último.
A Copa de 2010 — o mais famoso evento esportivo do mundo — realizou-se na África do Sul. Pela primeira vez, as finais foram disputadas em cidades africanas, e todo o continente se transformou numa gigantesca arena. Enormes telões foram montados em campos e estádios, e os jogos foram exibidos por televisores em todos os bares, restaurantes e cafés. Uganda não foi exceção. Em 11 de julho de 2010, no bairro de Kabalagala, na capital, Kampala, uma multidão, formada sobretudo de estrangeiros, assistia à final da Copa, entre a Holanda e a Espanha, no restaurante Ethiopian Village.8 Quando acabou o primeiro tempo,9 o jogo estava empatado em zero a zero. Bum! Uma explosão sacudiu o restaurante. Quinze pessoas morreram e dezenas ficaram feridas, entre elas seis missionários menonitas. Quando a partida chegou ao último minuto do tempo regulamentar,10 uma segunda explosão aconteceu no Kyadondo Rugby Club,11 em Nakawa, alguns quilômetros ao norte. Seguiu-se uma terceira explosão na base de um telão em torno do qual muitas pessoas viam o jogo. Ao todo, 64 pessoas, na maioria ugandenses, morreram nas explosões de Nakawa. Um assistente social americano de 25 anos também morreu. Uma cabeça encontrada no local12 seria de um somaliano, que as autoridades ugandenses supunham ser um homem-bomba. Um colete com explosivos, não detonados, foi encontrado depois. Logo após o duplo atentado, as especulações apontavam para a Al-Shabab. No entanto, o grupo nunca executara ataques fora das fronteiras da Somália. Membros subalternos da AlShabab comemoraram os ataques — um deles declarou que estava “muito feliz”13 —, mas não assumiram a autoria das explosões. No dia 12 de julho, porém, o xeque Alo Mohamud Rage, porta-voz da Al-Shabab, anunciou, orgulhoso, que o grupo estava por trás dos atentados. “Realizaremos ataques14 contra nossos inimigos onde eles estiverem”, disse. “Ninguém há de nos impedir de cumprir nosso dever islâmico.” E acrescentou: “Agradecemos aos mujahedin15 que levaram a cabo o ataque. Estamos enviando uma mensagem a Uganda e ao Burundi: se eles não retirarem da Somália as tropas que enviaram para a Amisom, as explosões continuarão, com certeza”. Enquanto os vizinhos de Uganda e da Somália entravam em estado de alerta vermelho, em Mogadíscio a Al-Shabab preparava uma grande campanha para derrubar o frágil governo que a Amisom estava protegendo.
Nos dois primeiros anos do governo Obama, a política externa dos Estados Unidos concentrou-se sobretudo no Afeganistão e no Iraque — e envolveu-se numa controvérsia sobre a
prisão de Guantánamo —, mas em 2010 a Somália começou a se tornar uma importante área de preocupação. O JSOC havia realizado várias operações no país, com destaque para a que matara Saleh Ali Saleh Nabhan, líder da Al-Qaeda na África Oriental. Entretanto, à medida que os Estados Unidos ampliavam seus ataques, a Al-Shabab parecia tornar-se mais ousada. A cada semana, o grupo aumentava o território sob seu controle. Das organizações filiadas à Al-Qaeda, a Al-Shabab era a que controlava a maior faixa de terra. Em 2010, a Somália ganhou a discutível honra de ser considerada a capital mundial do terrorismo,16 no Índice Global de Risco de Terrorismo da Maplecroft, com nada menos que 556 ataques terroristas entre junho de 2009 e junho de 2010, que redundaram na morte de 1437 pessoas. A retórica da Casa Branca contra a Al-Shabab tornou-se cada vez mais belicosa, e Obama emitiu a Ordem Executiva 13536, declarando que era uma “emergência nacional17 enfrentar a ameaça [da Somália]”. Entre as preocupações mais sérias identificadas pela comunidade de contraterrorismo dos Estados Unidos estava a questão de combatentes estrangeiros, sobretudo originários dos Estados Unidos, que tinham sido utilizados em ataques suicidas. Em 5 de agosto de 2010, o procurador-geral Eric Holder anunciou o indiciamento de catorze pessoas, residentes nos Estados Unidos, acusadas de prestar apoio material à Al-Shabab. “Esses indiciamentos e prisões18 — nos estados de Minnesota, Alabama e Califórnia — tornam mais claro um canal mortífero pelo qual foram enviados, à Al-Shabab, recursos e combatentes originários de cidades em todos os Estados Unidos”, declarou Holder.
Embora nossas investigações estejam ocorrendo em todo o país, essas prisões e acusações devem servir como uma advertência inequívoca a quem estiver pretendendo aderir a grupos terroristas como a Al-Shabab, ou apoiá-los: se você optar por esse caminho, pode ter certeza de que se verá numa cela de prisão americana, ou será mais uma baixa num campo de batalha da Somália.
Moradores de Mogadíscio começaram a relatar a passagem habitual de aviões de reconhecimento sobre a capital. O governo Obama estava aumentando suas operações. No entanto, o mesmo fazia a AlShabab. Em 22 de agosto de 2010, a organização lançou o que o Grupo de Monitoramento da ONU na Somália e na Eritreia classificou como “sua mais importante campanha militar19 desde maio de 2009”. O xeque Rage deu uma entrevista coletiva em 23 de agosto para anunciar uma “guerra de vulto”20 para derrubar de uma vez por todas o governo somaliano apoiado pelos Estados Unidos. A Al-Shabab vinha mobilizando combatentes havia meses, preparando-se para a fartamente anunciada ofensiva da Amisom que só viria a ocorrer muito depois. Com um contingente estimado entre 2500 e 5 mil militantes, a Al-Shabab executou ataques diretos contra a Villa
Somalia e outras sedes do governo, e tentou repelir forças do governo somaliano e da Amisom em bairros importantes de Mogadíscio. Pelo menos oitenta pessoas foram mortas e dezenas ficaram feridas durante uma semana de intensa violência,21 de 23 a 30 de agosto. Entre outros incidentes de monta, cabe citar um ataque ao palácio presidencial, em 30 de agosto, e um atentado a bomba, que deixou muitos mortos,22 no dia seguinte. No segundo dia dessa “Ofensiva do Ramadã”, em 24 de agosto, três milicianos antigovernistas, disfarçados de soldados do governo somaliano, sitiaram o Muna Hotel,23 situado a algumas centenas de metros da Villa Somalia. O ataque, que envolveu dois suicidas, matou pelo menos 33 pessoas, entre as quais vários parlamentares. Após o ataque, forças do governo somaliano amarraram os restos24 de um dos militantes da Al-Shabab à traseira de um veículo e desfilaram com ele pela cidade. “Esse foi um ato particularmente ultrajante25 durante o mês islâmico do Ramadã”, disse John Brennan, o principal consultor de contraterrorismo de Obama, no dia do ataque ao hotel. “Os Estados Unidos continuarão a apoiar aqueles que se opõem ao terrorismo, ao extremismo e à violência em todas as suas formas, e continuarão a trabalhar estreitamente com essas pessoas na África, principalmente no Chifre da África e na Somália.” Duas semanas depois, em 9 de setembro de 2010, o aeroporto foi vítima de um ataque com dois carros-bomba,26 durante a visita de uma delegação internacional que incluía o representante especial do secretário-geral da ONU e o representante especial do presidente da União Africana. Essas autoridades saíram incólumes, embora os ataques — e a luta que se seguiu — tenham custado a vida de dois soldados da Amisom e de pelo menos cinco civis. De acordo com o grupo de monitoramento Ameaças Críticas, os combates haviam desalojado 23 mil residentes27 de Mogadíscio no fim de setembro. Várias batalhas continuaram a sacudir Mogadíscio durante o mês de setembro. A Al-Shabab obteve ganhos expressivos nos primeiros momentos da ofensiva, embora a operação acabasse por fazer a Amisom empregar mais 2 mil soldados. A ofensiva acabou sendo repelida. Um fator importante para a derrota da Al-Shabab, segundo o Grupo de Monitoramento da ONU, pode ter sido a “dependência exagerada [da Al-Shabab] de crianças28 incapazes de resistir às tropas da Amisom ou, em menor grau”, a forças do governo e a milícias pró-governo. Segundo informações, a Al-Shabab sofreu pesadas baixas, tanto entre combatentes como entre comandantes de alta graduação, e em alguns casos perdeu territórios para as forças do governo. Por fim, a ofensiva da Al-Shabab conseguiu, até certo ponto, desestabilizar ainda mais um governo somaliano que já estava em situação crítica. Além disso, provocou um debate interno na própria Al-Shabab e na Al-Qaeda quanto a suas táticas e a conveniência de tentar manter territórios ou de tentar capturar toda a capital. Nesse ínterim, a CIA estava expandindo sua presença em Mogadíscio.
44. “Anwar Awlaki […] com certeza tem um míssil em seu futuro”
IÊMEN, 2011 — Em janeiro de 2011, um tribunal do Iêmen condenou o jornalista iemenita Abdulelah Haider Shaye por acusações relacionadas a terrorismo1 e lhe impôs uma sentença de cinco anos de reclusão, a que se seguiriam dois anos de movimentação restrita e vigilância. Durante todo o julgamento, Shaye recusou-se a reconhecer a legitimidade do tribunal e a apresentar uma defesa. Para a organização Human Rights Watch, o tribunal especial que o julgou “não cumpria as normas internacionais2 de processo legal justo”, e seus advogados alegaram que as poucas “provas” apresentadas contra ele baseavam-se em documentos forjados. “O que ocorreu foi uma decisão política, e não judicial. Não tem base legal”,3 disse Abdulrahman Barman, advogado de Shaye, que boicotou o julgamento. “Tendo assistido ao julgamento,4 posso dizer que foi uma farsa total”, disse a jornalista Iona Craig, do Times londrino. Vários grupos internacionais de direitos humanos condenaram o julgamento como uma farsa e uma injustiça. “Há fortes indícios5 de que as acusações contra [Shaye] são fraudulentas e que ele foi preso apenas por ousar manifestar-se a respeito da colaboração dos Estados Unidos no ataque a um depósito de munições ocorrido no Iêmen”, disse Philip Luther, da Anistia Internacional. Sem dúvida alguma, Shaye estava fazendo reportagens que tanto o governo do Iêmen quanto o dos Estados Unidos queriam suprimir. Estava também entrevistando uma pessoa que Washington vinha caçando, ou seja, Anwar Awlaki. Embora o governo do Iêmen e dos Estados Unidos alegassem que ele promovia a propaganda da Al-Qaeda, observadores atentos do Iêmen discordavam. “É difícil exagerar6 a importância de seu trabalho”, declarou Gregory Johnsen, professor da Universidade de Princeton, que vinha se comunicando com Shaye desde 2008 e me disse:
Sem as reportagens e entrevistas de Shaye, saberíamos muito menos sobre a Al-Qaeda na Península Arábica do que sabemos, e se acreditarmos, como eu acredito, que conhecer os inimigos é importante para definir uma estratégia destinada a derrotá-los, nesse caso sua
prisão e sua posterior detenção deixaram uma lacuna em nosso conhecimento que ainda não foi preenchida.
Depois da condenação e da sentença de Shaye, líderes tribais pressionaram o presidente Saleh para que lhe concedesse anistia. “Alguns iemenitas de destaque e xeques tribais visitaram o presidente para atuar como mediadores na questão, e Saleh concordou em libertá-lo e perdoálo”, recordou Barman. “Estávamos esperando a divulgação do perdão […]. O documento já estava impresso e pronto para que o presidente o assinasse e o anunciasse no dia seguinte.” A notícia do perdão iminente vazou na imprensa iemenita. Nesse dia, 2 de janeiro de 2011, o presidente Saleh recebeu um telefonema do presidente Obama.7 Os dois falaram a respeito de cooperação na área de contraterrorismo e da batalha contra a AQPA. No fim da conversa, Obama “expressou preocupação” quanto à libertação de Shaye, que, disse ele, “fora condenado a cinco anos de prisão por sua ligação com a AQPA”. De fato, Shaye ainda não tinha sido libertado quando se deu esse telefonema, mas seu perdão já estava preparado e só faltava a assinatura de Saleh. Não era inusitado que a Casa Branca expressasse preocupação com o fato de o Iêmen permitir que suspeitos de ligação com a AQPA fossem soltos. Fugas mal explicadas de militantes islâmicos presos tinham sido comuns no Iêmen na década anterior, e sabia-se que Saleh explorava a ameaça do terrorismo para arrancar dinheiro dos Estados Unidos para a luta antiterrorista. Entretanto, esse caso era diferente: Abdulelah Haider Shaye não era um militante islâmico ou um quadro operacional da Al-Qaeda. Era um jornalista. Depois da ligação de Obama, Saleh rasgou o perdão. De acordo com Johnsen:
Evidentemente, as reportagens de Shaye traziam embaraço para o governo americano e o iemenita, pois numa época em que ambos tentavam, sem sucesso, matar líderes importantes da AQPA, esse jornalista, usando só sua câmera e seu computador, era capaz de localizar esses mesmos líderes e entrevistá-los [...]. Não existem dados públicos que levem a crer que Abdulelah fosse algo mais que um jornalista tratando de realizar seu trabalho, e não está claro por que o governo americano ou o iemenita se recusam a apresentar as informações que afirmam ter.
Shaye fez uma breve greve de fome8 em protesto contra sua prisão, interrompida depois que a família manifestou preocupação com sua saúde em deterioração. Enquanto entidades internacionais de jornalismo, como o Comitê para a Proteção dos Jornalistas, a Federação Internacional de Jornalistas e a organização Repórteres sem Fronteiras, pediam a libertação de Shaye, seu caso recebia pouca atenção nos Estados Unidos. No Iêmen, jornalistas, ativistas de direitos humanos e advogados alegavam que ele estava preso a pedido dos Estados Unidos. Beth Gosselin, porta-voz do Departamento de Estado, disse-me que os Estados Unidos desejavam
mantê-lo preso. “Continuamos preocupados9 com a possível libertação de Shaye devido à sua associação com a Al-Qaeda na Península Arábica. Apoiamos os comentários do presidente.” Quando lhe perguntei se o governo dos Estados Unidos deveria apresentar fatos que legitimassem sua afirmação de que Shaye tinha ligações com a AQPA, Gosselin respondeu: “Isso é tudo o que temos a declarar sobre esse caso”. A jornalista Iona Craig, do Times, de Londres, fez perguntas ao embaixador americano no Iêmen, Gerald Feierstein, sobre o caso Shaye. Segundo ela, Feierstein riu antes de responder. “Shaye foi para a cadeia10 porque estava promovendo a Al-Qaeda e seus planos de ataques a americanos, e por isso temos um interesse muito direto em seu processo e em sua prisão”, disse. Quando a jornalista aludiu às ondas de choque que a prisão causara na comunidade jornalística do Iêmen, Feierstein respondeu: “Isso nada tem a ver com jornalismo, e sim com o fato de que ele estava ajudando a AQPA, e se eles [os jornalistas iemenitas] não fizerem isso, não precisam se preocupar conosco”. Para muitos jornalistas do Iêmen, os “fatos” divulgados sobre o modo como Shaye estava “ajudando” a AQPA mostravam que simplesmente entrevistar pessoas ligadas a Al-Qaeda ou noticiar mortes de civis causadas por ataques americanos era crime no entender do governo dos Estados Unidos. “Creio que o pior em relação a esse caso é que não só um jornalista independente está sendo mantido na prisão pelos Estados Unidos, por procuração”, disse Iona Craig, “como também que os americanos conseguiram [intimidar] outros jornalistas iemenitas que investigavam ataques aéreos contra civis e, mais importante, que responsabilizavam seu próprio governo. Shaye fez as duas coisas.” E Craig acrescentou: “Com o enorme aumento de ataques aéreos do governo e com os ataques americanos com drones, o Iêmen precisa que jornalistas como Shaye noticiem o que realmente está acontecendo”.
O governo dos Estados Unidos tinha fechado o blog de Anwar Awlaki, e o “imã da internet” não tinha presença alguma on-line, a não ser por meio de seus ensaios na revista Inspire. O único jornalista que ousava entrevistá-lo estava preso. Agora a Casa Branca queria acabar o trabalho. Enquanto levava adiante seus planos para matar Awlaki, a Casa Branca despachou o principal advogado do governo, o procurador-geral Eric Holder, para uma entrevista no principal noticiário matutino da rede de televisão ABC, Good Morning America. A entrevista foi divulgada como um “Aviso claro sobre ataques terroristas”. Um letreiro anunciava que a ameaça de “Terror vindo de dentro do país” causava ao procurador-geral “noites insones”. Holder declarou: “Estou dando esta entrevista para conscientizar as pessoas quanto ao fato de que a ameaça é real, a ameaça é diferente, a ameaça é constante”.11 Acrescentou:
A ameaça, que era de apenas temer que estrangeiros viessem para cá, mudou. Agora há a ameaça de que pessoas nos Estados Unidos, cidadãos americanos — criados aqui, nascidos
aqui —, por alguma razão decidiram que vão se radicalizar e pegar em armas contra a nação em que nasceram.
Imagens de Anwar Awlaki apareceram na tela, acompanhadas de um letreiro: “Nova ameaça importante de terrorismo: clérigo que rivaliza com Bin Laden”. O repórter falou sobre o caso do “Homem da Bomba na Cueca”, que tentou derrubar o voo da Northwest Airlines no dia de Natal, e das tentativas de explodir os aviões de carga. Awlaki é “um homem extremamente perigoso. Vem demonstrando desejo de causar prejuízos aos Estados Unidos, de atacar o território americano”, disse Holder. “Ele é uma pessoa que […] como cidadão americano […] conhece bem este país e representa uma dimensão, por causa desse conhecimento, que os outros não têm.” O perigo que Awlaki representava para os Estados Unidos, disse Holder, era a capacidade de incitar terroristas em potencial à ação. “A capacidade de entrar em sua casa, ligar seu computador, encontrar um site que expele esse tipo de ódio […] eles têm a capacidade de fazer com que alguém que esteja apenas interessado, talvez em dúvida, queira passar para o outro lado”, disse. Awlaki “estaria na mesma lista de Bin Laden”. O repórter perguntou a Holder se os Estados Unidos preferiam capturar Awlaki e julgá-lo ou matálo imediatamente. “Bem, é certo que desejamos neutralizá-lo. E faremos todo o possível para atingir esse objetivo”, respondeu Holder. Awlaki alcançara agora um status épico, como o maior criminoso americano do planeta. Os advogados da Aclu e do CCR, que se esforçavam para evitar que o governo matasse Awlaki, espantaram-se com o fato de o governo não apresentar indícios que dessem respaldo às afirmações que Holder e outras autoridades vinham fazendo publicamente, nos meios de comunicação, e por meio de vazamento de informações a um grupo seleto de jornalistas. “Mesmo que aquilo que [Awlaki] está dizendo12 seja crime, que o acusem, que o julguem. Isso ainda não é uma razão para fazer um drone entrar no Iêmen e matá-lo”, disse-me Pardiss Kebriaei, um de seus advogados. “Não importa o que as pessoas achem, nem o que ele esteja dizendo, mesmo que ele tenha passado dos limites, o fato é que o governo não pode simplesmente determinar, com base numa vaga alegação de ameaça, que ele deve ser morto sem o devido processo legal.” O governo Obama discordava. O tempo no jogo de gato e rato entre os drones americanos e Awlaki estava passando. Obama estava mobilizando equipes do JSOC e da CIA para caçá-lo e matá-lo. Malcolm Nance, exagente de informações da Marinha, disse-me na época que Awlaki era “perigoso numa escala estratégica” e que ele “sem dúvida tem um míssil em seu futuro.13 Não se poder permitir [que ele] molde ideologicamente o campo de batalha e transforme isso em capacidade de combate”. Pouco depois do episódio em que o atentado contra o avião de carga foi evitado, meios de comunicação britânicos anunciaram que as forças do SAS estavam atuando no Iêmen ao lado do JSOC e do CTU iemenita “em missões para matar ou capturar14 líderes da AQPA. Em fevereiro de
2011, o diretor do Centro Nacional de Contraterrorismo, Michael Leiter, fez uma exposição ao Congresso a respeito das principais ameaças enfrentadas pelos Estados Unidos em todo o mundo. “A Al-Qaeda na Península Arábica,15 tendo Awlaki como líder dessa organização, é, com certeza, o risco mais importante para o território americano”, declarou ele à Comissão de Segurança Interna da Câmara. “Awlaki é o mais conhecido ideólogo de língua inglesa que vem falando diretamente às pessoas aqui nos Estados Unidos.” Joshua Foust, ex-analista da DIA, assim descreveu a reação de Obama na época: “Ele enviou imediatamente drones16 e caras das Operações Especiais ao Iêmen. Foi na mesma hora: ‘Vamos mandar o JSOC’. Mandem os ninjas”. Sem dar detalhes, que disse serem sigilosos, Foust afirmou que acompanhara operações de assassinato dirigido que, segundo ele acreditava, eram justificadas e não eram “em teoria ruins”. No entanto, ele me disse também que estava muito preocupado com as normas que vinham sendo usadas para determinar quais pessoas seriam visadas. “Francamente, quando trabalhei com o Iêmen, passava-se a maior parte do tempo discutindo” com o Comando de Operações Especiais-Iêmen e outros analistas da DIA “sobre normas probatórias”, disse ele.
Para mim, a norma probatória para matar pessoas é assustadoramente baixa. Creio que se resume a três relatórios diferentes e comprovados de Humint. Só isso? Num tribunal, isso não passaria de disse me disse. Não entendo como as pessoas podem se sentir tão tranquilas com relação a matar gente com indícios tão ralos [...]. Se você vai matar alguém, precisa ter uma razão muito forte para isso e precisa de provas absolutamente seguras de que essa morte vai promover materialmente seus interesses. E simplesmente esse não é o caso.
Por fim, afirmou Foust, o chefe da unidade da DIA “disse que eu não me metesse e me calasse”.
45. O curioso caso de Raymond Davis: Ato I
PAQUISTÃO, 2011 — O americano corpulento de 36 anos passaria despercebido em sua cidadezinha, Big Stone Gap,1 aninhada no interior rural e montanhoso do sudoeste da Virgínia. Com sua camisa xadrez de flanela, calça jeans e a barba por fazer, um tanto grisalha, ele talvez só chamasse a atenção pela escolha do veículo: um Honda Civic branco, e não uma caminhonete. Mas em 27 de janeiro de 2011, Raymond Davis não estava dirigindo seu carro em Big Stone Gap, na Virgínia. Estava do outro lado do mundo, preso no tráfego congestionado e caótico da segunda cidade do Paquistão, Lahore.2 Ali, o Honda Civic não chamava mesmo a atenção. Pertencia a uma locadora da cidade, e sua placa, de Lahore, era LEC-10/5545. Talvez nunca se venha a saber direito, em detalhes, o que aconteceu no cruzamento de Mozang Chowk naquele dia. Mais obscuro ainda é quem é mesmo Raymond Davis e o que ele estava fazendo em Lahore — ou no Paquistão de modo geral. Momentos depois que o carro de Davis parou, três pessoas foram mortas, o americano estava sendo levado para uma conhecida prisão em Lahore, multidões de paquistaneses furiosos exigiam sua execução e se desenrolava a mais grave crise diplomática entre o governo paquistanês e o americano desde o incêndio e o saque da embaixada dos Estados Unidos em Islamabad em 1979. A se dar crédito à versão oficial do que ocorreu naquele dia, na palavra de Davis e de altas autoridades americanas, inclusive o presidente Obama, Raymond Davis trabalhava no consulado dos Estados Unidos em Lahore, era um burocrata que carimbava passaportes e realizava trabalhos administrativos — em essência, um escriturário — que se viu no lugar errado e na hora errada, numa cidade muito perigosa. De acordo com essa versão da história, Davis foi vítima de uma tentativa de assalto a mão armada por dois marginais que o seguiram numa motocicleta depois que ele fez um saque num caixa automático.3 Quando Davis parou no congestionamento, os meliantes pararam diante de seu carro,4 um deles brandindo uma arma. Temendo por sua vida, Davis puxou sua pistola Glock semiautomática de nove milímetros e disparou, através do para-brisa, contra os homens, em legítima defesa. Depois de uma breve perseguição de carro, a polícia do Punjab deteve Davis.5 Ele tinha consigo um passaporte diplomático, que lhe dava imunidade. O presidente Obama referiu-se a Davis como “nosso diplomata”.6 Pelas Convenções de Viena,7 nenhuma acusação criminal podia ser feita legalmente a ele no Paquistão, e Davis deveria ter sido devolvido à custódia americana. Caso
encerrado. Aceitar essa versão da história exige crer que um funcionário administrativo do consulado teria bastante sangue-frio e destreza com uma Glock para reagir com a precisão de um pistoleiro a uma tentativa de assalto, abatendo dois assaltantes depois de disparar sua arma por trás do volante e através do para-brisa do carro. Isso seria um feito notável para um “assessor técnico”8 ou um membro da “equipe administrativa”, como as autoridades americanas se referiram a Davis. Os diplomatas americanos no Paquistão não estão autorizados9 a portar armas. Não importa. Essa, naturalmente, não era toda a história. Na verdade, a versão oficial pode não conter nem uma gota de verdade substancial, a não ser o óbvio: que um americano chamado Raymond Davis matou dois paquistaneses em pleno dia num cruzamento em Lahore. Os elementos essenciais dessa história não são o passaporte diplomático de Raymond Davis, que tipo de visto lhe fora concedido ou o fato de os Estados Unidos terem pedido publicamente sua libertação depois que ele foi preso. Tudo isso são pormenores de uma versão de acobertamento, parte da qual fora concebida com antecedência. Outra parte foi atamancada às pressas. A prisão de Kot Lackpat, nos subúrbios de Lahore, abriga dezenas de suspeitos de militância e terroristas acusados — homens cujo maior prazer seria ter a oportunidade de degolar, na calada da noite, um americano suspeito de espionagem. Foi para essa cadeia que Raymond Davis acabou sendo levado depois de uma breve perseguição de carro, em Lahore, que terminou com sua detenção, pela polícia, no velho bazar de Anarkali.10 Davis não foi posto com a população carcerária geral, e sim numa cela isolada na “área de segurança máxima”11 da cadeia. Assim que ele chegou, cerca de 25 suspeitos de serem “jihadis” foram transferidos da cadeia.12 Para maior segurança, os Punjab Rangers,13 um contingente de paramilitares, foram levados para cercar essa ala da cadeia. Isso foi explicado como uma medida de segurança para proteger Davis, mas tinha também outra finalidade:14 garantir que ninguém viesse libertar o americano. O Serviço de Informações paquistanês sabia de coisas a respeito de Davis que faziam crer que isso podia ocorrer. Pouco depois de sua prisão, Davis foi levado a uma sala. Alguém ali fotografou, em imagens granuladas,15 seu interrogatório. “Preciso informar à embaixada onde estou. Digam-me apenas o nome desta rua”, insistiu Davis. “Você é americano?”, gritou alguém. “Sou”, respondeu ele. Ainda usando seus crachás de identificação do governo americano em torno do pescoço, Davis levantou-os um a um para que seus interrogadores os vissem. “Você é da embaixada americana?”, um deles perguntou. “Não. Sou do consulado geral. Não temos embaixador […] aqui, em Lahore. Só trabalho como consultor lá”, respondeu Davis, acrescentando que trabalhava no Escritório de Assuntos Regionais, o RAO [Regional Affairs Office]. Ofereceram a Davis um copo d’água, mas, em vez disso, Davis pediu uma garrafa d’água. “Ah, água pura!”, um dos interrogadores exclamou, provocando risos na sala. “Sem dinheiro, nada de água”, acrescentou o homem, causando mais risos. Prosseguiu o interrogatório. Por fim, Davis assinou
um depoimento, em que afirmava sua versão de que tinha disparado os tiros em legítima defesa e que os mortos eram assaltantes. Davis pediu várias vezes seu passaporte, que, segundo ele, provaria que era diplomata. “Podem procurar meu passaporte no carro?”, perguntou, acrescentando que o documento estava sob o assento ou poderia ter caído na rua quando ele foi preso. As autoridades paquistanesas já estavam vasculhando o carro de Davis, mas seu passaporte seria a coisa menos interessante16 que nele descobririam. Já tinham recuperado a Glock de nove milímetros, junto com um estoque de munição, inclusive cinco pentes. No carro, descobriram dois pentes de munição, vazios, para a pistola de nove milímetros, e outra arma semiautomática, além de sua munição. À medida que continuava a investigação de Davis e de seu carro, descobriu-se um esconderijo de suprimentos que prejudicaria seriamente a credibilidade das afirmações de Davis sobre sua condição de diplomata ou de mero funcionário técnico do consulado. Entre as coisas achadas havia equipamento de visão noturna, múltiplas identidades,17 vários cartões de caixas eletrônicos, máscaras,18 um conjunto de maquiagem usado para disfarce, um conjunto de sobrevivência, uma lanterna para ser usada na testa, equipamento de infravermelho, um telefone via satélite e diversos cortadores de arame e facas. Ele tinha também uma passagem aérea. Segundo fontes da segurança paquistanesa, citadas pelo Express Tribune, uma verificação dos números em seus diversos celulares revelou chamadas para 27 militantes19 do grupo terrorista Lashkar-e-Jhangvi e do Tehrik-e-Taliban, o Talibã paquistanês. No cartão de memória da câmera de Davis, os detetives acharam fotos de escolas religiosas20 e instituições públicas e militares21 perto da fronteira com a Índia. Encontraram também uma cédula de identidade que mostrava Davis como prestador de serviços para o DoD dos Estados Unidos.22 Nesse ínterim, nos Estados Unidos, repórteres haviam localizado a mulher de Davis, Rebecca, na casa em que moravam, em Highlands Ranch, perto de Denver, Colorado. Ela pediu que ligassem para um telefone cujo número lhe fora fornecido pelo governo americano. O telefone ficava na sede da CIA,23 em Langley, na Virgínia. Durante seu interrogatório, David declarou que vinha do consulado americano quando se deu a tentativa de assalto. Entretanto, de acordo com o GPS instalado em seu carro, ele viera de uma residência particular no luxuoso Upper Mall, em Scotch Corner, na zona leste de Lahore. “O acusado omitiu isso”,24 observou depois um relatório da polícia. “Ele se recusou a responder a todas as perguntas no decorrer das investigações, dizendo que o consulado americano lhe proibira responder a qualquer pergunta.” A casa da qual Davis saíra naquele dia, a confiarmos nos dados do GPS recuperado, era bastante conhecida pela Agência de Informações do Paquistão.25
“Rapaz, isso parece um romance de ficção científica militar”,26 pensou o tenente-coronel
Anthony Shaffer, segundo relatou, no momento em que soube da prisão de Davis. “O jogo de espionagem entre a Agência de Informações do Paquistão, a ISI e a CIA ficou muito pior.” Schaffer, veterano operador clandestino que trabalhara para a CIA e para a DIA em operações de sigilo máximo, coordenou o programa de Inteligência Humana no Afeganistão nas primeiras fases da guerra no país e planejou incursões secretas no Paquistão. Sabia da gravidade da situação quando os paquistaneses prenderam Davis. “O nível mais elevado do governo Obama provavelmente não conhecia todos os detalhes do que estava acontecendo”, disse Schaffer. Muito antes dos tiros em Mozang Chowk, a ISI sabia que Raymond Davis não era diplomata e que não estava se esfalfando no consulado americano carimbando passaportes. Davis chegara ao Paquistão27 uma semana antes dos tiros em Lahore, mas aquela não era a primeira vez que entrava no país. Ele era um experiente membro das Forças Especiais, um exboina-verde que servira como sargento de armas na área de Operações Especiais.28 Sua última função nas Forças Armadas tinha sido no 3o Grupo de Forças Especiais, baseado em Fort Bragg, onde o JSOC tinha seu quartel-general. Em 2003, quando a ocupação do Iraque chegava ao auge, Davis deixou as Forças Armadas29 para se tornar prestador de serviços particular, o que viria a situá-lo no cerne das operações secretas e clandestinas americanas. Sua primeira viagem ao Paquistão de que se tem notícia foi feita em dezembro de 2008, quando ele começou a trabalhar para a famigerada empresa de segurança privada Blackwater,30 que tinha um contrato secreto com a CIA. Seu trabalho como prestador de serviços para a Equipe de Resposta Global (Global Response Staff, GRS) da Agência consistia em dar proteção a quadros operacionais da CIA enviados ao Paquistão como parte da presença cada vez maior de pessoal da Agência para coordenar a guerra secreta de Washington naquele país. O trabalho muitas vezes o punha em contato direto com oficiais que se reuniam com fontes secretas ou preparavam operações delicadas. Sua fachada oficial31 — encarregado de negócios regionais na embaixada — era bastante usada por quadros operacionais e prestadores de serviços da CIA. No período em que Davis trabalhou para a Blackwater, a empresa atuava no cerne das operações secretas mais delicadas da CIA no Paquistão, ajudando a executar a campanha de bombardeios com drones32 e as operações dirigidas de morte e captura. A Blackwater, que durante muito tempo fora utilizada pelo governo Bush como uma força “inimputável” capaz de realizar operações clandestinas protegidas pelo segredo e por diversas camadas de subcontratos, tinha tentáculos em quase todos os aspectos das operações secretas dos Estados Unidos. A empresa não só trabalhava para o programa de assassinatos da CIA, como atuava estreitamente com o JSOC. Na Blackwater, Davis atuava na ligação entre as principais organizações que executavam a campanha secreta. Designado para a unidade de segurança da CIA, Davis viajava entre Islamabad, Lahore e Peshawar.33 Segundo um ex-agente do JSOC que trabalhou em suas operações sigilosas no Afeganistão e no Paquistão, enquanto Davis prestava serviços à CIA, foi convidado pelo JSOC a trabalhar simultaneamente em suas operações no Paquistão, utilizando a fachada mais palatável
de agente da CIA. “Davis era das Forças Especiais ‘caretas’,34 não um elemento das operações especiais secretas”, disse a fonte. “Nada é mais emocionante para esses sujeitos do que ser procurado pelo JSOC e convidado a fazer alguma coisa para eles. Foi como fazer um frila gratuito para o JSOC.” Esse foi o começo da incursão de Davis na zona mais escusa das operações secretas americanas no Paquistão. Ele trabalhou com a Blackwater no país até agosto de 2010, e em setembro tornou-se um agente independente, assinando um contrato no valor de 200 mil dólares35 por “Serviços de Proteção no Exterior”. Para isso, utilizou uma companhia chamada Hyperion Protective Services, LLC, que, segundo ela própria, oferecia “profissionais de gestão de perda e risco”.36 A empresa estava registrada num endereço em Las Vegas.37 Davis e sua mulher figuravam, com uma terceira pessoa, como seus titulares. O endereço era, na realidade, uma caixa postal38 numa loja da UPS que funcionava num centro comercial, ao lado de uma barbearia Super Cuts. Davis retornou ao Paquistão. O ex-agente do JSOC declarou que Davis ajudou a lavar dinheiro e a criar “aparelhos” para o pessoal do JSOC, além de realizar seu trabalho para a CIA. “No mundo inteiro, temos pessoas que, literalmente, são periféricas às políticas e estão baseadas no país apenas para colher informações humanas ou para facilitar operações especiais ou de espionagem”, disse ele. Era isso, ao menos em parte, o que Davis estava fazendo no Paquistão. Seus vários papéis, sendo alguns autênticos, outros de fachada, outros ainda fachadas de fachadas — diplomata, assessor técnico, prestador de serviços para a Blackwater, guarda-costas da CIA, boina-verde, quadro do JSOC —, levam a crer que sua história e a da guerra secreta dos Estados Unidos no Paquistão são muito mais complicadas, e menos ingênuas, do que os informes oficiais nos levaram a crer. O fato de alguém como Davis terminar trabalhando para o JSOC não pode ser visto como excepcional. Muitos quadros operacionais da Blackwater — vários dos quais tinham atuado em unidades de Operações Especiais ou de Forças Especiais — que originalmente foram para o Paquistão como prestadores de serviços de segurança por fim começaram a trabalhar nas operações dirigidas de assassinato e captura do JSOC. “Os caras da Blackwater39 têm experiência. Muitos deles são militares reformados e estão por aí há vinte ou trinta anos, e têm uma experiência que os boinas-verdes, mais jovens, não têm”, disse o tenente-coronel reformado Jeffrey Addicott, advogado militar bem relacionado que atuou como consultor jurídico para as Forças Especiais do Exército dos Estados Unidos. “Eles são entidades conhecidas. Todo mundo sabe quem eles são, sabem de sua capacidade e eles têm experiência. São valiosíssimos.” Os veteranos das Operações Especiais “ganham muito mais dinheiro40 sendo cérebros dessas operações, planejando ataques em vários países baseados na experiência que ganharam na Tchetchênia, na Bósnia, na Somália, na Etiópia”, disse uma fonte da Inteligência militar americana. “Eles estavam lá para todas essas coisas, eles sabem do que estão falando.” E acrescentou: “Eles recontratam pessoas que trabalharam para eles e que já tinham planejado e executado esses [tipos de] operações”.
Não está claro quando foi, exatamente, que isso começou no Paquistão. A presença da Blackwater na fronteira entre o Afeganistão e o Paquistão data de abril de 2002, quando ela ganhou seu primeiro contrato “negro”41 para proteger as operações da CIA no Afeganistão nas primeiras fases da guerra movida pelos Estados Unidos. Ela também tinha contratos de segurança diplomática, logísticos e da CIA no Paquistão. De acordo com um ex-dirigente da Blackwater e uma fonte da Inteligência militar, o relacionamento com o JSOC se intensificou depois que o presidente Bush autorizou uma expansão das atividades das Operações Especiais no Paquistão. Pedi ao ex-executivo da Blackwater, que tinha ampla experiência no Paquistão, que confirmasse o que a fonte da Inteligência militar me dissera — que as forças da Blackwater não estavam matando pessoas no Paquistão, mas sim apoiando o JSOC e a CIA, que se encarregavam dessas coisas. “Isso não representa exatamente a verdade”,42 ele respondeu. Concordou com o que a fonte da Inteligência militar dissera sobre os programas do JSOC e da CIA, mas indicou outra função que, segundo ele, a Blackwater desempenhava no Paquistão, não para o governo americano, mas para Islamabad. Disse que a Blackwater trabalhava com um subcontrato para a Kestral Logistics, uma poderosa firma paquistanesa43 especializada em apoio logístico militar, segurança privada e consultoria de informações. Essa firma tinha como dirigentes antigas autoridades do Exército e do governo do Paquistão. Embora os principais escritórios da Kestral ficassem no Paquistão, a empresa tinha filiais em vários países. A Kestral tinha polpudos negócios, na área da logística de defesa, com o governo do Paquistão e os de outros países, e também com grandes companhias americanas ligadas à defesa. Segundo o ex-executivo da Blackwater, o fundador dessa empresa, Eric Prince, tinha uma relação “bastante estreita” com o diretor executivo da Kestral, Liaquat Ali Baig. “Já se reuniram muitas vezes, fizeram um acordo e [prestam] apoio recíproco.” Trabalhando com a Kestral, disse o ex-executivo, a Blackwater oferecia segurança a embarques do DoD que, destinados ao Afeganistão, chegariam ao porto de Karachi. A Blackwater protegia os suprimentos que eram transportados por terra de Karachi a Peshawar, e depois seguiam para oeste pela passagem de fronteira em Torkham, a mais importante rota de suprimentos para as Forças Armadas dos Estados Unidos no Afeganistão. Ainda segundo o ex-executivo, os quadros operacionais da Blackwater também se integravam com as forças da Kestral em operações delicadas de contraterrorismo na Província da Fronteira de Noroeste, onde atuavam em conjunto com a força paramilitar do Ministério do Interior paquistanês, conhecida como Corpo de Fronteira (ou também como “batedores da fronteira”). Tecnicamente, o quadro de pessoal da Blackwater compunha-se de assessores, mas o exexecutivo disse que, no campo, as diferenças com frequência se borravam. A Blackwater estava “proporcionando a orientação real sobre como realizar [operações de contraterrorismo] e os homens da Kestral executam muitas, mas contando com a orientação e a supervisão de alguns sujeitos da Blackwater, que acompanham de fato as equipes quando elas executam o trabalho”, disse ele. “Você já pode ver que isso é capaz de levar a outras coisas nas áreas de fronteira.”
Disse também que quando os homens da Blackwater acompanhavam as equipes paquistanesas, de vez em quando participavam de operações contra suspeitos de terrorismo. “Existem sujeitos da BW que estão colaborando […] e todos eles querem participar das missões […] e por isso vão com eles”, explicou. “Assim, as coisas que você vê nas notícias sobre como um grupo militar paquistanês atacou uma casa ou fez isso ou fez aquilo […]. Em alguns desses casos você vai ter ocidentais que estão lá atacando a casa, isso se não estiverem dentro da casa.” A Blackwater, disse ele, era paga pelo governo paquistanês, através da Kestral, por serviços de consultoria.
Isso possibilita ao governo paquistanês dizer: “Ei, nada disso, não encarregamos ocidental nenhum de fazer isso. Somos nós que planejamos tudo, e nosso pessoal executa as missões”. Mas o esquema dá a eles o know-how que os ocidentais possuem para as atividades relacionadas [a contraterrorismo].
A fonte da Inteligência militar confirmou que a Blackwater trabalhava com o Corpo de Fronteira, dizendo: “Não há uma supervisão real. Na verdade, ninguém presta atenção nisso”. Um porta-voz da Diretoria de Controles Comerciais de Defesa (Directorate of Defense Trade Controls, DDTC), do Departamento de Estado americano, responsável pela concessão de licenças a empresas americanas para prestar serviços relacionados à defesa a governos ou entidades estrangeiras, não quis confirmar ou negar que a Blackwater tivesse licença para atuar no Paquistão ou trabalhar com a Kestral. “Não podemos ajudá-lo”,44 disse David McKeeby, portavoz do Departamento, depois de consultar autoridades do DDTC. “O senhor terá de entrar em contato com as companhias diretamente.” O porta-voz da Blackwater declarou que a companhia não tinha “operação de espécie alguma”45 no Paquistão, além de um empregado que trabalhava para o DoD. E a Kestral não respondeu a perguntas sobre sua relação com a Blackwater. De acordo com os registros federais sobre lobby,46 a Kestral contratou Roger Noriega,47 exsecretário de Estado assistente para assuntos do Hemisfério Ocidental entre 2003 e 2005, para fazer lobby junto ao governo dos Estados Unidos (Departamento de Estado, USAID e Congresso) quanto a questões de relações exteriores “referentes às possibilidades [de a Kestral] realizar atividades de interesse dos Estados Unidos”. Noriega foi contratado através de sua firma, a Vision Americas,48 que ele dirigia com Christina Rocca,49 ex-agente de operações da CIA que serviu como secretária de Estado assistente para assuntos do Sul da Ásia de 2001 a 2006, quando se envolveu a fundo na formulação da política americana em relação ao Paquistão. Em outubro de 2009, a Kestral pagou à Vision Americas 15 mil dólares50 e deu a uma firma a ela filiada, a Firecreek Ltd.,51 uma quantia igual para fazer lobby com relação a questões de defesa e política exterior.
Em novembro de 2009, quando trabalhei numa reportagem investigativa sobre operações de assassinatos dirigidos no Paquistão, para a revista Nation, recebi uma chamada em meu celular, na véspera da publicação, do capitão John Kirby, porta-voz do almirante Michael Mullen, presidente do Estado-Maior Conjunto, o mais importante consultor militar do presidente Obama. Kirby não quis explicar como obtivera meu número ou como tomara conhecimento da reportagem. “Vamos ficar apenas assim: nós soubemos dela”, disse ele sem meias palavras. Kirby disse que minha reportagem era falsa, mas que não queria expressar essa opinião publicamente. “Não falamos de forma alguma sobre operações correntes, qualquer que seja sua natureza.” Disse-me, também sem meia palavras, que se publicássemos a reportagem, que ligava a Blackwater a operações do JSOC no Paquistão, eu estaria “na corda bamba”. Como tínhamos confiança em nossas fontes, apesar dessa clara tentativa de intimidação, a Nation publicou a reportagem, intitulada “The Secret US War in Pakistan” [A guerra secreta dos Estados Unidos no Paquistão]. No dia seguinte, o porta-voz do Pentágono, Geoff Morrell, classificou-a de “conspiratória”52 e negou explicitamente que as Forças de Operações Especiais dos Estados Unidos estivessem fazendo alguma coisa no Paquistão além de dar “treinamento”. Morrell disse aos repórteres:
Basicamente, temos no Paquistão, creio, algumas dezenas de unidades envolvidas numa missão de treinar treinadores. São Forças de Operações Especiais. Temos sido muito transparentes com relação a isso. Elas estão… há meses, se não há anos, treinando forças do Paquistão para que possam, por sua vez, treinar outras unidades militares paquistanesas para… certas qualificações e técnicas militares. E essa é a atividade de nossos… nossos, vocês sabem, efetivos militares terrestres no Paquistão, apesar de teorias conspiratórias que, vocês sabem, algumas revistas […] possam inventar. Não existe nada disso.
Na realidade, existia muita coisa. Um ano depois de minha matéria na Nation, o WikiLeaks divulgou uma série de telegramas sigilosos que mostravam que, um mês antes que Morrell me desmentisse, a embaixada dos Estados Unidos estava ciente de que as Forças de Operações Especiais dos Estados Unidos realizara operações ofensivas no Paquistão, ajudando a orientar ataques com drones e executando operações conjuntas com forças paquistanesas contra forças da Al-Qaeda e do Talibã no Waziristão do Norte e do Sul e em outros pontos das Áreas Tribais Administradas pelo governo federal. Segundo um telegrama sigiloso de 9 de outubro de 2009, remetido pela embaixadora dos Estados Unidos no Paquistão, Anne Patterson, as operações tinham sido “quase com certeza [realizadas] com o consentimento pessoal do chefe do Estado-Maior do Exército [do Paquistão], general [Ashfaq Parvez] Kayani”.53 As operações tinham sido
coordenadas com o Escritório do Representante da Defesa dos Estados Unidos no Paquistão. Uma fonte das Forças de Operações Especiais dos Estados Unidos me disse que as forças americanas a que o telegrama se referia como “SOC(FWD)-PAK” (Comando de Operações Especiais-Avançado Paquistão) eram “tropas operacionais avançadas”54 do JSOC. No outono de 2008, o Comando de Operações Especiais dos Estados Unidos pediu a diplomatas americanos de alto nível, no Paquistão e no Afeganistão, informações detalhadas sobre campos de refugiados na fronteira Afeganistão-Paquistão e uma lista das organizações de ajuda humanitária que neles atuavam. Em 6 de outubro, a embaixadora Patterson enviou um telegrama, com indicação de “Confidencial”, ao secretário de Defesa, Robert Gates, à secretária de Estado, Condoleezza Rice, à CIA, ao Centcom dos Estados Unidos e a várias embaixadas americanas, dizendo que algumas das solicitações, feitas verbalmente ou por e-mail, “levavam a crer que as agências tencionavam usar os dados para fins de ataques”. Outras solicitações, segundo o telegrama, “sinalizam que as informações seriam utilizadas com objetivos ‘não ofensivos’”. O telegrama, enviado em conjunto pelas embaixadas dos Estados Unidos em Cabul e Islamabad, declarava:
Preocupa-nos a transmissão a grupos militares de informações obtidas junto a organizações humanitárias, sobretudo por motivos que permanecem obscuros. Particularmente preocupante é o fato de que isso não nos parece ser a forma mais eficiente de obter informações precisas.
Em termos claros, o que esse telegrama dizia era que ao menos uma pessoa do Comando de Operações Especiais dos Estados Unidos pedira a diplomatas em Cabul e/ou Islamabad, sem rodeios, informes sobre campos de refugiados, que seriam usados numa operação de assassinato dirigido ou de captura. O telegrama também revelava que além das solicitações vindas do Socom e do adido de Defesa dos Estados Unidos, um prestador de serviços ao Socom também pedira a diplomatas americanos “informações a respeito de campos, na fronteira Paquistão-Afeganistão, que estejam abrigando refugiados afegãos e/ou Pessoas Desalojadas Internamente (Internally Displaced Persons, IDPs)”. Especificamente, acrescentava o telegrama, o Socom e seu “prestador de serviços” tinham “solicitado informações sobre nomes e localização de campos,55 status dos campos, número de IDPs/refugiados e discriminação étnica, e sobre as ONGs e organizações de ajuda humanitária que atuam nesses campos”. O telegrama de outubro de 2008 deixa claro que as solicitações tinham inquietado diplomatas americanos em Cabul e Islamabad, levando-os a pedir a vários órgãos militares, de Inteligência e do governo dos Estados Unidos “esclarecimentos sobre a origem e a finalidade dessa consulta”. Ao mesmo tempo, o telegrama dava a entender que se a CIA ou as Forças de Operações Especiais
desejavam tais informações, “deveriam enviar um telegrama à embaixada apropriada” ou a um representante do diretor de Inteligência nacional, e não pedi-las por e-mail ou verbalmente ao pessoal das embaixadas. Evidentemente, a solicitação por vias transversas era feita por alguma razão. Tão próxima estava a Blackwater das operações mais sigilosas e delicadas da CIA que alguns integrantes da empresa estiveram entre as baixas de um dos ataques mais letais que se conhecem contra a Agência em sua história: o atentado suicida, em dezembro de 2009, a um posto avançado da CIA na Base Operacional Avançada Chapman,56 no Afeganistão. Quadros operacionais da Blackwater atuavam como seguranças da segunda pessoa do comando da Agência no país. Achavam-se reunidos com uma fonte, alguém que viera de carro do Paquistão, uma pessoa que, acreditavam, sabia do paradeiro de Ayman al-Zawahiri, o número dois da AlQaeda. Humam Khalil Abu-Malal al-Balawi, soube-se depois, era um agente duplo, ligado de coração ao Talibã paquistanês. Ao todo, sete integrantes da CIA e um agente da Inteligência jordaniana foram mortos quando Balawi detonou os explosivos que trazia no corpo. Dois dos mortos pertenciam à Blackwater. Segundo a fonte de Inteligência militar, além de planejar ações secretas e ataques com drones, a Blackwater fornecia guardas privados para a perigosa tarefa de fazer a segurança de bases secretas de drones americanos, de acampamentos do JSOC e de instalações da DIA no Paquistão.
A embaixada americana considerava, claramente, que a capacidade das Forças de Operações Especiais dos Estados Unidos de atuar no Paquistão fora uma conquista das mais importantes. “Um relacionamento com os militares cultivado com paciência57 foi o fator-chave que nos permitiu esse avanço”, dizia um telegrama da embaixada americana em outubro de 2009. Também mencionava as possíveis consequências do vazamento dessas atividades:
Tais operações são muito delicadas do ponto de vista político, em vista das preocupações generalizadas, por parte do público, com relação à soberania paquistanesa e da oposição a que forças militares estrangeiras sejam autorizadas a operar, seja de que forma for, em solo paquistanês. Se essas operações ou questões com elas relacionadas forem objeto de qualquer cobertura em meios de comunicação paquistaneses ou americanos, é provável que as Forças Armadas paquistanesas interrompam os pedidos dessa ajuda.
Declarações como essa talvez ajudem a explicar por que o embaixador Richard Holbrooke, na época o principal enviado dos Estados Unidos ao Afeganistão e ao Paquistão, optou por meias verdades quando disse, em julho de 2010: “As pessoas acham que os Estados Unidos têm tropas no Paquistão. Bem, não temos”.58
No fim de 2010, as relações entre os Estados Unidos e a ISI começaram a se deteriorar rapidamente. Em novembro, um processo civil instaurado59 em Nova York acusou o chefe da ISI, Ahmad Shuja Pasha, de envolvimento nos atentados a bomba em Mumbai, executados pelo grupo Lashkar-e-Taiba. Em dezembro, a CIA retirou do Paquistão às pressas o chefe de sua estação em Islamabad, depois que a imprensa local revelou seu nome, Jonathan Banks. A identidade do chefe da espionagem americana foi revelada60 numa ação judicial aberta no Paquistão por um homem do Waziristão do Norte que alegava que dois parentes seus tinham sido mortos pelo míssil disparado por um drone. Autoridades americanas acusaram a ISI de vazar o nome em retaliação ao processo contra Pasha. Um agente de informações dos Estados Unidos declarou que Banks tinha de ser retirado porque “as ameaças terroristas contra ele61 no Paquistão são tão sérias que seria imprudente não agir”. Um mês depois, em 20 de janeiro de 2011, Raymond Davis voltou ao Paquistão.62
46. O curioso caso de Raymond Davis: Ato II
PAQUISTÃO, 2011 — Em Lahore, Raymond Davis morava e trabalhava numa casa no Upper Mall, que, segundo informações, dividia com cinco agentes da CIA.1 Quadros operacionais do JSOC também usavam a casa.2 Longe de ser um diplomata, Davis trabalhava numa equipe ultrassecreta e altamente compartimentada incumbida de delicadas operações de vigilância e inteligência capazes de levar a assassinatos dirigidos ou capturas. Entre as tarefas da equipe, segundo autoridades americanas, estava a coleta clandestina de informações sobre o grupo terrorista Lahkar-e-Taiba.3 Em 27 de janeiro, Davis estava realizando um “percurso para melhor conhecimento de área”4 que o obrigou a se expor nas ruas de Lahore durante horas. Examinou diversos locais, entre os quais escolas religiosas e edifícios públicos. Por isso as autoridades paquistanesas encontraram, em seu carro, o equipamento de alta tecnologia de um agente clandestino: armas com munição suficiente para uma pequena guerra urbana, aparelhos de vigilância, cortadores de arame, facas e visores infravermelhos. Isso explicaria também os vários crachás, que lhe atribuíam diferentes funções, bem como o conjunto de maquiagem teatral. O tenente-coronel Shaffer me disse que é comum que os agentes secretos alterem sua aparência para passar despercebidos. “É como representar sem um roteiro”,5 explicou. “A atividade exige isso. É a espionagem.” Davis também tinha consigo uma “nota de sangue”,6 distribuída a todos os militares americanos que atuam em ambiente hostil. De acordo com a Publicação Conjunta 3-50 das Forças Armadas sobre Recuperação de Pessoal, uma nota de sangue
é um pedaço de pano7 no qual figura uma bandeira americana, uma declaração em inglês e em várias línguas utilizadas na área de operação, e números que identificam a nota. A nota de sangue identifica o portador como americano e promete uma recompensa que será dada pelo governo dos Estados Unidos a qualquer pessoa que preste assistência ao portador ou o ajude a retornar à zona de segurança.
Essas notas devem ser usadas por militares americanos sitiados, perdidos ou em perigo iminente de captura ou ferimento, “depois que todas as outras medidas8 independentes de evasão ou fuga
tenham fracassado e o portador considere a ajuda externa vital para sua sobrevivência”. Em algum momento do dia 27 de janeiro, enquanto transitava em Lahore, Davis entrou em contato com os homens da motocicleta, Faizan Haider, de 22 anos, e Faheem Shamsahd, também conhecido como Muhammad Faheem, de 26. Segundo a versão americana dos fatos, os dois homens viram Davis parar no caixa automático para tirar dinheiro e puseram em prática um plano para roubá-lo. No entanto, de acordo com quatro fontes paquistanesas que falaram à ABC News logo após o incidente, os dois homens trabalhavam para a ISI e começaram a seguir Davis depois que ele cruzou “uma linha vermelha”.9 Dias antes do incidente, “foi pedido [a Davis] que deixasse uma área de Lahore declarada sob restrição pelas Forças Armadas”, segundo as fontes da ABC. “Seu celular foi rastreado, e com isso se soube que ele fizera ligações para áreas tribais no Waziristão, onde o Talibã paquistanês e uma dúzia de outros grupos militantes têm santuários. Agentes da Inteligência paquistanesa consideraram-no uma ameaça, ‘por invadir seu terreno’”, disse uma autoridade do governo. “Sim, eles pertenciam ao serviço de segurança”,10 declarou uma autoridade de segurança paquistanesa ao jornal Express Tribune. “Julgaram as atividades do agente americano prejudicial à nossa segurança nacional.” Complicando tudo isso, outras autoridades paquistanesas negaram enfaticamente11 que os homens pertencessem à ISI. O tenente-coronel Anthony Shaffer declarou ter ouvido de colegas que atuam no Paquistão relatos fidedignos segundo os quais os dois homens eram de fato ligados à ISI. “Eles só pretendiam pará-lo e deixar claro: ‘Sabemos quem você é’”, disse Shaffer. Como a CIA não informara à ISI que Davis era um de seus agentes, “eles pretendiam dizer-lhe: Sabemos que você está aqui’”. “Sei muito mais sobre esse caso do que posso dizer, infelizmente”, acrescentou Shaffer. “Direi apenas que o caso Davis foi levantado pela ISI, que houve uma provocação, que houve um motivo para Davis reagir como reagiu e que esse jogo de gato e rato chegou a um ponto em que a CIA estava sendo vigiada pelas próprias pessoas com quem estava trabalhando.” Talvez nunca se saiba qual foi a “linha vermelha” que Davis cruzou, se foi mesmo isso que levou os dois homens a segui-lo. Talvez tivesse a ver com chegar perto demais do Lashkar-eTaiba (let). Talvez ele estivesse procurando revelar as ligações do grupo com a ISI. Talvez estivesse investigando alvos para os ataques da Agência com drones. Houve quem desse a entender que Davis era o novo chefe da estação da CIA.12 Algumas autoridades paquistanesas chegaram a propor uma vasta teoria conspiratória pela qual Davis estaria trabalhando com o Talibã e outros grupos militantes para planejar ataques a alvos civis que pudessem ser imputados a terroristas. Essa foi uma acusação comum feita à Blackwater em lugares como Peshawar, capital das Áreas Tribais Administradas pelo Governo Federal e uma frente importante na guerra secreta dos Estados Unidos no Paquistão. Apesar da natureza grave dessas acusações, nunca foram apresentadas provas que lhes dessem respaldo. “A morte dos dois homens em Lahore veio a calhar13 para nossos órgãos de segurança, que suspeitavam que Davis
estivesse arquitetando atividades terroristas em Lahore e outros lugares do Punjab”, declarou uma alta autoridade policial do Punjab, acrescentando que Davis tinha “vínculos estreitos” com o Talibã paquistanês. “Davis colaborou no recrutamento de jovens do Punjab para o Talibã, a fim de alimentar a sublevação sangrenta.” Autoridades da polícia declararam que o rastreamento dos telefones de Davis mostravam ligações para mais de trinta paquistaneses, entre os quais “27 militantes” do Talibã e do grupo militante Lashkar-e-Jhangvi, que os Estados Unidos e o Paquistão apontavam como organização terrorista. Outras fontes do governo paquistanês alegavam que a ISI sabia que Davis estava autorizado a trabalhar num programa da CIA destinado a vigiar a Al-Qaeda e o Talibã. “A tarefa de Davis14 consistia em rastrear os movimentos do Talibã e da Al-Qaeda em diferentes áreas do Paquistão”, declarou uma fonte ao Tribune. “Em vez disso, porém, os investigadores descobriram que ele criara laços estreitos com o Talibã. O governo e os órgãos de segurança se surpreenderam ao saber que Davis e alguns de seus colegas estavam envolvidos em atividades que não constavam do acordo.” As teorias conspiratórias paquistanesas levavam a crer que o agente americano estava fomentando falsos atentados a bomba15 a fim de forçar o governo do Paquistão a assumir uma atitude mais agressiva em relação a grupos militantes, ou dar a impressão de que as armas nucleares do país não estavam seguras. Em nenhum momento foram apresentadas provas dessas alegações. A verdade talvez nunca venha a ser conhecida, mas é mesmo possível que Davis estivesse planejando alguma coisa com o Talibã e a Al-Qaeda que o Paquistão não aprovava e que o governo dos Estados Unidos jamais se disporia a reconhecer. “Todos os países realizam operações de espionagem”,16 afirmou o coronel Patrick Lang.
No decorrer dessa tarefa no “jogo das nações”, algumas coisas são feitas em “ligação” com o serviço de um país, neste caso a ISI, e outras, não. São feitas de forma unilateral, ou seja, ilegal, no país onde ocorrem. Se a pessoa não faz isso, fica vulnerável à atividade do serviço de “ligação”.
A IC americana, argumentou Lang,
muitas vezes é acusada de ignorar, na verdade, o que está “rolando” num país. Evita-se isso fazendo algumas coisas “unilateralmente”. Nesse caso, a ISI está irritada? Tenho certeza de que está. Você acha que acreditamos que o Paquistão não opera nos Estados Unidos “unilateralmente”? Se acreditarmos nisso, é porque somos idiotas.
Seja como for, em vista dos programas nos quais se sabia que Raymond Davis tinha trabalhado, a versão dos Estados Unidos para o incidente e a caracterização de Davis como
diplomata ou “assessor técnico”, ou, como disse o New York Times — “um diplomata burocrata17 que carimbava vistos como tarefa no consulado” —, era inacreditável. Talvez ele pertencesse à CIA. É também possível que a condição de agente da CIA fosse a fachada para uma fachada e que, como minha fonte da Inteligência militar deu a entender, ele estivesse trabalhando para o JSOC. “Isso é comum”, disse-me o tenente-coronel Shaffer. “Tudo se confunde, vira uma mixórdia. A triste verdade”, afirmou ele, é que as autoridades americanas, inclusive os embaixadores e os formuladores de políticas que não estejam ligados diretamente a uma operação, “na verdade não sabem o que está rolando, em lugar nenhum. Tudo se torna então uma grande embrulhada”. Shaffer acrescentou que a fachada de Davis não passava de “sobreposição”. Explicou: “Você sempre tem uma fachada para uma fachada, e isso vai depender de até que ponto você tenta derrubar alguém, principalmente se parte do princípio de que vai ser encostado em algum momento no futuro. Sempre há o que se descartar”. Não é raro que agentes da CIA atuem sob a fachada de diplomatas. É um procedimento operacional comum em muitos países. O RAO, onde Davis disse que trabalhava, era uma fachada comum para espiões americanos. Todo mundo que precisava saber estava ciente desses arranjos de fachada. Quando uma operação desanda, em geral os maus resultados não aparecem para o público. Fazem-se acordos discretos, e às vezes trocam-se prisioneiros ou autorizam-se pagamentos. Tudo isso faz parte do jogo da espionagem. Entretanto, esse incidente se deu em plena luz do dia, num cruzamento congestionado, com dezenas de testemunhas oculares. Se tivesse sido revelado que Davis estava trabalhando para o JSOC no Paquistão, esse teria sido o cenário mais ofensivo para a ISI. Depois da eleição de Obama em 2008, enquanto o governo do Paquistão tentava conter o fluxo de quadros operacionais da CIA no país, os Estados Unidos começaram a aumentar o número do pessoal de fachada que o governo permitia que “passassem” por diplomatas. Fazia muito tempo que a ISI lidava com a CIA, mas o JSOC era algo bem diferente, algo que a ISI viria a achar assustador. Além de ser o principal órgão americano de operações de assassinatos dirigidos, o JSOC era também a mais importante entidade americana dedicada à contraproliferação. Abundavam, no Paquistão, teorias de que os Estados Unidos tramavam apoderar-se das armas nucleares do país, fonte de comentários infindáveis em noticiários da TV. A ideia não era pura paranoia. De fato, o JSOC traçara planos18 para proteger as ogivas nucleares do Paquistão no caso de um golpe ou de outro fator desestabilizante. No fim da década de 1990, revelou-se a existência de planos para que o JSOC estivesse preparado para se deslocar a qualquer parte do globo a fim de “recuperar materiais nucleares, biológicos, químicos [nuclear, biological, chemical, NBC] das mãos de grupos terroristas, infiltrar-se sem ser detectado em certos países para obter indícios de algum programa secreto de desenvolvimento de WMDS, sabotar tal programa e detectar, desarmar, desabilitar ou confiscar as WMDs”.19 Esses planos não visavam unicamente ao Paquistão, mas alimentaram a obsessão da ISI com o JSOC. O brigadeiro reformado F. B. Ali descreveu duas fases das operações do JSOC no Paquistão, a
primeira das quais foi o acordo com o grupo para “perseguição ativa”, que remonta ao governo do presidente Musharraf. “A segunda fase do influxo do JSOC20 ocorreu depois que os Estados Unidos decidiram empreender um amplo e prolongado programa de assistência ao Paquistão”, disse Ali.
Os Estados Unidos solicitam vistos para grande número de funcionários e pessoal de apoio para administrar o programa. A ISI insistiu para que a segurança investigasse todos os solicitantes de vistos, o que atrasaria o processo. Os Estados Unidos exerceram intensa pressão sobre o governo, advertindo que o programa de assistência seria prejudicado.
O governo do Paquistão, declarou Ali, aquiesceu e permitiu a entrada de grande número de americanos no país. Essa declaração foi confirmada por uma autoridade da ISI, segundo a qual milhares de vistos foram emitidos para pessoal da embaixada americana num período de cinco meses antes do incidente com Davis, “depois de uma ordem do governo21 à embaixada do Paquistão em Washington para que emitisse os vistos sem a investigação habitual do Ministério do Interior e da ISI”. De acordo com uma reportagem da Associated Press em fins de fevereiro de 2011, “dois dias depois de receber essa instrução, a embaixada do Paquistão emitiu quatrocentos vistos e desde então eles foram emitidos aos milhares”. Ao todo, segundo informações da embaixada do Paquistão em Washington, mais de 3500 vistos22 foram emitidos em 2010 para diplomatas, militares e funcionários de “órgãos aliados”. Na época do incidente com Davis, o Ministério das Relações Exteriores do Paquistão declarou que havia no país 851 americanos com imunidade diplomática, dos quais 297 não trabalhavam “em função diplomática”.23 No entanto, o Ministério do Interior listou mais de quatrocentos “americanos especiais”,24 que autoridades de segurança locais suspeitavam que fossem “membros de agências de Inteligência americanas que exercem missões secretas no Paquistão e estão subordinados” ao JSOC. “Na versão ‘oficial’,25 o que eles fazem é coletar informações de contraterrorismo”, disse o brigadeiro Ali.
Contudo, o pessoal subalterno da ISI sabia que não era nada disso. Eles simplesmente não tinham como fazer com que a chefia do órgão, ligada aos americanos, tomasse providências. Até Raymond Davis abater dois agentes da ISI, nas ruas de Lahore, e os Estados Unidos moverem céus e terra para libertá-lo.
Fosse o que fosse o que Davis estava fazendo — e para quem — antes de parar no cruzamento da Mozang Chowk, em Lahore, em 27 de janeiro de 2011, o que aconteceu naquele dia parecia saído de um filme de espionagem. Em algum momento, Davis viu os dois sujeitos na motocicleta, diante dele, como uma
ameaça. Contou que um dos homens agitava uma arma de fogo de forma ameaçadora. Davis pegou sua pistola Glock 9 e disparou cinco tiros através do para-brisa dianteiro, com absoluta precisão, abatendo Muhammad Faheem, que estava de carona na moto. Um tiro atingiu-o na cabeça, um pouco acima da orelha. Outro furou seu estômago.26 O condutor da motocicleta, Faizan Haider, largou o veículo e começou a fugir. Davis, empunhando a Glock, saiu do carro, apontou e disparou mais cinco tiros. Haider caiu a nove metros da motocicleta. Pelo menos dois tiros27 pegaram em suas costas. Ele morreu no hospital. Segundo testemunhas oculares, Davis voltou calmamente até seu carro depois de balear os dois homens e pegou um rádio militar. Pediu reforços. Antes de entrar no veículo, foi até os dois corpos empapados de sangue e fotografou-os,28 segundo testemunhas que estavam no cruzamento apinhado. À medida que juntava gente nas ruas, crescia a possibilidade de formação de um tumulto. Policiais de trânsito gritaram a Davis para que parasse. Ignorando-os, ele voltou ao carro — com o para-brisa crivado de furos feitos por sua própria Glock — e saiu em velocidade. Nesse ínterim, um Toyota Land Cruiser corria pelas ruas de Lahore. Sua placa, LZN6970, era falsa.29 O motorista do veículo de apoio a Davis não tinha intenção de esperar no trânsito engarrafado. Costurava pelas pistas e, em dado momento, passou por cima do canteiro central de uma rua congestionada e seguiu pela contramão, em disparada, rumo a Mozang Chowk. A cerca de quinhentos metros do cruzamento onde ocorrera o tiroteio, o Land Cruiser bateu na motocicleta30 de um paquistanês, Ibadur Rehman, esmagando-o, e continuou em direção à cena. Ao descobrir que Davis já tinha saído dali, os homens do Land Cruiser fugiram. Quando o veículo de apoio chegou, Davis já estava a mais de três quilômetros de Mozang Chowk.31 A perseguição logo acabou. A polícia o deteve no apinhado Mercado Velho de Anarkali. Davis não resistiu e foi levado pela polícia. Declarou que trabalhava para o governo dos Estados Unidos. Sua provação de sete semanas estava só começando. Enquanto Davis era levado a uma delegacia de polícia do Punjab para ser interrogado, os homens da equipe de apoio preparavam-se para se evadir. Perto do Faletti’s Hotel,32 vários objetos caíram do Toyota Land Cruiser: quatro pentes de munição, cem projéteis, uma máscara preta, uma faca com bússola e um pedaço de pano com a bandeira americana — outra nota de sangue. Voltaram à casa da CIAJSOC, destruíram todos os documentos do governo que estavam em seu poder33 e partiram para o consulado dos Estados Unidos. Nunca mais se voltou a ter notícias daqueles homens no Paquistão. Alegando que tinham imunidade diplomática, os Estados Unidos os retiraram do país antes que pudessem ser interrogados pela polícia. “Deram o fora,34 já estão nos Estados Unidos”, comentou uma alta autoridade do Paquistão. Foi preciso menos de 24 horas para que a notícia do incidente se espalhasse pelo Paquistão. Em Lahore, manifestantes furiosos pediam que Davis fosse enforcado.35 Na imprensa paquistanesa, começaram a sair notícias de que ele era um agente da CIA e da Blackwater. Detido no distrito policial de Lytton Road, o americano — tranquilo — via-se cercado por um ambiente de caos. Policiais, inspetores e outras pessoas falavam uns com os outros aos gritos.
Tinham dificuldade para pronunciar o nome dele. Davis insistia para que localizassem seu passaporte. Repetia que trabalhava como consultor no consulado em Lahore e que tinha passaporte diplomático. Ao contrário de colegas seus que tinham se metido em encrencas no Paquistão em meses anteriores, Davis não voltaria logo para os Estados Unidos. Foi transferido para a prisão de Kot Lakhpat enquanto as autoridades paquistanesas intensificavam a investigação, o que incluiu um exame pericial na cena do crime. Os três mortos (os dois baleados por Davis e o homem que foi atropelado pelo Land Cruiser da equipe de apoio) foram autopsiados antes de serem entregues às famílias para sepultamento. Segundo a investigação da polícia paquistanesa, a alegação de Davis de que atirara em legítima defesa não era correta.36 O laudo da polícia indicava que os dois homens assassinados por Davis tinham sido baleados pelas costas. Testemunhas declararam à polícia que Haider fora abatido ao correr “para salvar a vida”. Davis disse à polícia que Faheem tinha engatilhado a arma e a apontado para ele. Quando a polícia localizou a arma de Faheem, “a agulha da pistola do morto [estava] vazia, e os projéteis no pente”. Ademais, segundo a polícia, “ninguém os viu fazendo pontaria” contra Davis. A polícia informou ainda que, ao lhe pedir sua licença para portar armas, Davis não a apresentou. Para a polícia do Punjab, o incidente logo se tornou uma investigação de homicídio. A polícia determinou que Davis ficasse preso por seis dias37 para novas investigações. Os pormenores do incidente foram pouco importantes em comparação com o jogo de apostas altas que se desenrolaria entre o governo americano e o Paquistão. Sem que o governo paquistanês soubesse, cinco meses antes de Raymond Davis ser preso, a Inteligência americana fizera uma descoberta de valor potencialmente incalculável. A CIA tinha localizado um mensageiro ligado a Osama bin Laden. Rastrearam seus movimentos, o que os levou a uma grande casa em Abbottabad, no Paquistão. Usando imagens de satélites, analistas notaram os movimentos de uma figura misteriosa na propriedade. A Casa Branca achou que tinha localizado Osama bin Laden. Quando o almirante McRaven começava a imaginar cenários que o JSOC poderia utilizar para matar ou capturar o líder da Al-Qaeda, David baleou os homens em Lahore e agora estava detido numa prisão paquistanesa. Os Estados Unidos temiam38 que, se atacasse a casa em Abbottabad, Davis pudesse ser morto em retaliação pela violação da soberania do Paquistão. Washington tinha de tirar seu homem de lá. Ignorando os planos americanos de atacar o que Washington acreditava ser a residência de Bin Laden no Paquistão, o governo de Islamabad encarava o caso Davis como uma oportunidade para obter vantagem em sua guerra de informações com os Estados Unidos. “Para a ISI, o caso Davis foi uma dádiva dos céus”,39 assim terminava o editorial do Economist. “A ISI está furiosa com a independência com que os agentes americanos atuam, rastreando militantes da Al-Qaeda, do Talibã e de outros grupos, que fugiram para Lahore e Karachi a fim de escapar aos ataques de drones na fronteira montanhosa com o Afeganistão.” A reação do governo americano à prisão de Davis foi canhestra. É bem possível que a
embaixada dos Estados Unidos não estivesse plenamente informada sobre o papel real de Davis no Paquistão — se ele trabalhava para a CIA, para o JSOC ou para ambos. Um dia após a prisão de Davis, um porta-voz da embaixada americana em Islamabad, Alberto Rodríguez, declarou à televisão paquistanesa: “Posso confirmar40 que a pessoa envolvida no incidente é um funcionário do consulado”. Pouco depois, em 27 de janeiro, a embaixada enviou uma nota diplomática ao Ministério das Relações Exteriores do Paquistão afirmando que Davis era “funcionário do consulado geral41 dos Estados Unidos em Lahore e detentor de passaporte diplomático”. O problema para os Estados Unidos, porém, era que essa designação significava que as autoridades paquistanesas podiam alegar que ele não tinha direito a imunidade plena, mas estava enquadrado na Convenção de Viena de 1963 sobre Relações Consulares. Esse tratado rezava que “os agentes consulares não estarão sujeitos a prisão ou detenção durante o julgamento, exceto no caso de crime grave42 e na dependência de uma decisão da autoridade judicial competente”. Com certeza, argumentavam os paquistaneses, homicídio é um crime grave. Em 3 de fevereiro, os americanos alteraram sua posição. Dessa vez, rotularam Davis como “membro da equipe administrativa e técnica43 da embaixada dos Estados Unidos”. De acordo com autoridades do Paquistão, Davis nunca recebera status de diplomata devido a “indagações não respondidas”44 a seu respeito que o Paquistão fizera aos Estados Unidos. A indignação espalhava-se pelo país. Dez dias depois do incidente, num leito de hospital em Faisalabad, Shumaila Kanwal, a viúva de Faheem, usava suas últimas forças para gravar uma declaração em vídeo. Havia ingerido raticida e estava pondo fim à própria vida em protesto contra o que chamou de assassinato do marido pelas mãos de um agente dos Estados Unidos. “Quero sangue por sangue”,45 disse, lutando para respirar e tentando focalizar a vista. “O assassino de meu marido devia ser baleado da mesma forma que meu marido foi fuzilado.” Imran Haider, irmão do outro homem baleado por Davis, disse que seu irmão soubera pouco tempo antes que a mulher estava grávida. Mostrou-se furioso com o fato de o irmão estar sendo “caluniado” como assaltante. “Ele era limpo”,46 declarou. “Tudo o que queremos é que esse americano seja julgado e que seja feita uma investigação correta. Ele deve ser condenado à morte. Nada de acordos.” Shumaila morreu logo depois de gravar a declaração. Sua morte enfureceu ainda mais o já irado público paquistanês. Os partidos islâmicos organizaram enormes manifestações, queimando efígies de Davis e chamando-o de terrorista, espião e, talvez o pior de tudo, agente da Blackwater. Logo ficou claro que o Paquistão não iria soltar Davis na surdina. Os Estados Unidos deram início a uma campanha febril para libertá-lo. A CIA chegou a ponto de interromper seus ataques com drones no país, segundo informações, a pedido da ISI. O fato de os Estados Unidos terem cessado esses ataques foi digno de nota, diante da importância deles para a sua estratégia no Paquistão. “A prisão desse sujeito47 é um fato muito positivo para nós”, declarou Mullah Jihad
Yar, comandante do Talibã paquistanês. “Nossas forças eram alvo de ataques dia sim, dia não. Agora podemos nos movimentar com mais liberdade.” Para veteranos da Agência, as decisões americanas indicavam a urgência com que os Estados Unidos desejavam que Davis fosse solto. “A embaixada e a estação querem Davis de volta para que ele não comece a falar sobre outras coisas que estão fazendo unilateralmente”,48 disse Giraldi, ex-agente da CIA. Quanto à questão de imunidade, Giraldi asseverou que Davis não a tinha. “Para ser um diplomata, em termos legais, a pessoa tem de ser acreditada junto ao Ministério das Relações Exteriores do país, e eles têm de aceitar suas credenciais. A pessoa é então incluída na lista diplomática”, disse ele. “A maioria dos funcionários das embaixadas americanas em quase todos os postos no exterior não tem status diplomático e, portanto, não tem imunidade, exceto na medida em que o governo local lhes conceda certas proteções a título de cortesia. Não existe indício algum de que Davis tenha passado pelo processo de credenciamento ou de qualquer coisa dessa natureza, mesmo que ele estivesse viajando com um passaporte diplomático.” Enquanto notícias sobre a ligação de Davis com a CIA, o JSOC e a Blackwater pululavam na imprensa paquistanesa, os principais meios de comunicação e o governo dos Estados Unidos promoviam a versão de que Davis era diplomata. “Continuamos a insistir49 junto ao governo do Paquistão que nosso diplomata tem imunidade diplomática, que em nosso entender ele agiu em legítima defesa e que deve ser solto”, declarou o porta-voz do Departamento de Estado P. J. Crowley numa nota de 7 de fevereiro, divulgada pela CNN, CBS, PBS, pelo jornal usa Today e outros importantes órgãos de imprensa. “O Paquistão deve cumprir suas obrigações internacionais de acordo com a Convenção de Viena.” Em resposta à pressão de Washington, o governo de Asif Zardari, simpático aos Estados Unidos, se dispunha a reconhecer50 Davis como diplomata, mas enfrentava a resistência de suas próprias autoridades. Solicitado a credenciar Davis como diplomata, o ministro das Relações Exteriores do Paquistão, Shah Mahmood Qureshi, recusou-se a fazê-lo, dizendo que o pedido não correspondia aos “dados oficiais” sobre Davis no Ministério. “Segundo a opinião de nossos especialistas,51 a imunidade geral que a embaixada dos Estados Unidos está solicitando não se justifica”, declarou ele. Em reação, a secretária de Estado Hillary Clinton desfeiteou Qureshi52 numa conferência internacional de segurança em Munique, na Alemanha. Qureshi foi então alijado do cargo de ministro — segundo ele, em decorrência de sua “resistência, por questão de princípios”,53 à concessão de imunidade a Davis. Ao assumir essa posição, Qureshi submeteu a questão aos tribunais de Lahore, garantindo com isso a continuidade da saga Davis. Destacados parlamentares americanos ameaçaram suspender a ajuda humanitária ao Paquistão54 se Davis não fosse libertado. O presidente Zardari classificou as ameaças de “contraproducentes”, escrevendo no Washington Post: “Num ambiente incendiário,55 retórica furiosa e ameaças disfuncionais podem atear incêndios que serão difíceis de extinguir”. Enquanto Raymond Davis permanecia em sua cela na prisão de Kot Lakhpat, as autoridades americanas temiam por sua segurança. Nada menos de três prisioneiros56 tinham sido
assassinados por guardas. Algumas autoridades paquistanesas expressavam receio de que a CIA tentasse dar-lhe fuga de forma espetacular. A comida de Davis era provada por cachorros.57 Enquanto seus superiores se esforçavam para libertá-lo, Davis se mantinha sereno e desafiador. Durante um interrogatório, escanhoado e usando um pulôver azul de lã, ele disse: “O embaixador dos Estados Unidos afirma que eu tenho [imunidade], de modo que não vou responder a nenhuma pergunta”.58 Exigiu ver seu passaporte. “Está bem na primeira página”, disse, fazendo com os dedos um retângulo. “Passaporte diplomático.” O interrogador tentou fazer-lhe novas perguntas, e Davis anunciou que não responderia mais pergunta alguma. “Vou voltar para meu quarto”, disse ao homem, levantando-se. “Você não pode agir assim”, declarou o interrogador. “Você não é diplomata.” Davis simplesmente reiterou que não iria responder a novas perguntas e caminhou para a porta. Em Washington, todo o peso do governo Obama estava sendo empregado em prol da causa de sua libertação. “Em nosso entender, ele agiu em legítima defesa,59 quando confrontado por dois homens armados em motocicleta”, declarou Crowley no Departamento de Estado. Ele “tinha todos os motivos para crer que os homens armados pretendiam fazer-lhe mal”. Crowley exigiu a libertação de Davis. Em 15 de fevereiro, com Davis ainda detido e um juiz paquistanês preparando-se para decidir se ele tinha direito a imunidade, chegou ao Paquistão o senador John Kerry, presidente da Comissão das Relações Exteriores do Senado. Kerry era bastante conhecido no país por ter defendido, junto com outros congressistas, um amplo pacote de ajuda ao Paquistão no montante de 7,5 bilhões de dólares. Encontrou-se com o presidente Zardari60 e outras autoridades de primeiro escalão e depois com um grupo de jornalistas paquistaneses em Lahore, onde defendeu o princípio de que Davis era diplomata e deveria ser entregue à custódia dos Estados Unidos. “Temos — todos nós — de respeitar a lei”,61 disse Kerry, sentado numa poltrona estofada e cercado de jornalistas paquistaneses. As redes de televisão do país transmitiram seus comentários ao vivo. A lei que rege a imunidade diplomática, disse Kerry, “não é um documento que o Paquistão tenha assinado com desatenção. Seus líderes a assinaram para isto mesmo, há muito, muito tempo”. Kerry falava devagar, quase como se estivesse falando a uma turma de crianças, e não a jornalistas.
Não fomos nós que a criamos [a imunidade]. Vivemos com ela e é importante que vivamos com ela, porque às vezes ocorrem incidentes, numa parte do mundo ou em outra, em que os diplomatas não conseguem realizar o trabalho que lhes compete, às vezes em circunstâncias muito perigosas, a menos que disponham dessa imunidade.
Os jornalistas pressionaram Kerry em relação ao status de Davis e perguntaram por que, no entendimento deles, parecia que os Estados Unidos não estavam respeitando as leis e o processo
judicial do Paquistão. “Nosso governo crê firmemente que esse caso não é da alçada de tribunais. E ele não é da alçada de tribunais porque esse homem tem imunidade diplomática como funcionário administrativo e técnico da embaixada dos Estados Unidos em Islamabad”, respondeu Kerry. “Entendemos que a documentação deixa isso claro. Essa é a nossa posição. Não estamos desrespeitando seus tribunais. Nós os respeitamos profundamente. Desejamos que seus tribunais sejam fortes e vibrantes […]. Mas temos de respeitar o direito internacional.” Kerry instou o Paquistão a “permitir que os fatos e a realidade falem por si mesmos nesse caso”. É muitíssimo duvidoso que John Kerry realmente acreditasse que Davis era um “funcionário administrativo e técnico da embaixada”. Como presidente da Comissão de Relações Exteriores, tinha acesso às mais sigilosas informações da Inteligência dos Estados Unidos e foi rigorosamente instruído antes de partir para o Paquistão. Enquanto Kerry buscava persuadir as autoridades paquistanesas, em Washington o presidente Obama defendia Davis publicamente: “Com relação a Mr. Davis,62 nosso diplomata no Paquistão, temos aqui um princípio simplíssimo que todos os países do mundo que firmaram a Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas acataram no passado e hão de acatar no futuro. E segundo esse princípio, se… se nossos diplomatas se encontram em outro país não estão sujeitos a processo por parte desse país”, declarou Obama na Casa Branca.
Se nossos embaixadores começarem a ser vistos como presas lícitas em todo o mundo, inclusive em lugares perigosos onde possamos ter divergências com esses países […] e se eles passarem a estar sujeitos a ser processados nesses países, isso… Isso é intolerável. Significa que não podem realizar seu trabalho.
Obama disse que o governo tinha sido “muito firme” ao tornar claras suas exigências ao governo do Paquistão e que estava trabalhando “para obter a libertação dessa pessoa”. E acrescentou:
Para aqueles que não conhecem os antecedentes desse caso, dois paquistaneses foram mortos num incidente com Mr. Davis dentro… no Paquistão. Assim, é óbvio que lamentamos a perda de vidas. Não somos insensíveis a isso, vocês sabem. Mas está em jogo um princípio mais amplo que, em meu entender, temos de acatar.
Enquanto Obama, Kerry e outras autoridades americanas pintavam Davis, em público, como diplomata, vários meios de comunicação americanos dos mais importantes, com destaque para o New York Times, já sabiam que Davis, na verdade, trabalhava para a CIA. A pedido do governo Obama, o Times e outros órgãos da imprensa concordaram em omitir o fato em suas matérias sobre o caso. O Times posteriormente informou que concordou em não mencionar a ligação de Davis com a CIA depois que autoridades do governo “argumentaram que a revelação desse
trabalho específico63 poria sua vida em risco”. (A Associated Press também admitiu que soubera que Davis estava trabalhando para a CIA “logo depois do incidente”,64 mas que não divulgara o fato.) Matérias do New York Times referiam-se a Davis como “funcionário americano”65 e aludiram ao “mistério com relação ao que Mr. Davis estava fazendo com seu conjunto de equipamentos”66 e às especulações que tais equipamentos haviam gerado na imprensa paquistanesa, mesmo quando o Times já sabia que ele trabalhava para a CIA. “Uma coisa67 é um jornal omitir informações por acreditar que revelá-las pode pôr vidas em perigo”, disse o jornalista e advogado constitucionalista Glenn Greenwald.
Aqui, porém, o governo dos Estados Unidos passou semanas fazendo declarações públicas extremamente capciosas — como Obama chamando Davis de “nosso diplomata no Paquistão” —, enquanto o New York Times ocultava conscientemente fatos que prejudicavam essas afirmações do governo, e isso porque autoridades públicas mandaram que assim procedesse. Isso se chama ser um agente ativo da propaganda governamental.
O primeiro órgão de imprensa de repercussão mundial a mencionar a ligação de Davis com a CIA foi o jornal londrino The Guardian. Tanto a CIA quanto seu congênere britânico, o MI-5, pressionaram o jornal para não divulgar essa informação. Finalmente, na edição de 21 de fevereiro, o jornal deu a matéria. “Chegamos à conclusão de que a ligação dele com a CIA68 era um elemento crítico do caso, que certamente seria um fator em seu julgamento ou em tentativas de libertá-lo”, comentou Ian Katz, editor-chefe assistente do Guardian. “Os motivos que nos deram para não revelar a informação foram, primeiro, que isso poderia complicar a soltura de Davis — o que não é problema nosso. Se ele fosse um refém em cativeiro, outros fatores estariam em jogo, mas ele está sendo objeto de um processo judicial. A outra razão dada pela CIA foi que haveria retaliações contra ele na prisão.” Depois que o Guardian publicou a notícia, a CIA autorizou a mídia americana a dá-la também. Em sua primeira matéria em que Davis era ligado à CIA o Times citou George Little, porta-voz da Agência: “Nosso pessoal de segurança,69 espalhado pelo mundo, atua num papel de apoio, fazendo a segurança de autoridades americanas. Não realiza coleta de informações no exterior nem participa de operações clandestinas”. Na realidade, a linha divisória entre os guardas de “segurança” da Agência e seus quadros operacionais era quase nula depois de atuarem juntos por uma década no Paquistão e no Afeganistão. O senador Kerry manteve conversas secretas70 com o embaixador do Paquistão nos Estados Unidos, Husain Haqqani, ocasião em que se debateu o pagamento de “dinheiro de sangue” às famílias das vítimas de Davis e do homem atropelado pela equipe de apoio. Embora a CIA e a ISI se guerreassem, com vazamentos para a imprensa e acusações mútuas, tanto o governo dos Estados Unidos quanto o do Paquistão sabiam que Davis seria libertado. A questão era quando e
o que a ISI obteria da CIA antes que isso acontecesse. Em meados de fevereiro, quando Davis estava detido havia duas semanas, Panetta, diretor da CIA, conversou com Pasha, chefe da ISI, que exigiu que os Estados Unidos identificassem “todos os Ray Davises71 que trabalhavam no Paquistão, escondidos de nós”. Depois dessa conversa, a ISI concordou em colaborar para intermediar e apoiar um plano de indenização às famílias das vítimas, preparando o caminho para a libertação de Davis. Em depoimento à Comissão de Inteligência do Senado, um dia depois da visita de Kerry ao Paquistão, Panetta declarou que a relação da CIA com a ISI era “uma das mais complicadas que já vi em muito tempo”.72 Dias depois, a Associated Press obteve o rascunho de uma nota que estava sendo preparada pela agência paquistanesa e dizia que “a ISI está pronta para afastar-se da CIA73 devido à sua frustração com o que considera uma pressão coercitiva e à sua indignação com o que acredita ser uma operação secreta americana envolvendo centenas de espiões contratados”. A nota, nunca divulgada, afirmava que depois dos tiros de Davis, “a conduta da CIA em relação ao incidente praticamente pôs em xeque a parceria […]. É difícil prever se a relação voltará um dia ao nível de antes do episódio Davis”, acrescentando sem evasivas: “O ônus de não prejudicar essa relação entre as duas agências cabe à CIA”. No fim de fevereiro, Davis foi levado a um tribunal em Lahore, onde lhe pediram que assinasse um boletim de ocorrência policial, no qual ele reconhecia ter “assassinado” os dois homens. Davis se recusou a assinar74 e reiterou sua alegação de que tinha imunidade diplomática. Nesse ínterim, a ISI estava vasculhando as centenas de solicitações de vistos concedidos a americanos nos seis meses anteriores. A ISI alegou que a solicitação da Davis continha “referências e números de telefones falsos”75 e anunciou que estava procurando fatos semelhantes em outros arquivos de vistos. Em 25 de fevereiro, a polícia prendeu em Peshawar outro americano prestador de serviços de segurança,76 Aaron DeHaven, cuja empresa, a Catalyst Services, jactava-se de que sua equipe “estivera envolvida em alguns dos mais importantes acontecimentos dos últimos vinte anos,77 seja na dissolução da antiga União Soviética, seja na iniciativa dos Estados Unidos na Somália, seja na Guerra Global ao Terror”, e que seus integrantes tinham feito “carreira nas Forças Armadas dos Estados Unidos e no DoD dos Estados Unidos”. A imprensa paquistanesa não perdeu tempo em tachá-lo de espião, à maneira de Davis, e logo surgiram na imprensa notícias de que “prestadores de serviços” vinham deixando o país às dúzias.78 O governo paquistanês queria ser visto como forte e atuante, e Washington se resignava a permitir que ele se mostrasse assim, desde que isso resultasse na libertação de Davis. George Little, da CIA, declarou que os laços da Agência com a ISI “têm sido fortes79 ao longo dos anos, e se surgem questões a serem dirimidas, nós as resolvemos. Esse é o sinal de uma parceria saudável”. Apesar das declarações públicas da CIA, a parceria chegou, na realidade, ao ponto mais baixo de sua história. Para os Estados Unidos, porém, os riscos eram altos demais para permitir que o caso Davis saísse ainda mais do controle. A guerra dos Estados Unidos no
Afeganistão dependia inteiramente da cooperação do Paquistão. Sem o apoio de Islamabad, rotas de suprimentos cruciais para os Estados Unidos estariam fechadas. Os generais já tinham aguentado o suficiente.
Em 23 de fevereiro, teve início o ato final da saga Davis, muito longe da prisão onde o americano esperava seu destino. Na verdade, o acordo não foi selado nem no Paquistão, nem nos Estados Unidos, mas sim num hotel de lazer, luxuoso e isolado, numa praia de Mascate, capital de Omã, uma nação da Península Arábica. A respeito da reunião, uma nota paquistanesa afirmava:
O que faz uma pessoa quando quer refletir seriamente80 e impor juízo a uma situação enlouquecedora? Afasta-se da turba desvairada e procura um pacífico resort de luxo omaniano, é claro. Pois foi isso o que fizeram as lideranças militares dos Estados Unidos e do Paquistão.
Numa sala privada, as figuras mais poderosas das Forças Armadas dos Estados Unidos se reuniram com seus congêneres paquistaneses. Liderada pelo almirante Mullen, a delegação americana era integrada81 pelo almirante Eric Olson, comandante do Comando de Operações Especiais dos Estados Unidos; o general David Petraeus; e o general James Mattis, comandante do Centcom. Reuniram-se com a mais alta autoridade militar do Paquistão, o general Ashfaq Parvez Kayani, e com o general de divisão Javed Iqbal, seu diretor-geral de Operações Militares. “A relação Estados Unidos-Paquistão vem se deteriorando à medida que crescem as especulações sobre as intenções dos Estados Unidos no Paquistão”, assim começava a nota. “O caso Davis trouxe todas essas suspeitas à tona.” Referindo-se à suposta cisão entre a CIA e a ISI, a nota dizia que as autoridades militares americanas “tinham de destacar que assim que ultrapassasse um ponto crucial, a situação seria assumida por forças políticas que não poderiam ser controladas”. De acordo com a nota, a delegação americana pediu aos generais paquistaneses que “tomassem a frente e fizessem o que os governos não estavam conseguindo fazer — principalmente porque as Forças Armadas americanas estavam numa fase crítica no Afeganistão, e o Paquistão era a chave para o controle e a solução”. E a nota concluía:
As lideranças militares, a partir de agora, hão de instruir e guiar seus líderes civis, confiantes em trazer uma mudança qualitativa ao relacionamento Estados Unidos-Paquistão, interrompendo a deterioração do processo e encaminhando-o na direção correta.
Depois do encontro de Omã, fontes da ISI declararam que a CIA concordara em não realizar operações unilaterais no Paquistão em troca de seu apoio na libertação de Davis. “Eles não farão nada, escondido de nós,82 que resulte em morte ou prisão de pessoas”, afirmou uma autoridade paquistanesa ao Guardian. Isso, é claro, não era verdade. Nem sequer se sabe ao certo se a CIA prometeu isso. O New York Times informou que autoridades americanas “insistiram […] que a CIA não fez promessa alguma83 de reduzir operações secretas no Paquistão ou de dar ao governo paquistanês ou à sua Agência de Inteligência uma lista de espiões americanos que atuam no país — afirmações que as autoridades paquistanesas contestaram”. Seja como for, os Estados Unidos e o Paquistão começaram a concatenar um plano para usar a sharia, a lei islâmica, para libertar Davis. A partir do momento em que Davis atirou nos dois homens em Lahore, as famílias de suas vítimas e a do terceiro homem, atropelado pela equipe de apoio, insistiram publicamente que não desejavam pagamento ou propina, mas sim que Davis fosse julgado e enforcado.84 No leito de morte, Shumaila Kanwal, viúva de Faheem, disse temer que não se fizesse justiça por causa de um acordo político. Durante semanas, multidões de manifestantes coléricos protestaram a cada sessão judicial, exigindo que Davis fosse acusado e julgado. Essa não era uma opção nem para os Estados Unidos nem para o Paquistão. O espetáculo já tinha durado mais que o suficiente. E seu fim foi coreografado meticulosamente pelos dois governos. De conformidade com a cláusula de diyyat da sharia, as famílias de uma vítima podiam “perdoar” o acusado e, em troca, aceitar um pagamento vulgarmente chamado de “dinheiro de sangue”. Com isso, o processo criminal contra Davis seria interrompido. No entanto, isso exigia o consentimento das famílias das vítimas. Em 16 de março, agentes paquistaneses não identificados levaram à força85 dezenove parentes das vítimas, homens e mulheres, à prisão de Kot Lakhpat. Aquele seria o dia do julgamento de Raymond Davis. Nem o público, nem repórteres puderam entrar. Segundo o ministro da Justiça do Punjab, Rana Sanaullah, Davis era acusado de homicídio.86 Entretanto, em vez de assistir à apresentação de provas, aos depoimentos de testemunhas e ao interrogatório de Davis, os parentes das vítimas receberam ordem de assinar documentos pelos quais perdoavam o americano. “Eu e meu assistente87 fomos mantidos em detenção forçada durante horas”, declarou um advogado da família de Faizan Haider. Cada um dos dezenove parentes foi levado diante do juiz, sendo-lhe perguntado se perdoava Davis. Sob intensa pressão, todos responderam que sim. O juiz então extinguiu o processo contra Davis e determinou sua libertação. “Tudo aconteceu no tribunal e de acordo com a lei”, declarou Sanaullah. “O tribunal absolveu Raymond Davis. Agora ele pode ir aonde quiser.”88 Como disse o brigadeiro paquistanês reformado F. B. Ali, “a cláusula de diyyat89 é muito apreciada pelos ricos e poderosos nas sociedades muçulmanas onde ela vigora. Ela literalmente lhes permite evitar a condenação por homicídio”. Ao todo, as famílias receberam 2,3 milhões de dólares. Numa visita ao Cairo, a secretária de Estado Hillary Clinton elogiou a solução. “As famílias das vítimas do incidente de 27 de janeiro
perdoaram Mr. Davis, e estamos muito gratos pela decisão deles”, disse ela. “Agradecemos as medidas que tomaram e que possibilitaram a Mr. Davis voltar para casa.” Interrogada a respeito dos pagamentos às famílias, ela declarou: “Os Estados Unidos não pagaram compensação alguma”.90 Com efeito, o Paquistão foi que efetuou o pagamento,91 que os Estados Unidos depois reembolsariam, usando o orçamento da CIA. Quando Raymond Davis saiu do tribunal, depois da ordem de soltura, lágrimas escorriam pelo seu rosto, enquanto os parentes das vítimas continuavam sentados, num silêncio atônito, alguns soluçando. Davis foi levado depressa para um comboio de carros com chapas diplomáticas e conduzido diretamente a um aeródromo onde embarcou num avião “especial”92 — do tipo usado pelo programa de transferências clandestinas de presos da CIA. O aparelho cruzou o espaço aéreo do Afeganistão, rumo a Bagram,93 e Davis desapareceu. “Ele se foi”, disse o tenente-coronel Shaffer, sorrindo. Vinte e quatro horas após a libertação de Davis, um ataque americano com drones94 matou cerca de quarenta pessoas no Waziristão do Norte. Talvez as coisas pudessem voltar agora ao que eram antes do caso Davis. Mas apenas seis semanas depois que ele foi retirado às pressas do Paquistão, a guerra secreta que ele ajudara a fazer saltaria para a primeira página de todos os jornais do mundo, quando helicópteros do JSOC adentraram em território paquistanês na calada da noite e rumaram para a cidade de Abbottabad. Sua missão: matar o homem mais procurado do mundo.
47. O tsunami da mudança
ÁUSTRIA E IÊMEN, 2011 — Em meados de 2011, o Iêmen se viu engolfado pela revolução que varria o mundo árabe. A revolta popular contra os regimes opressivos na região começara em dezembro de 2010, quando Mohamed Bouazizi, camelô tunisiano de 26 anos, optou pela medida extrema. O jovem vendedor de frutas e verduras se esfalfava a cada dia nas ruas de Sidi Bouzid, cidadezinha pobre e rural, para ganhar alguma coisa, enfrentando o assédio constante da polícia e de funcionários municipais, que lhe exigiam propinas. Nesse dia em particular, as autoridades lhe tiraram a única fonte de renda, ao confiscarem sua carrocinha1 e suas mercadorias, porque ele não tinha a licença exigida. Furioso, Bouazizi correu ao gabinete do governador, que não quis recebê-lo.2 Então, transtornado, foi a um posto de gasolina,3 encheu um jarro de combustível e postou-se no meio do trânsito. Eram 11h30 da manhã. “Como é que vocês querem que eu ganhe a vida?”, gritou, antes de empapar-se de gasolina. Riscou um fósforo e seu corpo ardeu em chamas. Daí a poucos meses, protestos gigantescos contra regimes apoiados pelos Estados Unidos no mundo árabe agitavam as capitais do Oriente Médio e do norte da África, num levante que se tornou conhecido como a Primavera Árabe. Vários ditadores caíram, um atrás do outro: Zine El Abidine Ben Ali, na Tunísia, foi o primeiro deles. Em 25 de janeiro, começou uma rebelião contra o ditador egípcio Hosni Mubarak, que acabou por derrubar o regime. Os iemenitas viam seus irmãos e irmãs árabes, em outros países, tirar do poder os ditadores que os governavam desde quando podiam lembrar. Menos de duas semanas depois, dezenas de milhares de pessoas convergiram para uma praça no centro de Sana’a e mudaram-lhe o nome para Praça da Mudança. Anunciaram que não sairiam dali até que o presidente Saleh e sua família fossem alijados do poder. Um novo número da Inspire coincidiu com a propagação dos protestos no Iêmen. Sua reportagem de capa sobre os levantes árabes, “o tsunami da mudança”, levava a assinatura de Anwar Awlaki. “A primeira mudança trazida por essa mudança, e provavelmente a mais importante,4 é de natureza mental. Ela trouxe uma mudança para o espírito coletivo da Ummah. A revolução rompeu, nos corações e nas mentes, as barreiras do medo de que os tiranos não pudessem ser eliminados”, escreveu Awlaki. “Não sabemos ainda qual será o resultado disso, nem precisamos saber. O resultado não terá de ser um governo islâmico para que consideremos o que está acontecendo como um passo
na direção certa.” Awlaki defendeu os protestos contra o regime do Iêmen, apoiado pelos Estados Unidos, ao escrever: “Qualquer debilitação do governo central produzirá, sem dúvida, mais força para os mujahedin nesta terra abençoada”. Em 18 de março de 2011, mais de 100 mil manifestantes iemenitas se reuniram em ruas próximas à Universidade de Sana’a para as orações da sexta-feira. Terminadas as orações, quando as pessoas se dispersavam, as forças de segurança do governo e milícias pró-Saleh abriram fogo contra a multidão,5 matando mais de cinquenta pessoas. Algumas foram baleadas na cabeça por atiradores de elite. Três dias depois, o regime de Saleh sofreu um duro golpe, quando o mais poderoso militar do Iêmen, o general Ali Mohsin al-Ahmar, comandante da 1a Divisão Blindada, apoiou os protestos e comprometeu-se a defender a “revolução pacífica e jovem”6 do Iêmen. Outros militares importantes logo o imitaram. Altas autoridades civis, entre as quais dezenas de embaixadores e diplomatas, anunciaram que estavam deixando seus cargos. Destacados líderes tribais, que durante muito tempo tinham sido os mais importantes esteios do poder de Saleh, bandearam-se para a oposição. No momento em que a revolução no Iêmen ganhava força, os Estados Unidos começavam uma campanha de bombardeios em apoio a rebeldes armados na Líbia, que acabariam por derrubar o regime do coronel Muammar el Qaddafi. No Iêmen, porém, o governo americano fazia um jogo muito diferente. Afinal, a AQPA no Iêmen fora declarada a mais grave ameaça externa para o território dos Estados Unidos. Os planejadores das operações militares e de Inteligência concordavam com a avaliação de Awlaki de que a instabilidade no Iêmen beneficiaria a AQPA. No Egito, o ditador Hosni Mubarak, durante muito tempo apoiado pelos Estados Unidos, fora derrubado, tal como outros líderes de regimes ligados a Washington. Em seu número sobre a Primavera Árabe, a Inspire publicou um anúncio — uma fotografia de Ali Abdullah Saleh com o dedo indicador sobre a boca, num gesto de “silêncio!”. “Ei, Ali, Mubarak acaba de cair”, dizia o letreiro. “Adivinhe quem será o próximo.” Embora a secretária de Estado Hillary Clinton e outras autoridades americanas condenassem a violência no Iêmen, não chegaram nem perto de pedir o fim do regime ou de instar por uma ação militar internacional para confrontar a brutalidade das forças de segurança iemenitas. Em vez disso, os Estados Unidos preferiram recomendar uma “solução política”.7 Dias depois do massacre em Sana’a, perguntaram ao secretário de Defesa, Robert Gates, que fazia uma visita a Moscou, se os Estados Unidos ainda apoiavam Saleh. “Não creio que caiba a mim8 discutir os assuntos internos do Iêmen”, respondeu Gates. O que ele disse em seguida deixou claríssimo quais eram as prioridades americanas:
É óbvio que estamos preocupados com a instabilidade no Iêmen. Acreditamos que a AlQaeda na Península Arábica, que se concentra sobretudo no Iêmen, talvez seja a mais perigosa de todas as ramificações da Al-Qaeda neste momento. Por conseguinte, a
instabilidade e o desvio da atenção em relação à ameaça da Al-Qaeda constituem, com certeza, minha principal preocupação no que diz respeito à situação.
Nessa época, o governo Obama levava a cabo seu programa de treinar e equipar as forças militares e de segurança do Iêmen, entre as quais estavam algumas das mesmas unidades que estavam reprimindo protestos pacíficos contra o governo. “A apática reação dos Estados Unidos9 demonstra até que ponto nossa política no Iêmen é míope”, disse-me na época Joshua Foust, o ex-analista da DIA.
Docilmente, consentimos na brutalidade de Saleh, devido ao medo infundado de que nossos programas de contraterrorismo sejam interrompidos, sem, aparentemente, nos darmos conta que, ao assim proceder, estamos praticamente garantindo que o próximo governo há de desaprovar exatamente esses programas.
Gregory Johnsen disse-me que algumas preocupações de Washington eram também dele, mas que a obsessão míope com o terrorismo era contraproducente. A queda de Saleh “poderia, decerto, ter algum impacto negativo10 sobre as operações de contraterrorismo dos Estados Unidos no Iêmen”, disse ele, acrescentando: “Preocupa-me em especial o fato de a AQPA estar conseguindo armas e dinheiro em certas partes do país, à medida que os militares sofrem reveses em áreas remotas”. O Iêmen tem “vários problemas mais prementes, todos os quais, se deixados sem solução, ajudarão a AQPA a ganhar força nos próximos anos”, advertiu Johnsen. “Não existe, no Iêmen, nenhuma solução do tipo ‘míssil mágico’ para o problema da AQPA. Os Estados Unidos simplesmente não podem bombardeá-la até acabar com ela.” A julgar por suas políticas, o governo Obama pensava de outro modo.
O irmão caçula de Anwar Awlaki, Ammar, era em tudo diferente dele. Enquanto Anwar abraçava uma interpretação radical do Islã e pregava a jihad contra os Estados Unidos, Ammar fazia carreira numa empresa de petróleo no Iêmen. Ammar estudara no Canadá e tinha boas conexões políticas. Usava calças jeans, óculos Armani estilosos e deixara uma barbicha. Penteava o cabelo para trás e sempre tinha o modelo de iPhone mais recente. Vira Anwar pela última vez em 2004. Em fevereiro de 2011, Ammar estava em Viena, na Áustria, numa viagem de negócios. Tinha acabado de voltar para o hotel, depois de jantar com um colega austríaco, quando o telefone tocou em seu apartamento. “Como vai, Ammar?”,11 disse um homem com sotaque americano. “Minha mulher conhece a sua e eu tenho um presente para ela.” Ammar desceu ao saguão, onde viu um homem alto e magro, que vestia um terno azul bem cortado. Apertaram-se as mãos. “Podemos conversar um pouco?”, perguntou o homem, e sentaram-se no
saguão. “Na verdade, eu não trouxe um presente para a sua mulher. Vim dos Estados Unidos e preciso conversar com você sobre o seu irmão.” “Imagino que você seja do FBI ou da CIA”, disse Ammar. O homem sorriu. Ammar pediu-lhe uma identificação. “Vamos, não somos do FBI, não temos crachás que nos identifiquem assim”, disse o homem. “O máximo que posso fazer é lhe mostrar meu passaporte diplomático.” “Chame-me de Chris”, disse o americano. “Qual era seu nome ontem?”, retrucou Ammar. Chris deixou claro que trabalhava para a CIA e disse a Ammar que os Estados Unidos tinham uma Força-tarefa dedicada a “matar ou capturar seu irmão”. Disse também que os Estados Unidos desejavam pegar Anwar vivo, mas que o tempo estava se esgotando. “Ele vai ser morto”, disse Chris a Ammar. “Nesse caso, por que você não ajuda a salvar a vida dele, ajudando-nos a capturá-lo?” Acrescentou: “Você sabe que há uma recompensa de 5 milhões de dólares pela cabeça de seu irmão. Você não vai nos ajudar de graça”. Ammar disse a Chris que não queria o dinheiro, e o americano respondeu:
Esses 5 milhões ajudariam a educar os filhos [de Anwar]. Os Estados Unidos são muito francos, e só vou lhe dizer uma coisa. Há uma recompensa de 5 milhões de dólares, que estão aí para quem quiser. E em vez de deixar que alguém fique com ela, por que você não se habilita a esse dinheiro e ajuda a fazer com que os filhos de Anwar tenham uma educação decente?
“Acho que não há necessidade de nos encontrarmos de novo”, disse Ammar a Chris, reiterando que não fazia ideia de onde estava Anwar. Mesmo assim, Chris lhe disse que pensasse no assunto. Que o discutisse com a família. “Podemos nos encontrar quando você for a Dubai daqui a duas semanas.” Ammar ficou estupefato. Seus bilhetes para essa viagem nem tinham sido comprados ainda, e os detalhes ainda estavam sendo debatidos. Chris deu a Ammar um endereço eletrônico — uma conta do Hotmail — e disse que esperaria seu contato. Ammar retornou ao Iêmen. “Conversei com minha mãe e meu irmão [não Anwar], e eles disseram: ‘Não dê ouvidos. Não responda a eles, nem entre em contato. Só não ouça’.” Ammar ignorou os e-mails que recebeu de Chris.
48. A fortaleza de Abbottabad
WASHINGTON, DC, 2010-1; PAQUISTÃO, 2011 — Enquanto a caçada de Anwar Awlaki pelos americanos se intensificava, o homem mais procurado do mundo se escondia ficando à vista de todos. Durante anos, acreditou-se que Osama bin Laden estivesse morando numa caverna ou escondido nas áreas tribais ao longo da fronteira entre a África e o Paquistão. Havia autoridades americanas que pensavam que os Estados Unidos jamais o capturariam, enquanto alguns analistas de terrorismo supunham que Bin Laden já estivesse morto. No entanto, ele estava bem vivo e morando num bairro de classe média, Bilal Town, em Abbottabad, no Paquistão, numa ampla propriedade murada, a cerca de um quilômetro e meio da principal academia militar do Exército paquistanês. Não se sabe com certeza quando Bin Laden se mudou para Abbottabad, mas a propriedade acabou de ser construída1 em 2005. E a casa fora, claramente, feita para esconder a vida de seus moradores. O líder da Al-Qaeda morava no terceiro andar da casa principal da propriedade, com três de suas mulheres e vários filhos. A residência fora habilmente projetada para que ninguém pudesse ver seu interior. Quase não tinha janelas, com exceção de aberturas estreitas2 numa parede. Por ironia, foram exatamente essas características da casa que, em 2 de maio de 2011, impediram que Bin Laden visse os bem armados SEALs da Marinha dos Estados Unidos que sobrevoavam o Paquistão numa missão destinada a pôr fim à sua vida.
* * *
Antes disso, a última oportunidade real dos Estados Unidos para matar ou capturar Osama bin Laden ocorrera uma década mais cedo, no inverno de 2001, em Tora Bora, no Afeganistão. Uma interrupção na coordenação entre o Pentágono e a CIA arruinara a operação, fazendo com que Bin Laden e seu braço direito, Zawahiri, desaparecessem — segundo alguns pensavam, para sempre. Durante os dez anos seguintes, um grupo de resolutos analistas da CIA seguiu uma pista atrás da outra, chegando sempre a becos sem saída. Sem quaisquer recursos de inteligência humana dentro da Al-Qaeda, sem sinais provenientes do próprio Bin Laden e com pouca esperança de ajuda por parte de autoridades nas regiões onde se acreditava que ele pudesse estar, a CIA tinha as mãos atadas. Em 2005, a unidade Bin Laden foi dissolvida,3 embora alguns
analistas continuassem a perseguir o líder da Al-Qaeda. Em sua campanha eleitoral, Barack Obama se comprometera a fazer do Afeganistão e da luta contra a Al-Qaeda a pedra angular de sua política contra o terrorismo, e censurava o governo Bush por ter cometido erros na caça a Bin Laden. Eleito presidente, Obama determinou a Leon Panetta, diretor da CIA, que desse prioridade à busca, declarando, em maio de 2009, que a morte ou captura de Bin Laden seria a “meta número um”4 de Panetta. As ordens de Obama tinham injetado vida nova — e mais recursos — na busca que, durante quatro anos, fora realizada, basicamente, por um pequeno número de analistas da CIA. Enquanto a Agência revigorava seus esforços para localizar Bin Laden, nem todos na IC acreditavam que o esforço levaria a resultados positivos. Em abril de 2010, o general de divisão Michael Flynn declarou a Michael Hastings, repórter da revista Rolling Stone: “Não creio que consigamos pegar Bin Laden”, acrescentando: “Acho que um dia vamos receber um aviso5 dos paquistaneses: ‘Bin Laden está morto, capturamos Al-Zawahiri’”. Na época, Flynn era o mais graduado oficial de Inteligência no Afeganistão e Paquistão e estava subordinado diretamente ao general McChrystal. Como observou Hastings, Flynn “tinha acesso aos mais detalhados e sigilosos relatórios da Inteligência”. Entretanto, em agosto de 2010, a CIA conseguiu seu maior avanço no caso desde Tora Bora, quando um de seus agentes no Paquistão detectou Abu Ahmed al-Kuwaiti em Peshawar. Fazia muito tempo que Kuwaiti estava no radar da CIA, e vários membros da Al-Qaeda, capturados e interrogados por forças americanas logo após o Onze de Setembro, haviam-no apontado6 como um importante assistente de Bin Laden e seu principal mensageiro. O agente da CIA no Paquistão seguira o jipe Suzuki branco de Kuwaiti,7 durante duas horas, de Peshawar até Abbottabad. Examinando em minúcia a propriedade, que segundo eles lembrava uma “fortaleza”,8 os analistas da CIA descobriram que ela não tinha telefone nem conexão com a internet, e que os residentes queimavam o próprio lixo,9 cultivavam suas próprias verduras10 e criavam seus próprios frangos e vacas. A cada semana, matavam dois cabritos. Os analistas sabiam que tinham em sua mira um dos mais importantes auxiliares de Bin Laden, mas sabiam também que um peixe mais graúdo poderia estar morando na propriedade — talvez o maior de todos. Decidiram não tentar capturar Kuwaiti, esperando que ele os levasse ao próprio Bin Laden. No fim do outono, Panetta pediu aos analistas que compilassem uma lista de 25 maneiras11 de extrair informações do interior da propriedade. Já tinham pensado em instalar dispositivos de escuta no sistema de esgoto, ou uma câmera numa árvore próxima. De acordo com o escritor Peter Bergen:
Uma das ideias aventadas foi atirar na propriedade bombas de fedor12 para fazer com que os ocupantes da propriedade saíssem de casa. Outra foi jogar com o presumido fanatismo religioso dos habitantes da propriedade e transmitir, do lado de fora, uma suposta “Voz de
Alá” dizendo: “Ordeno-vos que saiam para a rua!”.
Por fim, a CIA mobilizou um médico paquistanês para administrar um falso programa de vacinação contra hepatite b no bairro.13 A Agência queria que o médico e sua “equipe” tivessem acesso à propriedade e obtivessem amostras de DNA dos ocupantes, que seriam comparadas com as amostras que a Agência já possuía da irmã falecida de Bin Laden. O médico envolvido no plano, Shakil Afridi, vinha das regiões tribais do Paquistão. A CIA pagou a Afridi para dirigir o falso programa, que teria início nas áreas mais pobres de Abbottabad, a fim de ganhar foros de legitimidade. Por fim, o plano fracassou e nem Afridi nem sua equipe conseguiram obter as amostras de DNA.14 Afridi acabou sendo detido e preso pelas autoridades paquistanesas por trabalhar para a CIA. No fim do verão e começo do outono de 2010, os analistas da CIA começaram a fazer circular memorandos referentes ao significado do mensageiro e sua relação com Bin Laden, entre eles um que se intitulava “Fechando o cerco sobre o correio de Osama bin Laden” e outro intitulado “Anatomia de uma pista”.15 A CIA montou um “aparelho” em Abbottabad e aprofundou sua análise do “sistema de vida”16 dos residentes da propriedade. Além da família de Kuwaiti e da de seu irmão, logo descobriram que uma terceira família morava no terceiro andar da maior casa da propriedade. Mediante análises de sombras obtidas por fotos aéreas, os analistas da CIA detectaram uma pessoa, que acreditavam ser um homem, que fazia passeios diários no pátio interno da propriedade, numa pequena horta — mas apenas debaixo de uma lona, o que impedia que drones ou satélites obtivessem algo além de uma silhueta de sua imagem. Não tinham como determinar a estatura do homem. Internamente, os analistas da CIA o chamavam de “o Caminhante”.17 Em janeiro de 2011, no consenso geral da CIA, provavelmente o Caminhante era o próprio Bin Laden. O presidente Obama pediu a sua equipe de contraterrorismo que preparasse um leque de opções de ação. O subsecretário de Defesa, Michael Vickers, Panetta e seu assistente, Mike Morell, reuniram-se com o almirante McRaven na sede da CIA e leram para ele um relatório da Inteligência recebido de Abbottabad: “Em primeiro lugar, parabéns18 pela obtenção de uma pista tão boa”, disse-lhes McRaven.
Em segundo, essa é uma incursão relativamente rotineira para o JSOC. Fazemos isso dez, doze, catorze vezes por noite. O que complica a situação aqui é que esse lugar fica a 240 quilômetros da fronteira do Paquistão, e o fator complicador é a logística para chegar até lá e, depois, o aspecto político, de explicar a incursão. Quero pensar um pouco a respeito, mas meu instinto diz que devo pôr um membro muito experiente de uma unidade especial para trabalhar diretamente com vocês, um homem que vá à CIA todos os dias e, basicamente, comece a planejar e dar corpo a algumas opções.
O Wall Street Journal publicou uma reportagem em que dizia que
McRaven destacou19 um experiente oficial de operações especiais — um capitão da Marinha, membro da Equipe 6 dos SEALs, uma das unidades de Forças Especiais — para trabalhar na chamada AC1, ou Complexo Abbottabad 1. O capitão trabalhou todos os dias com a equipe da CIA, numa instalação segura e remota na área da Agência em Langley, Virgínia.
No papel, qualquer incursão contra a propriedade seria realizada usando a CIA como fachada, de modo que, se ela desse errado, os Estados Unidos pudessem negar a operação. Na realidade, porém, os homens de McRaven comandariam o espetáculo. Dentro da CIA, a operação AC1 logo se tornou conhecida como “Atlantic City”.20 A CIA e a equipe de segurança nacional pensaram em várias outras opções21 além da incursão de uma equipe de SEALs. Imaginaram um ataque com um avião B-2 contra a propriedade, semelhante à operação que matou Zarqawi no Iraque. No entanto, esse cenário apresentava diversos riscos de monta: seria quase impossível obter DNA para confirmar a morte de Bin Laden, e o bombardeio com certeza mataria não só todas as mulheres e crianças na propriedade, como também, possivelmente, outros residentes do bairro. Um ataque com drone sempre era uma opção no Paquistão, porém as condições na propriedade tornavam imprevisíveis as possibilidades de um impacto direto. Além de tudo, havia o fato de que Raymond Davis, prestador de serviços para a CIA, ainda estava detido numa prisão do Paquistão, enfrentando acusações de homicídio e apelos para que fosse executado. Qualquer ação unilateral dos Estados Unidos, enfureceria, sem dúvida, o governo paquistanês. Alguns analistas temeram que Davis fosse morto em retaliação.22 Por fim, a equipe de contraterrorismo de Obama concluiu que uma incursão do JSOC, realizada por SEALs experientes da Marinha, sob o comando de MacRaven, seria a melhor solução para resolver o problema. O JSOC já fizera incursões no Paquistão antes, mas nunca adentrara tanto no território, nem usando uma força grande como seria essa. Eram altos os riscos de que o governo paquistanês localizasse os helicópteros, que teriam de penetrar 240 quilômetros no país, e os derrubasse. McRaven começou a juntar uma equipe de SEALs, preparando-os para uma operação delicada, mas sem lhes dizer o objetivo da missão. Assim que Raymond Davis foi libertado, em 16 de março, os preparativos para a operação se aceleraram. Os homens de McRaven se preparariam para a missão num lugar secreto na Carolina do Norte e em outro no deserto de Nevada.23
Um dos SEALs que faziam parte dos exercícios era Matt Bissonnette, veterano do DEVGRU, que
passara os últimos dez anos participando de uma série praticamente ininterrupta de operações de combate que o levavam para trás de linhas inimigas, na guerra americana contra o terror, depois do Onze de Setembro. Bissonnette tinha estado em missões no Afeganistão, no Iraque, no Chifre da África e, como quis o destino, no Paquistão. Na verdade, tinha participado de uma tentativa anterior para capturar Bin Laden, em 2007, que ele classificou como “uma furada”.24 Fora subindo nas fileiras das Operações Especiais, até tornar-se líder de equipe no DEVGRU. Bissonnette e outros quadros operacionais do JSOC foram chamados a um Centro Sigiloso de Informação Compartimentada, onde os telefones são proibidos e as paredes são revestidas de chumbo para impedir o uso de dispositivos de escuta eletrônica. Segundo Bissonnette, “quase trinta pessoas na sala,25 entre membros do SEALs, um técnico do Descarte de Material Explosivo (Explosive Ordenance Disposal, EOD) e mais dois caras de apoio”. Os homens receberam poucas informações além de que seriam enviados à Carolina do Norte para um “exercício de prontidão conjunta”. Não lhes deram pista alguma do que os esperava. “Havia muita experiência naquela sala. Os que estavam ali vinham de equipes diversas”, recordou Bissonnette. “Em geral, cada equipe sempre tinha um cara mais novo que levava a escada e a marreta. Mas olhando em volta só víamos veteranos.” E acrescentou: “Eles estavam formando uma espécie de dream team, ou time dos sonhos”.26 Segundo Bissonnette, “a especulação correu à solta”.27 Alguns homens previram que seriam mandados à Líbia. Outros apostaram na Síria ou no Irã. Quando os SEALs chegaram à base de treinamento na Carolina do Norte, receberam instruções. O alvo da missão misteriosa era, na verdade, Osama bin Laden. “Ah, essa não”,28 comentou Bissonnette. Vinte e oito elementos altamente experientes do DEVGRU tinham sido escolhidos para a operação,29 incluindo um especialista em explosivos. Também faziam parte da equipe um cão de combate, chamado Cairo, e um intérprete. Quatro substitutos tinham sido incluídos na missão, para o caso de um dos SEALs se contundir no treinamento. No Afeganistão, se juntaria ao destacamento de estrelas um SEAL que Bissonnette chamou de “Will”, que aprendera a falar árabe sozinho e seria capaz de fazer interrogatórios sobre a missão. Com a ajuda de analistas da CIA, os homens decoraram a maquete complicada da propriedade, exibida do lado de fora da sala de instruções. A maquete, de isopor, estava sobre uma base quadrada de compensado, com 1,5 metro de lado. Ficava numa caixa de madeira quando não era usada. O modelo mostrava “a casa de Bin Laden com incrível riqueza de detalhes,30 incluindo as arvorezinhas do pátio e carros na entrada da garagem e na rua que passava pelo lado norte do conjunto”, escreveu Bissonnette mais tarde. “Mostrava também onde ficavam os portões e portas de acesso, as caixas-d’água no teto, e até o arame farpado que corria pelo topo do muro. Um gramado cobria o pátio principal. Até as casas vizinhas e os campos eram representados quase nos mínimos detalhes.” O s SEALs foram apresentados ao Caminhante. Numa exposição feita pela CIA intitulada “Caminho para Abbottabad”,31 foram postos a par do trabalho de Inteligência, durante anos,
para rastrear o líder da Al-Qaeda. Dias depois de chegarem à Carolina do Norte, os homens tiveram seu primeiro vislumbre do Caminhante, por meio de um vídeo em preto e branco. Viram-no caminhar em círculos sob um “toldo improvisado” no pátio da propriedade. Em certa ocasião, um helicóptero militar paquistanês passou sobre a propriedade enquanto o Caminhante estava do lado de fora. “Não vimos o Caminhante correr para um carro e fugir. No mesmo instante, todos pensamos a mesma coisa”, lembrou Bissonnette. “Aquilo significava que ele estava habituado ao barulho de helicópteros.”32 A avaliação da CIA informou aos homens que se acreditava que Bin Laden estivesse morando no terceiro andar da propriedade, e seu filho Khalid, no segundo. Com exceção de conjecturas bem informadas, segundo as quais os residentes da propriedade ocupariam este ou aquele andar, os homens do DEVGRU não faziam ideia de como era o interior das casas. Só saberiam quando entrassem nelas. A equipe usaria várias palavras “profissionais” para informar sobre o avanço da missão pelo rádio, pois palavras curtas e isoladas reduziriam o tráfego de rádio e a confusão. De acordo com Bissonnette, “para essa missão33 escolhemos palavras que tinham como tema ‘indígenas americanos’”. Bin Laden seria chamado de “Geronimo”. À medida que os SEALs se preparavam para a missão, McRaven fazia exposições a Obama e sua equipe de segurança nacional. “Em termos de dificuldade,34 comparada com o que fazemos todas as noites no Afeganistão e com o que fazemos no Iraque, essa missão não é uma das mais difíceis do ponto de vista técnico. A parte difícil foi a questão da soberania com o Paquistão e voar durante longo tempo dentro do espaço aéreo paquistanês”, disse McRaven. Tony Blinken, consultor de segurança nacional do vice-presidente Biden, assim descreveu o impacto da análise de McRaven: “Antes de mais nada, o fato de ele pertencer ao elenco central ajuda”,35 disse Blinken a Bergen.
Ele parece talhado para o papel, de modo que inspira confiança, mas a gente fica também com uma impressão fortíssima de que ele não é um sujeito que vai se gabar ou jactar-se. É um sujeito que expõe a avaliação com muita honestidade, e por isso quando falou foi recebido com muita credibilidade, o que também criou uma enorme confiança. E basicamente o que McRaven nos disse foi que, depois de terem planejado, analisado e treinado a missão, ele decidiu: “Podemos fazer isso”.
Enquanto os SEALs faziam manobras preparatórias para a operação na Carolina do Norte e no deserto de Nevada, vários figurões do governo, das Forças Armadas e da CIA presenciavam alguns exercícios. Segundo Bissonnette, durante uma sessão, alguém perguntou se a incursão era para matar. “Um advogado36 do DoD ou da Casa Branca salientou que não era para ser assassinato”, contou. “Se estiver nu, com as mãos para cima, você não vai lutar com ele”, disse o advogado. “Não sou eu quem vai lhes dizer como devem fazer seu trabalho.”
A equipe de SEALs foi mandada para Jalalabad, no Afeganistão, antes da missão. Bissonnette estendeu uma rede no avião, preparando-se para a longa viagem. Alguns homens engoliram um comprimido de sonífero para o longo voo transatlântico. Analistas da NSA e da CIA juntaram-se aos SEALs. Logo depois que o avião decolou, Bissonnette ocupou um assento vago ao lado de uma analista da CIA e lhe perguntou: “Quais são as probabilidades?”.37 De que o homem na propriedade fosse Bin Laden, é claro. “Cem por cento”, ela respondeu. Bissonnette recostou-se, lembrando-lhe que já tinha escutado essas afirmações da boca de analistas de Inteligência e que tinham se revelado infundadas. A analista da CIA mostrou-se ainda mais convicta de sua avaliação, dizendo a Bissonnette que não apoiara a ideia da incursão e teria preferido um ataque aéreo. “Às vezes o chefe do JSOC é o grande gorila da sala”, disse ela. “Eu gostaria de poder simplesmente apertar um botão e lançar-lhe uma bomba.” Bissonnette respondeu: “Vocês fizeram a parte mais árdua do trabalho para nos trazer até aqui”, acrescentando: “Mas estamos muito felizes por ter nossos trinta minutos de diversão”. Na manhã de sexta-feira, 29 de abril, às 8h20 da manhã,38 Obama encontrou-se com Thomas Donilon, consultor de Segurança Nacional, seu assistente Dennis McDonough, John Brennan e o chefe do Estado-Maior William Daley na Sala de Recepção Diplomática da Casa Branca. Obama anunciou aos presentes, dispostos num semicírculo: “Tomei a decisão. Vamos lá.39 E a única coisa capaz de nos fazer não ir é se Bill McRaven e sua gente julgarem que as condições do tempo ou do solo aumentam o risco para as nossas forças”. A missão teria o nome de operação Lança de Netuno, homenagem ao tridente do deus romano do mar, símbolo comum nos equipamentos dos SEALs que aparece no quepe da unidade. Em sua segunda noite em Jalalabad, Bissonnette e outros SEALs sentaram-se em torno de uma fogueira, discutindo em que parte do corpo de Bin Laden atirariam. “Tentem não acertar o filho da puta no rosto”,40 disse um SEAL que ele chamava de “Walt”. “Todo mundo vai querer ver a foto.” Os homens especularam a respeito de como aquela incursão favoreceria a carreira de seus oficiais comandantes. Bissonnette previu que McRaven seria promovido a comandante do Socom.41 “E vamos reeleger Obama, com certeza”,42 acrescentou Walt. “Já posso vê-lo falando como matou Bin Laden.” A incursão, planejada para a noite de sábado, 30 de abril, coincidia com o Jantar dos Correspondentes da Casa Branca, o que significava que o presidente e praticamente todos os membros graduados de sua equipe de segurança nacional estariam socializando com a elite da imprensa e com celebridades de Hollywood enquanto se desenrolava a incursão. Alguns assessores do presidente queriam adiar a operação para depois do jantar, por temerem que se algo desse errado, obrigando o presidente e outras autoridades a deixarem o evento, o sigilo da incursão fosse por água abaixo. A incursão fora planejada, especificamente, para ocorrer numa noite sem lua,43 de modo que os helicópteros se aproximassem da forma mais sorrateira possível. Por acaso, uma excessiva nebulosidade acabou obrigando McRaven a adiar a incursão44 para a noite seguinte.
Obama telefonou a McRaven para uma verificação final. Já era tarde da noite em Jalalabad quando McRaven levantou o fone. Disse ao presidente que seus homens estavam prontos para partir. “Eu não poderia ter mais confiança45 do que a que tenho em você e em suas forças”, disse o presidente. “Desejo boa sorte a você e a suas forças. Por favor, transmita a eles meu agradecimento pessoal pelo trabalho e também a mensagem de que vou acompanhar pessoalmente, bem de perto, essa missão.” O presidente e a primeira-dama chegaram ao Washington Hilton às dezenove horas da noite de sábado para o Jantar dos Correspondentes.46 Lá estavam também Panetta, Gates, Vickers e vários outros membros da equipe que planejara o ataque contra Bin Laden. No semblante de Obama nada transparecia da tensão quanto aos preparativos que estavam sendo feitos do outro lado do globo. O presidente estava calmo e jovial, fazendo piadas, entre elas uma endereçada ao bilionário Donald Trump, que estava na plateia. Trump estivera em evidência na imprensa, promovendo sua fútil teoria de que o presidente não era cidadão americano. O anfitrião do jantar, Seth Meyers, estrela do programa de TV Saturday Night Live, chegou a fazer uma piada sobre Bin Laden, obviamente sem imaginar que várias pessoas na festa estavam profundamente envolvidas no plano de matá-lo daí a horas. “As pessoas acham que Bin Laden está escondido no Hindu Kush”, disse Meyers. “Mas você sabia que todos os dias, das quatro às cinco da tarde, ele é âncora de um programa na C-SPAN?”* A câmera mostrou o presidente gargalhando.
No Afeganistão, as instruções finais antes do início da operação Lança de Netuno foram dadas numa sala “onde só sobravam lugares em pé”,47 como escreveu Bissonnette, com SEALs do outro esquadrão da base lotando a sala. O presidente tinha autorizado os SEALs a resistir a quaisquer unidades paquistanesas que os confrontassem na missão. O oficial que dava as instruções às equipes explicou-lhes o que deveriam dizer no caso de serem presos pelos paquistaneses: estavam tentando recuperar um drone que tinha caído. A ideia provocou risos. “A história era ridícula.48 Éramos aliados do Paquistão no papel, e, se perdêssemos um avião não tripulado, o Departamento de Estado negociaria diretamente com o governo paquistanês para tê-lo de volta”, afirmou Bissonnette, incrédulo. “A história não convenceria ninguém e seria muito difícil sustentá-la durante horas de interrogatório”, escreveu.
A verdade é que, se chegássemos a esse ponto, nenhuma história que inventássemos justificaria a presença de 22 SEALs com 27 quilos de equipamento high-tech nas costas, um especialista em descarte de material bélico explosivo e um intérprete — num total de 24 homens —, mais um cão, incursionando num bairro de subúrbio a poucos quilômetros de uma academia militar paquistanesa.
O comandante do DEVGRU encerrou a sessão de instruções. McRaven, disse ele, tinha lhes dado sinal verde.49 Daí a 24 horas, os SEALs estariam voando para Abbottabad. Os membros da equipe de segurança nacional de Obama começaram a chegar à Casa Branca por volta das oito horas da manhã50 do domingo, 1o de maio. Pratos de sanduíches foram comprados na Costco.51 Fizeram-se pedidos a várias pizzarias52 para evitar uma encomenda grande, que chamaria muita atenção. Por volta das treze horas,53 a equipe de segurança nacional de Obama começou a se reunir na Sala de Situação. Obama estava terminando uma partida de golfe54 na Base Aérea Andrews — para não passar a impressão de que algo de anormal estava para acontecer. Na CIA, Panetta e seu assistente, Mike Morell, reuniram-se com o comandante do Socom, numa sala protegida. No papel, Panetta era o encarregado da operação. Na realidade, era o almirante McRaven que dirigia a Lança de Netuno. Obama voltou para a Casa Branca aproximadamente às catorze horas, ainda usando os sapatos de golfe e um agasalho, e desceu a escada para a Sala de Situação, onde foram exibidas as observações finais de Panetta sobre a operação. No entanto, Obama e sua equipe não quiseram acompanhar a mais delicada missão da história dos Estados Unidos da Sala de Situação, construída para tais operações. Em vez disso, as mais altas autoridades americanas se espremeram numa salinha muito menor, ao lado. Essa salinha tinha o mesmo sistema protegido de comunicações por vídeo e telefonia, mas nela só cabiam sete pessoas.55 Dois televisores de tela plana, de dimensões modestas, achavamse instalados lado a lado numa parede. No dia da incursão contra Bin Laden, a sala de reuniões tinha sido ocupada pelo general de brigada Marshall “Brad” Webb, comandante assistente do JSOC. Ele e outro oficial do JSOC estavam monitorando a operação em tempo real com um laptop. O sinal vinha de um drone furtivo RQ-17056 que sobrevoava Abbottabad. Além disso, eles tinham comunicações seguras com McRaven em Islamabad, com Panetta na sede da CIA e com o general Cartwright no Centro de Operações do Pentágono. Quando os homens propuseram transferir o centro de comando para a Sala de Situação, disseram-lhes que deveriam manter tudo como estava.57 Ao lado, na Sala de Situação, o círculo de consultores próximos de Obama58 debatia se o presidente deveria acompanhar a missão ao vivo. Enquanto a discussão prosseguia, várias autoridades de primeiro escalão, entre elas a secretária de Estado Hillary Clinton e o vicepresidente Biden, começaram a passar para a salinha do general Webb. Pouco depois, o presidente entrou na sala. “Preciso ver isso”,59 disse. O comandante supremo sentou-se numa cadeira dobrável à direita de Webb. Obama mais tarde comentou a disposição dos assentos, dizendo: “[Webb] começou a se levantar e as pessoas estavam começando a cumprir o protocolo e imaginando como redispor as coisas. Eu disse: ‘Não se preocupem com isso. Concentrem-se só no que estão fazendo’. E foi assim que acabei [numa] cadeira dobrável”.60
Eram 23 horas em Abbottabad,61 e na propriedade de Bin Laden as famílias já tinham se deitado. Muitos quilômetros a oeste, do outro lado da fronteira entre o Paquistão e o Afeganistão, em Jalalabad, 23 membros da Equipe 6 dos SEALs estavam numa base aérea preparando-se para dar início à sua missão. Meia hora depois, os helicópteros Black Hawk62 decolaram. Às 2h30, a Casa Branca recebeu a primeira informação de que os helicópteros tinham decolado. “O clima era de roer as unhas até o sabugo63 e de prender a respiração”, comentou Brennan. O s SEALs estavam empregando na missão dois helicópteros Black Hawk MH-60, especializados, pilotados por homens do JSOC, apelidados “Patrulheiros da Noite”. Os Black Hawks eram uma versão stealth, ou seja, de baixa assinatura radar, que os Estados Unidos vinham desenvolvendo havia anos.64 Esse aparelho, de características singulares, nunca tinha sido objeto de descrição pública. Fora alterado com tecnologia avançada que lhe permitia voar em silêncio e evitar detecção por radar. Para mascarar ainda mais sua presença, os pilotos voariam em alta velocidade e o mais perto do solo possível.65 O general Hugh Shelton, excomandante do Socom, cujo filho é piloto do JSOC, declarou que os Patrulheiros da Noite são os melhores pilotos das Forças Armadas americanas. “Eles conseguem, literalmente… São capazes de pilotar um helicóptero de cabeça para baixo, se quiserem, e podem pousar num trem em movimento… de noite”, ele me disse. “Sempre que haja uma missão que não pode falhar,66 você vai querer que esses homens sejam os pilotos.” Três Chinooks MH-4767 decolaram do mesmo aeródromo em Jalalabad assim que os Black Hawks entraram no Paquistão. Um deles pousou no lado afegão da fronteira. Os outros dois voaram até um rio remoto em Kala Dhaka,68 localizado na região de Swat, mais ou menos a oitenta quilômetros ao norte da propriedade de Bin Laden. Ali a Força de Reação Rápida esperaria. Se a incursão dos SEALs enfrentasse problemas sérios, a QRF chegaria a Abbottabad em cerca de vinte minutos.69 Nesse ínterim, os Black Hawks voaram em direção à propriedade e chegaram aos arrabaldes de Abbottabad. No Afeganistão, o almirante McRaven dirigia a operação de um ponto seguro em Jalalabad. Em Kabul, o general David Petraeus e um de seus auxiliares monitoravam os acontecimentos70 numa sala de controle secreta. Se os paquistaneses fizessem decolar seus caças a jato, Petraeus estava pronto para mobilizar a reação da força aérea americana.
* Acrônimo de Cable-Satellite Public Affairs Network (rede por cabo e satélite para assuntos públicos), rede de três cadeias a cabo americanas dedicada à cobertura contínua e ao vivo de atividades do governo (presidência e Congresso dos Estados Unidos). (N. T.)
49. “Pegamos o cara. Pegamos o cara”
PAQUISTÃO, 2011 — O presidente Obama e sua equipe espremiam-se em torno de uma mesa na salinha ao lado da Sala de Situação, vendo imagens granuladas dos Black Hawks se aproximando do noroeste de Abbottabad. Os poucos assentos já estavam ocupados, mas todos os presentes mantinham-se em silêncio, só quebrado por uma ou outra pergunta1 ao assistente de McRaven, o general Webb. A bordo dos helicópteros, alguns SEALs tinham tentado um cochilo a caminho daquela missão, sem dúvida a mais importante da carreira de todos eles. Matt Bissonnette disse que só acordou direito quando o helicóptero estava a dez minutos da cidade.2 Ajeitou seus óculos de visão noturna e preparou o equipamento de rapel. Com as pernas do lado de fora do helicóptero, observava a paisagem que corria sob seus pés. “Sobrevoávamos várias casas3 com piscinas iluminadas e jardins bem cuidados atrás de altos muros de pedra. Eu estava acostumado com aldeias pobres de cabanas de adobe”, lembrou-se. “De cima [de Abbottabad], tive a impressão de estar sobrevoando um subúrbio nos Estados Unidos.” Passando sobre o muro sudeste da propriedade, o Black Hawk entrou em voo estacionário perto da área onde os SEALs tinham planejado descer. Com os óculos de visão noturna, Bissonnette divisava detalhes do solo.
Olhando o conjunto, dez metros abaixo,4 vi roupa lavada sacudindo no varal. Os tapetes estendidos para secar estavam se sujando com a poeira dos rotores. Havia lixo em redemoinho pelo quintal, e, num curral próximo, cabras e vacas se atropelavam, assustadas com o barulho do helicóptero.
Foi nesse ponto que as coisas passaram a divergir do plano original. O Black Hawk começou a perder altura rapidamente. Isso aconteceu, em parte, devido à alta temperatura, mas foi também decorrência do peso extra5 do sistema aplicado ao aparelho para impedir sua detecção pelo radar. Numa altitude elevada, o piloto pode tentar voar na vertical para evitar a queda, mas em baixa altitude essa opção pode ser mortal. O piloto do Black Hawk em perigo tentou controlá-lo girando noventa graus para a direita. Bissonnette sentiu o corpo flutuar sobre o piso do aparelho e procurou um lugar onde se firmar. Espremido contra os outros SEALs, não conseguiu puxar o corpo para dentro. “Puta merda,
estamos entrando”,6 pensou, vendo o muro da propriedade aproximar-se cada vez mais. Bissonnette juntou as coxas contra o peito, na esperança de evitar que fossem esmagadas se o helicóptero caísse de lado. “O helicóptero estremeceu7 quando a dianteira cravou no chão, mole como um dardo. Num instante o chão tinha vindo em alta velocidade ao meu encontro. No instante seguinte eu estava totalmente imóvel. Foi tudo tão rápido que nem senti o impacto.” O piloto do Chalk Um conseguira ir até o fim de seu plano de emergência — fazer o helicóptero pousar no pátio maior da propriedade. A cauda do aparelho comprimiu-se de encontro ao muro da propriedade, de 3,5 metros de altura, num ângulo que impedia que os rotores do aparelho batessem no chão e se despedaçassem, transformando-se em metralha perigosa. “Se qualquer outra parte8 atingisse o muro, ou se tivéssemos virado e o rotor tocasse o chão primeiro, nenhum de nós teria saído andando, ileso”, escreveu Bissonnette. Os pilotos, ele disse, “conseguiram fazer o impossível”. O “pouso forçado” salvou a vida dos SEALs, mas a possibilidade de negar o que a missão era na verdade tinha ido por água abaixo. O mesmo se poderia dizer de qualquer esperança de surpreender os ocupantes da propriedade. O plano original tinha de ser abandonado. Em vez de descer por cordas dentro da propriedade, os SEALs teriam agora de executar o ataque partindo do lado de fora dos muros. A perda do elemento surpresa talvez permitisse que seus alvos se armassem e se preparassem para resistir aos comandos americanos. “Senti um aperto no coração”,9 escreveu Bissonnette.
Até a ordem de circular, tudo estava funcionando como planejado. Tínhamos conseguido burlar os radares e evitar os mísseis do Paquistão durante o trajeto, e havíamos chegado sem que nos detectassem. Agora, a invasão estava indo à merda. Tínhamos ensaiado essa possibilidade, mas como plano B. Se o alvo estivesse realmente lá dentro, o fator surpresa seria fundamental, mas agora estava desaparecendo.
Fez-se silêncio na Casa Branca, enquanto Obama e seus consultores aguardavam notícias do helicóptero acidentado. “Podíamos acompanhar a situação em tempo real”, disse depois o presidente. “Por isso, ali no nível máximo, todo mundo, creio, prendia a respiração. Aquilo não estava no roteiro.”10 “Foram realmente momentos carregados de emoção”,11 afirmou a secretária de Estado Hillary Clinton. Mais tarde ela diria ao escritor Peter Berger: “Aquilo lembrava um episódio da série 24 ou qualquer filme que se possa imaginar”. Biden, que se opusera à opção da incursão de comandos, manuseava, nervoso, seu rosário, assistindo ao desenrolar do acidente. “O que se podia ver ali era que não aconteceu a primeira coisa que, como nos disseram, teria de acontecer para que a missão tivesse sucesso”, comentou Biden. “O helicóptero não pousou no lugar certo, e foi como se todo mundo quisesse dizer: ‘Parem!’.”12
Se a equipe de segurança nacional de Obama estava abalada com o acidente, o mesmo não acontecia com McRaven. Ou pelo menos ele não deu essa impressão. “Já vamos corrigir a missão”,13 disse ele, calmamente, a Panetta. “Diretor, como pode ver, temos um helicóptero caído no pátio. Meus homens estão preparados para emergências assim e vão resolvê-la.” A serenidade e a confiança de McRaven impressionaram as autoridades na sala. “O almirante McRaven teve uma conduta notável, imperturbável e profissional”, disse depois Ben Rhodes, consultor assistente de segurança nacional. “Sua fisionomia não se abalou.”14 Mais tarde, Obama referiu-se a McRaven como “uma pedra de gelo”.15 De acordo com Obama: “Tivemos a sensação de que,16 apesar de o helicóptero ter pousado com violência, seus passageiros não tinham se ferido e iriam ainda cumprir a missão”.
Todos os SEALs do helicóptero acidentado haviam sobrevivido sem ferimentos graves. E como o segundo helicóptero, que deveria ter depositado seus SEALs no terraço do prédio, pousou do lado de fora da propriedade, foi acionado o plano b. Bissonnette e Will, o tradutor, seguiram em direção à casa de hóspedes, onde disseram ter sido recebidos a tiros de fuzil AK-47, e responderam o fogo. Em pouco tempo, saiu da casa de hóspedes uma mulher com uma criança pequena nos braços. Era Mariam al-Kuwaiti, mulher do mensageiro. “Ele está morto”,17 disse ela. “Vocês atiraram nele. Ele morreu. Vocês o mataram.” Will a revistou, em busca de armas, e transmitiu o recado a Bissonnette. Abaixando-se, Bissonnette abriu a porta e olhou para dentro. “Vi os pés de alguém estirado no chão na entrada do quarto de dormir”,18 disse. Com Will às suas costas, ele entrou na casa e deu vários outros tiros em Kuwaiti. Embora Bissonnette tenha afirmado que tinham atirado nele, outros relatos, inclusive o de Bergen, levam a crer que Kuwaiti estava desarmado. “O AK-47 do mensageiro19 foi encontrado depois ao lado de sua cama. É improvável que tenha sido usado, devido à sua localização e ao fato de não terem sido achados cartuchos da arma”, escreveu Bergen. Enquanto isso, outro grupo de SEALs20 avançava para a casa principal, abatendo outros dois membros da família de Kuwaiti, diante de mulheres e crianças horrorizadas. Fazia cerca de dez minutos que os homens estavam em solo. Os SEALs do Chalk Dois tinham conseguido entrar na propriedade pelo portão principal. Quando os comandos pisaram dentro da casa de Bin Laden, perderam contato21 com a equipe de Obama na Casa Branca. Mais tarde, o presidente disse:
Houve longos períodos22 em que tudo o que fizemos foi esperar. E esses foram os mais longos quarenta minutos de minha vida, com a possível exceção de quando Sasha teve meningite, com três meses de idade, e fiquei esperando o médico me dizer que ela estava bem. Foi uma situação muito tensa.
Em Targeting Bin Laden, documentário para o History Channel, Obama disse ainda: “Ficamos totalmente no escuro,23 era difícil saber com exatidão o que estava acontecendo. Sabíamos que havia tiros e também algumas explosões”. Nesse ínterim, o portão que bloqueava a escada da casa foi pelos ares. Os SEALs começaram a subir os degraus, que “se dispunham em ângulos de noventa graus,24 formando uma espécie de escada em espiral, com lanços separados por pequenos patamares”. No segundo andar havia quatro portas. Os SEALs revistaram cada um dos cômodos e começaram a subir para o terceiro andar, onde acreditavam que o Caminhante e sua família residissem. Ao fazê-lo, viram uma cabeça que apareceu por um instante atrás da parede, no alto da escada. Analistas de informações haviam adiantado que Khalid,25 filho de Bin Laden, morava no segundo andar. Os informes diziam também que Khalid não usava barba. A descrição coincidia com o homem que olhara pelo canto da parede da escada. “Khalid”, murmurou um SEAL. “Khalid.” Quando o rapaz de 23 anos juntou coragem para olhar pelo canto da parede de novo, levou uma bala no rosto. “O que Khalid estaria pensando26 naquele momento?”, perguntou Bissonnette depois. “Olhar pelo canto… A curiosidade matou o gato. Acho que matou Khalid também.” Os comandos acabaram de subir as escadas, passando por cima de placas de cerâmica molhadas pelo sangue de Khalid. Enquanto avançavam pelo corredor do terceiro andar, viram a cabeça de um homem aparecer numa porta. Um dos homens disparou duas rajadas curtas contra a figura.27 O homem desapareceu no quarto. Ao entrar, os homens viram duas mulheres. Imaginando que pudessem estar usando coletes com explosivos, um deles as agarrou e levou-as para um canto do quarto, para que seus colegas pudessem continuar. Outro SEAL se viu, no escuro, face a face diante de um homem alto.
No mesmo segundo,28 atirei nele, duas vezes, na testa. Pá! Pá! No segundo tiro, ele caiu [...]. Desabou no chão, diante da cama, e atirei de novo, pá!, no mesmo lugar. Dessa vez usei minha mira holográfica eletro-óptica de ponto vermelho. Ele estava morto. Não se mexia. Tinha a língua para fora. Vi que ele fazia as últimas inspirações, num gesto reflexo.
Bissonnette e outro SEAL entraram no quarto. “Vimos imediatamente o homem deitado no chão ao pé da cama”,29 ele contou.
Sangue e massa cinzenta escorriam do crânio. À beira da morte, ele se contorcia, em convulsão. Eu e o outro invasor apontamos nossos lasers para seu peito e fizemos vários disparos. As balas rasgaram-lhe a carne, sacudindo o corpo contra o assoalho, até parar de
mexer.
O quarto estava ainda completamente às escuras, de modo que Bissonnette ligou a luz de seu capacete para examinar melhor o rosto do homem. Estava coberto de sangue. “Um buraco na testa30 tinha feito o lado direito de seu crânio cair”, lembrou-se. “O peito dele estava rasgado a partir do lugar onde as balas tinham entrado em seu corpo. Ele jazia numa poça de sangue que aumentava cada vez mais.” O SEAL que atingiu o homem disse: “O público americano31 não quer nem saber que cara tem isto”. Os SEALs não tinham certeza de que o homem abatido era Bin Laden. Seu rosto era agora uma massa informe. Começaram a tirar amostras de DNA de seu corpo, e um dos comandos borrifou o rosto ensanguentado do homem com o líquido de sua mochila de hidratação. Bissonnette pôsse a limpar o rosto do morto. “A cada movimento, o rosto ficava mais conhecido.32 Parecia mais jovem do que eu esperava. A barba era negra, como se tivesse sido tingida. Eu não parava de pensar em como não era nem um pouco parecido com a imagem que eu tinha”, escreveu ele. Um dos SEALs passou uma mensagem de rádio para a rede de comando: “Temos uma possível, repito, uma possível aterrissagem do alvo no terceiro andar”. Bissonnette começou a tirar fotos do corpo do homem. Depois ajoelhou-se para se concentrar no rosto. Virou sua cabeça inerte para ter fotos de perfil. A seguir, pediu a um companheiro que abrisse um dos olhos do homem para poder fotografá-lo em close-up. Na sacada, o SEAL que falava árabe interrogava as mulheres e as crianças. Veio pelo rádio uma ordem para preparar o Black Hawk acidentado para ser destruído. Nessa altura, mesmo porque a missão tinha durado mais que o previsto, a reserva de combustível para os helicópteros restantes, inclusive o CH-47 em voo estacionário ali perto, estava baixando. Bissonnette continuou a tirar fotos, enquanto seu companheiro coletava amostras do sangue e da saliva do homem. Os SEALs tinham dois conjuntos idênticos de fotos e de amostras de DNA que seriam levados de volta a Jalalabad separadamente, em cada um dos Black Hawks. “Planejamos assim para que uma amostra de DNA e um conjunto de fotos sobrevivessem,33 se um dos helicópteros fosse derrubado no voo de volta para Jalalabad”, explicou depois Bissonnette. O SEAL que falava árabe interrogou a mulher mais velha no quarto. Quando perguntou quem era o homem morto, ela disse “O xeque”, mas recusou-se a dar maiores explicações. Depois de ouvir vários nomes, o SEAL voltou-se para as crianças. Perguntou a uma das meninas, que lhe disse que o homem era Osama bin Laden. Ele perguntou se ela tinha certeza, e a menina confirmou. O SEAL virou-se de novo para a mulher mais velha. “Agora pare de me encher o saco”, gritou, e perguntou-lhe mais uma vez34 quem era o homem no quarto. Chorando, a mulher confirmou que era Osama bin Laden. O SEAL comunicou a dupla confirmação. Nesse momento, dois SEALs graduados, entre eles o comandante do esquadrão de Bissonnette, entraram no quarto. O comandante examinou o rosto de Bin Laden. “É, parece que é nosso cara”, disse. O SEAL graduado saiu do quarto e mandou um rádio para McRaven: “Por Deus e
pelo país, transmito Geronimo”, disse ele. “Geronimo E.K.I.A.” Era a sigla, em inglês para “Geronimo morto em ação”.35 Na apinhada sala de reuniões da Casa Branca, do outro lado do mundo, a equipe de segurança nacional de Obama exultou. “Pegamos o cara”, disse Obama calmamente. “Pegamos o cara.”36 O almirante McRaven procurou evitar comemoração antes da hora.
Ouçam, recebi um aviso de Geronimo,37 mas tenho de lhes dizer que se trata de uma primeira comunicação. Por favor, mantenham suas expectativas um pouco controladas. Em geral, os quadros operacionais, em missão, estão com a adrenalina lá em cima. Eles são profissionais, mas é bom não considerarmos isso favas contadas até eles voltarem e termos comprovações.
O chefe do JSOC acrescentou: “Estamos com SEALs no solo sem transporte”. Fazia pouco mais de meia hora que os SEALs estavam na propriedade quando Bin Laden foi morto. A possibilidade de um enfrentamento com forças paquistanesas crescia a cada segundo. No segundo andar da casa maior, os homens tentavam juntar o máximo possível de pertences de Bin Laden38 e de possíveis fontes de informações. Terminado o processo de fotografar e colher amostras de DNA, dois SEALs tiraram o corpo do quarto, arrastando-o pelas pernas. Bissonette começou a revistar a área, agarrando papéis e alguns cassetes. Achou também duas armas:39 um fuzil AK-47 e uma pistola Makarov. Nenhuma delas estava carregada. O tempo se esgotava. Fora da propriedade, o intérprete e alguns SEALs tinham conseguido deter alguns curiosos, mas Abbottabad estava acordando. Autoridades paquistanesas poderiam chegar a qualquer momento, e os helicópteros que circulavam sobre a propriedade estavam ficando sem combustível. Valera a pena ter trazido o intérprete, já que moradores do bairro tranquilo tinham ouvido o barulho de helicópteros e de explosões, e alguns tinham descoberto que a energia elétrica fora cortada. Gul Khan declarou ao jornal India Today: “Vi soldados saindo dos helicópteros40 e correndo em direção à casa. Alguns deles nos disseram, num pashto castiço, que desligássemos as luzes e ficássemos dentro de casa”. Entrevistado pela CNN depois da incursão, um homem não identificado disse, por intermédio de um tradutor: “Não vimos as roupas deles,41 mas estavam falando pashto e nos disseram que fôssemos para casa. Depois de algum tempo, [quando a] falta de eletricidade acabou e a luz voltou, eles nos mandaram apagar todas elas”. Um outro homem que prestou declarações à CNN, por meio de um tradutor, disse: “Tentamos ir lá, mas eles apontaram as armas com mira de laser para nós e disseram: ‘Não, vocês não podem ir lá’. Estavam falando pashto, e por isso pensamos que eram afegãos, e não americanos”. Os SEALs que estavam na casa se surpreenderam com a quantidade de materiais disponíveis, mas não podiam levar tudo. Tinham cinco minutos. “Sabíamos que era arriscado ficar sem
combustível,42 ou permanecer no alvo tempo demais, dando à polícia ou às Forças Armadas tempo para reagir”, lembrou Bissonnette depois. “Conseguimos o que fomos buscar: Bin Laden. Era hora de partir, enquanto ainda era tempo.” Bissonnette dirigiu-se à zona de pouso. Logo se juntaram a ele os SEALs que estavam no segundo andar da propriedade de Bin Laden, carregados de objetos que tinham reunido na casa. “Parecíamos um acampamento de ciganos,43 ou Papai Noel na noite de Natal”, ele escreveu. “Alguns levavam nos ombros sacolas de náilon tão cheias que lhes dificultava a corrida até o helicóptero. Vi um SEAL com uma CPU numa mão e uma sacola de couro para roupa de ginástica repleta de objetos na outra.” O cadáver de Bin Laden, agora num saco mortuário, foi posto no Black Hawk que sobrou,44 o qual, na opinião dos SEALs, teria melhores chances de sair incólume do Paquistão. O grande Chinook — o CH-47 — podia levar os SEALs. Antes de decolar, o comandante explodiu o Black Hawk acidentado, de modo que sua tecnologia de baixa assinatura radar não pudesse ser examinada pelos paquistaneses. Obama e sua equipe viram, pela TV, a fogueira de 60 milhões de dólares.45 As notícias sobre os estranhos acontecimentos em Abbottabad espalharam-se depressa. À uma hora, pouco antes que os SEALs decolassem46 para deixar a propriedade, o comandante do Exército paquistanês, general Ashfaq Parvez Kayani, estava em seu escritório e recebeu uma ligação do diretor de operações militares, o general de divisão Ishfaq Nadeem. Com base nos informes iniciais que tinha recebido, Kayani julgou que a Índia poderia estar realizando algum tipo de ataque no interior do Paquistão. Telefonou para o marechal Rao Qamar Suleman, comandante da Força Aérea, e ordenou que a força atacasse qualquer aeronave não identificada. Por volta da 1h08, os SEALs decolaram em Abbottabad. Obama determinou à sua equipe de segurança nacional: “Informem assim que nossos helicópteros saírem do espaço aéreo paquistanês”.47 O Black Hawk e o Chinook seguiram rotas mais diretas, porém separadas,48 para sair do Paquistão, com o Black Hawk parando num ponto de reabastecimento no país. Todos os militares americanos cruzaram a fronteira para o Afeganistão ilesos, levando o corpo de Bin Laden. No aeródromo em Jalalabad,49 uma caminhonete branca Toyota Hilux esperava para transportar o cadáver de Bin Laden até um hangar próximo. Quando o Black Hawk pousou, três Rangers do Exército agarraram o corpo do líder da Al-Qaeda. “Não, porra”, disse um dos SEALs aos Rangers. “Isto é nosso.” O corpo de Bin Laden foi levado de helicóptero para Bagram, onde se tiraram novas amostras de DNA, e depois para o mar da Arábia,50 onde se encontrava o porta-aviões USS Carl Vinson. “Foram respeitados os procedimentos tradicionais do sepultamento islâmico”,51 dizia um e-mail de 2 de maio enviado do Carl Vinson pelo contra-almirante Charles Gaouette a Mullen e outros oficiais militares.
O corpo do morto foi lavado (ablução) e depois envolto num lençol branco. Foi posto numa bolsa mortuária com peso. Um oficial leu textos religiosos, traduzidos para o árabe por um falante nativo. Completada a leitura, o corpo foi colocado numa tábua plana, que foi inclinada, e deslizou para o mar.
50. “Agora eles estão atrás do meu filho”
SOMÁLIA, WASHINGTON, DC, E IÊMEN, 2011 — Eram 23h35, hora de Washington. O presidente Obama entrou no corredor que leva ao Salão Leste da Casa Branca. Assumiu seu lugar na tribuna, usando um terno escuro, com gravata vermelha e uma bandeirinha americana na lapela esquerda. “Boa noite”,1 começou. “Esta noite, posso anunciar ao povo americano e ao mundo que os Estados Unidos realizaram uma operação que matou Osama bin Laden, líder da AlQaeda e um terrorista responsável pela morte de milhares de homens, mulheres e crianças inocentes.” O presidente não fez referência aos SEALs ou ao almirante McRaven. “Por ordem minha, os Estados Unidos executaram uma operação dirigida contra uma propriedade em Abbottabad, Paquistão. Uma pequena equipe de americanos executou a operação com coragem e eficiência extraordinárias”, disse ele. “Nenhum americano se feriu. O grupo teve todo o cuidado para evitar baixas civis. Após uma troca de tiros, mataram Osama bin Laden e tomaram seu corpo sob custódia.” Nas semanas seguintes, multiplicaram-se as controvérsias, enquanto autoridades da Casa Branca deixavam vazar detalhes que se mostravam falsos ou exagerados. Embora o governo afirmasse explicitamente que a operação tinha sido de “morte ou captura”, e não um assassinato, Bin Laden estava desarmado ao ser morto, e as armas recuperadas em seu quarto não estavam carregadas. Entretanto, ao fazer uma exposição a repórteres logo depois da incursão, um alto funcionário do governo declarou que Bin Laden “resistiu à força de ataque”2 e “foi morto num tiroteio quando nossos homens invadiram a propriedade”. Na realidade, a incursão esteve longe de ser o tiroteio espetacular descrito inicialmente por autoridades da Casa Branca. Em menos de vinte minutos, os SEALs tinham baleado sete dos onze adultos3 na propriedade, matando quatro homens e uma mulher. Para as autoridades paquistanesas,4 mulheres e crianças tinham saído feridas na incursão. Peter Bergen, que teve acesso à propriedade, e diversas testemunhas afirmaram que todos os feridos pareciam estar desarmados. O grupo de direitos humanos Anistia Internacional classificou a incursão como ilegal em seu relatório anual de 2011. “O governo dos Estados Unidos5 deixou claro que a operação foi realizada no quadro da teoria americana de um conflito armado global em curso entre os Estados Unidos e a Al-Qaeda, no qual os Estados Unidos não reconhecem que sejam aplicáveis as leis internacionais de direitos
humanos”, disse o relatório. “Na ausência de maiores esclarecimentos, a morte de Osama bin Laden parece ter sido ilegal.” No dia seguinte ao da operação, Brennan deu uma entrevista coletiva, destinada a fornecer detalhes sobre a incursão, mas cheia de erros. Brennan começou dizendo que Osama bin Laden tinha sido morto num tiroteio e que não houvera chance de capturá-lo vivo. Mais adiante, acrescentou que Bin Laden utilizava mulheres, na propriedade, como escudos humanos. “Pensando no caso de uma perspectiva visual, temos aqui Bin Laden, que vinha pedindo esses ataques, morando nessa propriedade de 1 milhão de dólares, morando numa área muito distante da linha de frente, escondendo-se atrás de mulheres, postas diante dele como um escudo”, disse. “Acho que isso realmente mostra como foi falsa a história contada sobre ele ao longo dos anos. Além disso, em vista do que Bin Laden esteve fazendo escondido ali, enquanto punha outras pessoas para executar ataques, creio que isso também mostra a natureza da pessoa que ele era.”6 Brennan afirmou ainda que a mulher que morrera fora atingida enquanto protegia Bin Laden, embora, na verdade, ela tivesse sido morta junto com o marido. Mais tarde a Casa Branca obrigou Brennan a se desdizer.7 Os vazamentos provenientes da Casa Branca indignaram a comunidade das Operações Especiais e fizeram, por fim, que Bissonnette, um dos SEALs que tinham atirado em Bin Laden, escrevesse seu próprio livro sobre a incursão, sob o pseudônimo de Mark Owen, intitulado Não há dia fácil. Segundo Bissonnette, o livro foi escrito para esclarecer os fatos. O número de ex-SEALs e outros veteranos que começaram a falar sobre o caso tornou-se tão grande que McRaven ordenou8 que os membros das Forças de Operações Especiais, na ativa ou não, parassem de dar entrevistas à imprensa. Na noite em que Obama anunciou a morte de Bin Laden, milhares de americanos saíram às ruas diante da Casa Branca e da Times Square, em Nova York, gritando: “USA! USA!”. Para os parentes de vítimas dos ataques de Onze de Setembro, a morte de Bin Laden fechava as contas. No entanto, a operação contra o líder da Al-Qaeda insuflara vida nova na guerra global de Washington. A sigla JSOC, antes envolvida num manto de segredo, tornou-se famosa entre os americanos, e a imprensa passou a tratar os SEALs como celebridades. A Disney chegou a tentar registrar como sua a marca “SEAL Team 6”,9 e em Hollywood começou a ser rodado o filme A hora mais escura — para o qual seus produtores ganharam acesso a materiais sigilosos.10 Enquanto continuava na imprensa a batalha em relação aos vazamentos — e também sobre versões contraditórias de como se dera a morte de Bin Laden —, nos bastidores a Casa Branca mergulhava no planejamento de operações mais mortíferas contra Alvos de Grande Valor. Entre esses alvos estava Anwar Awlaki.
Ahmed Abdulkadir Warsame, somaliano que os Estados Unidos afirmavam estar ligado à Al
Shabab da Somália, foi capturado pelo JSOC, em abril de 2011, no golfo de Áden. Warsame estava num bote quando foi detido por uma equipe anfíbia.11 Autoridades americanas de contraterrorismo alegaram que ele tinha se encontrado com Awlaki e que estava formando vínculos entre a Al-Shabab e a AQPA. Os homens do JSOC levaram-no a uma prisão militar temporária a bordo do USS Boxer, onde, durante mais de dois meses, Warsame ficou incomunicável, antes de ser transferido para Nova York12 e indiciado com base em acusações de conspiração e apoio material à Al-Shabab e à Al-Qaeda. Na comunidade de direitos civis, houve quem louvasse o governo Obama por julgar Warsame num tribunal federal, em vez de mandá-lo para Guantánamo, mas o Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) não teve permissão para vê-lo durante os dois meses de interrogatórios contínuos13 a bordo do Boxer, nem ele teve acesso a advogados. O caso de Warsame provocou um debate jurídico em torno das políticas do governo Obama de capturar e deter suspeitos de terrorismo, sobretudo à luz das campanhas de contraterrorismo, cada vez mais amplas, na Somália e no Iêmen. As resoluções executivas emitidas por Obama dois dias depois de sua posse como presidente determinava que o governo notificasse o CICV14 quanto a qualquer pessoa sob a custódia do governo americano e lhe desse acesso a ela. Para aqueles que durante muito tempo tinham combatido as políticas de detenção do governo Bush, o caso Warsame mostrou que Obama estava transgredindo suas próprias resoluções executivas. “Isso é ilegal e indesculpável.15 Significa, de fato, que o sr. Warsame desapareceu durante esse período, com todos os perigos concomitantes gerados por essa detenção oculta. Lembra as antigas detenções na baía de Guantánamo e no ‘buraco negro’ da CIA”, afirmou o Centro de Direitos Constitucionais. O grupo acusou o governo Obama de “forçar” o significado da AUMF, concedida pelo Congresso para possibilitar a perseguição aos atacantes do Onze de Setembro, e de usá-la, uma década depois, “para capturar e deter, talvez indefinidamente e em qualquer lugar do mundo, qualquer pessoa que esse governo afirme ser suspeito de terrorismo”. Entretanto, o governo Obama não estava apenas capturando e detendo suspeitos: eles eram interrogados como parte de uma campanha, cada vez mais intensa, para caçar terroristas. Depois da captura de Warsame, autoridades americanas não identificadas jactaram-se16 junto a importantes meios de comunicação americanos de que o somaliano lhes proporcionara informações capazes de levar à ação. A ação gerada por essa informação não ocorreria na Somália, e sim no Iêmen, contra um dos inimigos mais procurados de Washington.
“Eu quero Awlaki”,17 disse Obama à sua equipe de contraterrorismo. “Não deem descanso a ele.” Bin Laden estava morto e Ayman al-Zawahiri em breve assumiria seu lugar como líder da organização central da Al-Qaeda, mas Obama e sua equipe tinham designado como novo
Inimigo Público Número Um aquele cidadão americano que se mudava de um lado para outro nas terras áridas do Iêmen. Numa vida diferente, Obama tinha sido professor de direito constitucional, mas como presidente criara uma estrutura legal alternativa para lidar com Awlaki. O Poder Executivo encabeçado por Obama atuara como promotor, juiz e júri. Como autoridade suprema, ele dera seu veredicto. Agora, suas forças, escolhidas a dedo, cumpririam a execução. Três dias depois de Obama ter anunciado ao mundo que o JSOC matara Osama bin Laden, a equipe de contraterrorismo lhe apresentou uma atualização dos dados sobre o Iêmen. A CIA e o JSOC acreditavam ter localizado a moradia de Awlaki no sul do Iêmen e afirmavam que tinham de aproveitar o momento para pegá-lo. Encorajados pela incursão contra Bin Laden, os generais de Obama vinham pressionando para que o presidente autorizasse uma espécie de blitzkrieg18 para desferir um golpe fulminante contra a Al-Qaeda em vários países. No Iêmen, o JSOC vinha falando em virar a mesa e assumir a ofensiva. O presidente Obama havia determinado a John Brennan19 que o atualizasse, a cada “terçafeira de terror”, a respeito de todas as informações disponíveis sobre Awlaki. Agora o presidente se via diante de uma oportunidade concreta para acabar com ele. De acordo com o relato de Daniel Klaidman, Warsame proporcionara informações cruciais sobre Awlaki. Os SEALs da Marinha que capturaram Warsame tinham também se apoderado de seu laptop, pen drives e outros dispositivos de armazenamento de dados. “O computador estava cheio20 de e-mails e outras provas que o ligavam diretamente a Awlaki. Warsame havia se encontrado com o clérigo apenas dois dias antes, para fechar um importante negócio de armas”, segundo Klaidman.
A proximidade entre Warsame e Awlaki e outros membros graduados da AQPA dava-lhe acesso a informações críticas, do tipo “sistema de vida”, que ele transmitiu aos americanos ao ser interrogado. Contou-lhes como Awlaki viajava, mencionando até os tipos de veículos que usava e a configuração de seus comboios. Forneceu informações sobre as maneiras como Awlaki transmitia e recebia comunicações, assim como sobre as complexas medidas de segurança tomadas por ele e por seu círculo.
Tudo isso somado a interceptações de sinais feitas pelo JSOC e pela CIA, e a “detalhes vitais sobre o paradeiro de Awlaki”,21 obtidos junto aos serviços de informações do Iêmen, levava agora ao que a Casa Branca acreditava serem as melhores condições já surgidas até então para matar Awlaki. As aeronaves militares americanas estavam a postos. Obama deu sinal verde. A operação caberia ao JSOC. Um avião Dragon Spear,22 das Operações Especiais, armado com mísseis Griffin de curto alcance, ganhou o espaço aéreo iemenita, apoiado por jatos Harrier, dos fuzileiros navais, e drones Predator, rumo a Shabwah. Um drone de reconhecimento Global Hawk voaria acima desses aparelhos para transmitir sinais ao vivo aos planejadores da missão.
Ciente de que os Estados Unidos estavam tentando matá-lo, o clérigo americano tomara precauções para limitar o número de pessoas com quem se comunicava. Mudava de residência frequentemente e estava sempre trocando de veículos. Na noite de 5 de maio, Awlaki e alguns amigos estavam passando de carro por Jahwa, na zona rural no sul de Shabwah, quando a caminhonete em que viajavam foi sacudida por uma explosão próxima que estilhaçou as janelas do veículo. Awlaki viu um clarão e supôs que um foguete tinha sido disparado contra o carro. “Acelere!”,23 gritou para o motorista. Olhou em torno e tomou pé da situação. Ninguém tinha ficado ferido. A caçamba da caminhonete estava cheia de botijões de gasolina, mas ainda assim o veículo não tinha explodido. Alhamdulillah, pensou Awlaki. “Graças a Deus.” Pediu cobertura. Enquanto Awlaki e os amigos corriam para se afastar do que supunham ser uma emboscada, os planejadores do JSOC viam, via satélite, seu carro emergir das nuvens de poeira causadas pelo Griffin. Tinham errado o disparo. O rastreador de alvos funcionara mal, e o sistema de guia não conseguiu fixar-se no veículo de Awlaki. A missão estava agora entregue aos Harriers e ao drone. Segundo ataque. Uma enorme bola de fogo iluminou o céu. No momento em que já se dispunham a comemorar, os planejadores viram, chocados, a caminhonete aparecer de novo. O para-choque traseiro fora atingido, mas o veículo continuava a rodar. Os Harriers já estavam com pouco combustível e tiveram de abandonar a missão. O terceiro ataque teria de ser feito pelo drone. Awlaki olhou pela janela, à procura dos autores da emboscada. Foi então que ele viu o drone no céu. Em meio à fumaça e à poeira, Awlaki disse ao motorista que não entrasse numa área povoada. Pararam num pequeno vale com algumas árvores. Os irmãos Abdullah e Musa’d Mubarak al-Daghari, conhecidos na comunidade da AQPA como irmãos Harad,24 tinham visto o ataque de longe e vinham depressa para ajudar Awlaki. Enquanto o drone sobrevoava o local, os planejadores americanos não tinham como ver o que estava acontecendo no solo. Um ex-planejador do JSOC, que leu os relatórios americanos sobre a missão malograda, explicou-me que a missão só tinha satélites que proporcionavam “imagens de cima para baixo”. Com esses satélites, disse: “Não se vê merda nenhuma.25 Você está olhando para formigas se mexendo. Eles só viam veículos, e as pessoas nos veículos eram espertas. Poeira, cascalho, fumaça e chamas tinham ocultado o Alvo de Grande Valor. Os irmãos Harad rapidamente meteram Awlaki e o motorista no utilitário Suzuki Vitara26 deles, enquanto pegavam o veículo de Awlaki. Instruíram Awlaki a ir para um penhasco no qual poderia se abrigar, se conseguisse chegar lá sem ser atingido pelos mísseis americanos. Os irmãos Harad partiram então na direção oposta, dirigindo a caminhonete que os americanos tinham tentado explodir momentos antes. Com dois veículos em movimento, cada qual numa direção, os planejadores americanos tiveram de decidir qual deles seguir. Optaram pela caminhonete de Awlaki.27 O clérigo olhou para cima e viu os drones ainda no ar. Conseguiu chegar ao penhasco nas montanhas. Dali, viu outra salva de mísseis ser disparada e explodir a caminhonete, matando os irmãos Harad. O JSOC comemorou o que julgava ter sido um ataque bem-sucedido. Awlaki fez as orações
vespertinas e refletiu sobre a situação. Naquela noite “aumentou minha certeza de que nenhum ser humano morrerá antes de completar sua vida e [atingir] o tempo que lhe é devido”, pensou. Adormeceu nas montanhas, sendo despertado por amigos que o levaram para a segurança da casa de seu velho amigo Shaykh Nadari. Na hora dos ataques, Nadari dormia, mas acordou com o barulho das explosões e sentiu o chão estremecer. “Quando chegou a manhã e a luz começou a se espalhar, ela trouxe consigo o xeque Anwar”, lembrou ele mais tarde. “Ele entrou em nossa casa com um sorriso alegre, e com isso soubemos que tinha sido ele o alvo dos ataques. Os homens se abraçaram, e Awlaki lhe falou dos ataques. Calculava que dez ou onze mísseis tinham sido disparados. Nadari lhe perguntou qual era a sensação de ser bombardeado pelos americanos. “Achei mais fácil do que pensamos que fosse. Sentimos um pouco de medo, mas Alá Todo-Poderoso nos envia tranquilidade”, disse Awlaki ao amigo. “Dessa vez, onze mísseis erraram o alvo, mas da próxima, o primeiro foguete pode atingi-lo.” Awlaki ficou com Nadari alguns dias e depois seguiu seu caminho. Aquela foi a última vez que os dois homens se viram. “Estávamos esperando que fosse ele”,28 disse uma autoridade americana depois do ataque. Ao correr a notícia do ataque, autoridades americanas não identificadas confirmaram que o ataque tinha visado Awlaki. E por algum tempo, julgaram ter tido êxito. Os operadores americanos de drones “não sabiam que os veículos tinham sido trocados,29 o que teve como resultado a morte das pessoas erradas e Awlaki [estar] ainda vivo”, de acordo com uma autoridade de segurança iemenita. Awlaki podia ter escapado, mas os Estados Unidos agora o tinham sob a sua mira. “O governo dos Estados Unidos vem visando a Al-Awlaki30 já há algum tempo, [e o] ritmo dessa operação vem aumentando”, disse Fran Townsend, ex-assessora de segurança interna do governo Bush.
Cabe crer que eles tinham um plano operacional para atacar toda a liderança [da Al-Qaeda], que o ataque com drones contra Al-Awlaki, se eles tivessem oportunidade disso, deveria ter ocorrido na mesma época da operação contra Bin Laden, de modo que pretendiam enviar um recado muito claro, de que todos os líderes da Al-Qaeda, onde quer que fossem encontrados, seriam atacados.
Nasser Awlaki não tinha acesso ao filho, mas soubera, por intermediários, que Anwar estava vivo. Percebeu que, tendo fracassando mais uma vez em sua missão de achá-lo e matá-lo, o governo dos Estados Unidos estaria mais determinado do que nunca a pôr fim àquilo. Viu na TV os noticiários sobre a incursão contra Bin Laden e ouviu comentaristas, intelectuais e altas autoridades americanas compararem seu filho ao líder da Al-Qaeda e até darem a entender que Awlaki seria o seu sucessor na liderança da organização. “Eles mataram Bin Laden e agora estão
atrás de meu filho”,31 disse.
51. “Foi a sangue-frio”
PAQUISTÃO, 2011 — Três semanas depois da incursão que matou Osama bin Laden, os líderes da ISI paquistanesa ainda estavam furiosos. O presidente Obama e o presidente Zardari, do Paquistão, apresentaram publicamente uma frente unida na comemoração da morte do líder da Al-Qaeda, e Obama agradeceu ao governo do Paquistão por sua colaboração ao longo dos anos, dizendo: “Nossa cooperação com o Paquistão no contraterrorismo1 ajudou a nos conduzir a Bin Laden e à propriedade onde ele se escondia”. Zardari escreveu uma matéria publicada na página de opinião do Washington Post elogiando a incursão e afirmando que o Paquistão tinha “feito a sua parte”.2 O primeiro-ministro Yousaf Raza Gillani declarou: “Não vamos permitir3 que nosso solo seja usado pelo terrorismo contra qualquer outro país, e, portanto, penso que foi uma grande vitória, um sucesso, e felicito o êxito dessa operação”. Apesar das barretadas diplomáticas, no entanto, a violação da soberania paquistanesa foi um escândalo no país. “Foi a sangue-frio”,4 disse um alto funcionário da segurança paquistanesa. Um dia depois da incursão, o Ministério das Relações Exteriores do Paquistão emitiu uma declaração dizendo que a incursão tinha sido “uma ação unilateral não autorizada”,5 afirmando que “um fato como esse não deve servir como precedente para país nenhum, inclusive os Estados Unidos”. O ex-ministro das Relações Exteriores do Paquistão Shah Mahmood Qureshi — afastado por sua arrojada posição no caso Raymond Davis — qualificou a incursão de “agressão gratuita”6 contra o país, enquanto o líder oposicionista Chaudhry Nisar Ali Khan clamava pela renúncia do presidente e do primeiro-ministro. “Essa operação atropela nossa honra e nossa dignidade, e o presidente e o primeiro-ministro devem dar uma explicação ou renunciar”, disse. “O governo se mantém em silêncio e parece que ninguém responderá à propaganda contra o Paquistão.” “Todo paquistanês quer saber7 como as tropas americanas entraram sem permissão no Paquistão soberano e independente”, disse Altaf Hussain, líder do movimento Muttahida Qaumi. “Como é possível que uma incursão tenha ocorrido em pleno território paquistanês? Como é possível que os agressores tenham conseguido ir embora incólumes e despercebidos? Como é possível que o governo e a Inteligência tenham ignorado tudo isso?” O Parlamento paquistanês condenou a operação, chamando-a de “violação da soberania paquistanesa”,8 e instou Islamabad a “revisitar e rever os termos de seu acordo com os Estados
Unidos”. No entanto, apesar do estado delicado das relações entre os dois governos, algumas autoridades americanas agiam como se quisessem pôr mais lenha na fogueira. Durante uma entrevista coletiva logo depois da incursão, Brennan declarou que era “inconcebível9 que Bin Laden não tenha tido apoio do sistema” no Paquistão. Enquanto um grupo de 1500 paquistaneses10 protestava pelo assassinato de Bin Laden, os Estados Unidos reiniciavam os ataques com drones. Apenas quatro dias depois da incursão, a CIA atacou uma casa no Waziristão do Norte. Tendo ocorrido logo após a saga de Raymond Davis, a incursão contra Bin Laden foi vista como um mau presságio pelos serviços de Inteligência do Paquistão. O governo de Washington se tornava cada vez mais ousado em suas operações no Paquistão e atacaria com ou sem permissão da ISI. Obama cumprira a ameaça de uso de força unilateral em território paquistanês. Embora sem poder fazer muita coisa para revidar diretamente, a ISI deu início a uma campanha de caça aos paquistaneses que, segundo o órgão acreditava, tinham apoiado os Estados Unidos na operação Bin Laden. Três semanas depois da incursão, agentes da Inteligência paquistanesa detiveram o dr. Shakil Afridi, que tinha ajudado a CIA na falsa campanha de vacinação contra a hepatite B em Abbottabad, e o médico foi preso, julgado e condenado a 33 anos de cadeia.11 A secretária de Estado Hillary Clinton e legisladores americanos de prestígio se mobilizaram pela libertação de Afridi. Os senadores John McCain e Carl Levin disseram que a condenação era “chocante e ultrajante”,12 afirmando que Afridi era um herói. “O dr. Afridi deu o exemplo que gostaríamos de ter visto seguido há muito tempo por outros paquistaneses”, disseram os legisladores numa carta conjunta. “Ele deveria ser louvado e recompensado por seus atos em vez de punido e afrontado.” A ministra das Relações Exteriores do Paquistão reagiu. “Para nós, ele não é nenhum herói,13 podem crer”, disse ela. “É uma pessoa cuja atividade pôs em perigo nossas crianças.” A morte de Osama bin Laden certamente não inibiu o ritmo dos assassinatos no Paquistão. “Desde a morte do líder da Al-Qaeda,14 a ISAF não dá sinal de reduzir ou cessar sua missão. Na verdade, o ritmo tem sido mais acelerado que o normal nos três últimos meses”, gabou-se a ISAF num comunicado à imprensa emitido apenas uma semana depois do assassinato de Bin Laden. As incursões no Paquistão também continuaram. Em diversas ocasiões, forças da OTAN com base no Afeganistão executaram operações na fronteira, e numa delas mataram 25 soldados paquistaneses.15 De quando em quando, equipes dos SEALs ou membros da Divisão de Atividades Especiais da CIA cruzavam a fronteira e executavam operações no Paquistão. Os ataques com drones continuavam com força total. Apesar dos protestos no Paquistão, ficava claro que o governo Obama continuaria a agir unilateralmente no país, mesmo depois da morte de Bin Laden.
52. “Os Estados Unidos consideram a Al-Qaeda como terrorismo, e nós consideramos os drones como terrorismo”
IÊMEN, FIM DE 2011 — Enquanto o governo Obama festejava o sucesso da operação que matou Bin Laden, e o JSOC e a CIA fechavam o cerco contra Anwar Awlaki, a insurreição árabe se expandia. Três semanas depois da incursão em Abbottabad, o governo do presidente Ali Abdullah Saleh no Iêmen estava à beira do colapso. Os protestos aumentavam, e Saleh já tinha jogado praticamente todas as cartadas de que dispunha para manter os americanos do seu lado. Tinha dado passe livre à máquina contraterrorista dos Estados Unidos para bombardear o Iêmen e escancarado as portas para a continuação de uma guerra nem tão secreta. Mas à medida que seu poder se esvaía, a AQPA via oportunidades no caos. No verão de 2011, as unidades contraterroristas de elite, apoiadas pelos Estados Unidos, foram afastadas1 da luta contra a AQPA para defender o regime contra seu próprio povo. No sul do Iêmen, onde a presença da AQPA era mais forte, os mujahedin procuravam tirar partido de um Estado em implosão cujos líderes tinham adquirido reputação de corruptos e fracassado em proporcionar bens e serviços básicos. Em 27 de maio de 2011, centenas de militantes sitiaram Zinjibar,2 a cinquenta quilômetros de Áden, cidade de importância estratégica do sul do país, mataram soldados, expulsaram os governantes municipais e mantiveram o controle da cidade durante dois dias. A identidade desses militantes foi objeto de controvérsia. Segundo o governo iemenita, eram quadros operacionais da AQPA. Mas os militantes que tomaram a cidade não se diziam filiados à AQPA. Pelo contrário, apresentaram-se como um novo grupo, o Ansar al-Sharia,3 ou Defensores da Sharia. Autoridades iemenitas me disseram que Ansar al-Sharia era um nome de fachada da AlQaeda.4 Afirmaram que a primeira referência pública ao grupo de que se tinha notícia fora feita pelo principal clérigo da AQPA, Adil al-Abab, um mês antes do ataque a Zinjibar. “O nome Ansar al-Sharia5 é o que usamos para penetrar nas áreas em que trabalhamos para falar às pessoas sobre nosso trabalho e nossos objetivos, e dizer que estamos no caminho de Alá”, dissera ele, acrescentando que o novo nome pretendia dar destaque à mensagem do grupo, assim como evitar as associações com o nome Al-Qaeda. Quer as origens dos Ansar al-Sharia fossem mais independentes, quer o grupo fosse mero produto da campanha para renomear a AQPA, como
dissera Abab, sua importância em tempo pouco transcendeu as esferas de influência da AlQaeda no Iêmen, historicamente limitadas, e ao mesmo tempo popularizou alguns dos mais importantes princípios da AQPA. Meses depois do cerco a Zinjibar, estive em Áden, onde me encontrei com o oficial iemenita encarregado de retomar as áreas controladas pelos Ansar al-Sharia. O general Mohammed alSumali viajava no banco do passageiro de sua Land Cruiser blindada, que zumbia na autopista deserta que liga Áden à província de Abyan, onde militantes islâmicos tinham ocupado Zinjibar. Sumali, homem corpulento de óculos e bigode, era o comandante da 25a Brigada Mecanizada das Forças Armadas iemenitas e tinha sido incumbido de expulsar os militantes de Zinjibar. Sua missão tinha importância internacional: a retomada de Zinjibar era vista por muita gente como o último teste do regime vacilante de Saleh. O único movimento que se via na estrada era o de refugiados que escapavam dos combates em direção a Áden e reforços militares indo para Zinjibar. Sumali não queria ir até a linha de frente no dia em que estive com ele. “Você sabe, pode haver morteiros6 apontados para você”, disse ele. Em duas oportunidades, os ocupantes de Zinjibar tinham tentado assassinar o general naquele mesmo veículo. Havia um orifício de bala no para-brisa, logo abaixo da cabeça dele, e outro na janela lateral, com os vidros trincados pelo impacto inequívoco de projéteis. Quando concordei em não responsabilizar a ele ou a seus homens pelo que pudesse acontecer, ele cedeu. Embarcamos e partimos. Enquanto viajávamos pelo litoral do mar Arábico, passando por tubos de morteiro abandonados, tanques russos T-72 atolados em bermas de areia e eventuais camelos errantes, o general Sumali relatou o que tinha acontecido em 27 de maio, quando os Ansar al-Sharia tomaram a cidade. Sumali atribuía o fato a um “vacilo da Inteligência” e explicou: “Fomos surpreendidos no fim de maio com o grande fluxo de militantes terroristas para Zinjibar”. E acrescentou que os militantes “invadiram e atacaram alguns pontos da segurança. Foram capazes de cercar essas instituições. Ficamos surpresos quando o governador, seus auxiliares imediatos e autoridades municipais refugiaram-se em Áden”. Enquanto as Forças Armadas iemenitas começavam a dar combate aos militantes, contou-me o general Sumali, soldados das Forças Centrais de Segurança do Iêmen fugiam, deixando para trás armamento pesado. As CSF, cuja unidade contraterrorista era armada, treinada e financiada pelos Estados Unidos, estavam sob o comando de Yahya, sobrinho do presidente Saleh. A imprensa ligada aos militantes noticiou que as forças dos Ansar tinham confiscado “peças de artilharia pesada,7 armamento antiaéreo moderno, numerosos tanques e grandes quantidades de munição de diversos tipos”. Sumali disse que na semana seguinte, quando suas tropas tentaram repelir o ataque a Zinjibar, foram atacadas por militantes que usavam a artilharia capturada das unidades das CSF. “Muitos de meus homens foram mortos”, disse-me ele. Os combatentes islâmicos executaram também uma série de incursões arrojadas à base da 25a Brigada Mecanizada, na periferia sul de Zinjibar. Ao todo, mais de 230 soldados8 imenitas morreram em combates contra os militantes em menos de um ano. “Esses sujeitos são incrivelmente corajosos”, admitiu o general, referindo
se aos militantes. “Se eu tivesse todo um exército de homens com essa coragem, poderia conquistar o mundo.” Segundo Sumali, Zinjibar caiu por culpa de falhas da Inteligência, mas críticos do regime em desintegração de Saleh me contaram uma história diversa. Disseram que as forças do presidente Saleh permitiram que a cidade caísse. A luta começou num período em que Saleh enfrentava uma onda de apelos em favor de sua renúncia, dentro e fora do Iêmen. Muitos de seus principais aliados tinham passado para o movimento de oposição. Depois de 33 anos dominando seus opositores, disseram eles, Saleh via que o fim estava próximo. “Na verdade, foi o próprio Saleh quem entregou Zinjibar àqueles militantes”,9 acusou Abdul Ghani al-Iryani, um bem informado analista político. “Ele ordenou que a força policial evacuasse a cidade e a entregasse aos militantes porque queria alertar o mundo de que sem ele o Iêmen cairia em mãos de terroristas.” Essa teoria, embora não comprovada, não era destituída de fundamento. Desde a guerra dos mujahedin contra os soviéticos no Afeganistão, na década de 1980, até depois do Onze de Setembro, era público o uso que Saleh fazia da ameaça representada pela Al-Qaeda e outros militantes a fim de obter financiamento e armas junto aos Estados Unidos e à Arábia Saudita para fortalecer seu poder interno e neutralizar opositores. Um funcionário do governo iemenita que pediu para não ser identificado por não estar autorizado a falar publicamente sobre assuntos militares reconheceu que os homens da Guarda Republicana, treinada e apoiada pelos Estados Unidos, não reagiram10 quando os militantes entraram na cidade. Essas forças eram comandadas por Ahmed Ali Saleh, filho do presidente. Nem as forças leais a um dos mais poderosos oficiais do país, o general Ali Mohsen, comandante da 1a Divisão Blindada, se mobilizaram. Dois anos antes do cerco de Zinjibar, Mohsen tinha desertado do regime de Saleh e estava apoiando publicamente sua deposição. O general Sumali me disse que não poderia “confirmar ou negar” que os Ansar al-Sharia fossem na verdade a AQPA. “O que importa para mim, como soldado, é que eles pegaram em armas contra nós. Quem quer que esteja atacando nossas instituições, nossos acampamentos militares e matando nossos soldados, será combatido, seja ou não filiado à Al-Qaeda ou aos Ansar al-Sharia”, disse-me ele. “Não importa o nome que eles tenham. E não tenho como confirmar se os Ansar al-Sharia são ligados à Al-Qaeda ou se formam um grupo independente.” Em vez de lutar contra a AQPA, as unidades iemenitas de elite apoiadas pelos Estados Unidos — criadas e mantidas com o objetivo explícito de atuar apenas em operações de contraterrorismo — voltaram a Sana’a para proteger o regime cambaleante da fúria de seu próprio povo. As unidades apoiadas pelos Estados Unidos existiam “principalmente para a defesa do regime”, disse Iryani. “No combate de Abyan, as forças contraterroristas não foram mobilizadas da maneira adequada. Elas ainda estão aqui no palácio [em Sana’a], protegendo o palácio. É assim que as coisas são.” Ao mesmo tempo, John Brennan reconhecia que “o tumulto político”11 tinha levado as unidades treinadas pelos Estados Unidos “a focar em seu posicionamento para propósitos políticos internos, em vez de fazer o que pudessem contra a
AQPA”. Assim, sobrou para o general Sumali e suas forças convencionais a tarefa de combater os islâmicos que tinham assumido o controle de Zinjibar. Depois que passamos pela primeira linha de frente na periferia de Zinjibar, “Tiger 1”, e avançamos menos de um quilômetro em direção à “Tiger 2”, Sumali permitiu que eu saísse do veículo. “Só ficaremos dois minutos”, disse-me ele. “Este lugar é perigoso.” Na mesma hora, o general foi cercado por seus homens. Magros e emaciados, muitos deles usavam longas barbas e uniformes em frangalhos, quando tinham uniforme. Alguns deles imploravam a Sumali que lhes desse autorização por escrito para receber um adicional por combate. Um dos soldados disse a ele: “Eu estava com o senhor quando o senhor foi vítima de emboscada. Ajudei a repelir o ataque”. Sumali rabiscou algo num papel e entregou-o ao soldado. A cena continuou até que Sumali voltou a entrar no Toyota. À medida que nos afastávamos, ele falava a seus homens de dentro de seu veículo blindado com um megafone: “Continuem lutando. Não desistam!”. Fosse estratagema de um regime em crise permitir que militantes tomassem Zinjibar, fosse uma tomada de poder oportunista por parte da AQPA, a ocupação de diversas cidades do sul do Iêmen por forças islâmicas era significativa. Ao contrário do movimento Al-Shabab da Somália, a AQPA nunca tinha controlado faixas importantes do território do Iêmen. Mas os Ansar al-Sharia estavam determinados a fazer exatamente isso: declarar um emirado islâmico independente em Abyan.12 Depois que os Ansar al-Sharia e seus aliados consolidaram seu controle sobre Zinjibar, adotaram um programa voltado para a conquista de apoio popular. “Os Ansar al-Sharia foram muito mais eficientes13 na iniciativa de prover serviços básicos em áreas do Iêmen das quais o governo tinha praticamente desaparecido”, disse-me na ocasião Johnsen, o especialista em Iêmen da Universidade Princeton. “Eles dizem que estão seguindo o modelo do Talibã na tentativa de prover serviços e instaurar um governo islâmico onde o governo central deixou um vazio.” Os Ansar al-Sharia consertaram estradas, restabeleceram a eletricidade,14 distribuíram alimentos e instituíram patrulhas de segurança dentro da cidade e em seus arredores. Instituíram também tribunais islâmicos onde as disputas poderiam ser resolvidas. “A Al-Qaeda e os Ansar al-Sharia levaram segurança ao povo em áreas conhecidas por sua violência, pelos roubos, pelas barreiras nas estradas”, disse Abdul Rezzaq al-Jamal, o jornalista iemenita independente que com frequência entrevistava líderes da Al-Qaeda e passara longo tempo em Zinjibar. “As pessoas que conheci em Zinjibar estavam gratas à Al-Qaeda e aos Ansar al-Sharia por manter a segurança.”15 Mesmo implantando a lei e a ordem em Abyan, ocasionalmente essas organizações faziam cumprir sua política com métodos brutais, como a amputação de membros de suspeitos de roubo e açoitamento público de usuários de drogas. Na cidade de Jaar, controlada pelos Ansar al-Sharia, os moradores contaram que foram reunidos para um evento horrível16 em que militantes deceparam as mãos de dois jovens acusados de furtar fios da rede elétrica. As mãos amputadas foram levadas em desfile pela cidade, como forma de advertência a possíveis ladrões. Um dos jovens, de quinze anos, teria morrido pouco depois devido à
hemorragia. Em outro incidente, os Ansar al-Sharia decapitaram publicamente17 dois homens acusados de dar informações aos Estados Unidos para facilitar ataques com drones. Um terceiro foi executado em Shabwah.18 A AQPA aproveitou-se da impopularidade do governo iemenita, reconhecendo astutamente que sua mensagem de um sistema de lei e ordem baseado na Al-Sharia seria bem recebida em Abyan, que via o governo de Saleh como um fantoche dos Estados Unidos. Os ataques com mísseis americanos, a morte de civis, uma ausência quase total de serviços públicos e uma pobreza crescente criaram a oportunidade que a AQPA aproveitou. “Depois que grupos de militantes assumiram o controle da cidade, a AQPA chegou, assim como tribos de áreas que no passado tinham sido atacadas pelo governo iemenita e pelo governo dos Estados Unidos”, disse Iryani, o analista político iemenita. “Vieram porque tinham uma rixa com o regime e com os Estados Unidos. Existe um núcleo da AQPA, mas a grande maioria é de populares ressentidos com os ataques a suas casas, que os obrigaram a lutar.” Enquanto os Ansar al-Sharia assumiam o controle de cidades no sul, Washington discutia o modo de reagir. Algumas pessoas no governo Obama defendiam a entrada dos Estados Unidos no combate. O general James Mattis, que assumira o lugar de Petraeus no comando do Centcom, propôs que o presidente autorizasse um pesado ataque aéreo19 contra o Estádio de Futebol Unity, na periferia de Zinjibar, onde os combatentes dos Ansar al-Sharia tinham estabelecido uma base improvisada para atacar as Forças Armadas iemenitas. O presidente Obama torpedeou a proposta. “Não estamos no Iêmen para nos meter em conflitos domésticos”, disse o presidente. “Vamos permanecer focados nas ameaças a nosso país — que é nossa prioridade real.”20 Em vez do ataque aéreo, os Estados Unidos apoiariam as forças convencionais do general Sumali com suprimentos levados por helicópteros.21 Os americanos também proporcionariam às forças iemenitas em Abyan dados de Inteligência em tempo real obtidos por drones. “Foi uma parceria ativa. Os americanos ajudaram principalmente com logística e inteligência”, disse-me Sumali. “E então encurralamos as posições [deles] com a artilharia ou os ataques aéreos.” Em poucas ocasiões, revelou Sumali, os Estados Unidos executaram ataques unilaterais nas cercanias de Zinjibar que “tinham como alvo líderes da Al-Qaeda que estavam na lista negra de terroristas dos Estados Unidos”, e ressalvou: “Não coordenei diretamente esses ataques”. No fim de 2011, à medida que, em todo o sul, as cidades começavam a cair em mãos dos Ansar al-Sharia e o regime de Saleh se esfacelava, o governo Obama decidiu retirar22 do Iêmen a maior parte de seus efetivos militares, inclusive os que estavam dedicados ao treinamento de forças de contraterrorimo iemenitas. “Eles foram embora23 por causa da situação de segurança”, disse-me na época o ministro das Relações Exteriores Abu Bakr al-Qirbi. “Com certeza, acho que se eles não voltarem e se as unidades de contraterrorismo não forem equipadas com a munição e o material necessários, haverá um impacto” nas operações contraterroristas. Os Estados Unidos estavam mudando de tática. Com o regime de Saleh gravemente
debilitado, o governo Obama achou que naquela etapa teria muito pouco a ganhar com uma aliança. Os Estados Unidos intensificaram o uso de seu poderio aéreo e de drones, atacando no Iêmen a seu bel-prazer para pôr em marcha sua campanha contra a AQPA. O governo Obama logo começou a construir uma base aérea secreta24 na Arábia Saudita, mais próxima do que a base do Djibuti, que serviria como plataforma de lançamento para novos ataques com drones no Iêmen. O alvo número um continuava sendo o mesmo: Anwar Awlaki. Para conseguir qualquer coisa no Iêmen, o segredo é navegar por seu labiríntico sistema tribal. Durante anos, o patrocínio de uma rede tribal ajudou a fortalecer o regime de Saleh. Muitas tribos tinham uma opinião neutra sobre a AQPA, ou viam-na como um aborrecimento menor; algumas delas lutavam contra as forças da Al-Qaeda, outras davam abrigo e um santuário seguro à organização. A posição de muitas tribos em relação à Al-Qaeda dependia de como, em sua opinião, a AQPA poderia favorecer ou prejudicar seu próprio programa. Contudo, a política do governo Obama para o Iêmen tinha irritado muitos dos líderes tribais que tinham a possibilidade de manter a AQPA em xeque e, no decorrer de três anos de bombardeios regulares, acabou com a motivação que esses líderes ainda pudessem ter para tal coisa. Muitos líderes do sul do país25 falaram-me com raiva sobre ataques americanos e iemenitas que mataram civis e animais de criação, destruindo ou danificando dezenas de casas. O que os Estados Unidos conseguiram com os ataques aéreos e com o apoio às unidades contraterroristas dirigidas pela família de Saleh foi aumentar a simpatia das tribos pela AlQaeda. “Por que deveríamos combatê-los? Por quê?”, perguntou Ali Abdullah Abdulsalam, xeque tribal de Shabwah que adotara o nome de guerra de Mullah Zabara, em homenagem, disse-me ele, ao líder talibã mulá Mohammed Omar. “Se meu governo constrói escolas, hospitais e estradas e satisfaz as necessidades básicas, serei leal a meu governo e vou protegê-lo. Até agora, não temos serviços básicos como eletricidade ou água encanada. Por que lutaríamos contra a Al-Qaeda?”26 Ele me disse que a AQPA controlava amplas áreas de Shabwah e admitiu que o grupo “proporcionava segurança e evitava os saques. Se seu carro for roubado, eles vão trazê-lo de volta para você”. Nas áreas “controladas pelo governo, ocorrem roubos e saques. Você nota a diferença”. E Zabara acrescentou: “Se não ficarmos mais atentos, a Al-Qaeda vai tomar e controlar novas regiões”. Zabara fez questão de esclarecer que sabia que a AQPA era um grupo terrorista empenhado em atacar os Estados Unidos, mas essa estava longe de ser sua preocupação principal. “Os Estados Unidos veem a Al-Qaeda como terrorista, e nós consideramos que os drones são terrorismo”, disse ele. “Os drones voam dia e noite, assustando mulheres e crianças, perturbando o sono das pessoas. Isso é terrorismo.” Zabara disse-me que diversos ataques americanos em sua região tinham causado a morte de dezenas de civis e que sua comunidade estava cheia de bombas de fragmentação não detonadas que às vezes explodiam, matando crianças. Ele e outros líderes tribais pediram ajuda ao governo do Iêmen e ao dos Estados Unidos para removê-las, disse ele. “Não recebemos resposta, então usamos nossas armas para
detoná-las.” Disse também que o governo dos Estados Unidos deveria indenizar em dinheiro as famílias de civis mortos nos ataques de mísseis nos três últimos anos. “Exigimos compensação aos Estados Unidos pela morte de cidadãos iemenitas, como aconteceu no caso Lockerbie”, declarou. “O mundo é uma aldeia. Os Estados Unidos receberam indenização da Líbia pela explosão em Lockerbie, mas os iemenitas, não.” Encontrei-me com Mullah Zabara e seus homens no aeroporto de Áden, num ponto da costa ao largo da qual o USS Cole tinha sido atingido por uma bomba em outubro de 2000, matando dezessete marinheiros americanos. Zabara usava roupas pretas tribais, complementadas com a jambiya cingida diante do abdome e uma Beretta no quadril. Zabara era uma figura impressionante, de pele curtida e uma grande cicatriz em forma de lua crescente em volta do olho direito. “Não conheço esse americano”, disse ele a meu colega iemenita. “Portanto, se alguma coisa me acontecer em decorrência deste encontro — se eu for sequestrado —, simplesmente vamos matar você depois.” Todos riram, nervosamente. Conversamos durante algum tempo numa estrada à beira de um penhasco ao longo da costa antes que ele nos levasse à cidade para dar uma volta. Depois de vinte minutos de percurso, ele encostou a um lado da estrada, comprou uma caixa de seis Heineken numa birosca, atirou-me uma das latas e abriu uma para si. Eram onze da manhã. “Uma vez fui parado por uns caras da AQPA num dos postos de controle deles, e eles viram que eu tinha uma garrafa de Johnnie Walker”, lembrou ele enquanto engolia a segunda cerveja em dez minutos e acendia um cigarro. “Eles me perguntaram: ‘Por que você está com isso?’. Respondi: ‘Para beber’.” E riu com vontade. “Disse a eles que fossem encher o saco de outro e fui embora.” A mensagem do incidente era clara: os caras da Al-Qaeda não queriam problema com líderes tribais. “Não tenho medo da Al-Qaeda. Vou aos lugares deles e me encontro com eles. Somos todos líderes tribais conhecidos, e eles têm de recorrer a nós para resolver suas desavenças.” Além disso, acrescentou, “tenho 30 mil combatentes de minha própria tribo. A AlQaeda não pode me atacar”. Zabara serviu como mediador entre a AQPA e o governo iemenita, em nome deste, e foi decisivo para garantir a libertação de três assistentes sociais franceses27 mantidos como reféns pelo grupo militante durante seis meses. Zabara também foi requisitado pelo ministro da Defesa do Iêmen para interceder junto a militantes em Zinjibar em diversas ocasiões, inclusive para recuperar corpos de soldados mortos em combate em áreas controladas pelos Ansar al-Sharia. “Não tenho nada contra a Al-Qaeda nem contra o governo”, disse-me ele. “Participei da mediação para deter o banho de sangue e para chegar à paz.” Em Zinjibar, seus esforços não tiveram sucesso. Enquanto tentava a mediação, disse-me ele, deparou com quadros operacionais da AQPA provenientes dos Estados Unidos, França, Paquistão e Afeganistão. Perguntei-lhe se alguma vez tinha se encontrado com grandes líderes da AQPA. “Fahd al-Quso é da minha tribo”, respondeu com um sorriso, ao se referir a um dos mais procurados suspeitos do atentado contra o Cole. “Estive com [Said] al-Shihri e [Nasir] al-Wuhayshi há cinco dias em Shabwah”, acrescentou com naturalidade, falando dos dois principais líderes da AQPA, ambos
rotulados como terroristas pelos Estados Unidos.
Caminhamos juntos e eles disseram: “A paz esteja contigo”. Respondi: “A paz esteja convosco também”. Não temos nada contra eles. No passado, teria sido impensável chegar a eles. Ficavam escondidos em montanhas e grutas, mas agora andam pelas ruas e frequentam restaurantes.
“Por que isso?”, perguntei. “O regime, os ministros e funcionários do governo estão esbanjando o dinheiro reservado para combater a Al-Qaeda, e a Al-Qaeda está crescendo”, ele respondeu. Os Estados Unidos “bancam a Segurança Política e [as Forças de] Segurança Nacional, que gastam o dinheiro viajando de cá para lá, em Sana’a ou nos Estados Unidos, com suas famílias. Tudo o que as tribos recebem são os ataques aéreos contra nós.” E acrescentou que o contraterrorismo “tornou-se uma espécie de investimento” para as unidades apoiadas pelos americanos. “Se eles lutarem com seriedade, o financiamento acaba. Eles prolongaram o conflito com a Al-Qaeda para receber mais dinheiro” dos Estados Unidos. Em janeiro de 2013, Zabara foi assassinado em Abyan.28 Não se sabe quem o matou. Ainda naquele mês, o governo iemenita anunciou que Shihri morrera29 “por não resistir aos ferimentos recebidos numa operação contraterrorista”.
Não resta dúvida de que quando o presidente Obama tomou posse, a Al-Qaeda tinha ressuscitado suas atividades no Iêmen. Mas a real proporção da ameaça que a AQPA representava para os Estados Unidos ou para Saleh naquele momento histórico era motivo de polêmica. O que permanecia praticamente irretorquível no discurso americano sobre a AQPA e sobre o Iêmen era a possibilidade de que as ações americanas — assassinatos dirigidos, Tomahawks e ataques de drones — funcionassem na prática como um tiro no pé, dando de bandeja à AQPA uma oportunidade de recrutar mais gente e incitar o grupo a aumentar sua própria violência. “Não estamos gerando boa vontade com essas operações”,30 disse-me o ex-dirigente da CIA Emile Nakhleh.
Devíamos visar radicais de fato e em potencial, mas infelizmente […] outras coisas e outras pessoas estão sendo destruídas e mortas. Assim, a longo prazo, não há certeza de que isso ajude. Essas operações não vão contribuir para desradicalizar potenciais recrutas. Para mim, o problema maior é toda a questão da radicalização. Como podemos dar uma rasteira nisso? [...] Essas operações podem ter sucesso em casos específicos, mas não acho que contribuam necessariamente para a desradicalização de certos setores dessas sociedades.
O coronel Patrick Lang, que passou quase toda a carreira liderando missões delicadas em operações secretas, inclusive no Iêmen, disse-me que a ação da AQPA tinha sido
muito exagerada como ameaça31 aos Estados Unidos. Na verdade, muitos americanos acham que qualquer coisa que possa matar você, seja num aeroplano, caminhando pela Park Avenue ou qualquer coisa assim, é a maior ameaça do mundo, certo? Porque não estão acostumados a lidar com condições de perigo como estilo de vida, certo? Daí que à pergunta “a AQPA é uma ameaça aos Estados Unidos?”, eles respondem sim. A AQPA pode derrubar um avião, matar centenas de pessoas. Mas ela representa uma ameaça à existência dos Estados Unidos? É claro que não. Nenhuma dessas pessoas representa uma ameaça à existência dos Estados Unidos. Estamos completamente loucos a esse respeito. Temos essa reação histérica ao perigo.
Da mesma forma que o Afeganistão e o Iraque proporcionaram um laboratório para o treinamento e o desenvolvimento de toda uma geração de quadros operacionais especiais altamente qualificados e experientes, o Iêmen representou um paradigma que certamente perpassará a política de segurança dos Estados Unidos nas décadas vindouras. Foi durante o governo Bush que os Estados Unidos declararam ser o mundo um campo de batalha, assim qualquer país poderia ser alvo de assassinatos dirigidos, mas foi o presidente Obama quem pôs o selo do bipartidarismo nessa visão de mundo que quase que com certeza resistirá muito além do fim de seu mandato. “Isso vai prosseguir durante muito tempo”, disse Lang.
A Guerra Global ao Terror adquiriu vida própria. Era como uma casquinha de sorvete lambendo a si mesma. E como a indústria contraterrorista/contrainsurrecional se transformou numa coisa dessas, envolvendo tantas pessoas, fundações, jornalistas e autores de livros, generais e os caras que dão tiros — tudo isso junto acumula uma massa gigantesca de inércia que tende a manter as coisas na mesma direção [...]. Continua rolando. Seria preciso que os legisladores civis, alguém como o presidente, por exemplo, tomassem uma decisão consciente para decidir “tudo bem, rapazes, o espetáculo acabou”.
Mas Obama estava longe de decidir que o espetáculo tinha acabado.
53. A Casa Rosada
WASHINGTON, DC, E SOMÁLIA, 2011 — Um mês depois da incursão contra Bin Laden, o almirante McRaven ainda era festejado em Washington. Em junho de 2011, ele compareceu ante o Congresso para ser confirmado como chefe do Comando de Operações Especiais dos Estados Unidos. O novo cargo representava uma promoção em relação ao de comandante em chefe e oficialmente encarregaria McRaven do programa global de assassinatos dirigidos das Forças Armadas. Assim que se apresentou ante a Comissão de Serviços Armados do Senado, choveram sobre ele louvores de republicanos e democratas pelo ataque contra Bin Laden e sua participação em outras operações. “Felicito-o e a seus colegas1 dos SEALs pelas extraordinárias operações”, disse o senador democrata Jack Reed. “Acho que sua determinação e seu tato para cada nível do conflito, a partir das aldeias do Afeganistão e do Paquistão até chegar aos mais complicados meandros de Washington, ficaram amplamente demonstrados.” O republicano John McCain fez eco a esses comentários, dizendo a McRaven: “O que o senhor conquistou em sua distinta carreira antes de 2 de maio de 2011 é realmente extraordinário. Mas naquele dia, na liderança da operação que matou Osama bin Laden, o senhor e seus homens ganharam um lugar permanente na história militar americana”. Foi então que o verdadeiro foco daquelas sessões do Congresso veio à tona: estariam McRaven e suas Forças de Operações Especiais “prontos e capacitados para expandir” suas “operações para o mundo todo a um chamado imediato?”, perguntou Reed. McRaven disse aos senadores que, em virtude do aumento vertiginoso da mobilização de Operações Especiais num campo de batalha global e em expansão, seriam necessários mais recursos e o treinamento de uma nova geração de quadros operacionais. Nesse ponto, o almirante foi direto aos alvos privilegiados do momento. “De meu ponto de vista, como ex-comandante do JSOC, posso dizer que estamos olhando com muita preocupação para o Iêmen e para a Somália”, declarou. Disse que para expandir com sucesso os “ataques fulminantes” naqueles países, os Estados Unidos teriam de aumentar o uso de drones, bem como ampliar a atuação da Inteligência em campo e as missões de vigilância e reconhecimento. “Qualquer expansão dos efetivos deve vir acompanhada de uma expansão proporcional dos elementos possibilitadores”, declarou McRaven. Quando viajei a Mogadíscio, no mês da promoção de McRaven, um grande símbolo da
presença nem tão discreta dos “elementos possibilitadores” americanos saltou-me aos olhos no momento em que pousamos. Acomodado num canto nos fundos do Aeroporto Internacional de Aden Adde, estendia-se um conjunto amuralhado de edifícios. Situadas no litoral do oceano Índico, as dependências lembravam uma pequena comunidade confinada, com uma dúzia de edifícios protegidos por muros altos e vigiados por sentinelas postadas nas torres de seus quatro cantos. Depois fiquei sabendo, por numerosas fontes somalianas e da Inteligência americana, que se tratava do novo centro de contraterrorismo2 comandado pela CIA e usado por quadros operacionais do JSOC. Os somalianos chamavam-no de “Casa Rosada”. Outros, simplesmente, de “Guantánamo”. Adjacentes ao conjunto havia oito grandes hangares de metal. A CIA tinha sua própria aeronave no aeroporto. O conjunto, que, segundo informações de funcionários do aeroporto e fontes da Inteligência somaliana, tinha sido concluído no começo de 2011, era guardado por soldados somalianos, mas os americanaos controlavam o acesso a ele. Em suas dependências, a CIA comandava um programa de treinamento em contraterrorismo3 para quadros operacionais e agentes da Inteligência somaliana com o objetivo de construir uma força de ataque nacional capaz de executar operações de sequestro e de “combate” dirigido contra a Al-Shabab. Como parte de seu programa de contraterrorismo em expansão, a CIA utilizava também a prisão clandestina sepultada nos porões da sede da Agência de Segurança Nacional da Somália, onde ficavam prisioneiros suspeitos de pertencerem à Al-Shabab ou de terem ligação com o grupo. Alguns dos presos, como o suposto braço direito do líder da Al-Qaeda, Saleh Ali Saleh Nabhan, tinham sido sequestrados nas ruas do Quênia e levados de avião para Mogadíscio. Outros tinham sido arrancados de voos comerciais na hora do pouso ou tirados de suas casas na Somália e trazidos à masmorra. Embora a prisão subterrânea fosse oficialmente controlada pela Agência Nacional de Segurança da Somália, os salários dos funcionários locais eram pagos por agentes da Inteligência americana, que também interrogavam diretamente os prisioneiros. Entre as fontes que me falaram sobre a prisão e o centro contraterrorista da CIA havia altos funcionários da Inteligência somaliana, membros do governo federal de transição da Somália, ex-prisioneiros da cadeia subterrânea, diversos analistas somalianos bem informados e líderes de milícias, alguns dos quais trabalhavam com funcionários americanos, inclusive da CIA. Um funcionário americano, que confirmou a existência dos dois lugares, disse-me: “Faz todo sentido4 ter uma forte parceria contraterrorista” com o governo da Somália. A grande presença da CIA em Mogadíscio devia-se à escolha da Somália, pelo governo Obama, como foco da atividade contraterrorista, que incluía ataques dirigidos praticados pelo JSOC, ataques de drones e múltiplas operações de vigilância. Os agentes americanos “estão presentes o tempo todo”,5 disse um alto funcionário da Inteligência somaliana. Às vezes, contou, viam-se trinta deles em Mogadíscio. Todavia, os homens que trabalhavam com a NSA não participavam de operações. Dedicavam-se a orientar e treinar agentes somalianos. “Nesse ambiente, é bastante espinhoso. Eles querem nos ajudar, mas a situação não lhes permite, por
mais que queiram. Não controlam a política, não controlam a segurança”, disse a fonte. “Eles não controlam a situação como no Afeganistão ou no Iraque. Na Somália a situação é fluida, a situação muda, as pessoas mudam.” Segundo fontes somalianas bem informadas, a CIA relutava em tratar diretamente com líderes políticos somalianos, que, apesar dos elogios em público, eram vistos pelos americanos como corruptos e indignos de confiança.6 Assim, os Estados Unidos punham os agentes da Inteligência somaliana diretamente em sua folha de pagamento. Fontes somalianas que conheciam o programa contam que os agentes recebiam dos americanos duzentos dólares mensais7 em dinheiro, num país em que a renda média anual era de cerca de seiscentos dólares. “Eles nos dão grande apoio financeiro”, disse o funcionário da Inteligência somaliana. “São de longe os maiores [financiadores].” Não ficava claro em que medida o presidente da Somália tinha controle — se é que tinha algum — sobre essa força contraterrorista, nem mesmo se estava bem informado de suas operações. O pessoal da CIA e outros agentes da Inteligência americana “não se davam ao trabalho de manter contato8 com a liderança política do país, o que diz muito sobre suas intenções”, contou-me Abdirahman “Aynte” Ali, pesquisador da Shabab que tinha também muitas fontes dentro do governo somaliano. “Essencialmente, parece que é a CIA que está em ação, executando a política externa dos Estados Unidos. O pessoal do Departamento de Estado deveria estar cuidando da política externa, mas parece que é a CIA quem faz isso no país.” As autoridades do governo somaliano que entrevistei disseram que a CIA era o principal órgão americano do programa contraterrorista em Mogadíscio, mas que às vezes há agentes da Inteligência militar americana envolvidos. Quando perguntei se eram do JSOC ou da DIA, o funcionário da Inteligência somaliana respondeu: “Não sabemos. Eles não nos dizem”. Enquanto a CIA construía sua agência de Inteligência somaliana, o diretor da Agência, Leon Panetta, compareceu ante o Congresso e foi interrogado sobre a luta contra a Al-Qaeda e suas afiliadas no Iêmen, na Somália e no norte da África. “Nossa abordagem tem sido empreender operações em cada uma dessas áreas para deter a Al-Qaeda e persegui-los até que já não tenham para onde fugir”, disse ele.
É o que estamos fazendo no Iêmen. Claro que se trata de uma situação perigosa e incerta, mas continuamos a trabalhar com o pessoal de lá na tentativa de desenvolver o contraterrorismo. Estamos trabalhando com o JSOC também em suas operações. O mesmo vale para o caso da Somália.9
Depois que revelei à Nation o caso do programa contraterrorista da CIA para a Somália, um funcionário do governo somaliano disse ao New York Times que o serviço de espionagem sustentado pela CIA estava se tornando um “governo dentro do governo.” “Ninguém, nem
mesmo o presidente, sabe o que a NSA está fazendo”, disse ele. “Os americanos estão criando um monstro.”10 Segundo ex-prisioneiros, a cadeia subterrânea da NSA, administrada por guardas somalianos, era formada por um longo corredor, ladeado por pequenas celas imundas e infestadas de percevejos e mosquitos. Um deles disse que ao chegar, em fevereiro de 2011, viu dois homens brancos11 usando coturnos, calças de uniforme de combate, camisas cinzentas metidas para dentro das calças e óculos escuros. Os ex-prisioneiros disseram que as celas não tinham janelas e o ar era viciado, úmido e fétido. Os prisioneiros não podiam sair. Muitos apresentavam erupções na pele e se coçavam sem parar. Alguns estavam presos havia um ano ou mais, sem acusações e sem acesso a advogados ou à família. Um dos ex-prisioneiros disse que os que estavam reclusos havia muito tempo andavam para lá e para cá sem parar,12 e outros ficavam se balançando, encostados às paredes. Um jornalista somaliano,13 preso em Mogadíscio depois de filmar uma operação militar sigilosa, disse-me que foi levado à prisão e posto numa cela subterrânea sem janela. Entre os presos que ele conheceu enquanto esteve lá havia um homem que tinha passaporte ocidental (ele omitiu a nacionalidade do preso). Alguns dos prisioneiros contaram-lhe que tinham sido apanhados em Nairóbi e levados num pequeno avião a Mogadíscio, onde foram entregues a agentes da Inteligência somalianos. Uma vez sob custódia, segundo o alto funcionário da Inteligência somaliana e ex-prisioneiros, alguns dos presos eram interrogados livremente por agentes americanos e franceses. “Nosso objetivo é agradar nossos parceiros, assim vamos obter mais [coisas] deles, como em qualquer relacionamento”, disse-me o funcionário da Inteligência somaliana. Os americanos, ele disse, operavam unilateralmente no país, mas os franceses estavam integrados à Amisom e a sua base aérea. Com efeito, em julho de 2011, pude ver um agente da Inteligência francesa com um comandante da Amisom controlando passageiros que desembarcavam de um voo procedente de Nairóbi. Fontes da Inteligência somaliana disseram-me que às vezes os franceses pediam que certos passageiros fossem retirados de aviões14 e interrogados. Segundo Aynte, em alguns casos, “os órgãos de Inteligência americanos e de outras nacionalidades avisavam a Inteligência somaliana de que algumas pessoas, alguns suspeitos, gente que estivera em contato com a liderança da Al-Shabab, estavam a caminho de Mogadíscio num avião [comercial] e deviam ser esperadas no aeroporto. Peguem e interroguem”. A prisão subterrânea estava instalada no mesmo edifício15 ocupado no passado pelo famigerado Serviço de Segurança Nacional da Somália (National Security Service, NSS) durante o regime militar de Mohamed Siad Barre, que governou de 1969 a 1991. Um ex-prisioneiro disseme que viu um velho símbolo do NSS do lado de fora. Durante o regime de Barre, a famosa prisão subterrânea e centro de interrogatório, que ficava atrás do palácio presidencial em Mogadíscio, foi um dos fundamentos do aparelho repressivo do Estado. Era chamado de Godka, ou “Buraco”.16
“O bunker está lá, e é lá que o órgão de Inteligência interroga as pessoas”, disse Aynte, que mantinha contato com funcionários da Inteligência somaliana. “Quando a CIA e outros órgãos de Inteligência — que na verdade estão em Mogadíscio — querem interrogar essas pessoas, vão lá e interrogam.” Funcionários somalianos “dão início ao interrogatório, mas as agências estrangeiras de Inteligência — os americanos e franceses — fazem também seu próprio interrogatório”. O funcionário americano posto à minha disposição para comentar o assunto disse que a “inquirição” de prisioneiros por quadros operacionais americanos naquelas dependências “tinha ocorrido em raras ocasiões” e sempre em conjunto com agentes somalianos. Num gesto dramático que, aparentemente, cumpria a promessa de campanha de fechar as abomináveis prisões clandestinas da CIA estabelecidas no governo Bush, Obama assinou a Resolução Executiva 13491 em 22 de janeiro de 2009. A resolução exigia que “a CIA fechasse com a celeridade possível17 todas as dependências de detenção atualmente em operação e não voltasse a operar nenhuma dependência de detenção no futuro”. Para os grupos de direitos humanos, o uso da prisão subterrânea se mostrava como uma subversão furtiva daquela resolução. Depois da publicação de minha reportagem sobre a prisão na Nation e de um artigo subsequente sobre o tema publicado por Jeffrey Gettleman no New York Times, uma coalizão de grupos de direitos humanos escreveu uma carta ao presidente Obama. Os artigos, diziam eles, “põem em dúvida18 o fato de os Estados Unidos estarem cumprindo suas obrigações de respeitar e garantir que se respeitem as exigências internacionais de direitos humanos referentes a nonrefoulement [não devolução], detenção arbitrária e tratamento humano”. Citando a Resolução Executiva 13491, eles disseram ao presidente que
o senhor deixou claro seu profundo compromisso de garantir que as operações contraterroristas fossem executadas com respeito aos direitos humanos e ao império da lei. Exortamos o senhor a reafirmar esse compromisso, revelando, na maior medida possível, a natureza do envolvimento americano em operações de detenção, interrogatório e transferência no estrangeiro, referentes à prisão na Somália, de modo que possa haver um diálogo público de peso quanto ao enquadramento dessas operações dentro da lei.
Apesar da retórica dos primeiros dias do presidente Obama e seus subordinados sobre a necessidade de equilíbrio entre liberdade e segurança, em dois anos de governo ficou claro que a Casa Branca vinha escolhendo sistematicamente a segurança em detrimento das liberdades civis. E embora alguns dos excessos da era Bush tenham acabado e outros tenham sido refreados, o programa de morte/captura estava crescendo, e não diminuindo. Muitas dúvidas graves ainda se projetavam sobre o programa de assassinatos dirigidos: estaria realmente tornando os Estados Unidos um país mais seguro? Essas operações resultariam em menos ou em
mais terrorismo? As ações empreendidas pela Casa Branca em nome da luta contra o terrorismo — ataques de drones, assassinatos, prisões — acaso não estariam ajudando grupos como a AlShabab, a AQPA e o Talibã a recrutar novos membros e simpatizantes?
No começo de 2011, a Al-Shabab controlava com firmeza uma região da Somália maior que a controlada pelo governo federal de transição, mesmo considerando que este era apoiado por milhares de soldados da União Africana, treinados, armados e financiados pelos Estados Unidos. Em Mogadíscio, apesar do dinheiro e das armas dos americanos, grande parte das forças da Amisom estava confinada a suas bases. Em vez de combater a insurreição, elas optaram por bombardear regularmente19 áreas controladas pela Al-Shabab e cheias de civis. O JSOC estava eliminando militantes, mas o número de civis mortos pelos bombardeios da Amisom levou alguns líderes de clãs a dar apoio à Al-Shabab. Enquanto isso, o governo somaliano era visto como fraco, ilegítimo ou coisa pior. “Noventa e nove por cento dos integrantes do governo são corruptos, imorais, desonestos, marcados pela comunidade internacional, disse-me Mohammed Farah Siad, um empresário de Mogadíscio que visitei em sua casa, perto do porto de Mogadíscio, no verão de 2011. Siad, que tinha seu negócio desde 1967, reclamava por ter de pagar propinas regulares e por ser roubado, assim como outros importadores, por funcionários do governo. “Acho que essas pessoas devem ter sido escolhidas por estar entre as piores. Quanto mais criminoso você for, quanto mais usuário de drogas, mais será escolhido para membro do Parlamento somaliano.” O governo, disse ele, existia para “trapacear por dinheiro”. Siad, que condenava decisivamente a Al-Shabab e a Al-Qaeda, disse que a Al-Shabab era muito mais bem organizada que o governo somaliano, e acreditava que se as tropas da Amisom se retirassem, a Al-Shabab tomaria o poder. “Imediatamente, em meia hora”, disse ele. “Em menos de meia hora.” Os somalianos, disse ele, viam-se obrigados a escolher entre os “ladrões” do governo e os “criminosos” da Al-Shabab. “Estamos órfãos”,20 concluiu. A Al-Shabab controlava o que “se calcula em metade da Somália, que é do tamanho do Texas. Então você pode imaginar como a área é grande — inclusive uma parte de Mogadíscio, a capital”, calculava Aynte. Estava claríssimo que se o governo somaliano era incapaz de instituir forças policiais e militares que pudessem estabilizar pelo menos a capital, a influência da AlShabab continuaria crescendo. Cada suicídio de homem-bomba dava prova de que o governo era vulnerável, e cada morteiro que explodia em áreas de civis trazia a mensagem de que o governo — e as forças da União Africana apoiadas pelos Estados Unidos — não estava do lado do povo. Com a maioria dos somalianos entre um governo pelo qual nutriam desprezo e militantes islâmicos que lhes infundia temor, o governo Obama deu a conhecer o que chamava de política “de duas vias”21 para a Somália. Seu governo trataria ao mesmo tempo com o “governo central”
de Mogadíscio e com chefes regionais e de clãs de toda a Somália. “A política de duas vias é apenas um novo rótulo22 para a velha e fracassada política do governo Bush, observou o analista somaliano Afyare Abdi Elmi. “Ela fortalece inadvertidamente as divisões de clãs, desgasta tendências democráticas e inclusivas e, principalmente, cria ambiente propício para o retorno do caos organizado ou do domínio dos chefes de milícias.” A política de duas vias dava espaço para que governos regionais autoproclamados e com base em clãs pretendessem reconhecimento e apoio dos Estados Unidos. “Governos locais pipocam a cada semana”, disse Aynte na época. “A maior parte deles não controla lugar nenhum, mas as pessoas anunciam esses governos municipais na esperança de que a CIA estabeleça um pequeno posto avançado em sua cidadezinha.” Em meados de 2011, segundo o New York Times, “em Washington, funcionários americanos disseram que estavam se travando debates sobre a questão de até que ponto os Estados Unidos podiam confiar no treinamento de milícias clandestinas e em ataques de drones armados para combater a Al-Shabab”. “Durante o ano passado, a embaixada dos Estados Unidos em Nairóbi, segundo um funcionário americano, tornou-se um enxame de quadros operacionais militares e da Inteligência que estão ‘em cócegas’ para multiplicar as operações na Somália.”23 Enquanto os Estados Unidos endureciam sua retórica e seus ataques contra a Al-Shabab, seus êxitos táticos ocorriam sobretudo em áreas rurais fora de Mogadíscio. Na capital somaliana, a força contraterrorista treinada e financiada pela CIA mostrava poucos ganhos tangíveis. “Até agora, o que não vimos foram resultados”, disse-me o alto funcionário da Inteligência somaliana no verão de 2011. Ele admitiu que nem as forças americanas nem as da Somália tinham sido capazes de executar com sucesso uma única missão dirigida em áreas da capital controladas pela Al-Shabab. No fim de 2010, segundo aquele funcionário, agentes somalianos treinados pelos Estados Unidos executaram uma operação numa área controlada pela Al-Shabab que foi um rotundo fracasso e resultou na morte de diversos agentes. “Houve uma tentativa, mas foi infeliz”, lembrou ele. Em 3 de fevereiro de 2011, a Al-Shabab transmitiu a execução24 de um suposto informante da CIA por seu canal de televisão, o Al-Kataib. Ao mesmo tempo que lutavam para ter algum êxito com o mais recente projeto da CIA na Somália, os Estados Unidos travavam sua campanha contra a Al-Shabab privilegiando o apoio dado às forças da Amisom, que estavam longe de executar sua missão com algo parecido com precisão cirúrgica. A Amisom divulgava frequentes comunicados à imprensa em que se vangloriava de seus triunfos contra a Al-Shabab e da retomada de territórios, mas a realidade era bem mais complicada. Caminhando pelas áreas que a Amisom tinha retomado em 2011, vi um emaranhado de túneis subterrâneos usados no passado pelos combatentes da Al-Shabab para se deslocar de um prédio a outro. Segundo alguns relatos, os túneis se estendiam ininterruptamente ao longo de quilômetros. Restos de comida, mantas e cartuchos de munição ainda estavam espalhados perto das posições de “ataque surpresa” usadas então por atiradores da Al-Shabab, protegidas por
sacos de areia — era tudo o que restara das posições da guerrilha. Não só os combatentes da AlShabab tinham sido expulsos das áreas de superfície: os civis que antes residiam nelas foram expulsos também. Quando estive lá, percebi em diversas ocasiões disparos de artilharia feitos pelas forças da Amisom, de sua base no aeroporto, contra o mercado de Bakaara, onde bairros inteiros tinham sido totalmente abandonados. As casas estavam em ruínas e os animais perambulavam por ali mascando lixo. Em alguns pontos, havia corpos sepultados às pressas em covas em que a terra mal os cobria. Do outro lado da estrada, num velho bairro da Al-Shabab, um corpo sem cabeça jazia poucos metros adiante de um novo posto de controle do governo. Numa série de entrevistas em Mogadíscio, diversos líderes internacionalmente reconhecidos do país, entre eles o presidente Sharif, pediram que o governo dos Estados Unidos aumentasse substancialmente e com rapidez a assistência prestada às Forças Armadas somalianas, em forma de treinamento, equipamento e armas. Mais ainda, diziam que sem instituições civis viáveis, a Somália permaneceria vulnerável a grupos terroristas que mais adiante poderiam desestabilizar não apenas a Somália, mas toda a região. “Acho que os Estados Unidos devem ajudar25 os somalianos a instituir um governo que proteja civis e seu povo”, disse Sharif. Mas os Estados Unidos não tinham fé em Sharif, nem em outros funcionários do governo — e tinham razões para isso. “Se [o governo somaliano] estivesse fazendo alguma coisa além de embolsar todo o dinheiro que lhe foi dado, teria muito mais recursos que a Al-Shabab”,26 disse Ken Menkhaus, o especialista em Somália da Davidson College. Segundo o Grupo de Monitoramento das Nações Unidas na Somália, o armamento e as munições entregues ao governo somaliano e a “milícias associadas” estavam aparecendo cada vez mais no mercado negro e acabavam em mãos da AlShabab. As Nações Unidas estimavam que “o governo e as forças governistas vendiam entre um terço e a metade de sua munição”27 no mercado negro. Na luta contra a Al-Shabab, o governo dos Estados Unidos não se alinhava incondicionalmente ao governo da Somália. A estratégia americana que estava se afirmando no país — tendo como política declarada o aumento da presença secreta e planos de financiamento — apresentava duas vertentes. Por um lado, a CIA treinava, pagava e ocasionalmente dirigia os agentes da Inteligência somaliana que não estavam sob controle firme do governo somaliano, enquanto o JSOC executava ataques unilaterais sem prévio conhecimento do governo. De outro, o Pentágono aumentava seu apoio a operações contraterroristas de forças militares africanas não somalianas e lhes proporcionava armamento. Em 2011, um somaliano que estava exercendo bastante controle em seu território era Indha Adde, ex-ministro da Defesa da União das Cortes Islâmicas e antigo aliado da Al-Shabab. Quando o visitei, no verão de 2011, ele tinha assumido a identidade de general Yusuf Mohammed Siad e ostentava um uniforme militar com três estrelas. Tornara-se oficial de alta patente das Forças Armadas somalianas. Enquanto os Estados Unidos e outras potências ocidentais, sob os auspícios da Amisom, comandavam exercícios de treinamento especializado dirigidos às Forças Armadas de Uganda e do Burundi, às quais também forneciam armamento e
equipamento ao custo de centenas de milhões de dólares, o governo da Somália mal podia pagar28 a seus próprios soldados. As Forças Armadas somalianas estavam carentes de verbas e mal armadas, seus soldados ganhavam mal, eram indisciplinados, e no final das contas, mais leais aos próprios clãs do que ao governo central. Foi assim que nasceu o programa alugue-umamilícia. E Indha Adde era um exemplo primoroso de como isso funcionava. Enquanto Washington fazia de tudo para esconder o apoio que dava aos chefes de milícias na Somália, os acordos que seus representantes na Etiópia, no Quênia e na Amisom faziam com chefes de milícias — similares aos que tinham sido intermediados pela Aliança pelo Restabelecimento da Paz e de Contraterrorismo da CIA no início da década de 2000 — eram, em Mogadíscio, um segredo de polichinelo. O governo dos Estados Unidos privilegiava suas próprias operações fulminantes unilaterais, mas o governo da Somália e a Amisom buscavam o apoio de personagens indigestos num esforço duplo: construir de forma independente algo que se assemelhasse minimamente a um Exército nacional, e — de forma bem parecida à tentativa americana com seu Conselho do Despertar nas áreas sunitas do Iraque em 2006 — comprar lealdade estratégica de antigos aliados do inimigo do momento. Indha Adde ganhou uma patente, apesar de nunca ter servido num exército regular, enquanto outros foram agraciados com ministérios em troca da cessão de suas milícias para a luta contra a Al-Shabab. Vários deles eram antigos aliados da Al-Qaeda ou da Al-Shabab, e muitos tinham combatido diretamente a invasão etíope patrocinada pelos Estados Unidos, ou tinham lutado contra a missão liderada pelos Estados Unidos na Somália, no começo da década de 1990, que culminou com o incidente da derrubada dos Black Hawks. Outras milícias eram pouco menos que representantes dos governos da Etiópia e do Quênia, ambos firmemente apoiados por Washington. Em 2011, Indha Adde tinha se transformado numa espécie de híbrido de suas personalidades anteriores, um chefe de milícia islâmico que acreditava na sharia, recebia dinheiro e armas da Amisom e cultivava relações amigáveis com a CIA. Grande parte de Mogadíscio era inacessível sem a anuência de Indha Adde, que controlava uma das maiores milícias e possuía mais veículos de combate na cidade que qualquer outro chefe de milícia. Seu técnico em mecânica, que montava caminhonetes especialmente armadas para seus homens (e guardava uma estranha semelhança com o ator americano Mr. T), era reconhecido como o melhor de Mogadíscio. Com alta patente militar e uma inundação de armas modernas, Indha Adde era mais poderoso — e pelo menos do modo como ele se via —, mais respeitável do que nunca. Eu estava diante de uma das casas de Indha Adde, esperando que sua comitiva preparasse a partida para as linhas de frente, quando um Toyota Corolla encostou. Em instantes, caixas e mais caixas de munição novinha começaram a ser descarregadas. Indha Adde levou-me a diversas linhas de frente em que sua milícia estava lutando contra a Al-Shabab. No caminho entre uma e outra de suas várias posições, fomos alvo de disparos contínuos de atiradores da Al-Shabab. Meses antes,29 o guarda-costas de Indha Adde tinha
levado um tiro na cabeça ao se postar diante do chefe numa batalha contra combatentes da AlShabab. Segundo o relato de testemunhas, Indha Adde lançou o corpo do homem sobre o ombro, levou-o até um lugar seguro, pegou uma arma automática e disparou contra os algozes. “Numa só noite, disparei 120 projéteis de AK-47,30 quatro carregadores e 250 balas de metralhadora. Sou o combatente número um nas linhas de fogo”, disse-me ele, enquanto caminhávamos pelos restos bombardeados de um bairro que seus homens tinham retomado havia pouco da Al-Shabab. Ao contrário dos homens da Amisom, Indha Adde não usava colete à prova de balas e a toda hora parava para atender a ligações no celular com fone de ouvido. “O papel de um general é uma via de mão dupla. Numa guerra convencional e bem financiada, os generais ficam na retaguarda e comandam dando ordens”, declarou. “Mas na guerra de guerrilhas, como a que temos, o general precisa estar na linha de frente para levantar o moral de seus homens.” Quando passávamos pelas trincheiras nas cercanias do mercado de Bakaara, que tinha sido ocupado por combatentes da Al-Shabab, a comitiva de Indha Adde se deteve. Numa das valas, de uma sepultura improvisada constituída de um pouco de areia amontoada de qualquer jeito sobre um corpo, sobressaía um pé humano. Um dos milicianos de Indha Adde disse que o corpo pertencia a um estrangeiro que lutava ao lado da Al-Shabab. “Sepultamos os mortos deles e capturamos soldados com vida”, disse-me Indha Adde com sua voz baixa e áspera. “Se são somalianos, cuidamos deles, mas quando capturamos um estrangeiro, ele é executado para que os outros possam ver que não temos piedade.” Perguntei a Indha Adde por que ele agora lutava do lado dos Estados Unidos contra seus antigos aliados da Al-Shabab, e ele despejou algo semelhante a versos decorados sem fazer uma só pausa: “Terroristas internacionais estrangeiros entraram no país, começaram a matar nossa gente. Mataram alguns de nossos pais, estupraram nossas mulheres e saquearam nossas casas. Tenho a obrigação de defender meu povo, meu país e minha religião. Tenho de libertar meu povo ou morrer tentando”. Os militantes da Al-Qaeda e da Al-Shabab tinham mudado, não ele, disse. “Os terroristas estão desvirtuando a religião”, disse ele. “Se eu soubesse antes o que sei agora — que os caras que eu estava protegendo eram terroristas —, teria entregado todos para a CIA sem pedir nada.”
Uma das forças mais poderosas a surgir da aliança entre o governo da Somália e as milícias para combater à Al-Shabab foi a Ahlu Sunna Wal Jama (ASWJ), organização paramilitar muçulmana sufista. Fundada31 na década de 1990 como entidade de tendências políticas, mas dedicada a promover o estudo do sufismo e à prestação de trabalhos comunitários e assumidamente não militante, a ASWJ se via como um para-choque contra o que entendia como um avanço do wahabismo na Somália. Proclamava como missão “pregar uma mensagem32 de paz e desautorizar as crenças e a plataforma política” de “movimentos fundamentalistas”.
Administrava madraçais e ensinava a memorização do Alcorão. Os serviços religiosos da seita, que incluía muitos cânticos de grupo, mais parecia um culto dominical evangélico do que as pregações das sextas-feiras nas mesquitas de todo o mundo muçulmano. Em 2008, a Al-Shabab começou a atacar líderes da Ahlu Sunna, executando assassinatos e profanando33 as sepulturas de seus anciãos. A Al-Shabab via a ASWJ como um culto cujas práticas de celebração da morte e de falar em línguas desconhecidas configuravam heresia. Depois de muita discussão34 dentro da comunidade ASWJ, seus integrantes formaram milícias para pegar em armas contra a Al-Shabab. No início, suas tropas, integradas por combatentes clânicos indisciplinados e por intelectuais religiosos, deixavam muito a desejar. Então, na surdina, a Etiópia começou a armar e financiar35 a ASWJ, dar-lhe treinamento e, no fim, a enviar soldados.36 No começo de 2010, a ASWJ era vista em geral como mandatária da Etiópia — e portanto dos Estados Unidos. Em março de 2010, depois de um acalorado debate interno, a ASWJ assinou um acordo formal de cooperação37 com o governo da Somália. Um dos primeiros beneficiários da nova condição da ASWJ como milícia paramilitar foi Abdulkadir Moalin Noor, conhecido simplesmente como “o Califa”, ou “o sucessor”. Seu pai, homem santo38 amplamente reverenciado, tinha morrido em 2009 aos 91 anos e designara Noor como novo líder espiritual do movimento. Educado em Londres, Noor administrava os investimentos da família fora da Somália. Quando o pai morreu, ele abandonou uma vida de segurança e conforto para voltar a Mogadíscio, onde recebeu o título de ministro de Estado. No entanto, Noor ainda apreciava os luxos do Ocidente. Circulava por Mogadíscio numa SUV blindada, com peles de animais sobre os assentos. Instalou uma rede de internet sem fio num acampamento da ASWJ perto da capital, que não tinha água encanada, e seu exemplar do Alcorão era lido num iPad novinho em folha. Em seu recém-comprado iPhone branco, mostrou-me um e-mail do ministro das Relações Exteriores da Etiópia. Noor, que se encontrava regularmente com funcionários do governo e agentes de Inteligência do Ocidente, não quis explicitar quem estava financiando a ASWJ do exterior, mas apontou os Estados Unidos como “aliado número um”39 da Somália. “Estou aqui para lhes agradecer, porque estão nos ajudando, lutando contra os terroristas”, disse-me ele. “E que me diz da área militar?”, perguntei. “Não quero mencionar uma porção de coisas”, ele respondeu. “Mas eles estão metidos até o pescoço. Estão trabalhando com nossa Inteligência, dando-lhe treinamento. Estão trabalhando com o pessoal da área militar. Eles têm forças especialmente treinadas aqui lutando contra a Al-Shabab. Não quero revelar, mas sei que estão fazendo um bom trabalho. Eles têm mesmo gente aqui combatendo a Al-Shabab. E com a ajuda de Alá esperamos que esse caos termine logo.” Em meados de 2011, as milícias da ASWJ tinham se afirmado como uma das mais efetivas forças de combate à Al-Shabab fora de Mogadíscio, retomando territórios na região de Mudug40 e em diversos outros bolsões do país. Mas, como ocorria com os mais poderosos grupos paramilitares da Somália, as coisas não eram bem o que pareciam.
O Grupo de Monitoramento das Nações Unidas na Somália declarou que algumas das milícias da ASWJ “são, aparentemente, mandatárias41 de Estados vizinhos, e não autoridades locais emergentes”. A ASWJ recebia apoio42 também da Southern Ace, empresa privada de segurança. Registrada formalmente em Hong Kong em 2007 e dirigida por um sul-africano branco, Edgar Van Tonder, a Southern Ace cometeu “graves violações43 do embargo de armamentos” imposto à Somália, segundo as Nações Unidas, e “começou também a explorar possibilidades de tráfico de material bélico, além de se envolver em experimentos hortícolas voltados para a produção de drogas,44 entre elas maconha, cocaína e ópio”. Entre abril de 2009 e o começo de 2011, segundo as Nações Unidas, a
Southern Ace e seus associados locais recrutaram e puseram em operação uma milícia de 220 integrantes, forte e bem equipada […] supervisionada por uma dúzia de zimbabuanos e três ocidentais, a um custo estimado de 1 milhão de dólares em salários e pelo menos 150 mil dólares em armas e munição. O resultado foi a criação de uma das forças mais poderosas […] com potencial para alterar o equilíbrio de poder na área.45
A Southern Ace começou a comprar armas no mercado de material bélico da Somália, entre elas dezenas de fuzis Kalashnikov, metralhadoras pesadas, lançadores-propelentes de granadas e uma metralhadora antiaérea ZU-23 com 2 mil projéteis. As compras de armas da empresa “eram tão grandes” que autoridades locais “notaram um aumento significativo no preço da munição e uma escassez de projéteis para a ZU-23”. Algumas dessas armas estavam montadas em veículos de tração nas quatro rodas e caminhonetes. A empresa importou das Filipinas para a Somália “uniformes de tipo militar e coletes à prova de balas para apoiar suas operações”,46 segundo as Nações Unidas. Apoiada pela Etiópia e pela Southern Ace, a ASWJ empreendeu uma série de importantes ofensivas contra a Al-Shabab que, segundo as Nações Unidas, foram executadas em violação ao embargo de armas. Sem dúvida, a Etiópia e os Estados Unidos viam a ASWJ como a principal contrapartida à retórica da Al-Shabab e da Al-Qaeda, e em apenas três anos transformaram uma entidade que na origem não era violenta num dos mais poderosos grupos armados da Somália. “Até certo ponto, o apoio de governos estrangeiros a forças que atuam como prepostas suas na Somália representa um retorno à era dos chefes de milícias47 da década de 1990 e início da década seguinte”, concluiu com concisão um relatório das Nações Unidas. Essas práticas, continuou, “mostraram-se historicamente contraproducentes”.
A Southern Ace estava longe de ser a única empresa mercenária a intervir na Somália. Nenhuma guerra americana moderna estaria completa sem a participação de Erik Prince,
fundador da Blackwater. Embora os crimes e escândalos de sua empresa tenham ficado intimamente ligados48 aos neoconservadores e à era Bush, as forças da Blackwater continuaram a desempenhar importante papel nas operações globais da CIA no governo Obama. Com a Blackwater submetida a profundas investigações e seus principais subordinados indiciados por conspiração e uso indevido de material bélico nas instâncias federais, Prince saiu dos Estados Unidos em 2010 e se radicou em Abu Dhabi, nos EAU, importante ponto de irradiação da atividade mercenária e da ação bélica terceirizada como um todo. Prince tinha ligações estreitas com a realeza, especialmente com o príncipe herdeiro de Abu Dhabi. Disse que tinha escolhido Abu Dhabi por causa da “grande proximidade com potenciais oportunidades49 em todo o Oriente Médio, e da excelente logística”, acrescentando que o lugar tinha “um ótimo ambiente para os negócios, impostos baixos ou inexistentes, livre-comércio e nenhum advogado ou sindicato fora de controle. É propício aos negócios e às oportunidades”. Depois de adotar os EAU como pátria, Prince deu continuidade a suas atividades mercenárias. Deixara os Estados Unidos, disse, para “evitar que os chacais metam a mão no meu dinheiro”,50 acrescentando que queria explorar novas oportunidades “na área energética”. Poucos dias antes do Natal de 2010, Prince pousou no aeroporto internacional de Mogadíscio, desembarcou do jatinho particular que o levara e foi conduzido à sala VIP, onde esteve reunido com pessoas não identificadas durante uma hora. Depois disso voltou para o avião e decolou. “Tínhamos ouvido falar muito nas ambições da Blackwater de deixar sua marca na Somália”,51 disse um funcionário ocidental na ocasião. Havia muito que Prince estava interessado em montar uma força particular de combate à pirataria que pudesse zarpar da costa da Somália. No fim de 2008, ele estava em negociação com mais de uma dúzia de companhias de navegação52 sobre a contratação da Blackwater para proteger seus navios em trânsito no Chifre da África e no golfo de Áden. Em 2006, ele tinha comprado um barco de 183 pés,53 o McArthur, que transformou numa nave-mãe antipirataria capaz de comportar helicópteros Little Bird, botes infláveis, 35 soldados privados e uma metralhadora calibre 50. “Poderíamos tirar os barcos de lá,54 perseguir e deter os barcos de pesca que os piratas estão usando a um custo bem menor do que a Marinha teria com suas belonaves de 1,5 bilhão, 2 bilhões de dólares”, disse Prince. A União Europeia, disse ele, “estava lá com 24 navios tentando cobrir uma área de 5 milhões de quilômetros quadrados do oceano Índico no combate a piratas somalianos. Isso dá 2,5 milhões de quilômetros quadrados por navio. É exatamente o que não se deve fazer”. Prince sugeriu que sua força poderia operar de forma análoga à dos navios corsários durante a Revolução Americana. “Um navio corsário era uma embarcação privada, com tripulação privada e um capitão privado, que recebia uma licença de caça. É chamada de carta de corso. Está prevista na Constituição”, declarou Prince num discurso pouco antes de partir para os EAU. “Eles tinham autorização para caçar barcos inimigos e faziam isso muito bem. Até o general Washington investia nesse tipo de operações de corsários.”
Não havia dúvida de que a pirataria vinha aumentando ao largo da costa da Somália. Os ataques de piratas continuaram a crescer no segundo semestre de 2010 — de setembro desse ano a janeiro de 2011, o número de reféns tomados por piratas subiu de 250 para 770.55 Os piratas começaram a exigir resgates cada vez mais exorbitantes e a usar “naves-mães” confiscadas para executar ataques mais ambiciosos. Em janeiro de 2011, soldados americanos executaram uma incursão antipirataria em terra, capturando três jovens somalianos56 e levando-os a bordo de um navio para interrogatório. Pouco depois, o líder das forças navais do Centcom, vice-almirante Mark Fox, sugeriu que os Estados Unidos empregassem medidas contraterroristas na luta contra piratas somalianos. Citando a progressiva sofisticação da tecnologia usada pelos piratas, assim como sua ligação com a Al-Shabab, Fox propôs que os ataques piratas fossem contidos em terra ainda embrionários. “A Al-Shabab é responsável57 por muita atividade de treinamento, acampamentos e esse tipo de coisa na Somália”, declarou. “Os piratas usam essas coisas. Na minha opinião, não pode haver uma separação entre a atividade contraterrorista e a contrapirataria.” Embora Fox possa ter exagerado as ligações entre a Al-Shabab e a pirataria — vários relatos indicam que a Al-Shabab estava extorquindo os piratas58 muito mais do que se coordenando com eles —, ele tinha razão ao dizer que os piratas estavam se tornando mais ousados. Em 16 de fevereiro de 2011, Abduwali Muse — o único pirata julgado pelo sequestro do Maersk Alabama, foi condenado a 33 anos de prisão.59 Dois dias depois, um iate particular, o SV Quest, de propriedade de Jean e Scott Adam, que moravam na Califórnia, enviou um SOS.60 Eles tinham sido capturados com os tripulantes Phyllis Macay e Robert Riggle, baseados em Seattle, a 440 quilômetros61 da costa de Omã. Uma flotilha pertencente à Quinta Frota dos Estados Unidos que estava no local começou a rastrear o Quest pouco depois de enviada a mensagem de sua captura, com o apoio de helicópteros62 e drones desarmados.63 A missão de resgate alcançou o Quest em águas internacionais entre o extremo norte de Puntland e a ilha iemenita de Socotra. No dia seguinte, o presidente Obama autorizou o uso de força letal.64 Mas se em todos os aspectos a neutralização dos piratas que tomaram o Maersk Alabama foi um sucesso, a missão de libertação de passageiros e tripulantes do Quest foi um desastre. Um bando de piratas extraordinariamente numeroso — dezenove membros — e incontrolável estava a bordo do iate, tornando impossível replicar o desfecho conciso do resgate do Alabama: “Três tiros, três piratas mortos”. Portanto, o impasse continuou até que dois piratas do Quest se dispuseram a subir a bordo de um dos navios65 para negociar com o FBI. Assim que começaram as conversações, os agentes do FBI prenderam os piratas. Na manhã seguinte, uma granada propelida por foguete (rocket-propelled grenade, RPG) foi disparada contra um dos barcos da Marinha e teve início uma troca de tiros.66 Dois piratas morreram. As forças americanas então lançaram-se à ação: duas lanchas motorizadas levaram quinze comandos SEALs até o iate, onde se travou um intenso combate corpo a corpo. Dois piratas foram mortos pelos SEALs, um
deles baleado e o outro esfaqueado. Mas já era tarde demais para os reféns.67 Dois estavam mortos e os demais tinham sido feridos de morte. Não ficou claro se foram executados ou apanhados pelo fogo cruzado. Numa entrevista coletiva concedida por telefone, o almirante Fox afirmou que os reféns tinham sido baleados antes da abordagem e da violenta operação de resgate. Um correspondente da BBC que falou com os piratas disse que eles assumiram a autoria do assassinato dos cativos,68 que no entanto só teriam sido mortos depois que a Marinha americana disparou os primeiros tiros, que mataram os dois primeiros piratas. Os quinze sobreviventes69 foram detidos pelos americanos, e catorze deles foram mais tarde indiciados por pirataria e sequestro (o décimo quinto era menor, e apurou-se que não tinha tido papel central no crime). Deixando manifesta uma das qualidades que determinaram a ascensão da Blackwater, Erik Prince viu, mais uma vez, oportunidade na crise. Em 2009, a Blackwater tinha firmado um acordo70 com o governo do Djibuti para operar o navio antipirataria McArthur a partir do território djibutiano (mais tarde, o navio foi vendido a uma subsidiária da Saracen International). O acordo resultou de uma série de reuniões entre autoridades do Djibuti com Prince e Cofer Black, ex-chefe do Centro de Contraterrorismo da CIA, que na época era alto executivo da Blackwater. Cálculos iniciais mostram que a empresa poderia ganhar cerca de 200 mil dólares pelo acompanhamento de cada navio das companhias de navegação. A tripulação era composta de 33 americanos, entre eles três grupos de seis atiradores que operavam em turnos ininterruptos. “A Blackwater não pretende prender nenhum pirata, e sim usar força letal contra piratas, se necessário for”, segundo um telegrama diplomático americano sobre o acordo, observando que a Blackwater “tinha feito briefings para o Africom, o Centcom e funcionários da embaixada dos Estados Unidos em Nairóbi”. O telegrama acrescentava que “não havia precedente de uma operação militar num ambiente puramente comercial”. A indústria da pirataria da Somália tinha sua base na região semiautônoma de Puntland, pouco interessada em cooperar com o governo de Mogadíscio apoiado pelos Estados Unidos. As autoridades de Puntland vinham enfrentando uma pressão cada vez maior da comunidade internacional para reprimir os piratas, e um movimento islâmico local ameaçava sua possibilidade de assinar lucrativos contratos de exploração de petróleo e minérios com grandes empresas. A Somália possui grandes depósitos de “urânio e reservas pouco exploradas de minério de ferro, estanho, gipsita, bauxita, cobre, sal e gás natural, assim como de petróleo”,71 segundo a CIA. No fim de 2010, o governo de Puntland anunciou que estava criando sua própria força de combate à pirataria e ao terrorismo,72 e declarou que tinha recebido financiamento de uma nação doadora do Golfo Pérsico. Revelou-se mais tarde73 que a nação doadora era nada menos que os EAU e que a empresa contratada para o treinamento da força de segurança era financiada por um de seus mais recentes residentes, Erik Prince. A empresa, a Saracen International, era administrada por veteranos da antiga empresa mercenária Executive Outcomes74 e tinha escritórios e empresas fantasmas75 em numerosos
países, entre eles África do Sul, Uganda, Angola e Líbano. Entre os principais personagens da empresa estava Lafras Luitingh, antigo oficial do Bureau de Cooperação Civil da África do Sul,76 notória força de segurança conhecida por caçar e matar opositores do regime de apartheid. Segundo um relatório confidencial da Inteligência da Amisom, Prince estava no “topo da cadeia de administração da Saracen” e “proporcionava capital de arranque77 para contrato da Saracen”. Segundo o Grupo de Monitoramento das Nações Unidas na Somália, Prince e Luitingh encontraram-se em Washington em outubro de 2009, e daí se reuniram com representantes do governo de Abu Dhabi.78 Os EAU contrataram também um ex-diplomata americano,79 o advogado Pierre-Richard Prosper, que tinha atuado como embaixador itinerante para questões relacionadas a crimes de guerra no governo do presidente Bush, e o ex-oficial da CIA Michael Shanklin, ex-chefe da estação da CIA em Mogadíscio. No fim de 2010, a Saracen estava treinando uma força antipirataria de mil homens80 no norte de Puntland. Esse exército estava sendo preparado também para capturar militantes islâmicos que estivessem ameaçando boas oportunidades de negócio. Os militantes islâmicos haviam reclamado que tinham sido “excluídos dos negócios de exploração de energia” em sua região. “Não se pode ter exploração de petróleo81 onde houver insegurança”, declarou Mohamed Farole, filho e assessor do presidente de Puntland, Abdirahman Mohamed Farole. Em maio de 2011, as operações da Saracen em Puntland estavam em andamento:82 na base de Bandar Siyada, perto de Bosaso, 470 soldados e pilotos tinham completado seu treinamento. Havia planos de equipar a força com três aeronaves de transporte e três de reconhecimento, dois helicópteros de transporte e dois helicópteros leves. A força que estava sendo montada seria, segundo o Grupo de Monitoramento das Nações Unidas, a mais bem equipada das forças autóctones de toda a Somália e a maior das iniciativas militares com apoio externo depois da Amisom. Provas fotográficas mostram que pessoal da Saracen já tinha sido enviado a Somália para fazer a segurança de figurões e de operações humanitárias. A Saracen também tinha feito acordo com o governo do presidente xeque Sharif em Mogadíscio para formar um destacamento de segurança pessoal para o presidente e outros altos funcionários do governo. As operações da Saracen em Mogadíscio já eram perceptíveis em outubro de 2010. Luitingh, Shanklin e um pequeno grupo da Saracen viajaram para Mogadíscio83 em 5 de outubro. Nas três semanas seguintes, receberam dos EAU quatro veículos blindados, equipados com torres de artilharia. Parecia que o presidente Sharif e seu primeiroministro tinham feito acordos secretos com a Saracen e pelo menos cinco outras empresas de segurança privada84 que haviam se estabelecido nos arredores do aeroporto internacional de Mogadíscio. Não demorou para que essas atividades ostensivas levantassem suspeitas e preocupações na Amisom e entre políticos somalianos. O comandante da Amisom, general Nathan Mugisha, manifestou sua preocupação com “grupos armados desconhecidos85 na área da missão”, em referência às operações da Saracen. Enquanto isso, legisladores somalianos anunciavam, no fim de 2010, que exigiam a suspensão de contratos86 com prestadores privados
de serviços de segurança, alegando que não tinham ideia de para que funções esses prestadores de serviço haviam sido contratados. Enquanto transcorria a última guerra privada de Prince e da Saracen, estourou o escândalo. O Grupo de Monitoramento das Nações Unidas declarou que a Saracen vinha atuando em flagrante violação ao embargo de armas à Somália e concluiu, em seu relatório, que, “apesar das efêmeras e malsucedidas iniciativas da Southern Ace no tráfico de armas e drogas, a mais flagrante violação do embargo de armas praticada por uma empresa privada durante o mandato do Grupo de Monitoramento das Nações Unidas foi perpetrada pela Saracen International, em associação com uma obscura rede de entidades a ela filiadas”.87 O Grupo de Monitoramento das Nações Unidas sugeriu que as operações continuadas da Saracen poderiam aumentar o apoio popular a milícias islâmicas locais e, possivelmente, à Al-Shabab. “A presença da Saracen aumentou a tensão88 no nordeste da Somália”, concluiu. Um ano depois, em resposta a um novo relatório das Nações Unidas, o advogado da Saracen acusou o grupo de monitoramento de publicar “um conjunto de insinuações sem fundamento e frequentemente falsas”. No começo de 2011, quando o envolvimento de Prince com a Saracen se tornou público, seu porta-voz, Mark Corallo, disse que Prince estava sendo levado simplesmente pelo imperativo humanitário de ajudar a “Somália a superar o flagelo da pirataria”89 e afirmou que ele não tinha interesse financeiro no trabalho da Saracen. “Não queremos nada com a Blackwater”,90 disse ao New York Times o ministro da Informação da Somália, Abdulkareem Jama, lembrando a matança de iraquianos inocentes na praça Nisour, em Bagdá, em 2007. “Precisamos de ajuda, mas não queremos mercenários.” Jama não mencionou que esteve presente, junto com outras autoridades da Somália, nas negociações do acordo com a Saracen.91 Na primavera de 2011, Puntland anunciou que estava suspendendo as operações da Saracen92 para aguardar a aprovação das Nações Unidas. Mas um alto funcionário do governo somaliano disse-me que a empresa ainda atuava discretamente93 em Mogadíscio, ao lado de forças somalianas de segurança. Entre outras empresas privadas de segurança94 com base no aeroporto de Mogadíscio estavam a AECOM Technology Corporation, a OSPREA Logistics, a PAE, a Agility, a RA International, a International Armored Group, a Hart Security, a DynCorp, a Bancroft e a Threat Management Group. Algumas delas treinavam os serviços de segurança da Somália, outras apoiavam a Amisom, outras ainda davam apoio logístico para grupos de ajuda e jornalistas. Algumas dessas empresas, como a Bancroft, eram bem conhecidas, mas as atividades desempenhadas por outras eram secretas e livres de fiscalização eficaz. Dessa forma, eram perfeitamente adequadas para a Somália. Eram convenientes para Washington também. “Não queremos pegadas95 nem coturnos americanos nesse solo”, disse Johnnie Carson, principal representante do governo Obama na Somália. Apesar do papel cada vez maior da CIA e do JSOC, e do uso de chefes de milícias transformados em generais e de empresas mercenárias, a maior vitória tática dos anos recentes na Somália não
foi conquistada pela Amisom, pela CIA ou pelo JSOC, nem por nenhuma força local apoiada pelos Estados Unidos, e sim por membros de uma milícia integrante da caótica Força Armada do governo somaliano. E foi por puro acidente.
SOMÁLIA, 2010 — Enquanto se desenrolava a batalha legal sobre a legitimidade do assassinato de um cidadão americano por seu próprio governo, a equipe de contraterrorismo da Casa Branca não estava preocupada apenas com Awlaki ou com a AQPA no Iêmen. Enfrentava também uma ameaça cada vez mais ampla na Somália, devido ao recente processo de fortalecimento e unificação de um movimento islâmico naquele país. O grupo militante AlShabab firmara um “acordo para unificação”1 com a milícia Ras Kamboni, de Hassan Turki, com o objetivo explícito de “criar um Estado islâmico que ponha em vigor a sharia, a legislação islâmica”. No entanto, o que mais preocupava a comunidade de contraterrorismo americana era o último ponto do acordo. “Com o fito de restaurar a dignidade danificada dos muçulmanos, seu poder político, sua força econômica e seu poderio militar, todos os muçulmanos na região devem se unir e pôr fim à hostilidade entre si, criada pelas potências coloniais”, dizia a declaração. “Para impedir a invasão pelos cruzados internacionais e os ataques que eles vêm realizando contra o povo muçulmano, a jihad no Chifre da África deve se fundir com a jihad internacional, liderada pela rede Al-Qaeda e por seu amir xeque Osama bin Laden.” Para justificar sua aliança com a Al-Qaeda, a Al-Shabab fundiu seu apoio ao grupo terrorista com a resistência à agressão estrangeira. A possibilidade de assumir essa postura era algo com que Osama bin Laden nem teria sonhado na década de 1990. E os erros de conduta e de cálculo de Washington tinham ajudado a levar a isso. “Os Estados Unidos lançaram ataques aéreos2 contra membros de alto nível da Al-Shabab, que acreditavam vinculados à Al-Qaeda. No entanto, os especialistas afirmam que esses ataques só serviram para aumentar o apoio popular à Al-Shabab. Na verdade, afirmam que as únicas ações capazes de galvanizar a Al-Shabab e aumentar o apoio a essa organização na Somália são novos ataques por parte dos Estados Unidos ou uma volta das tropas etíopes”, concluiu um informe da Comissão das Relações Exteriores do Senado no começo de 2010. “A Al-Qaeda é agora uma organização mais sofisticada e mais perigosa na África”, declarava o informe, observando que “é provável que a cabeça de ponte [da Al-Qaeda] na Somália tenha sido facilitada pelo envolvimento das potências ocidentais e de seus aliados”. Embora a jihad da Al-Shabab, até aquele ponto, estivesse confinada aos limites da Somália, o
grupo em breve faria acompanhar sua declaração formal de unidade com a Al-Qaeda atacando seus inimigos no próprio território deles.
Alguma coisa aconteceu a Ahmed Madobe, chefe de uma milícia somaliana, nos dois anos em que esteve sob custódia etíope depois de ter sido quase morto pelo JSOC, em 2007. Em 2009, Madobe fez um acordo3 com os governos da Etiópia e da Somália pelo qual renunciaria à AlShabab e combateria ativamente essa organização. Depois disso, voltou para a sua região na Somália. Segundo suas palavras,4 tinha planejado voltar para Jubba e tentar definir o melhor acordo que pudesse fazer. Se fosse com o governo somaliano, muito bem. Se não fosse, bem, uma vez guerrilheiro, sempre guerrilheiro. Entretanto, ao voltar para sua região, Madobe descobriu que ela não era mais dele. Seu mentor, Hassan Turki, fundira a Ras Kamboni com a Al-Shabab e prometera fidelidade à AlQaeda. Madobe foi posto contra a parede pelos ex-companheiros: ou você está conosco ou está contra nós. Madobe diz que tentou negociar um acordo de partilha de poder na região, mas a AlShabab o rejeitou. Por isso, ele ficou com a única opção real de que dispunha. Pelo menos é assim que prefere expor a situação. “A visão que eu tinha da Etiópia mudou bastante, da mesma forma que a que eu tinha da política internacional na Somália”, ele me disse. No começo de 2010, Madobe anunciou5 que suas forças estavam em guerra com a Al-Shabab e que apoiavam o governo da Somália. E ficou evidente que ele forjara uma nova relação com os etíopes, que durante muito tempo haviam financiado vários chefes de milícias e políticos somalianos. “Estávamos lutando contra os etíopes e os americanos, e os considerávamos inimigos”, afirmou.
Mas esses sujeitos da Al-Shabab são piores do que eles, pois conspurcaram a imagem do Islã e os valores de nosso povo. Por isso, agora, as divergências entre mim, os etíopes e os Estados Unidos são pequenas em comparação com as divergências que tenho com a Al-Shabab.
A aliança de Turki com a Al-Shabab causava especial preocupação aos Estados Unidos, uma vez que dava à aliança o controle total da importante cidade portuária de Kismayo. O controle desse porto, junto com o dos “portos secundários de Marka e Baraawe […] tornou-se a principal fonte de renda6 para [a Al-Shabab]”, segundo um relatório da ONU. A Al-Shabab “recebe entre 35 milhões e 50 milhões de dólares anuais em receitas portuárias, dos quais pelo menos 15 milhões são provenientes do comércio de carvão e açúcar”. Os Estados Unidos queriam interromper esses fluxos de caixa, e por isso começaram a apoiar Ahmed Madobe, ex-membro da União das Cortes Islâmicas que o JSOC tentara matar em 2007. Madobe fora no passado aliado da Al-Shabab e da milícia Ras Kamboni, de Hassan Turki. Madobe e seus homens começaram a receber “treinamento e apoio”7 de forças militares quenianas apoiadas pelos Estados Unidos.
Trafegavam em caminhonetes novas, dotadas de metralhadoras, e, durante batalhas com forças da Al-Shabab, recebiam apoio de artilharia de forças quenianas e apoio aéreo de helicópteros militares. Madobe tornou-se integrante de uma nova geração de chefes de milícias cooptados dos destroços da União das Cortes Islâmicas. Não seria o último.
A Copa de 2010 — o mais famoso evento esportivo do mundo — realizou-se na África do Sul. Pela primeira vez, as finais foram disputadas em cidades africanas, e todo o continente se transformou numa gigantesca arena. Enormes telões foram montados em campos e estádios, e os jogos foram exibidos por televisores em todos os bares, restaurantes e cafés. Uganda não foi exceção. Em 11 de julho de 2010, no bairro de Kabalagala, na capital, Kampala, uma multidão, formada sobretudo de estrangeiros, assistia à final da Copa, entre a Holanda e a Espanha, no restaurante Ethiopian Village.8 Quando acabou o primeiro tempo,9 o jogo estava empatado em zero a zero. Bum! Uma explosão sacudiu o restaurante. Quinze pessoas morreram e dezenas ficaram feridas, entre elas seis missionários menonitas. Quando a partida chegou ao último minuto do tempo regulamentar,10 uma segunda explosão aconteceu no Kyadondo Rugby Club,11 em Nakawa, alguns quilômetros ao norte. Seguiu-se uma terceira explosão na base de um telão em torno do qual muitas pessoas viam o jogo. Ao todo, 64 pessoas, na maioria ugandenses, morreram nas explosões de Nakawa. Um assistente social americano de 25 anos também morreu. Uma cabeça encontrada no local12 seria de um somaliano, que as autoridades ugandenses supunham ser um homem-bomba. Um colete com explosivos, não detonados, foi encontrado depois. Logo após o duplo atentado, as especulações apontavam para a Al-Shabab. No entanto, o grupo nunca executara ataques fora das fronteiras da Somália. Membros subalternos da AlShabab comemoraram os ataques — um deles declarou que estava “muito feliz”13 —, mas não assumiram a autoria das explosões. No dia 12 de julho, porém, o xeque Alo Mohamud Rage, porta-voz da Al-Shabab, anunciou, orgulhoso, que o grupo estava por trás dos atentados. “Realizaremos ataques14 contra nossos inimigos onde eles estiverem”, disse. “Ninguém há de nos impedir de cumprir nosso dever islâmico.” E acrescentou: “Agradecemos aos mujahedin15 que levaram a cabo o ataque. Estamos enviando uma mensagem a Uganda e ao Burundi: se eles não retirarem da Somália as tropas que enviaram para a Amisom, as explosões continuarão, com certeza”. Enquanto os vizinhos de Uganda e da Somália entravam em estado de alerta vermelho, em Mogadíscio a Al-Shabab preparava uma grande campanha para derrubar o frágil governo que a Amisom estava protegendo.
Nos dois primeiros anos do governo Obama, a política externa dos Estados Unidos concentrou-se sobretudo no Afeganistão e no Iraque — e envolveu-se numa controvérsia sobre a
prisão de Guantánamo —, mas em 2010 a Somália começou a se tornar uma importante área de preocupação. O JSOC havia realizado várias operações no país, com destaque para a que matara Saleh Ali Saleh Nabhan, líder da Al-Qaeda na África Oriental. Entretanto, à medida que os Estados Unidos ampliavam seus ataques, a Al-Shabab parecia tornar-se mais ousada. A cada semana, o grupo aumentava o território sob seu controle. Das organizações filiadas à Al-Qaeda, a Al-Shabab era a que controlava a maior faixa de terra. Em 2010, a Somália ganhou a discutível honra de ser considerada a capital mundial do terrorismo,16 no Índice Global de Risco de Terrorismo da Maplecroft, com nada menos que 556 ataques terroristas entre junho de 2009 e junho de 2010, que redundaram na morte de 1437 pessoas. A retórica da Casa Branca contra a Al-Shabab tornou-se cada vez mais belicosa, e Obama emitiu a Ordem Executiva 13536, declarando que era uma “emergência nacional17 enfrentar a ameaça [da Somália]”. Entre as preocupações mais sérias identificadas pela comunidade de contraterrorismo dos Estados Unidos estava a questão de combatentes estrangeiros, sobretudo originários dos Estados Unidos, que tinham sido utilizados em ataques suicidas. Em 5 de agosto de 2010, o procurador-geral Eric Holder anunciou o indiciamento de catorze pessoas, residentes nos Estados Unidos, acusadas de prestar apoio material à Al-Shabab. “Esses indiciamentos e prisões18 — nos estados de Minnesota, Alabama e Califórnia — tornam mais claro um canal mortífero pelo qual foram enviados, à Al-Shabab, recursos e combatentes originários de cidades em todos os Estados Unidos”, declarou Holder.
Embora nossas investigações estejam ocorrendo em todo o país, essas prisões e acusações devem servir como uma advertência inequívoca a quem estiver pretendendo aderir a grupos terroristas como a Al-Shabab, ou apoiá-los: se você optar por esse caminho, pode ter certeza de que se verá numa cela de prisão americana, ou será mais uma baixa num campo de batalha da Somália.
Moradores de Mogadíscio começaram a relatar a passagem habitual de aviões de reconhecimento sobre a capital. O governo Obama estava aumentando suas operações. No entanto, o mesmo fazia a AlShabab. Em 22 de agosto de 2010, a organização lançou o que o Grupo de Monitoramento da ONU na Somália e na Eritreia classificou como “sua mais importante campanha militar19 desde maio de 2009”. O xeque Rage deu uma entrevista coletiva em 23 de agosto para anunciar uma “guerra de vulto”20 para derrubar de uma vez por todas o governo somaliano apoiado pelos Estados Unidos. A Al-Shabab vinha mobilizando combatentes havia meses, preparando-se para a fartamente anunciada ofensiva da Amisom que só viria a ocorrer muito depois. Com um contingente estimado entre 2500 e 5 mil militantes, a Al-Shabab executou ataques diretos contra a Villa
Somalia e outras sedes do governo, e tentou repelir forças do governo somaliano e da Amisom em bairros importantes de Mogadíscio. Pelo menos oitenta pessoas foram mortas e dezenas ficaram feridas durante uma semana de intensa violência,21 de 23 a 30 de agosto. Entre outros incidentes de monta, cabe citar um ataque ao palácio presidencial, em 30 de agosto, e um atentado a bomba, que deixou muitos mortos,22 no dia seguinte. No segundo dia dessa “Ofensiva do Ramadã”, em 24 de agosto, três milicianos antigovernistas, disfarçados de soldados do governo somaliano, sitiaram o Muna Hotel,23 situado a algumas centenas de metros da Villa Somalia. O ataque, que envolveu dois suicidas, matou pelo menos 33 pessoas, entre as quais vários parlamentares. Após o ataque, forças do governo somaliano amarraram os restos24 de um dos militantes da Al-Shabab à traseira de um veículo e desfilaram com ele pela cidade. “Esse foi um ato particularmente ultrajante25 durante o mês islâmico do Ramadã”, disse John Brennan, o principal consultor de contraterrorismo de Obama, no dia do ataque ao hotel. “Os Estados Unidos continuarão a apoiar aqueles que se opõem ao terrorismo, ao extremismo e à violência em todas as suas formas, e continuarão a trabalhar estreitamente com essas pessoas na África, principalmente no Chifre da África e na Somália.” Duas semanas depois, em 9 de setembro de 2010, o aeroporto foi vítima de um ataque com dois carros-bomba,26 durante a visita de uma delegação internacional que incluía o representante especial do secretário-geral da ONU e o representante especial do presidente da União Africana. Essas autoridades saíram incólumes, embora os ataques — e a luta que se seguiu — tenham custado a vida de dois soldados da Amisom e de pelo menos cinco civis. De acordo com o grupo de monitoramento Ameaças Críticas, os combates haviam desalojado 23 mil residentes27 de Mogadíscio no fim de setembro. Várias batalhas continuaram a sacudir Mogadíscio durante o mês de setembro. A Al-Shabab obteve ganhos expressivos nos primeiros momentos da ofensiva, embora a operação acabasse por fazer a Amisom empregar mais 2 mil soldados. A ofensiva acabou sendo repelida. Um fator importante para a derrota da Al-Shabab, segundo o Grupo de Monitoramento da ONU, pode ter sido a “dependência exagerada [da Al-Shabab] de crianças28 incapazes de resistir às tropas da Amisom ou, em menor grau”, a forças do governo e a milícias pró-governo. Segundo informações, a Al-Shabab sofreu pesadas baixas, tanto entre combatentes como entre comandantes de alta graduação, e em alguns casos perdeu territórios para as forças do governo. Por fim, a ofensiva da Al-Shabab conseguiu, até certo ponto, desestabilizar ainda mais um governo somaliano que já estava em situação crítica. Além disso, provocou um debate interno na própria Al-Shabab e na Al-Qaeda quanto a suas táticas e a conveniência de tentar manter territórios ou de tentar capturar toda a capital. Nesse ínterim, a CIA estava expandindo sua presença em Mogadíscio.
44. “Anwar Awlaki […] com certeza tem um míssil em seu futuro”
IÊMEN, 2011 — Em janeiro de 2011, um tribunal do Iêmen condenou o jornalista iemenita Abdulelah Haider Shaye por acusações relacionadas a terrorismo1 e lhe impôs uma sentença de cinco anos de reclusão, a que se seguiriam dois anos de movimentação restrita e vigilância. Durante todo o julgamento, Shaye recusou-se a reconhecer a legitimidade do tribunal e a apresentar uma defesa. Para a organização Human Rights Watch, o tribunal especial que o julgou “não cumpria as normas internacionais2 de processo legal justo”, e seus advogados alegaram que as poucas “provas” apresentadas contra ele baseavam-se em documentos forjados. “O que ocorreu foi uma decisão política, e não judicial. Não tem base legal”,3 disse Abdulrahman Barman, advogado de Shaye, que boicotou o julgamento. “Tendo assistido ao julgamento,4 posso dizer que foi uma farsa total”, disse a jornalista Iona Craig, do Times londrino. Vários grupos internacionais de direitos humanos condenaram o julgamento como uma farsa e uma injustiça. “Há fortes indícios5 de que as acusações contra [Shaye] são fraudulentas e que ele foi preso apenas por ousar manifestar-se a respeito da colaboração dos Estados Unidos no ataque a um depósito de munições ocorrido no Iêmen”, disse Philip Luther, da Anistia Internacional. Sem dúvida alguma, Shaye estava fazendo reportagens que tanto o governo do Iêmen quanto o dos Estados Unidos queriam suprimir. Estava também entrevistando uma pessoa que Washington vinha caçando, ou seja, Anwar Awlaki. Embora o governo do Iêmen e dos Estados Unidos alegassem que ele promovia a propaganda da Al-Qaeda, observadores atentos do Iêmen discordavam. “É difícil exagerar6 a importância de seu trabalho”, declarou Gregory Johnsen, professor da Universidade de Princeton, que vinha se comunicando com Shaye desde 2008 e me disse:
Sem as reportagens e entrevistas de Shaye, saberíamos muito menos sobre a Al-Qaeda na Península Arábica do que sabemos, e se acreditarmos, como eu acredito, que conhecer os inimigos é importante para definir uma estratégia destinada a derrotá-los, nesse caso sua
prisão e sua posterior detenção deixaram uma lacuna em nosso conhecimento que ainda não foi preenchida.
Depois da condenação e da sentença de Shaye, líderes tribais pressionaram o presidente Saleh para que lhe concedesse anistia. “Alguns iemenitas de destaque e xeques tribais visitaram o presidente para atuar como mediadores na questão, e Saleh concordou em libertá-lo e perdoálo”, recordou Barman. “Estávamos esperando a divulgação do perdão […]. O documento já estava impresso e pronto para que o presidente o assinasse e o anunciasse no dia seguinte.” A notícia do perdão iminente vazou na imprensa iemenita. Nesse dia, 2 de janeiro de 2011, o presidente Saleh recebeu um telefonema do presidente Obama.7 Os dois falaram a respeito de cooperação na área de contraterrorismo e da batalha contra a AQPA. No fim da conversa, Obama “expressou preocupação” quanto à libertação de Shaye, que, disse ele, “fora condenado a cinco anos de prisão por sua ligação com a AQPA”. De fato, Shaye ainda não tinha sido libertado quando se deu esse telefonema, mas seu perdão já estava preparado e só faltava a assinatura de Saleh. Não era inusitado que a Casa Branca expressasse preocupação com o fato de o Iêmen permitir que suspeitos de ligação com a AQPA fossem soltos. Fugas mal explicadas de militantes islâmicos presos tinham sido comuns no Iêmen na década anterior, e sabia-se que Saleh explorava a ameaça do terrorismo para arrancar dinheiro dos Estados Unidos para a luta antiterrorista. Entretanto, esse caso era diferente: Abdulelah Haider Shaye não era um militante islâmico ou um quadro operacional da Al-Qaeda. Era um jornalista. Depois da ligação de Obama, Saleh rasgou o perdão. De acordo com Johnsen:
Evidentemente, as reportagens de Shaye traziam embaraço para o governo americano e o iemenita, pois numa época em que ambos tentavam, sem sucesso, matar líderes importantes da AQPA, esse jornalista, usando só sua câmera e seu computador, era capaz de localizar esses mesmos líderes e entrevistá-los [...]. Não existem dados públicos que levem a crer que Abdulelah fosse algo mais que um jornalista tratando de realizar seu trabalho, e não está claro por que o governo americano ou o iemenita se recusam a apresentar as informações que afirmam ter.
Shaye fez uma breve greve de fome8 em protesto contra sua prisão, interrompida depois que a família manifestou preocupação com sua saúde em deterioração. Enquanto entidades internacionais de jornalismo, como o Comitê para a Proteção dos Jornalistas, a Federação Internacional de Jornalistas e a organização Repórteres sem Fronteiras, pediam a libertação de Shaye, seu caso recebia pouca atenção nos Estados Unidos. No Iêmen, jornalistas, ativistas de direitos humanos e advogados alegavam que ele estava preso a pedido dos Estados Unidos. Beth Gosselin, porta-voz do Departamento de Estado, disse-me que os Estados Unidos desejavam
mantê-lo preso. “Continuamos preocupados9 com a possível libertação de Shaye devido à sua associação com a Al-Qaeda na Península Arábica. Apoiamos os comentários do presidente.” Quando lhe perguntei se o governo dos Estados Unidos deveria apresentar fatos que legitimassem sua afirmação de que Shaye tinha ligações com a AQPA, Gosselin respondeu: “Isso é tudo o que temos a declarar sobre esse caso”. A jornalista Iona Craig, do Times, de Londres, fez perguntas ao embaixador americano no Iêmen, Gerald Feierstein, sobre o caso Shaye. Segundo ela, Feierstein riu antes de responder. “Shaye foi para a cadeia10 porque estava promovendo a Al-Qaeda e seus planos de ataques a americanos, e por isso temos um interesse muito direto em seu processo e em sua prisão”, disse. Quando a jornalista aludiu às ondas de choque que a prisão causara na comunidade jornalística do Iêmen, Feierstein respondeu: “Isso nada tem a ver com jornalismo, e sim com o fato de que ele estava ajudando a AQPA, e se eles [os jornalistas iemenitas] não fizerem isso, não precisam se preocupar conosco”. Para muitos jornalistas do Iêmen, os “fatos” divulgados sobre o modo como Shaye estava “ajudando” a AQPA mostravam que simplesmente entrevistar pessoas ligadas a Al-Qaeda ou noticiar mortes de civis causadas por ataques americanos era crime no entender do governo dos Estados Unidos. “Creio que o pior em relação a esse caso é que não só um jornalista independente está sendo mantido na prisão pelos Estados Unidos, por procuração”, disse Iona Craig, “como também que os americanos conseguiram [intimidar] outros jornalistas iemenitas que investigavam ataques aéreos contra civis e, mais importante, que responsabilizavam seu próprio governo. Shaye fez as duas coisas.” E Craig acrescentou: “Com o enorme aumento de ataques aéreos do governo e com os ataques americanos com drones, o Iêmen precisa que jornalistas como Shaye noticiem o que realmente está acontecendo”.
O governo dos Estados Unidos tinha fechado o blog de Anwar Awlaki, e o “imã da internet” não tinha presença alguma on-line, a não ser por meio de seus ensaios na revista Inspire. O único jornalista que ousava entrevistá-lo estava preso. Agora a Casa Branca queria acabar o trabalho. Enquanto levava adiante seus planos para matar Awlaki, a Casa Branca despachou o principal advogado do governo, o procurador-geral Eric Holder, para uma entrevista no principal noticiário matutino da rede de televisão ABC, Good Morning America. A entrevista foi divulgada como um “Aviso claro sobre ataques terroristas”. Um letreiro anunciava que a ameaça de “Terror vindo de dentro do país” causava ao procurador-geral “noites insones”. Holder declarou: “Estou dando esta entrevista para conscientizar as pessoas quanto ao fato de que a ameaça é real, a ameaça é diferente, a ameaça é constante”.11 Acrescentou:
A ameaça, que era de apenas temer que estrangeiros viessem para cá, mudou. Agora há a ameaça de que pessoas nos Estados Unidos, cidadãos americanos — criados aqui, nascidos
aqui —, por alguma razão decidiram que vão se radicalizar e pegar em armas contra a nação em que nasceram.
Imagens de Anwar Awlaki apareceram na tela, acompanhadas de um letreiro: “Nova ameaça importante de terrorismo: clérigo que rivaliza com Bin Laden”. O repórter falou sobre o caso do “Homem da Bomba na Cueca”, que tentou derrubar o voo da Northwest Airlines no dia de Natal, e das tentativas de explodir os aviões de carga. Awlaki é “um homem extremamente perigoso. Vem demonstrando desejo de causar prejuízos aos Estados Unidos, de atacar o território americano”, disse Holder. “Ele é uma pessoa que […] como cidadão americano […] conhece bem este país e representa uma dimensão, por causa desse conhecimento, que os outros não têm.” O perigo que Awlaki representava para os Estados Unidos, disse Holder, era a capacidade de incitar terroristas em potencial à ação. “A capacidade de entrar em sua casa, ligar seu computador, encontrar um site que expele esse tipo de ódio […] eles têm a capacidade de fazer com que alguém que esteja apenas interessado, talvez em dúvida, queira passar para o outro lado”, disse. Awlaki “estaria na mesma lista de Bin Laden”. O repórter perguntou a Holder se os Estados Unidos preferiam capturar Awlaki e julgá-lo ou matálo imediatamente. “Bem, é certo que desejamos neutralizá-lo. E faremos todo o possível para atingir esse objetivo”, respondeu Holder. Awlaki alcançara agora um status épico, como o maior criminoso americano do planeta. Os advogados da Aclu e do CCR, que se esforçavam para evitar que o governo matasse Awlaki, espantaram-se com o fato de o governo não apresentar indícios que dessem respaldo às afirmações que Holder e outras autoridades vinham fazendo publicamente, nos meios de comunicação, e por meio de vazamento de informações a um grupo seleto de jornalistas. “Mesmo que aquilo que [Awlaki] está dizendo12 seja crime, que o acusem, que o julguem. Isso ainda não é uma razão para fazer um drone entrar no Iêmen e matá-lo”, disse-me Pardiss Kebriaei, um de seus advogados. “Não importa o que as pessoas achem, nem o que ele esteja dizendo, mesmo que ele tenha passado dos limites, o fato é que o governo não pode simplesmente determinar, com base numa vaga alegação de ameaça, que ele deve ser morto sem o devido processo legal.” O governo Obama discordava. O tempo no jogo de gato e rato entre os drones americanos e Awlaki estava passando. Obama estava mobilizando equipes do JSOC e da CIA para caçá-lo e matá-lo. Malcolm Nance, exagente de informações da Marinha, disse-me na época que Awlaki era “perigoso numa escala estratégica” e que ele “sem dúvida tem um míssil em seu futuro.13 Não se poder permitir [que ele] molde ideologicamente o campo de batalha e transforme isso em capacidade de combate”. Pouco depois do episódio em que o atentado contra o avião de carga foi evitado, meios de comunicação britânicos anunciaram que as forças do SAS estavam atuando no Iêmen ao lado do JSOC e do CTU iemenita “em missões para matar ou capturar14 líderes da AQPA. Em fevereiro de
2011, o diretor do Centro Nacional de Contraterrorismo, Michael Leiter, fez uma exposição ao Congresso a respeito das principais ameaças enfrentadas pelos Estados Unidos em todo o mundo. “A Al-Qaeda na Península Arábica,15 tendo Awlaki como líder dessa organização, é, com certeza, o risco mais importante para o território americano”, declarou ele à Comissão de Segurança Interna da Câmara. “Awlaki é o mais conhecido ideólogo de língua inglesa que vem falando diretamente às pessoas aqui nos Estados Unidos.” Joshua Foust, ex-analista da DIA, assim descreveu a reação de Obama na época: “Ele enviou imediatamente drones16 e caras das Operações Especiais ao Iêmen. Foi na mesma hora: ‘Vamos mandar o JSOC’. Mandem os ninjas”. Sem dar detalhes, que disse serem sigilosos, Foust afirmou que acompanhara operações de assassinato dirigido que, segundo ele acreditava, eram justificadas e não eram “em teoria ruins”. No entanto, ele me disse também que estava muito preocupado com as normas que vinham sendo usadas para determinar quais pessoas seriam visadas. “Francamente, quando trabalhei com o Iêmen, passava-se a maior parte do tempo discutindo” com o Comando de Operações Especiais-Iêmen e outros analistas da DIA “sobre normas probatórias”, disse ele.
Para mim, a norma probatória para matar pessoas é assustadoramente baixa. Creio que se resume a três relatórios diferentes e comprovados de Humint. Só isso? Num tribunal, isso não passaria de disse me disse. Não entendo como as pessoas podem se sentir tão tranquilas com relação a matar gente com indícios tão ralos [...]. Se você vai matar alguém, precisa ter uma razão muito forte para isso e precisa de provas absolutamente seguras de que essa morte vai promover materialmente seus interesses. E simplesmente esse não é o caso.
Por fim, afirmou Foust, o chefe da unidade da DIA “disse que eu não me metesse e me calasse”.
45. O curioso caso de Raymond Davis: Ato I
PAQUISTÃO, 2011 — O americano corpulento de 36 anos passaria despercebido em sua cidadezinha, Big Stone Gap,1 aninhada no interior rural e montanhoso do sudoeste da Virgínia. Com sua camisa xadrez de flanela, calça jeans e a barba por fazer, um tanto grisalha, ele talvez só chamasse a atenção pela escolha do veículo: um Honda Civic branco, e não uma caminhonete. Mas em 27 de janeiro de 2011, Raymond Davis não estava dirigindo seu carro em Big Stone Gap, na Virgínia. Estava do outro lado do mundo, preso no tráfego congestionado e caótico da segunda cidade do Paquistão, Lahore.2 Ali, o Honda Civic não chamava mesmo a atenção. Pertencia a uma locadora da cidade, e sua placa, de Lahore, era LEC-10/5545. Talvez nunca se venha a saber direito, em detalhes, o que aconteceu no cruzamento de Mozang Chowk naquele dia. Mais obscuro ainda é quem é mesmo Raymond Davis e o que ele estava fazendo em Lahore — ou no Paquistão de modo geral. Momentos depois que o carro de Davis parou, três pessoas foram mortas, o americano estava sendo levado para uma conhecida prisão em Lahore, multidões de paquistaneses furiosos exigiam sua execução e se desenrolava a mais grave crise diplomática entre o governo paquistanês e o americano desde o incêndio e o saque da embaixada dos Estados Unidos em Islamabad em 1979. A se dar crédito à versão oficial do que ocorreu naquele dia, na palavra de Davis e de altas autoridades americanas, inclusive o presidente Obama, Raymond Davis trabalhava no consulado dos Estados Unidos em Lahore, era um burocrata que carimbava passaportes e realizava trabalhos administrativos — em essência, um escriturário — que se viu no lugar errado e na hora errada, numa cidade muito perigosa. De acordo com essa versão da história, Davis foi vítima de uma tentativa de assalto a mão armada por dois marginais que o seguiram numa motocicleta depois que ele fez um saque num caixa automático.3 Quando Davis parou no congestionamento, os meliantes pararam diante de seu carro,4 um deles brandindo uma arma. Temendo por sua vida, Davis puxou sua pistola Glock semiautomática de nove milímetros e disparou, através do para-brisa, contra os homens, em legítima defesa. Depois de uma breve perseguição de carro, a polícia do Punjab deteve Davis.5 Ele tinha consigo um passaporte diplomático, que lhe dava imunidade. O presidente Obama referiu-se a Davis como “nosso diplomata”.6 Pelas Convenções de Viena,7 nenhuma acusação criminal podia ser feita legalmente a ele no Paquistão, e Davis deveria ter sido devolvido à custódia americana. Caso
encerrado. Aceitar essa versão da história exige crer que um funcionário administrativo do consulado teria bastante sangue-frio e destreza com uma Glock para reagir com a precisão de um pistoleiro a uma tentativa de assalto, abatendo dois assaltantes depois de disparar sua arma por trás do volante e através do para-brisa do carro. Isso seria um feito notável para um “assessor técnico”8 ou um membro da “equipe administrativa”, como as autoridades americanas se referiram a Davis. Os diplomatas americanos no Paquistão não estão autorizados9 a portar armas. Não importa. Essa, naturalmente, não era toda a história. Na verdade, a versão oficial pode não conter nem uma gota de verdade substancial, a não ser o óbvio: que um americano chamado Raymond Davis matou dois paquistaneses em pleno dia num cruzamento em Lahore. Os elementos essenciais dessa história não são o passaporte diplomático de Raymond Davis, que tipo de visto lhe fora concedido ou o fato de os Estados Unidos terem pedido publicamente sua libertação depois que ele foi preso. Tudo isso são pormenores de uma versão de acobertamento, parte da qual fora concebida com antecedência. Outra parte foi atamancada às pressas. A prisão de Kot Lackpat, nos subúrbios de Lahore, abriga dezenas de suspeitos de militância e terroristas acusados — homens cujo maior prazer seria ter a oportunidade de degolar, na calada da noite, um americano suspeito de espionagem. Foi para essa cadeia que Raymond Davis acabou sendo levado depois de uma breve perseguição de carro, em Lahore, que terminou com sua detenção, pela polícia, no velho bazar de Anarkali.10 Davis não foi posto com a população carcerária geral, e sim numa cela isolada na “área de segurança máxima”11 da cadeia. Assim que ele chegou, cerca de 25 suspeitos de serem “jihadis” foram transferidos da cadeia.12 Para maior segurança, os Punjab Rangers,13 um contingente de paramilitares, foram levados para cercar essa ala da cadeia. Isso foi explicado como uma medida de segurança para proteger Davis, mas tinha também outra finalidade:14 garantir que ninguém viesse libertar o americano. O Serviço de Informações paquistanês sabia de coisas a respeito de Davis que faziam crer que isso podia ocorrer. Pouco depois de sua prisão, Davis foi levado a uma sala. Alguém ali fotografou, em imagens granuladas,15 seu interrogatório. “Preciso informar à embaixada onde estou. Digam-me apenas o nome desta rua”, insistiu Davis. “Você é americano?”, gritou alguém. “Sou”, respondeu ele. Ainda usando seus crachás de identificação do governo americano em torno do pescoço, Davis levantou-os um a um para que seus interrogadores os vissem. “Você é da embaixada americana?”, um deles perguntou. “Não. Sou do consulado geral. Não temos embaixador […] aqui, em Lahore. Só trabalho como consultor lá”, respondeu Davis, acrescentando que trabalhava no Escritório de Assuntos Regionais, o RAO [Regional Affairs Office]. Ofereceram a Davis um copo d’água, mas, em vez disso, Davis pediu uma garrafa d’água. “Ah, água pura!”, um dos interrogadores exclamou, provocando risos na sala. “Sem dinheiro, nada de água”, acrescentou o homem, causando mais risos. Prosseguiu o interrogatório. Por fim, Davis assinou
um depoimento, em que afirmava sua versão de que tinha disparado os tiros em legítima defesa e que os mortos eram assaltantes. Davis pediu várias vezes seu passaporte, que, segundo ele, provaria que era diplomata. “Podem procurar meu passaporte no carro?”, perguntou, acrescentando que o documento estava sob o assento ou poderia ter caído na rua quando ele foi preso. As autoridades paquistanesas já estavam vasculhando o carro de Davis, mas seu passaporte seria a coisa menos interessante16 que nele descobririam. Já tinham recuperado a Glock de nove milímetros, junto com um estoque de munição, inclusive cinco pentes. No carro, descobriram dois pentes de munição, vazios, para a pistola de nove milímetros, e outra arma semiautomática, além de sua munição. À medida que continuava a investigação de Davis e de seu carro, descobriu-se um esconderijo de suprimentos que prejudicaria seriamente a credibilidade das afirmações de Davis sobre sua condição de diplomata ou de mero funcionário técnico do consulado. Entre as coisas achadas havia equipamento de visão noturna, múltiplas identidades,17 vários cartões de caixas eletrônicos, máscaras,18 um conjunto de maquiagem usado para disfarce, um conjunto de sobrevivência, uma lanterna para ser usada na testa, equipamento de infravermelho, um telefone via satélite e diversos cortadores de arame e facas. Ele tinha também uma passagem aérea. Segundo fontes da segurança paquistanesa, citadas pelo Express Tribune, uma verificação dos números em seus diversos celulares revelou chamadas para 27 militantes19 do grupo terrorista Lashkar-e-Jhangvi e do Tehrik-e-Taliban, o Talibã paquistanês. No cartão de memória da câmera de Davis, os detetives acharam fotos de escolas religiosas20 e instituições públicas e militares21 perto da fronteira com a Índia. Encontraram também uma cédula de identidade que mostrava Davis como prestador de serviços para o DoD dos Estados Unidos.22 Nesse ínterim, nos Estados Unidos, repórteres haviam localizado a mulher de Davis, Rebecca, na casa em que moravam, em Highlands Ranch, perto de Denver, Colorado. Ela pediu que ligassem para um telefone cujo número lhe fora fornecido pelo governo americano. O telefone ficava na sede da CIA,23 em Langley, na Virgínia. Durante seu interrogatório, David declarou que vinha do consulado americano quando se deu a tentativa de assalto. Entretanto, de acordo com o GPS instalado em seu carro, ele viera de uma residência particular no luxuoso Upper Mall, em Scotch Corner, na zona leste de Lahore. “O acusado omitiu isso”,24 observou depois um relatório da polícia. “Ele se recusou a responder a todas as perguntas no decorrer das investigações, dizendo que o consulado americano lhe proibira responder a qualquer pergunta.” A casa da qual Davis saíra naquele dia, a confiarmos nos dados do GPS recuperado, era bastante conhecida pela Agência de Informações do Paquistão.25
“Rapaz, isso parece um romance de ficção científica militar”,26 pensou o tenente-coronel
Anthony Shaffer, segundo relatou, no momento em que soube da prisão de Davis. “O jogo de espionagem entre a Agência de Informações do Paquistão, a ISI e a CIA ficou muito pior.” Schaffer, veterano operador clandestino que trabalhara para a CIA e para a DIA em operações de sigilo máximo, coordenou o programa de Inteligência Humana no Afeganistão nas primeiras fases da guerra no país e planejou incursões secretas no Paquistão. Sabia da gravidade da situação quando os paquistaneses prenderam Davis. “O nível mais elevado do governo Obama provavelmente não conhecia todos os detalhes do que estava acontecendo”, disse Schaffer. Muito antes dos tiros em Mozang Chowk, a ISI sabia que Raymond Davis não era diplomata e que não estava se esfalfando no consulado americano carimbando passaportes. Davis chegara ao Paquistão27 uma semana antes dos tiros em Lahore, mas aquela não era a primeira vez que entrava no país. Ele era um experiente membro das Forças Especiais, um exboina-verde que servira como sargento de armas na área de Operações Especiais.28 Sua última função nas Forças Armadas tinha sido no 3o Grupo de Forças Especiais, baseado em Fort Bragg, onde o JSOC tinha seu quartel-general. Em 2003, quando a ocupação do Iraque chegava ao auge, Davis deixou as Forças Armadas29 para se tornar prestador de serviços particular, o que viria a situá-lo no cerne das operações secretas e clandestinas americanas. Sua primeira viagem ao Paquistão de que se tem notícia foi feita em dezembro de 2008, quando ele começou a trabalhar para a famigerada empresa de segurança privada Blackwater,30 que tinha um contrato secreto com a CIA. Seu trabalho como prestador de serviços para a Equipe de Resposta Global (Global Response Staff, GRS) da Agência consistia em dar proteção a quadros operacionais da CIA enviados ao Paquistão como parte da presença cada vez maior de pessoal da Agência para coordenar a guerra secreta de Washington naquele país. O trabalho muitas vezes o punha em contato direto com oficiais que se reuniam com fontes secretas ou preparavam operações delicadas. Sua fachada oficial31 — encarregado de negócios regionais na embaixada — era bastante usada por quadros operacionais e prestadores de serviços da CIA. No período em que Davis trabalhou para a Blackwater, a empresa atuava no cerne das operações secretas mais delicadas da CIA no Paquistão, ajudando a executar a campanha de bombardeios com drones32 e as operações dirigidas de morte e captura. A Blackwater, que durante muito tempo fora utilizada pelo governo Bush como uma força “inimputável” capaz de realizar operações clandestinas protegidas pelo segredo e por diversas camadas de subcontratos, tinha tentáculos em quase todos os aspectos das operações secretas dos Estados Unidos. A empresa não só trabalhava para o programa de assassinatos da CIA, como atuava estreitamente com o JSOC. Na Blackwater, Davis atuava na ligação entre as principais organizações que executavam a campanha secreta. Designado para a unidade de segurança da CIA, Davis viajava entre Islamabad, Lahore e Peshawar.33 Segundo um ex-agente do JSOC que trabalhou em suas operações sigilosas no Afeganistão e no Paquistão, enquanto Davis prestava serviços à CIA, foi convidado pelo JSOC a trabalhar simultaneamente em suas operações no Paquistão, utilizando a fachada mais palatável
de agente da CIA. “Davis era das Forças Especiais ‘caretas’,34 não um elemento das operações especiais secretas”, disse a fonte. “Nada é mais emocionante para esses sujeitos do que ser procurado pelo JSOC e convidado a fazer alguma coisa para eles. Foi como fazer um frila gratuito para o JSOC.” Esse foi o começo da incursão de Davis na zona mais escusa das operações secretas americanas no Paquistão. Ele trabalhou com a Blackwater no país até agosto de 2010, e em setembro tornou-se um agente independente, assinando um contrato no valor de 200 mil dólares35 por “Serviços de Proteção no Exterior”. Para isso, utilizou uma companhia chamada Hyperion Protective Services, LLC, que, segundo ela própria, oferecia “profissionais de gestão de perda e risco”.36 A empresa estava registrada num endereço em Las Vegas.37 Davis e sua mulher figuravam, com uma terceira pessoa, como seus titulares. O endereço era, na realidade, uma caixa postal38 numa loja da UPS que funcionava num centro comercial, ao lado de uma barbearia Super Cuts. Davis retornou ao Paquistão. O ex-agente do JSOC declarou que Davis ajudou a lavar dinheiro e a criar “aparelhos” para o pessoal do JSOC, além de realizar seu trabalho para a CIA. “No mundo inteiro, temos pessoas que, literalmente, são periféricas às políticas e estão baseadas no país apenas para colher informações humanas ou para facilitar operações especiais ou de espionagem”, disse ele. Era isso, ao menos em parte, o que Davis estava fazendo no Paquistão. Seus vários papéis, sendo alguns autênticos, outros de fachada, outros ainda fachadas de fachadas — diplomata, assessor técnico, prestador de serviços para a Blackwater, guarda-costas da CIA, boina-verde, quadro do JSOC —, levam a crer que sua história e a da guerra secreta dos Estados Unidos no Paquistão são muito mais complicadas, e menos ingênuas, do que os informes oficiais nos levaram a crer. O fato de alguém como Davis terminar trabalhando para o JSOC não pode ser visto como excepcional. Muitos quadros operacionais da Blackwater — vários dos quais tinham atuado em unidades de Operações Especiais ou de Forças Especiais — que originalmente foram para o Paquistão como prestadores de serviços de segurança por fim começaram a trabalhar nas operações dirigidas de assassinato e captura do JSOC. “Os caras da Blackwater39 têm experiência. Muitos deles são militares reformados e estão por aí há vinte ou trinta anos, e têm uma experiência que os boinas-verdes, mais jovens, não têm”, disse o tenente-coronel reformado Jeffrey Addicott, advogado militar bem relacionado que atuou como consultor jurídico para as Forças Especiais do Exército dos Estados Unidos. “Eles são entidades conhecidas. Todo mundo sabe quem eles são, sabem de sua capacidade e eles têm experiência. São valiosíssimos.” Os veteranos das Operações Especiais “ganham muito mais dinheiro40 sendo cérebros dessas operações, planejando ataques em vários países baseados na experiência que ganharam na Tchetchênia, na Bósnia, na Somália, na Etiópia”, disse uma fonte da Inteligência militar americana. “Eles estavam lá para todas essas coisas, eles sabem do que estão falando.” E acrescentou: “Eles recontratam pessoas que trabalharam para eles e que já tinham planejado e executado esses [tipos de] operações”.
Não está claro quando foi, exatamente, que isso começou no Paquistão. A presença da Blackwater na fronteira entre o Afeganistão e o Paquistão data de abril de 2002, quando ela ganhou seu primeiro contrato “negro”41 para proteger as operações da CIA no Afeganistão nas primeiras fases da guerra movida pelos Estados Unidos. Ela também tinha contratos de segurança diplomática, logísticos e da CIA no Paquistão. De acordo com um ex-dirigente da Blackwater e uma fonte da Inteligência militar, o relacionamento com o JSOC se intensificou depois que o presidente Bush autorizou uma expansão das atividades das Operações Especiais no Paquistão. Pedi ao ex-executivo da Blackwater, que tinha ampla experiência no Paquistão, que confirmasse o que a fonte da Inteligência militar me dissera — que as forças da Blackwater não estavam matando pessoas no Paquistão, mas sim apoiando o JSOC e a CIA, que se encarregavam dessas coisas. “Isso não representa exatamente a verdade”,42 ele respondeu. Concordou com o que a fonte da Inteligência militar dissera sobre os programas do JSOC e da CIA, mas indicou outra função que, segundo ele, a Blackwater desempenhava no Paquistão, não para o governo americano, mas para Islamabad. Disse que a Blackwater trabalhava com um subcontrato para a Kestral Logistics, uma poderosa firma paquistanesa43 especializada em apoio logístico militar, segurança privada e consultoria de informações. Essa firma tinha como dirigentes antigas autoridades do Exército e do governo do Paquistão. Embora os principais escritórios da Kestral ficassem no Paquistão, a empresa tinha filiais em vários países. A Kestral tinha polpudos negócios, na área da logística de defesa, com o governo do Paquistão e os de outros países, e também com grandes companhias americanas ligadas à defesa. Segundo o ex-executivo da Blackwater, o fundador dessa empresa, Eric Prince, tinha uma relação “bastante estreita” com o diretor executivo da Kestral, Liaquat Ali Baig. “Já se reuniram muitas vezes, fizeram um acordo e [prestam] apoio recíproco.” Trabalhando com a Kestral, disse o ex-executivo, a Blackwater oferecia segurança a embarques do DoD que, destinados ao Afeganistão, chegariam ao porto de Karachi. A Blackwater protegia os suprimentos que eram transportados por terra de Karachi a Peshawar, e depois seguiam para oeste pela passagem de fronteira em Torkham, a mais importante rota de suprimentos para as Forças Armadas dos Estados Unidos no Afeganistão. Ainda segundo o ex-executivo, os quadros operacionais da Blackwater também se integravam com as forças da Kestral em operações delicadas de contraterrorismo na Província da Fronteira de Noroeste, onde atuavam em conjunto com a força paramilitar do Ministério do Interior paquistanês, conhecida como Corpo de Fronteira (ou também como “batedores da fronteira”). Tecnicamente, o quadro de pessoal da Blackwater compunha-se de assessores, mas o exexecutivo disse que, no campo, as diferenças com frequência se borravam. A Blackwater estava “proporcionando a orientação real sobre como realizar [operações de contraterrorismo] e os homens da Kestral executam muitas, mas contando com a orientação e a supervisão de alguns sujeitos da Blackwater, que acompanham de fato as equipes quando elas executam o trabalho”, disse ele. “Você já pode ver que isso é capaz de levar a outras coisas nas áreas de fronteira.”
Disse também que quando os homens da Blackwater acompanhavam as equipes paquistanesas, de vez em quando participavam de operações contra suspeitos de terrorismo. “Existem sujeitos da BW que estão colaborando […] e todos eles querem participar das missões […] e por isso vão com eles”, explicou. “Assim, as coisas que você vê nas notícias sobre como um grupo militar paquistanês atacou uma casa ou fez isso ou fez aquilo […]. Em alguns desses casos você vai ter ocidentais que estão lá atacando a casa, isso se não estiverem dentro da casa.” A Blackwater, disse ele, era paga pelo governo paquistanês, através da Kestral, por serviços de consultoria.
Isso possibilita ao governo paquistanês dizer: “Ei, nada disso, não encarregamos ocidental nenhum de fazer isso. Somos nós que planejamos tudo, e nosso pessoal executa as missões”. Mas o esquema dá a eles o know-how que os ocidentais possuem para as atividades relacionadas [a contraterrorismo].
A fonte da Inteligência militar confirmou que a Blackwater trabalhava com o Corpo de Fronteira, dizendo: “Não há uma supervisão real. Na verdade, ninguém presta atenção nisso”. Um porta-voz da Diretoria de Controles Comerciais de Defesa (Directorate of Defense Trade Controls, DDTC), do Departamento de Estado americano, responsável pela concessão de licenças a empresas americanas para prestar serviços relacionados à defesa a governos ou entidades estrangeiras, não quis confirmar ou negar que a Blackwater tivesse licença para atuar no Paquistão ou trabalhar com a Kestral. “Não podemos ajudá-lo”,44 disse David McKeeby, portavoz do Departamento, depois de consultar autoridades do DDTC. “O senhor terá de entrar em contato com as companhias diretamente.” O porta-voz da Blackwater declarou que a companhia não tinha “operação de espécie alguma”45 no Paquistão, além de um empregado que trabalhava para o DoD. E a Kestral não respondeu a perguntas sobre sua relação com a Blackwater. De acordo com os registros federais sobre lobby,46 a Kestral contratou Roger Noriega,47 exsecretário de Estado assistente para assuntos do Hemisfério Ocidental entre 2003 e 2005, para fazer lobby junto ao governo dos Estados Unidos (Departamento de Estado, USAID e Congresso) quanto a questões de relações exteriores “referentes às possibilidades [de a Kestral] realizar atividades de interesse dos Estados Unidos”. Noriega foi contratado através de sua firma, a Vision Americas,48 que ele dirigia com Christina Rocca,49 ex-agente de operações da CIA que serviu como secretária de Estado assistente para assuntos do Sul da Ásia de 2001 a 2006, quando se envolveu a fundo na formulação da política americana em relação ao Paquistão. Em outubro de 2009, a Kestral pagou à Vision Americas 15 mil dólares50 e deu a uma firma a ela filiada, a Firecreek Ltd.,51 uma quantia igual para fazer lobby com relação a questões de defesa e política exterior.
Em novembro de 2009, quando trabalhei numa reportagem investigativa sobre operações de assassinatos dirigidos no Paquistão, para a revista Nation, recebi uma chamada em meu celular, na véspera da publicação, do capitão John Kirby, porta-voz do almirante Michael Mullen, presidente do Estado-Maior Conjunto, o mais importante consultor militar do presidente Obama. Kirby não quis explicar como obtivera meu número ou como tomara conhecimento da reportagem. “Vamos ficar apenas assim: nós soubemos dela”, disse ele sem meias palavras. Kirby disse que minha reportagem era falsa, mas que não queria expressar essa opinião publicamente. “Não falamos de forma alguma sobre operações correntes, qualquer que seja sua natureza.” Disse-me, também sem meia palavras, que se publicássemos a reportagem, que ligava a Blackwater a operações do JSOC no Paquistão, eu estaria “na corda bamba”. Como tínhamos confiança em nossas fontes, apesar dessa clara tentativa de intimidação, a Nation publicou a reportagem, intitulada “The Secret US War in Pakistan” [A guerra secreta dos Estados Unidos no Paquistão]. No dia seguinte, o porta-voz do Pentágono, Geoff Morrell, classificou-a de “conspiratória”52 e negou explicitamente que as Forças de Operações Especiais dos Estados Unidos estivessem fazendo alguma coisa no Paquistão além de dar “treinamento”. Morrell disse aos repórteres:
Basicamente, temos no Paquistão, creio, algumas dezenas de unidades envolvidas numa missão de treinar treinadores. São Forças de Operações Especiais. Temos sido muito transparentes com relação a isso. Elas estão… há meses, se não há anos, treinando forças do Paquistão para que possam, por sua vez, treinar outras unidades militares paquistanesas para… certas qualificações e técnicas militares. E essa é a atividade de nossos… nossos, vocês sabem, efetivos militares terrestres no Paquistão, apesar de teorias conspiratórias que, vocês sabem, algumas revistas […] possam inventar. Não existe nada disso.
Na realidade, existia muita coisa. Um ano depois de minha matéria na Nation, o WikiLeaks divulgou uma série de telegramas sigilosos que mostravam que, um mês antes que Morrell me desmentisse, a embaixada dos Estados Unidos estava ciente de que as Forças de Operações Especiais dos Estados Unidos realizara operações ofensivas no Paquistão, ajudando a orientar ataques com drones e executando operações conjuntas com forças paquistanesas contra forças da Al-Qaeda e do Talibã no Waziristão do Norte e do Sul e em outros pontos das Áreas Tribais Administradas pelo governo federal. Segundo um telegrama sigiloso de 9 de outubro de 2009, remetido pela embaixadora dos Estados Unidos no Paquistão, Anne Patterson, as operações tinham sido “quase com certeza [realizadas] com o consentimento pessoal do chefe do Estado-Maior do Exército [do Paquistão], general [Ashfaq Parvez] Kayani”.53 As operações tinham sido
coordenadas com o Escritório do Representante da Defesa dos Estados Unidos no Paquistão. Uma fonte das Forças de Operações Especiais dos Estados Unidos me disse que as forças americanas a que o telegrama se referia como “SOC(FWD)-PAK” (Comando de Operações Especiais-Avançado Paquistão) eram “tropas operacionais avançadas”54 do JSOC. No outono de 2008, o Comando de Operações Especiais dos Estados Unidos pediu a diplomatas americanos de alto nível, no Paquistão e no Afeganistão, informações detalhadas sobre campos de refugiados na fronteira Afeganistão-Paquistão e uma lista das organizações de ajuda humanitária que neles atuavam. Em 6 de outubro, a embaixadora Patterson enviou um telegrama, com indicação de “Confidencial”, ao secretário de Defesa, Robert Gates, à secretária de Estado, Condoleezza Rice, à CIA, ao Centcom dos Estados Unidos e a várias embaixadas americanas, dizendo que algumas das solicitações, feitas verbalmente ou por e-mail, “levavam a crer que as agências tencionavam usar os dados para fins de ataques”. Outras solicitações, segundo o telegrama, “sinalizam que as informações seriam utilizadas com objetivos ‘não ofensivos’”. O telegrama, enviado em conjunto pelas embaixadas dos Estados Unidos em Cabul e Islamabad, declarava:
Preocupa-nos a transmissão a grupos militares de informações obtidas junto a organizações humanitárias, sobretudo por motivos que permanecem obscuros. Particularmente preocupante é o fato de que isso não nos parece ser a forma mais eficiente de obter informações precisas.
Em termos claros, o que esse telegrama dizia era que ao menos uma pessoa do Comando de Operações Especiais dos Estados Unidos pedira a diplomatas em Cabul e/ou Islamabad, sem rodeios, informes sobre campos de refugiados, que seriam usados numa operação de assassinato dirigido ou de captura. O telegrama também revelava que além das solicitações vindas do Socom e do adido de Defesa dos Estados Unidos, um prestador de serviços ao Socom também pedira a diplomatas americanos “informações a respeito de campos, na fronteira Paquistão-Afeganistão, que estejam abrigando refugiados afegãos e/ou Pessoas Desalojadas Internamente (Internally Displaced Persons, IDPs)”. Especificamente, acrescentava o telegrama, o Socom e seu “prestador de serviços” tinham “solicitado informações sobre nomes e localização de campos,55 status dos campos, número de IDPs/refugiados e discriminação étnica, e sobre as ONGs e organizações de ajuda humanitária que atuam nesses campos”. O telegrama de outubro de 2008 deixa claro que as solicitações tinham inquietado diplomatas americanos em Cabul e Islamabad, levando-os a pedir a vários órgãos militares, de Inteligência e do governo dos Estados Unidos “esclarecimentos sobre a origem e a finalidade dessa consulta”. Ao mesmo tempo, o telegrama dava a entender que se a CIA ou as Forças de Operações Especiais
desejavam tais informações, “deveriam enviar um telegrama à embaixada apropriada” ou a um representante do diretor de Inteligência nacional, e não pedi-las por e-mail ou verbalmente ao pessoal das embaixadas. Evidentemente, a solicitação por vias transversas era feita por alguma razão. Tão próxima estava a Blackwater das operações mais sigilosas e delicadas da CIA que alguns integrantes da empresa estiveram entre as baixas de um dos ataques mais letais que se conhecem contra a Agência em sua história: o atentado suicida, em dezembro de 2009, a um posto avançado da CIA na Base Operacional Avançada Chapman,56 no Afeganistão. Quadros operacionais da Blackwater atuavam como seguranças da segunda pessoa do comando da Agência no país. Achavam-se reunidos com uma fonte, alguém que viera de carro do Paquistão, uma pessoa que, acreditavam, sabia do paradeiro de Ayman al-Zawahiri, o número dois da AlQaeda. Humam Khalil Abu-Malal al-Balawi, soube-se depois, era um agente duplo, ligado de coração ao Talibã paquistanês. Ao todo, sete integrantes da CIA e um agente da Inteligência jordaniana foram mortos quando Balawi detonou os explosivos que trazia no corpo. Dois dos mortos pertenciam à Blackwater. Segundo a fonte de Inteligência militar, além de planejar ações secretas e ataques com drones, a Blackwater fornecia guardas privados para a perigosa tarefa de fazer a segurança de bases secretas de drones americanos, de acampamentos do JSOC e de instalações da DIA no Paquistão.
A embaixada americana considerava, claramente, que a capacidade das Forças de Operações Especiais dos Estados Unidos de atuar no Paquistão fora uma conquista das mais importantes. “Um relacionamento com os militares cultivado com paciência57 foi o fator-chave que nos permitiu esse avanço”, dizia um telegrama da embaixada americana em outubro de 2009. Também mencionava as possíveis consequências do vazamento dessas atividades:
Tais operações são muito delicadas do ponto de vista político, em vista das preocupações generalizadas, por parte do público, com relação à soberania paquistanesa e da oposição a que forças militares estrangeiras sejam autorizadas a operar, seja de que forma for, em solo paquistanês. Se essas operações ou questões com elas relacionadas forem objeto de qualquer cobertura em meios de comunicação paquistaneses ou americanos, é provável que as Forças Armadas paquistanesas interrompam os pedidos dessa ajuda.
Declarações como essa talvez ajudem a explicar por que o embaixador Richard Holbrooke, na época o principal enviado dos Estados Unidos ao Afeganistão e ao Paquistão, optou por meias verdades quando disse, em julho de 2010: “As pessoas acham que os Estados Unidos têm tropas no Paquistão. Bem, não temos”.58
No fim de 2010, as relações entre os Estados Unidos e a ISI começaram a se deteriorar rapidamente. Em novembro, um processo civil instaurado59 em Nova York acusou o chefe da ISI, Ahmad Shuja Pasha, de envolvimento nos atentados a bomba em Mumbai, executados pelo grupo Lashkar-e-Taiba. Em dezembro, a CIA retirou do Paquistão às pressas o chefe de sua estação em Islamabad, depois que a imprensa local revelou seu nome, Jonathan Banks. A identidade do chefe da espionagem americana foi revelada60 numa ação judicial aberta no Paquistão por um homem do Waziristão do Norte que alegava que dois parentes seus tinham sido mortos pelo míssil disparado por um drone. Autoridades americanas acusaram a ISI de vazar o nome em retaliação ao processo contra Pasha. Um agente de informações dos Estados Unidos declarou que Banks tinha de ser retirado porque “as ameaças terroristas contra ele61 no Paquistão são tão sérias que seria imprudente não agir”. Um mês depois, em 20 de janeiro de 2011, Raymond Davis voltou ao Paquistão.62
46. O curioso caso de Raymond Davis: Ato II
PAQUISTÃO, 2011 — Em Lahore, Raymond Davis morava e trabalhava numa casa no Upper Mall, que, segundo informações, dividia com cinco agentes da CIA.1 Quadros operacionais do JSOC também usavam a casa.2 Longe de ser um diplomata, Davis trabalhava numa equipe ultrassecreta e altamente compartimentada incumbida de delicadas operações de vigilância e inteligência capazes de levar a assassinatos dirigidos ou capturas. Entre as tarefas da equipe, segundo autoridades americanas, estava a coleta clandestina de informações sobre o grupo terrorista Lahkar-e-Taiba.3 Em 27 de janeiro, Davis estava realizando um “percurso para melhor conhecimento de área”4 que o obrigou a se expor nas ruas de Lahore durante horas. Examinou diversos locais, entre os quais escolas religiosas e edifícios públicos. Por isso as autoridades paquistanesas encontraram, em seu carro, o equipamento de alta tecnologia de um agente clandestino: armas com munição suficiente para uma pequena guerra urbana, aparelhos de vigilância, cortadores de arame, facas e visores infravermelhos. Isso explicaria também os vários crachás, que lhe atribuíam diferentes funções, bem como o conjunto de maquiagem teatral. O tenente-coronel Shaffer me disse que é comum que os agentes secretos alterem sua aparência para passar despercebidos. “É como representar sem um roteiro”,5 explicou. “A atividade exige isso. É a espionagem.” Davis também tinha consigo uma “nota de sangue”,6 distribuída a todos os militares americanos que atuam em ambiente hostil. De acordo com a Publicação Conjunta 3-50 das Forças Armadas sobre Recuperação de Pessoal, uma nota de sangue
é um pedaço de pano7 no qual figura uma bandeira americana, uma declaração em inglês e em várias línguas utilizadas na área de operação, e números que identificam a nota. A nota de sangue identifica o portador como americano e promete uma recompensa que será dada pelo governo dos Estados Unidos a qualquer pessoa que preste assistência ao portador ou o ajude a retornar à zona de segurança.
Essas notas devem ser usadas por militares americanos sitiados, perdidos ou em perigo iminente de captura ou ferimento, “depois que todas as outras medidas8 independentes de evasão ou fuga
tenham fracassado e o portador considere a ajuda externa vital para sua sobrevivência”. Em algum momento do dia 27 de janeiro, enquanto transitava em Lahore, Davis entrou em contato com os homens da motocicleta, Faizan Haider, de 22 anos, e Faheem Shamsahd, também conhecido como Muhammad Faheem, de 26. Segundo a versão americana dos fatos, os dois homens viram Davis parar no caixa automático para tirar dinheiro e puseram em prática um plano para roubá-lo. No entanto, de acordo com quatro fontes paquistanesas que falaram à ABC News logo após o incidente, os dois homens trabalhavam para a ISI e começaram a seguir Davis depois que ele cruzou “uma linha vermelha”.9 Dias antes do incidente, “foi pedido [a Davis] que deixasse uma área de Lahore declarada sob restrição pelas Forças Armadas”, segundo as fontes da ABC. “Seu celular foi rastreado, e com isso se soube que ele fizera ligações para áreas tribais no Waziristão, onde o Talibã paquistanês e uma dúzia de outros grupos militantes têm santuários. Agentes da Inteligência paquistanesa consideraram-no uma ameaça, ‘por invadir seu terreno’”, disse uma autoridade do governo. “Sim, eles pertenciam ao serviço de segurança”,10 declarou uma autoridade de segurança paquistanesa ao jornal Express Tribune. “Julgaram as atividades do agente americano prejudicial à nossa segurança nacional.” Complicando tudo isso, outras autoridades paquistanesas negaram enfaticamente11 que os homens pertencessem à ISI. O tenente-coronel Anthony Shaffer declarou ter ouvido de colegas que atuam no Paquistão relatos fidedignos segundo os quais os dois homens eram de fato ligados à ISI. “Eles só pretendiam pará-lo e deixar claro: ‘Sabemos quem você é’”, disse Shaffer. Como a CIA não informara à ISI que Davis era um de seus agentes, “eles pretendiam dizer-lhe: Sabemos que você está aqui’”. “Sei muito mais sobre esse caso do que posso dizer, infelizmente”, acrescentou Shaffer. “Direi apenas que o caso Davis foi levantado pela ISI, que houve uma provocação, que houve um motivo para Davis reagir como reagiu e que esse jogo de gato e rato chegou a um ponto em que a CIA estava sendo vigiada pelas próprias pessoas com quem estava trabalhando.” Talvez nunca se saiba qual foi a “linha vermelha” que Davis cruzou, se foi mesmo isso que levou os dois homens a segui-lo. Talvez tivesse a ver com chegar perto demais do Lashkar-eTaiba (let). Talvez ele estivesse procurando revelar as ligações do grupo com a ISI. Talvez estivesse investigando alvos para os ataques da Agência com drones. Houve quem desse a entender que Davis era o novo chefe da estação da CIA.12 Algumas autoridades paquistanesas chegaram a propor uma vasta teoria conspiratória pela qual Davis estaria trabalhando com o Talibã e outros grupos militantes para planejar ataques a alvos civis que pudessem ser imputados a terroristas. Essa foi uma acusação comum feita à Blackwater em lugares como Peshawar, capital das Áreas Tribais Administradas pelo Governo Federal e uma frente importante na guerra secreta dos Estados Unidos no Paquistão. Apesar da natureza grave dessas acusações, nunca foram apresentadas provas que lhes dessem respaldo. “A morte dos dois homens em Lahore veio a calhar13 para nossos órgãos de segurança, que suspeitavam que Davis
estivesse arquitetando atividades terroristas em Lahore e outros lugares do Punjab”, declarou uma alta autoridade policial do Punjab, acrescentando que Davis tinha “vínculos estreitos” com o Talibã paquistanês. “Davis colaborou no recrutamento de jovens do Punjab para o Talibã, a fim de alimentar a sublevação sangrenta.” Autoridades da polícia declararam que o rastreamento dos telefones de Davis mostravam ligações para mais de trinta paquistaneses, entre os quais “27 militantes” do Talibã e do grupo militante Lashkar-e-Jhangvi, que os Estados Unidos e o Paquistão apontavam como organização terrorista. Outras fontes do governo paquistanês alegavam que a ISI sabia que Davis estava autorizado a trabalhar num programa da CIA destinado a vigiar a Al-Qaeda e o Talibã. “A tarefa de Davis14 consistia em rastrear os movimentos do Talibã e da Al-Qaeda em diferentes áreas do Paquistão”, declarou uma fonte ao Tribune. “Em vez disso, porém, os investigadores descobriram que ele criara laços estreitos com o Talibã. O governo e os órgãos de segurança se surpreenderam ao saber que Davis e alguns de seus colegas estavam envolvidos em atividades que não constavam do acordo.” As teorias conspiratórias paquistanesas levavam a crer que o agente americano estava fomentando falsos atentados a bomba15 a fim de forçar o governo do Paquistão a assumir uma atitude mais agressiva em relação a grupos militantes, ou dar a impressão de que as armas nucleares do país não estavam seguras. Em nenhum momento foram apresentadas provas dessas alegações. A verdade talvez nunca venha a ser conhecida, mas é mesmo possível que Davis estivesse planejando alguma coisa com o Talibã e a Al-Qaeda que o Paquistão não aprovava e que o governo dos Estados Unidos jamais se disporia a reconhecer. “Todos os países realizam operações de espionagem”,16 afirmou o coronel Patrick Lang.
No decorrer dessa tarefa no “jogo das nações”, algumas coisas são feitas em “ligação” com o serviço de um país, neste caso a ISI, e outras, não. São feitas de forma unilateral, ou seja, ilegal, no país onde ocorrem. Se a pessoa não faz isso, fica vulnerável à atividade do serviço de “ligação”.
A IC americana, argumentou Lang,
muitas vezes é acusada de ignorar, na verdade, o que está “rolando” num país. Evita-se isso fazendo algumas coisas “unilateralmente”. Nesse caso, a ISI está irritada? Tenho certeza de que está. Você acha que acreditamos que o Paquistão não opera nos Estados Unidos “unilateralmente”? Se acreditarmos nisso, é porque somos idiotas.
Seja como for, em vista dos programas nos quais se sabia que Raymond Davis tinha trabalhado, a versão dos Estados Unidos para o incidente e a caracterização de Davis como
diplomata ou “assessor técnico”, ou, como disse o New York Times — “um diplomata burocrata17 que carimbava vistos como tarefa no consulado” —, era inacreditável. Talvez ele pertencesse à CIA. É também possível que a condição de agente da CIA fosse a fachada para uma fachada e que, como minha fonte da Inteligência militar deu a entender, ele estivesse trabalhando para o JSOC. “Isso é comum”, disse-me o tenente-coronel Shaffer. “Tudo se confunde, vira uma mixórdia. A triste verdade”, afirmou ele, é que as autoridades americanas, inclusive os embaixadores e os formuladores de políticas que não estejam ligados diretamente a uma operação, “na verdade não sabem o que está rolando, em lugar nenhum. Tudo se torna então uma grande embrulhada”. Shaffer acrescentou que a fachada de Davis não passava de “sobreposição”. Explicou: “Você sempre tem uma fachada para uma fachada, e isso vai depender de até que ponto você tenta derrubar alguém, principalmente se parte do princípio de que vai ser encostado em algum momento no futuro. Sempre há o que se descartar”. Não é raro que agentes da CIA atuem sob a fachada de diplomatas. É um procedimento operacional comum em muitos países. O RAO, onde Davis disse que trabalhava, era uma fachada comum para espiões americanos. Todo mundo que precisava saber estava ciente desses arranjos de fachada. Quando uma operação desanda, em geral os maus resultados não aparecem para o público. Fazem-se acordos discretos, e às vezes trocam-se prisioneiros ou autorizam-se pagamentos. Tudo isso faz parte do jogo da espionagem. Entretanto, esse incidente se deu em plena luz do dia, num cruzamento congestionado, com dezenas de testemunhas oculares. Se tivesse sido revelado que Davis estava trabalhando para o JSOC no Paquistão, esse teria sido o cenário mais ofensivo para a ISI. Depois da eleição de Obama em 2008, enquanto o governo do Paquistão tentava conter o fluxo de quadros operacionais da CIA no país, os Estados Unidos começaram a aumentar o número do pessoal de fachada que o governo permitia que “passassem” por diplomatas. Fazia muito tempo que a ISI lidava com a CIA, mas o JSOC era algo bem diferente, algo que a ISI viria a achar assustador. Além de ser o principal órgão americano de operações de assassinatos dirigidos, o JSOC era também a mais importante entidade americana dedicada à contraproliferação. Abundavam, no Paquistão, teorias de que os Estados Unidos tramavam apoderar-se das armas nucleares do país, fonte de comentários infindáveis em noticiários da TV. A ideia não era pura paranoia. De fato, o JSOC traçara planos18 para proteger as ogivas nucleares do Paquistão no caso de um golpe ou de outro fator desestabilizante. No fim da década de 1990, revelou-se a existência de planos para que o JSOC estivesse preparado para se deslocar a qualquer parte do globo a fim de “recuperar materiais nucleares, biológicos, químicos [nuclear, biological, chemical, NBC] das mãos de grupos terroristas, infiltrar-se sem ser detectado em certos países para obter indícios de algum programa secreto de desenvolvimento de WMDS, sabotar tal programa e detectar, desarmar, desabilitar ou confiscar as WMDs”.19 Esses planos não visavam unicamente ao Paquistão, mas alimentaram a obsessão da ISI com o JSOC. O brigadeiro reformado F. B. Ali descreveu duas fases das operações do JSOC no Paquistão, a
primeira das quais foi o acordo com o grupo para “perseguição ativa”, que remonta ao governo do presidente Musharraf. “A segunda fase do influxo do JSOC20 ocorreu depois que os Estados Unidos decidiram empreender um amplo e prolongado programa de assistência ao Paquistão”, disse Ali.
Os Estados Unidos solicitam vistos para grande número de funcionários e pessoal de apoio para administrar o programa. A ISI insistiu para que a segurança investigasse todos os solicitantes de vistos, o que atrasaria o processo. Os Estados Unidos exerceram intensa pressão sobre o governo, advertindo que o programa de assistência seria prejudicado.
O governo do Paquistão, declarou Ali, aquiesceu e permitiu a entrada de grande número de americanos no país. Essa declaração foi confirmada por uma autoridade da ISI, segundo a qual milhares de vistos foram emitidos para pessoal da embaixada americana num período de cinco meses antes do incidente com Davis, “depois de uma ordem do governo21 à embaixada do Paquistão em Washington para que emitisse os vistos sem a investigação habitual do Ministério do Interior e da ISI”. De acordo com uma reportagem da Associated Press em fins de fevereiro de 2011, “dois dias depois de receber essa instrução, a embaixada do Paquistão emitiu quatrocentos vistos e desde então eles foram emitidos aos milhares”. Ao todo, segundo informações da embaixada do Paquistão em Washington, mais de 3500 vistos22 foram emitidos em 2010 para diplomatas, militares e funcionários de “órgãos aliados”. Na época do incidente com Davis, o Ministério das Relações Exteriores do Paquistão declarou que havia no país 851 americanos com imunidade diplomática, dos quais 297 não trabalhavam “em função diplomática”.23 No entanto, o Ministério do Interior listou mais de quatrocentos “americanos especiais”,24 que autoridades de segurança locais suspeitavam que fossem “membros de agências de Inteligência americanas que exercem missões secretas no Paquistão e estão subordinados” ao JSOC. “Na versão ‘oficial’,25 o que eles fazem é coletar informações de contraterrorismo”, disse o brigadeiro Ali.
Contudo, o pessoal subalterno da ISI sabia que não era nada disso. Eles simplesmente não tinham como fazer com que a chefia do órgão, ligada aos americanos, tomasse providências. Até Raymond Davis abater dois agentes da ISI, nas ruas de Lahore, e os Estados Unidos moverem céus e terra para libertá-lo.
Fosse o que fosse o que Davis estava fazendo — e para quem — antes de parar no cruzamento da Mozang Chowk, em Lahore, em 27 de janeiro de 2011, o que aconteceu naquele dia parecia saído de um filme de espionagem. Em algum momento, Davis viu os dois sujeitos na motocicleta, diante dele, como uma
ameaça. Contou que um dos homens agitava uma arma de fogo de forma ameaçadora. Davis pegou sua pistola Glock 9 e disparou cinco tiros através do para-brisa dianteiro, com absoluta precisão, abatendo Muhammad Faheem, que estava de carona na moto. Um tiro atingiu-o na cabeça, um pouco acima da orelha. Outro furou seu estômago.26 O condutor da motocicleta, Faizan Haider, largou o veículo e começou a fugir. Davis, empunhando a Glock, saiu do carro, apontou e disparou mais cinco tiros. Haider caiu a nove metros da motocicleta. Pelo menos dois tiros27 pegaram em suas costas. Ele morreu no hospital. Segundo testemunhas oculares, Davis voltou calmamente até seu carro depois de balear os dois homens e pegou um rádio militar. Pediu reforços. Antes de entrar no veículo, foi até os dois corpos empapados de sangue e fotografou-os,28 segundo testemunhas que estavam no cruzamento apinhado. À medida que juntava gente nas ruas, crescia a possibilidade de formação de um tumulto. Policiais de trânsito gritaram a Davis para que parasse. Ignorando-os, ele voltou ao carro — com o para-brisa crivado de furos feitos por sua própria Glock — e saiu em velocidade. Nesse ínterim, um Toyota Land Cruiser corria pelas ruas de Lahore. Sua placa, LZN6970, era falsa.29 O motorista do veículo de apoio a Davis não tinha intenção de esperar no trânsito engarrafado. Costurava pelas pistas e, em dado momento, passou por cima do canteiro central de uma rua congestionada e seguiu pela contramão, em disparada, rumo a Mozang Chowk. A cerca de quinhentos metros do cruzamento onde ocorrera o tiroteio, o Land Cruiser bateu na motocicleta30 de um paquistanês, Ibadur Rehman, esmagando-o, e continuou em direção à cena. Ao descobrir que Davis já tinha saído dali, os homens do Land Cruiser fugiram. Quando o veículo de apoio chegou, Davis já estava a mais de três quilômetros de Mozang Chowk.31 A perseguição logo acabou. A polícia o deteve no apinhado Mercado Velho de Anarkali. Davis não resistiu e foi levado pela polícia. Declarou que trabalhava para o governo dos Estados Unidos. Sua provação de sete semanas estava só começando. Enquanto Davis era levado a uma delegacia de polícia do Punjab para ser interrogado, os homens da equipe de apoio preparavam-se para se evadir. Perto do Faletti’s Hotel,32 vários objetos caíram do Toyota Land Cruiser: quatro pentes de munição, cem projéteis, uma máscara preta, uma faca com bússola e um pedaço de pano com a bandeira americana — outra nota de sangue. Voltaram à casa da CIAJSOC, destruíram todos os documentos do governo que estavam em seu poder33 e partiram para o consulado dos Estados Unidos. Nunca mais se voltou a ter notícias daqueles homens no Paquistão. Alegando que tinham imunidade diplomática, os Estados Unidos os retiraram do país antes que pudessem ser interrogados pela polícia. “Deram o fora,34 já estão nos Estados Unidos”, comentou uma alta autoridade do Paquistão. Foi preciso menos de 24 horas para que a notícia do incidente se espalhasse pelo Paquistão. Em Lahore, manifestantes furiosos pediam que Davis fosse enforcado.35 Na imprensa paquistanesa, começaram a sair notícias de que ele era um agente da CIA e da Blackwater. Detido no distrito policial de Lytton Road, o americano — tranquilo — via-se cercado por um ambiente de caos. Policiais, inspetores e outras pessoas falavam uns com os outros aos gritos.
Tinham dificuldade para pronunciar o nome dele. Davis insistia para que localizassem seu passaporte. Repetia que trabalhava como consultor no consulado em Lahore e que tinha passaporte diplomático. Ao contrário de colegas seus que tinham se metido em encrencas no Paquistão em meses anteriores, Davis não voltaria logo para os Estados Unidos. Foi transferido para a prisão de Kot Lakhpat enquanto as autoridades paquistanesas intensificavam a investigação, o que incluiu um exame pericial na cena do crime. Os três mortos (os dois baleados por Davis e o homem que foi atropelado pelo Land Cruiser da equipe de apoio) foram autopsiados antes de serem entregues às famílias para sepultamento. Segundo a investigação da polícia paquistanesa, a alegação de Davis de que atirara em legítima defesa não era correta.36 O laudo da polícia indicava que os dois homens assassinados por Davis tinham sido baleados pelas costas. Testemunhas declararam à polícia que Haider fora abatido ao correr “para salvar a vida”. Davis disse à polícia que Faheem tinha engatilhado a arma e a apontado para ele. Quando a polícia localizou a arma de Faheem, “a agulha da pistola do morto [estava] vazia, e os projéteis no pente”. Ademais, segundo a polícia, “ninguém os viu fazendo pontaria” contra Davis. A polícia informou ainda que, ao lhe pedir sua licença para portar armas, Davis não a apresentou. Para a polícia do Punjab, o incidente logo se tornou uma investigação de homicídio. A polícia determinou que Davis ficasse preso por seis dias37 para novas investigações. Os pormenores do incidente foram pouco importantes em comparação com o jogo de apostas altas que se desenrolaria entre o governo americano e o Paquistão. Sem que o governo paquistanês soubesse, cinco meses antes de Raymond Davis ser preso, a Inteligência americana fizera uma descoberta de valor potencialmente incalculável. A CIA tinha localizado um mensageiro ligado a Osama bin Laden. Rastrearam seus movimentos, o que os levou a uma grande casa em Abbottabad, no Paquistão. Usando imagens de satélites, analistas notaram os movimentos de uma figura misteriosa na propriedade. A Casa Branca achou que tinha localizado Osama bin Laden. Quando o almirante McRaven começava a imaginar cenários que o JSOC poderia utilizar para matar ou capturar o líder da Al-Qaeda, David baleou os homens em Lahore e agora estava detido numa prisão paquistanesa. Os Estados Unidos temiam38 que, se atacasse a casa em Abbottabad, Davis pudesse ser morto em retaliação pela violação da soberania do Paquistão. Washington tinha de tirar seu homem de lá. Ignorando os planos americanos de atacar o que Washington acreditava ser a residência de Bin Laden no Paquistão, o governo de Islamabad encarava o caso Davis como uma oportunidade para obter vantagem em sua guerra de informações com os Estados Unidos. “Para a ISI, o caso Davis foi uma dádiva dos céus”,39 assim terminava o editorial do Economist. “A ISI está furiosa com a independência com que os agentes americanos atuam, rastreando militantes da Al-Qaeda, do Talibã e de outros grupos, que fugiram para Lahore e Karachi a fim de escapar aos ataques de drones na fronteira montanhosa com o Afeganistão.” A reação do governo americano à prisão de Davis foi canhestra. É bem possível que a
embaixada dos Estados Unidos não estivesse plenamente informada sobre o papel real de Davis no Paquistão — se ele trabalhava para a CIA, para o JSOC ou para ambos. Um dia após a prisão de Davis, um porta-voz da embaixada americana em Islamabad, Alberto Rodríguez, declarou à televisão paquistanesa: “Posso confirmar40 que a pessoa envolvida no incidente é um funcionário do consulado”. Pouco depois, em 27 de janeiro, a embaixada enviou uma nota diplomática ao Ministério das Relações Exteriores do Paquistão afirmando que Davis era “funcionário do consulado geral41 dos Estados Unidos em Lahore e detentor de passaporte diplomático”. O problema para os Estados Unidos, porém, era que essa designação significava que as autoridades paquistanesas podiam alegar que ele não tinha direito a imunidade plena, mas estava enquadrado na Convenção de Viena de 1963 sobre Relações Consulares. Esse tratado rezava que “os agentes consulares não estarão sujeitos a prisão ou detenção durante o julgamento, exceto no caso de crime grave42 e na dependência de uma decisão da autoridade judicial competente”. Com certeza, argumentavam os paquistaneses, homicídio é um crime grave. Em 3 de fevereiro, os americanos alteraram sua posição. Dessa vez, rotularam Davis como “membro da equipe administrativa e técnica43 da embaixada dos Estados Unidos”. De acordo com autoridades do Paquistão, Davis nunca recebera status de diplomata devido a “indagações não respondidas”44 a seu respeito que o Paquistão fizera aos Estados Unidos. A indignação espalhava-se pelo país. Dez dias depois do incidente, num leito de hospital em Faisalabad, Shumaila Kanwal, a viúva de Faheem, usava suas últimas forças para gravar uma declaração em vídeo. Havia ingerido raticida e estava pondo fim à própria vida em protesto contra o que chamou de assassinato do marido pelas mãos de um agente dos Estados Unidos. “Quero sangue por sangue”,45 disse, lutando para respirar e tentando focalizar a vista. “O assassino de meu marido devia ser baleado da mesma forma que meu marido foi fuzilado.” Imran Haider, irmão do outro homem baleado por Davis, disse que seu irmão soubera pouco tempo antes que a mulher estava grávida. Mostrou-se furioso com o fato de o irmão estar sendo “caluniado” como assaltante. “Ele era limpo”,46 declarou. “Tudo o que queremos é que esse americano seja julgado e que seja feita uma investigação correta. Ele deve ser condenado à morte. Nada de acordos.” Shumaila morreu logo depois de gravar a declaração. Sua morte enfureceu ainda mais o já irado público paquistanês. Os partidos islâmicos organizaram enormes manifestações, queimando efígies de Davis e chamando-o de terrorista, espião e, talvez o pior de tudo, agente da Blackwater. Logo ficou claro que o Paquistão não iria soltar Davis na surdina. Os Estados Unidos deram início a uma campanha febril para libertá-lo. A CIA chegou a ponto de interromper seus ataques com drones no país, segundo informações, a pedido da ISI. O fato de os Estados Unidos terem cessado esses ataques foi digno de nota, diante da importância deles para a sua estratégia no Paquistão. “A prisão desse sujeito47 é um fato muito positivo para nós”, declarou Mullah Jihad
Yar, comandante do Talibã paquistanês. “Nossas forças eram alvo de ataques dia sim, dia não. Agora podemos nos movimentar com mais liberdade.” Para veteranos da Agência, as decisões americanas indicavam a urgência com que os Estados Unidos desejavam que Davis fosse solto. “A embaixada e a estação querem Davis de volta para que ele não comece a falar sobre outras coisas que estão fazendo unilateralmente”,48 disse Giraldi, ex-agente da CIA. Quanto à questão de imunidade, Giraldi asseverou que Davis não a tinha. “Para ser um diplomata, em termos legais, a pessoa tem de ser acreditada junto ao Ministério das Relações Exteriores do país, e eles têm de aceitar suas credenciais. A pessoa é então incluída na lista diplomática”, disse ele. “A maioria dos funcionários das embaixadas americanas em quase todos os postos no exterior não tem status diplomático e, portanto, não tem imunidade, exceto na medida em que o governo local lhes conceda certas proteções a título de cortesia. Não existe indício algum de que Davis tenha passado pelo processo de credenciamento ou de qualquer coisa dessa natureza, mesmo que ele estivesse viajando com um passaporte diplomático.” Enquanto notícias sobre a ligação de Davis com a CIA, o JSOC e a Blackwater pululavam na imprensa paquistanesa, os principais meios de comunicação e o governo dos Estados Unidos promoviam a versão de que Davis era diplomata. “Continuamos a insistir49 junto ao governo do Paquistão que nosso diplomata tem imunidade diplomática, que em nosso entender ele agiu em legítima defesa e que deve ser solto”, declarou o porta-voz do Departamento de Estado P. J. Crowley numa nota de 7 de fevereiro, divulgada pela CNN, CBS, PBS, pelo jornal usa Today e outros importantes órgãos de imprensa. “O Paquistão deve cumprir suas obrigações internacionais de acordo com a Convenção de Viena.” Em resposta à pressão de Washington, o governo de Asif Zardari, simpático aos Estados Unidos, se dispunha a reconhecer50 Davis como diplomata, mas enfrentava a resistência de suas próprias autoridades. Solicitado a credenciar Davis como diplomata, o ministro das Relações Exteriores do Paquistão, Shah Mahmood Qureshi, recusou-se a fazê-lo, dizendo que o pedido não correspondia aos “dados oficiais” sobre Davis no Ministério. “Segundo a opinião de nossos especialistas,51 a imunidade geral que a embaixada dos Estados Unidos está solicitando não se justifica”, declarou ele. Em reação, a secretária de Estado Hillary Clinton desfeiteou Qureshi52 numa conferência internacional de segurança em Munique, na Alemanha. Qureshi foi então alijado do cargo de ministro — segundo ele, em decorrência de sua “resistência, por questão de princípios”,53 à concessão de imunidade a Davis. Ao assumir essa posição, Qureshi submeteu a questão aos tribunais de Lahore, garantindo com isso a continuidade da saga Davis. Destacados parlamentares americanos ameaçaram suspender a ajuda humanitária ao Paquistão54 se Davis não fosse libertado. O presidente Zardari classificou as ameaças de “contraproducentes”, escrevendo no Washington Post: “Num ambiente incendiário,55 retórica furiosa e ameaças disfuncionais podem atear incêndios que serão difíceis de extinguir”. Enquanto Raymond Davis permanecia em sua cela na prisão de Kot Lakhpat, as autoridades americanas temiam por sua segurança. Nada menos de três prisioneiros56 tinham sido
assassinados por guardas. Algumas autoridades paquistanesas expressavam receio de que a CIA tentasse dar-lhe fuga de forma espetacular. A comida de Davis era provada por cachorros.57 Enquanto seus superiores se esforçavam para libertá-lo, Davis se mantinha sereno e desafiador. Durante um interrogatório, escanhoado e usando um pulôver azul de lã, ele disse: “O embaixador dos Estados Unidos afirma que eu tenho [imunidade], de modo que não vou responder a nenhuma pergunta”.58 Exigiu ver seu passaporte. “Está bem na primeira página”, disse, fazendo com os dedos um retângulo. “Passaporte diplomático.” O interrogador tentou fazer-lhe novas perguntas, e Davis anunciou que não responderia mais pergunta alguma. “Vou voltar para meu quarto”, disse ao homem, levantando-se. “Você não pode agir assim”, declarou o interrogador. “Você não é diplomata.” Davis simplesmente reiterou que não iria responder a novas perguntas e caminhou para a porta. Em Washington, todo o peso do governo Obama estava sendo empregado em prol da causa de sua libertação. “Em nosso entender, ele agiu em legítima defesa,59 quando confrontado por dois homens armados em motocicleta”, declarou Crowley no Departamento de Estado. Ele “tinha todos os motivos para crer que os homens armados pretendiam fazer-lhe mal”. Crowley exigiu a libertação de Davis. Em 15 de fevereiro, com Davis ainda detido e um juiz paquistanês preparando-se para decidir se ele tinha direito a imunidade, chegou ao Paquistão o senador John Kerry, presidente da Comissão das Relações Exteriores do Senado. Kerry era bastante conhecido no país por ter defendido, junto com outros congressistas, um amplo pacote de ajuda ao Paquistão no montante de 7,5 bilhões de dólares. Encontrou-se com o presidente Zardari60 e outras autoridades de primeiro escalão e depois com um grupo de jornalistas paquistaneses em Lahore, onde defendeu o princípio de que Davis era diplomata e deveria ser entregue à custódia dos Estados Unidos. “Temos — todos nós — de respeitar a lei”,61 disse Kerry, sentado numa poltrona estofada e cercado de jornalistas paquistaneses. As redes de televisão do país transmitiram seus comentários ao vivo. A lei que rege a imunidade diplomática, disse Kerry, “não é um documento que o Paquistão tenha assinado com desatenção. Seus líderes a assinaram para isto mesmo, há muito, muito tempo”. Kerry falava devagar, quase como se estivesse falando a uma turma de crianças, e não a jornalistas.
Não fomos nós que a criamos [a imunidade]. Vivemos com ela e é importante que vivamos com ela, porque às vezes ocorrem incidentes, numa parte do mundo ou em outra, em que os diplomatas não conseguem realizar o trabalho que lhes compete, às vezes em circunstâncias muito perigosas, a menos que disponham dessa imunidade.
Os jornalistas pressionaram Kerry em relação ao status de Davis e perguntaram por que, no entendimento deles, parecia que os Estados Unidos não estavam respeitando as leis e o processo
judicial do Paquistão. “Nosso governo crê firmemente que esse caso não é da alçada de tribunais. E ele não é da alçada de tribunais porque esse homem tem imunidade diplomática como funcionário administrativo e técnico da embaixada dos Estados Unidos em Islamabad”, respondeu Kerry. “Entendemos que a documentação deixa isso claro. Essa é a nossa posição. Não estamos desrespeitando seus tribunais. Nós os respeitamos profundamente. Desejamos que seus tribunais sejam fortes e vibrantes […]. Mas temos de respeitar o direito internacional.” Kerry instou o Paquistão a “permitir que os fatos e a realidade falem por si mesmos nesse caso”. É muitíssimo duvidoso que John Kerry realmente acreditasse que Davis era um “funcionário administrativo e técnico da embaixada”. Como presidente da Comissão de Relações Exteriores, tinha acesso às mais sigilosas informações da Inteligência dos Estados Unidos e foi rigorosamente instruído antes de partir para o Paquistão. Enquanto Kerry buscava persuadir as autoridades paquistanesas, em Washington o presidente Obama defendia Davis publicamente: “Com relação a Mr. Davis,62 nosso diplomata no Paquistão, temos aqui um princípio simplíssimo que todos os países do mundo que firmaram a Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas acataram no passado e hão de acatar no futuro. E segundo esse princípio, se… se nossos diplomatas se encontram em outro país não estão sujeitos a processo por parte desse país”, declarou Obama na Casa Branca.
Se nossos embaixadores começarem a ser vistos como presas lícitas em todo o mundo, inclusive em lugares perigosos onde possamos ter divergências com esses países […] e se eles passarem a estar sujeitos a ser processados nesses países, isso… Isso é intolerável. Significa que não podem realizar seu trabalho.
Obama disse que o governo tinha sido “muito firme” ao tornar claras suas exigências ao governo do Paquistão e que estava trabalhando “para obter a libertação dessa pessoa”. E acrescentou:
Para aqueles que não conhecem os antecedentes desse caso, dois paquistaneses foram mortos num incidente com Mr. Davis dentro… no Paquistão. Assim, é óbvio que lamentamos a perda de vidas. Não somos insensíveis a isso, vocês sabem. Mas está em jogo um princípio mais amplo que, em meu entender, temos de acatar.
Enquanto Obama, Kerry e outras autoridades americanas pintavam Davis, em público, como diplomata, vários meios de comunicação americanos dos mais importantes, com destaque para o New York Times, já sabiam que Davis, na verdade, trabalhava para a CIA. A pedido do governo Obama, o Times e outros órgãos da imprensa concordaram em omitir o fato em suas matérias sobre o caso. O Times posteriormente informou que concordou em não mencionar a ligação de Davis com a CIA depois que autoridades do governo “argumentaram que a revelação desse
trabalho específico63 poria sua vida em risco”. (A Associated Press também admitiu que soubera que Davis estava trabalhando para a CIA “logo depois do incidente”,64 mas que não divulgara o fato.) Matérias do New York Times referiam-se a Davis como “funcionário americano”65 e aludiram ao “mistério com relação ao que Mr. Davis estava fazendo com seu conjunto de equipamentos”66 e às especulações que tais equipamentos haviam gerado na imprensa paquistanesa, mesmo quando o Times já sabia que ele trabalhava para a CIA. “Uma coisa67 é um jornal omitir informações por acreditar que revelá-las pode pôr vidas em perigo”, disse o jornalista e advogado constitucionalista Glenn Greenwald.
Aqui, porém, o governo dos Estados Unidos passou semanas fazendo declarações públicas extremamente capciosas — como Obama chamando Davis de “nosso diplomata no Paquistão” —, enquanto o New York Times ocultava conscientemente fatos que prejudicavam essas afirmações do governo, e isso porque autoridades públicas mandaram que assim procedesse. Isso se chama ser um agente ativo da propaganda governamental.
O primeiro órgão de imprensa de repercussão mundial a mencionar a ligação de Davis com a CIA foi o jornal londrino The Guardian. Tanto a CIA quanto seu congênere britânico, o MI-5, pressionaram o jornal para não divulgar essa informação. Finalmente, na edição de 21 de fevereiro, o jornal deu a matéria. “Chegamos à conclusão de que a ligação dele com a CIA68 era um elemento crítico do caso, que certamente seria um fator em seu julgamento ou em tentativas de libertá-lo”, comentou Ian Katz, editor-chefe assistente do Guardian. “Os motivos que nos deram para não revelar a informação foram, primeiro, que isso poderia complicar a soltura de Davis — o que não é problema nosso. Se ele fosse um refém em cativeiro, outros fatores estariam em jogo, mas ele está sendo objeto de um processo judicial. A outra razão dada pela CIA foi que haveria retaliações contra ele na prisão.” Depois que o Guardian publicou a notícia, a CIA autorizou a mídia americana a dá-la também. Em sua primeira matéria em que Davis era ligado à CIA o Times citou George Little, porta-voz da Agência: “Nosso pessoal de segurança,69 espalhado pelo mundo, atua num papel de apoio, fazendo a segurança de autoridades americanas. Não realiza coleta de informações no exterior nem participa de operações clandestinas”. Na realidade, a linha divisória entre os guardas de “segurança” da Agência e seus quadros operacionais era quase nula depois de atuarem juntos por uma década no Paquistão e no Afeganistão. O senador Kerry manteve conversas secretas70 com o embaixador do Paquistão nos Estados Unidos, Husain Haqqani, ocasião em que se debateu o pagamento de “dinheiro de sangue” às famílias das vítimas de Davis e do homem atropelado pela equipe de apoio. Embora a CIA e a ISI se guerreassem, com vazamentos para a imprensa e acusações mútuas, tanto o governo dos Estados Unidos quanto o do Paquistão sabiam que Davis seria libertado. A questão era quando e
o que a ISI obteria da CIA antes que isso acontecesse. Em meados de fevereiro, quando Davis estava detido havia duas semanas, Panetta, diretor da CIA, conversou com Pasha, chefe da ISI, que exigiu que os Estados Unidos identificassem “todos os Ray Davises71 que trabalhavam no Paquistão, escondidos de nós”. Depois dessa conversa, a ISI concordou em colaborar para intermediar e apoiar um plano de indenização às famílias das vítimas, preparando o caminho para a libertação de Davis. Em depoimento à Comissão de Inteligência do Senado, um dia depois da visita de Kerry ao Paquistão, Panetta declarou que a relação da CIA com a ISI era “uma das mais complicadas que já vi em muito tempo”.72 Dias depois, a Associated Press obteve o rascunho de uma nota que estava sendo preparada pela agência paquistanesa e dizia que “a ISI está pronta para afastar-se da CIA73 devido à sua frustração com o que considera uma pressão coercitiva e à sua indignação com o que acredita ser uma operação secreta americana envolvendo centenas de espiões contratados”. A nota, nunca divulgada, afirmava que depois dos tiros de Davis, “a conduta da CIA em relação ao incidente praticamente pôs em xeque a parceria […]. É difícil prever se a relação voltará um dia ao nível de antes do episódio Davis”, acrescentando sem evasivas: “O ônus de não prejudicar essa relação entre as duas agências cabe à CIA”. No fim de fevereiro, Davis foi levado a um tribunal em Lahore, onde lhe pediram que assinasse um boletim de ocorrência policial, no qual ele reconhecia ter “assassinado” os dois homens. Davis se recusou a assinar74 e reiterou sua alegação de que tinha imunidade diplomática. Nesse ínterim, a ISI estava vasculhando as centenas de solicitações de vistos concedidos a americanos nos seis meses anteriores. A ISI alegou que a solicitação da Davis continha “referências e números de telefones falsos”75 e anunciou que estava procurando fatos semelhantes em outros arquivos de vistos. Em 25 de fevereiro, a polícia prendeu em Peshawar outro americano prestador de serviços de segurança,76 Aaron DeHaven, cuja empresa, a Catalyst Services, jactava-se de que sua equipe “estivera envolvida em alguns dos mais importantes acontecimentos dos últimos vinte anos,77 seja na dissolução da antiga União Soviética, seja na iniciativa dos Estados Unidos na Somália, seja na Guerra Global ao Terror”, e que seus integrantes tinham feito “carreira nas Forças Armadas dos Estados Unidos e no DoD dos Estados Unidos”. A imprensa paquistanesa não perdeu tempo em tachá-lo de espião, à maneira de Davis, e logo surgiram na imprensa notícias de que “prestadores de serviços” vinham deixando o país às dúzias.78 O governo paquistanês queria ser visto como forte e atuante, e Washington se resignava a permitir que ele se mostrasse assim, desde que isso resultasse na libertação de Davis. George Little, da CIA, declarou que os laços da Agência com a ISI “têm sido fortes79 ao longo dos anos, e se surgem questões a serem dirimidas, nós as resolvemos. Esse é o sinal de uma parceria saudável”. Apesar das declarações públicas da CIA, a parceria chegou, na realidade, ao ponto mais baixo de sua história. Para os Estados Unidos, porém, os riscos eram altos demais para permitir que o caso Davis saísse ainda mais do controle. A guerra dos Estados Unidos no
Afeganistão dependia inteiramente da cooperação do Paquistão. Sem o apoio de Islamabad, rotas de suprimentos cruciais para os Estados Unidos estariam fechadas. Os generais já tinham aguentado o suficiente.
Em 23 de fevereiro, teve início o ato final da saga Davis, muito longe da prisão onde o americano esperava seu destino. Na verdade, o acordo não foi selado nem no Paquistão, nem nos Estados Unidos, mas sim num hotel de lazer, luxuoso e isolado, numa praia de Mascate, capital de Omã, uma nação da Península Arábica. A respeito da reunião, uma nota paquistanesa afirmava:
O que faz uma pessoa quando quer refletir seriamente80 e impor juízo a uma situação enlouquecedora? Afasta-se da turba desvairada e procura um pacífico resort de luxo omaniano, é claro. Pois foi isso o que fizeram as lideranças militares dos Estados Unidos e do Paquistão.
Numa sala privada, as figuras mais poderosas das Forças Armadas dos Estados Unidos se reuniram com seus congêneres paquistaneses. Liderada pelo almirante Mullen, a delegação americana era integrada81 pelo almirante Eric Olson, comandante do Comando de Operações Especiais dos Estados Unidos; o general David Petraeus; e o general James Mattis, comandante do Centcom. Reuniram-se com a mais alta autoridade militar do Paquistão, o general Ashfaq Parvez Kayani, e com o general de divisão Javed Iqbal, seu diretor-geral de Operações Militares. “A relação Estados Unidos-Paquistão vem se deteriorando à medida que crescem as especulações sobre as intenções dos Estados Unidos no Paquistão”, assim começava a nota. “O caso Davis trouxe todas essas suspeitas à tona.” Referindo-se à suposta cisão entre a CIA e a ISI, a nota dizia que as autoridades militares americanas “tinham de destacar que assim que ultrapassasse um ponto crucial, a situação seria assumida por forças políticas que não poderiam ser controladas”. De acordo com a nota, a delegação americana pediu aos generais paquistaneses que “tomassem a frente e fizessem o que os governos não estavam conseguindo fazer — principalmente porque as Forças Armadas americanas estavam numa fase crítica no Afeganistão, e o Paquistão era a chave para o controle e a solução”. E a nota concluía:
As lideranças militares, a partir de agora, hão de instruir e guiar seus líderes civis, confiantes em trazer uma mudança qualitativa ao relacionamento Estados Unidos-Paquistão, interrompendo a deterioração do processo e encaminhando-o na direção correta.
Depois do encontro de Omã, fontes da ISI declararam que a CIA concordara em não realizar operações unilaterais no Paquistão em troca de seu apoio na libertação de Davis. “Eles não farão nada, escondido de nós,82 que resulte em morte ou prisão de pessoas”, afirmou uma autoridade paquistanesa ao Guardian. Isso, é claro, não era verdade. Nem sequer se sabe ao certo se a CIA prometeu isso. O New York Times informou que autoridades americanas “insistiram […] que a CIA não fez promessa alguma83 de reduzir operações secretas no Paquistão ou de dar ao governo paquistanês ou à sua Agência de Inteligência uma lista de espiões americanos que atuam no país — afirmações que as autoridades paquistanesas contestaram”. Seja como for, os Estados Unidos e o Paquistão começaram a concatenar um plano para usar a sharia, a lei islâmica, para libertar Davis. A partir do momento em que Davis atirou nos dois homens em Lahore, as famílias de suas vítimas e a do terceiro homem, atropelado pela equipe de apoio, insistiram publicamente que não desejavam pagamento ou propina, mas sim que Davis fosse julgado e enforcado.84 No leito de morte, Shumaila Kanwal, viúva de Faheem, disse temer que não se fizesse justiça por causa de um acordo político. Durante semanas, multidões de manifestantes coléricos protestaram a cada sessão judicial, exigindo que Davis fosse acusado e julgado. Essa não era uma opção nem para os Estados Unidos nem para o Paquistão. O espetáculo já tinha durado mais que o suficiente. E seu fim foi coreografado meticulosamente pelos dois governos. De conformidade com a cláusula de diyyat da sharia, as famílias de uma vítima podiam “perdoar” o acusado e, em troca, aceitar um pagamento vulgarmente chamado de “dinheiro de sangue”. Com isso, o processo criminal contra Davis seria interrompido. No entanto, isso exigia o consentimento das famílias das vítimas. Em 16 de março, agentes paquistaneses não identificados levaram à força85 dezenove parentes das vítimas, homens e mulheres, à prisão de Kot Lakhpat. Aquele seria o dia do julgamento de Raymond Davis. Nem o público, nem repórteres puderam entrar. Segundo o ministro da Justiça do Punjab, Rana Sanaullah, Davis era acusado de homicídio.86 Entretanto, em vez de assistir à apresentação de provas, aos depoimentos de testemunhas e ao interrogatório de Davis, os parentes das vítimas receberam ordem de assinar documentos pelos quais perdoavam o americano. “Eu e meu assistente87 fomos mantidos em detenção forçada durante horas”, declarou um advogado da família de Faizan Haider. Cada um dos dezenove parentes foi levado diante do juiz, sendo-lhe perguntado se perdoava Davis. Sob intensa pressão, todos responderam que sim. O juiz então extinguiu o processo contra Davis e determinou sua libertação. “Tudo aconteceu no tribunal e de acordo com a lei”, declarou Sanaullah. “O tribunal absolveu Raymond Davis. Agora ele pode ir aonde quiser.”88 Como disse o brigadeiro paquistanês reformado F. B. Ali, “a cláusula de diyyat89 é muito apreciada pelos ricos e poderosos nas sociedades muçulmanas onde ela vigora. Ela literalmente lhes permite evitar a condenação por homicídio”. Ao todo, as famílias receberam 2,3 milhões de dólares. Numa visita ao Cairo, a secretária de Estado Hillary Clinton elogiou a solução. “As famílias das vítimas do incidente de 27 de janeiro
perdoaram Mr. Davis, e estamos muito gratos pela decisão deles”, disse ela. “Agradecemos as medidas que tomaram e que possibilitaram a Mr. Davis voltar para casa.” Interrogada a respeito dos pagamentos às famílias, ela declarou: “Os Estados Unidos não pagaram compensação alguma”.90 Com efeito, o Paquistão foi que efetuou o pagamento,91 que os Estados Unidos depois reembolsariam, usando o orçamento da CIA. Quando Raymond Davis saiu do tribunal, depois da ordem de soltura, lágrimas escorriam pelo seu rosto, enquanto os parentes das vítimas continuavam sentados, num silêncio atônito, alguns soluçando. Davis foi levado depressa para um comboio de carros com chapas diplomáticas e conduzido diretamente a um aeródromo onde embarcou num avião “especial”92 — do tipo usado pelo programa de transferências clandestinas de presos da CIA. O aparelho cruzou o espaço aéreo do Afeganistão, rumo a Bagram,93 e Davis desapareceu. “Ele se foi”, disse o tenente-coronel Shaffer, sorrindo. Vinte e quatro horas após a libertação de Davis, um ataque americano com drones94 matou cerca de quarenta pessoas no Waziristão do Norte. Talvez as coisas pudessem voltar agora ao que eram antes do caso Davis. Mas apenas seis semanas depois que ele foi retirado às pressas do Paquistão, a guerra secreta que ele ajudara a fazer saltaria para a primeira página de todos os jornais do mundo, quando helicópteros do JSOC adentraram em território paquistanês na calada da noite e rumaram para a cidade de Abbottabad. Sua missão: matar o homem mais procurado do mundo.
47. O tsunami da mudança
ÁUSTRIA E IÊMEN, 2011 — Em meados de 2011, o Iêmen se viu engolfado pela revolução que varria o mundo árabe. A revolta popular contra os regimes opressivos na região começara em dezembro de 2010, quando Mohamed Bouazizi, camelô tunisiano de 26 anos, optou pela medida extrema. O jovem vendedor de frutas e verduras se esfalfava a cada dia nas ruas de Sidi Bouzid, cidadezinha pobre e rural, para ganhar alguma coisa, enfrentando o assédio constante da polícia e de funcionários municipais, que lhe exigiam propinas. Nesse dia em particular, as autoridades lhe tiraram a única fonte de renda, ao confiscarem sua carrocinha1 e suas mercadorias, porque ele não tinha a licença exigida. Furioso, Bouazizi correu ao gabinete do governador, que não quis recebê-lo.2 Então, transtornado, foi a um posto de gasolina,3 encheu um jarro de combustível e postou-se no meio do trânsito. Eram 11h30 da manhã. “Como é que vocês querem que eu ganhe a vida?”, gritou, antes de empapar-se de gasolina. Riscou um fósforo e seu corpo ardeu em chamas. Daí a poucos meses, protestos gigantescos contra regimes apoiados pelos Estados Unidos no mundo árabe agitavam as capitais do Oriente Médio e do norte da África, num levante que se tornou conhecido como a Primavera Árabe. Vários ditadores caíram, um atrás do outro: Zine El Abidine Ben Ali, na Tunísia, foi o primeiro deles. Em 25 de janeiro, começou uma rebelião contra o ditador egípcio Hosni Mubarak, que acabou por derrubar o regime. Os iemenitas viam seus irmãos e irmãs árabes, em outros países, tirar do poder os ditadores que os governavam desde quando podiam lembrar. Menos de duas semanas depois, dezenas de milhares de pessoas convergiram para uma praça no centro de Sana’a e mudaram-lhe o nome para Praça da Mudança. Anunciaram que não sairiam dali até que o presidente Saleh e sua família fossem alijados do poder. Um novo número da Inspire coincidiu com a propagação dos protestos no Iêmen. Sua reportagem de capa sobre os levantes árabes, “o tsunami da mudança”, levava a assinatura de Anwar Awlaki. “A primeira mudança trazida por essa mudança, e provavelmente a mais importante,4 é de natureza mental. Ela trouxe uma mudança para o espírito coletivo da Ummah. A revolução rompeu, nos corações e nas mentes, as barreiras do medo de que os tiranos não pudessem ser eliminados”, escreveu Awlaki. “Não sabemos ainda qual será o resultado disso, nem precisamos saber. O resultado não terá de ser um governo islâmico para que consideremos o que está acontecendo como um passo
na direção certa.” Awlaki defendeu os protestos contra o regime do Iêmen, apoiado pelos Estados Unidos, ao escrever: “Qualquer debilitação do governo central produzirá, sem dúvida, mais força para os mujahedin nesta terra abençoada”. Em 18 de março de 2011, mais de 100 mil manifestantes iemenitas se reuniram em ruas próximas à Universidade de Sana’a para as orações da sexta-feira. Terminadas as orações, quando as pessoas se dispersavam, as forças de segurança do governo e milícias pró-Saleh abriram fogo contra a multidão,5 matando mais de cinquenta pessoas. Algumas foram baleadas na cabeça por atiradores de elite. Três dias depois, o regime de Saleh sofreu um duro golpe, quando o mais poderoso militar do Iêmen, o general Ali Mohsin al-Ahmar, comandante da 1a Divisão Blindada, apoiou os protestos e comprometeu-se a defender a “revolução pacífica e jovem”6 do Iêmen. Outros militares importantes logo o imitaram. Altas autoridades civis, entre as quais dezenas de embaixadores e diplomatas, anunciaram que estavam deixando seus cargos. Destacados líderes tribais, que durante muito tempo tinham sido os mais importantes esteios do poder de Saleh, bandearam-se para a oposição. No momento em que a revolução no Iêmen ganhava força, os Estados Unidos começavam uma campanha de bombardeios em apoio a rebeldes armados na Líbia, que acabariam por derrubar o regime do coronel Muammar el Qaddafi. No Iêmen, porém, o governo americano fazia um jogo muito diferente. Afinal, a AQPA no Iêmen fora declarada a mais grave ameaça externa para o território dos Estados Unidos. Os planejadores das operações militares e de Inteligência concordavam com a avaliação de Awlaki de que a instabilidade no Iêmen beneficiaria a AQPA. No Egito, o ditador Hosni Mubarak, durante muito tempo apoiado pelos Estados Unidos, fora derrubado, tal como outros líderes de regimes ligados a Washington. Em seu número sobre a Primavera Árabe, a Inspire publicou um anúncio — uma fotografia de Ali Abdullah Saleh com o dedo indicador sobre a boca, num gesto de “silêncio!”. “Ei, Ali, Mubarak acaba de cair”, dizia o letreiro. “Adivinhe quem será o próximo.” Embora a secretária de Estado Hillary Clinton e outras autoridades americanas condenassem a violência no Iêmen, não chegaram nem perto de pedir o fim do regime ou de instar por uma ação militar internacional para confrontar a brutalidade das forças de segurança iemenitas. Em vez disso, os Estados Unidos preferiram recomendar uma “solução política”.7 Dias depois do massacre em Sana’a, perguntaram ao secretário de Defesa, Robert Gates, que fazia uma visita a Moscou, se os Estados Unidos ainda apoiavam Saleh. “Não creio que caiba a mim8 discutir os assuntos internos do Iêmen”, respondeu Gates. O que ele disse em seguida deixou claríssimo quais eram as prioridades americanas:
É óbvio que estamos preocupados com a instabilidade no Iêmen. Acreditamos que a AlQaeda na Península Arábica, que se concentra sobretudo no Iêmen, talvez seja a mais perigosa de todas as ramificações da Al-Qaeda neste momento. Por conseguinte, a
instabilidade e o desvio da atenção em relação à ameaça da Al-Qaeda constituem, com certeza, minha principal preocupação no que diz respeito à situação.
Nessa época, o governo Obama levava a cabo seu programa de treinar e equipar as forças militares e de segurança do Iêmen, entre as quais estavam algumas das mesmas unidades que estavam reprimindo protestos pacíficos contra o governo. “A apática reação dos Estados Unidos9 demonstra até que ponto nossa política no Iêmen é míope”, disse-me na época Joshua Foust, o ex-analista da DIA.
Docilmente, consentimos na brutalidade de Saleh, devido ao medo infundado de que nossos programas de contraterrorismo sejam interrompidos, sem, aparentemente, nos darmos conta que, ao assim proceder, estamos praticamente garantindo que o próximo governo há de desaprovar exatamente esses programas.
Gregory Johnsen disse-me que algumas preocupações de Washington eram também dele, mas que a obsessão míope com o terrorismo era contraproducente. A queda de Saleh “poderia, decerto, ter algum impacto negativo10 sobre as operações de contraterrorismo dos Estados Unidos no Iêmen”, disse ele, acrescentando: “Preocupa-me em especial o fato de a AQPA estar conseguindo armas e dinheiro em certas partes do país, à medida que os militares sofrem reveses em áreas remotas”. O Iêmen tem “vários problemas mais prementes, todos os quais, se deixados sem solução, ajudarão a AQPA a ganhar força nos próximos anos”, advertiu Johnsen. “Não existe, no Iêmen, nenhuma solução do tipo ‘míssil mágico’ para o problema da AQPA. Os Estados Unidos simplesmente não podem bombardeá-la até acabar com ela.” A julgar por suas políticas, o governo Obama pensava de outro modo.
O irmão caçula de Anwar Awlaki, Ammar, era em tudo diferente dele. Enquanto Anwar abraçava uma interpretação radical do Islã e pregava a jihad contra os Estados Unidos, Ammar fazia carreira numa empresa de petróleo no Iêmen. Ammar estudara no Canadá e tinha boas conexões políticas. Usava calças jeans, óculos Armani estilosos e deixara uma barbicha. Penteava o cabelo para trás e sempre tinha o modelo de iPhone mais recente. Vira Anwar pela última vez em 2004. Em fevereiro de 2011, Ammar estava em Viena, na Áustria, numa viagem de negócios. Tinha acabado de voltar para o hotel, depois de jantar com um colega austríaco, quando o telefone tocou em seu apartamento. “Como vai, Ammar?”,11 disse um homem com sotaque americano. “Minha mulher conhece a sua e eu tenho um presente para ela.” Ammar desceu ao saguão, onde viu um homem alto e magro, que vestia um terno azul bem cortado. Apertaram-se as mãos. “Podemos conversar um pouco?”, perguntou o homem, e sentaram-se no
saguão. “Na verdade, eu não trouxe um presente para a sua mulher. Vim dos Estados Unidos e preciso conversar com você sobre o seu irmão.” “Imagino que você seja do FBI ou da CIA”, disse Ammar. O homem sorriu. Ammar pediu-lhe uma identificação. “Vamos, não somos do FBI, não temos crachás que nos identifiquem assim”, disse o homem. “O máximo que posso fazer é lhe mostrar meu passaporte diplomático.” “Chame-me de Chris”, disse o americano. “Qual era seu nome ontem?”, retrucou Ammar. Chris deixou claro que trabalhava para a CIA e disse a Ammar que os Estados Unidos tinham uma Força-tarefa dedicada a “matar ou capturar seu irmão”. Disse também que os Estados Unidos desejavam pegar Anwar vivo, mas que o tempo estava se esgotando. “Ele vai ser morto”, disse Chris a Ammar. “Nesse caso, por que você não ajuda a salvar a vida dele, ajudando-nos a capturá-lo?” Acrescentou: “Você sabe que há uma recompensa de 5 milhões de dólares pela cabeça de seu irmão. Você não vai nos ajudar de graça”. Ammar disse a Chris que não queria o dinheiro, e o americano respondeu:
Esses 5 milhões ajudariam a educar os filhos [de Anwar]. Os Estados Unidos são muito francos, e só vou lhe dizer uma coisa. Há uma recompensa de 5 milhões de dólares, que estão aí para quem quiser. E em vez de deixar que alguém fique com ela, por que você não se habilita a esse dinheiro e ajuda a fazer com que os filhos de Anwar tenham uma educação decente?
“Acho que não há necessidade de nos encontrarmos de novo”, disse Ammar a Chris, reiterando que não fazia ideia de onde estava Anwar. Mesmo assim, Chris lhe disse que pensasse no assunto. Que o discutisse com a família. “Podemos nos encontrar quando você for a Dubai daqui a duas semanas.” Ammar ficou estupefato. Seus bilhetes para essa viagem nem tinham sido comprados ainda, e os detalhes ainda estavam sendo debatidos. Chris deu a Ammar um endereço eletrônico — uma conta do Hotmail — e disse que esperaria seu contato. Ammar retornou ao Iêmen. “Conversei com minha mãe e meu irmão [não Anwar], e eles disseram: ‘Não dê ouvidos. Não responda a eles, nem entre em contato. Só não ouça’.” Ammar ignorou os e-mails que recebeu de Chris.
48. A fortaleza de Abbottabad
WASHINGTON, DC, 2010-1; PAQUISTÃO, 2011 — Enquanto a caçada de Anwar Awlaki pelos americanos se intensificava, o homem mais procurado do mundo se escondia ficando à vista de todos. Durante anos, acreditou-se que Osama bin Laden estivesse morando numa caverna ou escondido nas áreas tribais ao longo da fronteira entre a África e o Paquistão. Havia autoridades americanas que pensavam que os Estados Unidos jamais o capturariam, enquanto alguns analistas de terrorismo supunham que Bin Laden já estivesse morto. No entanto, ele estava bem vivo e morando num bairro de classe média, Bilal Town, em Abbottabad, no Paquistão, numa ampla propriedade murada, a cerca de um quilômetro e meio da principal academia militar do Exército paquistanês. Não se sabe com certeza quando Bin Laden se mudou para Abbottabad, mas a propriedade acabou de ser construída1 em 2005. E a casa fora, claramente, feita para esconder a vida de seus moradores. O líder da Al-Qaeda morava no terceiro andar da casa principal da propriedade, com três de suas mulheres e vários filhos. A residência fora habilmente projetada para que ninguém pudesse ver seu interior. Quase não tinha janelas, com exceção de aberturas estreitas2 numa parede. Por ironia, foram exatamente essas características da casa que, em 2 de maio de 2011, impediram que Bin Laden visse os bem armados SEALs da Marinha dos Estados Unidos que sobrevoavam o Paquistão numa missão destinada a pôr fim à sua vida.
* * *
Antes disso, a última oportunidade real dos Estados Unidos para matar ou capturar Osama bin Laden ocorrera uma década mais cedo, no inverno de 2001, em Tora Bora, no Afeganistão. Uma interrupção na coordenação entre o Pentágono e a CIA arruinara a operação, fazendo com que Bin Laden e seu braço direito, Zawahiri, desaparecessem — segundo alguns pensavam, para sempre. Durante os dez anos seguintes, um grupo de resolutos analistas da CIA seguiu uma pista atrás da outra, chegando sempre a becos sem saída. Sem quaisquer recursos de inteligência humana dentro da Al-Qaeda, sem sinais provenientes do próprio Bin Laden e com pouca esperança de ajuda por parte de autoridades nas regiões onde se acreditava que ele pudesse estar, a CIA tinha as mãos atadas. Em 2005, a unidade Bin Laden foi dissolvida,3 embora alguns
analistas continuassem a perseguir o líder da Al-Qaeda. Em sua campanha eleitoral, Barack Obama se comprometera a fazer do Afeganistão e da luta contra a Al-Qaeda a pedra angular de sua política contra o terrorismo, e censurava o governo Bush por ter cometido erros na caça a Bin Laden. Eleito presidente, Obama determinou a Leon Panetta, diretor da CIA, que desse prioridade à busca, declarando, em maio de 2009, que a morte ou captura de Bin Laden seria a “meta número um”4 de Panetta. As ordens de Obama tinham injetado vida nova — e mais recursos — na busca que, durante quatro anos, fora realizada, basicamente, por um pequeno número de analistas da CIA. Enquanto a Agência revigorava seus esforços para localizar Bin Laden, nem todos na IC acreditavam que o esforço levaria a resultados positivos. Em abril de 2010, o general de divisão Michael Flynn declarou a Michael Hastings, repórter da revista Rolling Stone: “Não creio que consigamos pegar Bin Laden”, acrescentando: “Acho que um dia vamos receber um aviso5 dos paquistaneses: ‘Bin Laden está morto, capturamos Al-Zawahiri’”. Na época, Flynn era o mais graduado oficial de Inteligência no Afeganistão e Paquistão e estava subordinado diretamente ao general McChrystal. Como observou Hastings, Flynn “tinha acesso aos mais detalhados e sigilosos relatórios da Inteligência”. Entretanto, em agosto de 2010, a CIA conseguiu seu maior avanço no caso desde Tora Bora, quando um de seus agentes no Paquistão detectou Abu Ahmed al-Kuwaiti em Peshawar. Fazia muito tempo que Kuwaiti estava no radar da CIA, e vários membros da Al-Qaeda, capturados e interrogados por forças americanas logo após o Onze de Setembro, haviam-no apontado6 como um importante assistente de Bin Laden e seu principal mensageiro. O agente da CIA no Paquistão seguira o jipe Suzuki branco de Kuwaiti,7 durante duas horas, de Peshawar até Abbottabad. Examinando em minúcia a propriedade, que segundo eles lembrava uma “fortaleza”,8 os analistas da CIA descobriram que ela não tinha telefone nem conexão com a internet, e que os residentes queimavam o próprio lixo,9 cultivavam suas próprias verduras10 e criavam seus próprios frangos e vacas. A cada semana, matavam dois cabritos. Os analistas sabiam que tinham em sua mira um dos mais importantes auxiliares de Bin Laden, mas sabiam também que um peixe mais graúdo poderia estar morando na propriedade — talvez o maior de todos. Decidiram não tentar capturar Kuwaiti, esperando que ele os levasse ao próprio Bin Laden. No fim do outono, Panetta pediu aos analistas que compilassem uma lista de 25 maneiras11 de extrair informações do interior da propriedade. Já tinham pensado em instalar dispositivos de escuta no sistema de esgoto, ou uma câmera numa árvore próxima. De acordo com o escritor Peter Bergen:
Uma das ideias aventadas foi atirar na propriedade bombas de fedor12 para fazer com que os ocupantes da propriedade saíssem de casa. Outra foi jogar com o presumido fanatismo religioso dos habitantes da propriedade e transmitir, do lado de fora, uma suposta “Voz de
Alá” dizendo: “Ordeno-vos que saiam para a rua!”.
Por fim, a CIA mobilizou um médico paquistanês para administrar um falso programa de vacinação contra hepatite b no bairro.13 A Agência queria que o médico e sua “equipe” tivessem acesso à propriedade e obtivessem amostras de DNA dos ocupantes, que seriam comparadas com as amostras que a Agência já possuía da irmã falecida de Bin Laden. O médico envolvido no plano, Shakil Afridi, vinha das regiões tribais do Paquistão. A CIA pagou a Afridi para dirigir o falso programa, que teria início nas áreas mais pobres de Abbottabad, a fim de ganhar foros de legitimidade. Por fim, o plano fracassou e nem Afridi nem sua equipe conseguiram obter as amostras de DNA.14 Afridi acabou sendo detido e preso pelas autoridades paquistanesas por trabalhar para a CIA. No fim do verão e começo do outono de 2010, os analistas da CIA começaram a fazer circular memorandos referentes ao significado do mensageiro e sua relação com Bin Laden, entre eles um que se intitulava “Fechando o cerco sobre o correio de Osama bin Laden” e outro intitulado “Anatomia de uma pista”.15 A CIA montou um “aparelho” em Abbottabad e aprofundou sua análise do “sistema de vida”16 dos residentes da propriedade. Além da família de Kuwaiti e da de seu irmão, logo descobriram que uma terceira família morava no terceiro andar da maior casa da propriedade. Mediante análises de sombras obtidas por fotos aéreas, os analistas da CIA detectaram uma pessoa, que acreditavam ser um homem, que fazia passeios diários no pátio interno da propriedade, numa pequena horta — mas apenas debaixo de uma lona, o que impedia que drones ou satélites obtivessem algo além de uma silhueta de sua imagem. Não tinham como determinar a estatura do homem. Internamente, os analistas da CIA o chamavam de “o Caminhante”.17 Em janeiro de 2011, no consenso geral da CIA, provavelmente o Caminhante era o próprio Bin Laden. O presidente Obama pediu a sua equipe de contraterrorismo que preparasse um leque de opções de ação. O subsecretário de Defesa, Michael Vickers, Panetta e seu assistente, Mike Morell, reuniram-se com o almirante McRaven na sede da CIA e leram para ele um relatório da Inteligência recebido de Abbottabad: “Em primeiro lugar, parabéns18 pela obtenção de uma pista tão boa”, disse-lhes McRaven.
Em segundo, essa é uma incursão relativamente rotineira para o JSOC. Fazemos isso dez, doze, catorze vezes por noite. O que complica a situação aqui é que esse lugar fica a 240 quilômetros da fronteira do Paquistão, e o fator complicador é a logística para chegar até lá e, depois, o aspecto político, de explicar a incursão. Quero pensar um pouco a respeito, mas meu instinto diz que devo pôr um membro muito experiente de uma unidade especial para trabalhar diretamente com vocês, um homem que vá à CIA todos os dias e, basicamente, comece a planejar e dar corpo a algumas opções.
O Wall Street Journal publicou uma reportagem em que dizia que
McRaven destacou19 um experiente oficial de operações especiais — um capitão da Marinha, membro da Equipe 6 dos SEALs, uma das unidades de Forças Especiais — para trabalhar na chamada AC1, ou Complexo Abbottabad 1. O capitão trabalhou todos os dias com a equipe da CIA, numa instalação segura e remota na área da Agência em Langley, Virgínia.
No papel, qualquer incursão contra a propriedade seria realizada usando a CIA como fachada, de modo que, se ela desse errado, os Estados Unidos pudessem negar a operação. Na realidade, porém, os homens de McRaven comandariam o espetáculo. Dentro da CIA, a operação AC1 logo se tornou conhecida como “Atlantic City”.20 A CIA e a equipe de segurança nacional pensaram em várias outras opções21 além da incursão de uma equipe de SEALs. Imaginaram um ataque com um avião B-2 contra a propriedade, semelhante à operação que matou Zarqawi no Iraque. No entanto, esse cenário apresentava diversos riscos de monta: seria quase impossível obter DNA para confirmar a morte de Bin Laden, e o bombardeio com certeza mataria não só todas as mulheres e crianças na propriedade, como também, possivelmente, outros residentes do bairro. Um ataque com drone sempre era uma opção no Paquistão, porém as condições na propriedade tornavam imprevisíveis as possibilidades de um impacto direto. Além de tudo, havia o fato de que Raymond Davis, prestador de serviços para a CIA, ainda estava detido numa prisão do Paquistão, enfrentando acusações de homicídio e apelos para que fosse executado. Qualquer ação unilateral dos Estados Unidos, enfureceria, sem dúvida, o governo paquistanês. Alguns analistas temeram que Davis fosse morto em retaliação.22 Por fim, a equipe de contraterrorismo de Obama concluiu que uma incursão do JSOC, realizada por SEALs experientes da Marinha, sob o comando de MacRaven, seria a melhor solução para resolver o problema. O JSOC já fizera incursões no Paquistão antes, mas nunca adentrara tanto no território, nem usando uma força grande como seria essa. Eram altos os riscos de que o governo paquistanês localizasse os helicópteros, que teriam de penetrar 240 quilômetros no país, e os derrubasse. McRaven começou a juntar uma equipe de SEALs, preparando-os para uma operação delicada, mas sem lhes dizer o objetivo da missão. Assim que Raymond Davis foi libertado, em 16 de março, os preparativos para a operação se aceleraram. Os homens de McRaven se preparariam para a missão num lugar secreto na Carolina do Norte e em outro no deserto de Nevada.23
Um dos SEALs que faziam parte dos exercícios era Matt Bissonnette, veterano do DEVGRU, que
passara os últimos dez anos participando de uma série praticamente ininterrupta de operações de combate que o levavam para trás de linhas inimigas, na guerra americana contra o terror, depois do Onze de Setembro. Bissonnette tinha estado em missões no Afeganistão, no Iraque, no Chifre da África e, como quis o destino, no Paquistão. Na verdade, tinha participado de uma tentativa anterior para capturar Bin Laden, em 2007, que ele classificou como “uma furada”.24 Fora subindo nas fileiras das Operações Especiais, até tornar-se líder de equipe no DEVGRU. Bissonnette e outros quadros operacionais do JSOC foram chamados a um Centro Sigiloso de Informação Compartimentada, onde os telefones são proibidos e as paredes são revestidas de chumbo para impedir o uso de dispositivos de escuta eletrônica. Segundo Bissonnette, “quase trinta pessoas na sala,25 entre membros do SEALs, um técnico do Descarte de Material Explosivo (Explosive Ordenance Disposal, EOD) e mais dois caras de apoio”. Os homens receberam poucas informações além de que seriam enviados à Carolina do Norte para um “exercício de prontidão conjunta”. Não lhes deram pista alguma do que os esperava. “Havia muita experiência naquela sala. Os que estavam ali vinham de equipes diversas”, recordou Bissonnette. “Em geral, cada equipe sempre tinha um cara mais novo que levava a escada e a marreta. Mas olhando em volta só víamos veteranos.” E acrescentou: “Eles estavam formando uma espécie de dream team, ou time dos sonhos”.26 Segundo Bissonnette, “a especulação correu à solta”.27 Alguns homens previram que seriam mandados à Líbia. Outros apostaram na Síria ou no Irã. Quando os SEALs chegaram à base de treinamento na Carolina do Norte, receberam instruções. O alvo da missão misteriosa era, na verdade, Osama bin Laden. “Ah, essa não”,28 comentou Bissonnette. Vinte e oito elementos altamente experientes do DEVGRU tinham sido escolhidos para a operação,29 incluindo um especialista em explosivos. Também faziam parte da equipe um cão de combate, chamado Cairo, e um intérprete. Quatro substitutos tinham sido incluídos na missão, para o caso de um dos SEALs se contundir no treinamento. No Afeganistão, se juntaria ao destacamento de estrelas um SEAL que Bissonnette chamou de “Will”, que aprendera a falar árabe sozinho e seria capaz de fazer interrogatórios sobre a missão. Com a ajuda de analistas da CIA, os homens decoraram a maquete complicada da propriedade, exibida do lado de fora da sala de instruções. A maquete, de isopor, estava sobre uma base quadrada de compensado, com 1,5 metro de lado. Ficava numa caixa de madeira quando não era usada. O modelo mostrava “a casa de Bin Laden com incrível riqueza de detalhes,30 incluindo as arvorezinhas do pátio e carros na entrada da garagem e na rua que passava pelo lado norte do conjunto”, escreveu Bissonnette mais tarde. “Mostrava também onde ficavam os portões e portas de acesso, as caixas-d’água no teto, e até o arame farpado que corria pelo topo do muro. Um gramado cobria o pátio principal. Até as casas vizinhas e os campos eram representados quase nos mínimos detalhes.” O s SEALs foram apresentados ao Caminhante. Numa exposição feita pela CIA intitulada “Caminho para Abbottabad”,31 foram postos a par do trabalho de Inteligência, durante anos,
para rastrear o líder da Al-Qaeda. Dias depois de chegarem à Carolina do Norte, os homens tiveram seu primeiro vislumbre do Caminhante, por meio de um vídeo em preto e branco. Viram-no caminhar em círculos sob um “toldo improvisado” no pátio da propriedade. Em certa ocasião, um helicóptero militar paquistanês passou sobre a propriedade enquanto o Caminhante estava do lado de fora. “Não vimos o Caminhante correr para um carro e fugir. No mesmo instante, todos pensamos a mesma coisa”, lembrou Bissonnette. “Aquilo significava que ele estava habituado ao barulho de helicópteros.”32 A avaliação da CIA informou aos homens que se acreditava que Bin Laden estivesse morando no terceiro andar da propriedade, e seu filho Khalid, no segundo. Com exceção de conjecturas bem informadas, segundo as quais os residentes da propriedade ocupariam este ou aquele andar, os homens do DEVGRU não faziam ideia de como era o interior das casas. Só saberiam quando entrassem nelas. A equipe usaria várias palavras “profissionais” para informar sobre o avanço da missão pelo rádio, pois palavras curtas e isoladas reduziriam o tráfego de rádio e a confusão. De acordo com Bissonnette, “para essa missão33 escolhemos palavras que tinham como tema ‘indígenas americanos’”. Bin Laden seria chamado de “Geronimo”. À medida que os SEALs se preparavam para a missão, McRaven fazia exposições a Obama e sua equipe de segurança nacional. “Em termos de dificuldade,34 comparada com o que fazemos todas as noites no Afeganistão e com o que fazemos no Iraque, essa missão não é uma das mais difíceis do ponto de vista técnico. A parte difícil foi a questão da soberania com o Paquistão e voar durante longo tempo dentro do espaço aéreo paquistanês”, disse McRaven. Tony Blinken, consultor de segurança nacional do vice-presidente Biden, assim descreveu o impacto da análise de McRaven: “Antes de mais nada, o fato de ele pertencer ao elenco central ajuda”,35 disse Blinken a Bergen.
Ele parece talhado para o papel, de modo que inspira confiança, mas a gente fica também com uma impressão fortíssima de que ele não é um sujeito que vai se gabar ou jactar-se. É um sujeito que expõe a avaliação com muita honestidade, e por isso quando falou foi recebido com muita credibilidade, o que também criou uma enorme confiança. E basicamente o que McRaven nos disse foi que, depois de terem planejado, analisado e treinado a missão, ele decidiu: “Podemos fazer isso”.
Enquanto os SEALs faziam manobras preparatórias para a operação na Carolina do Norte e no deserto de Nevada, vários figurões do governo, das Forças Armadas e da CIA presenciavam alguns exercícios. Segundo Bissonnette, durante uma sessão, alguém perguntou se a incursão era para matar. “Um advogado36 do DoD ou da Casa Branca salientou que não era para ser assassinato”, contou. “Se estiver nu, com as mãos para cima, você não vai lutar com ele”, disse o advogado. “Não sou eu quem vai lhes dizer como devem fazer seu trabalho.”
A equipe de SEALs foi mandada para Jalalabad, no Afeganistão, antes da missão. Bissonnette estendeu uma rede no avião, preparando-se para a longa viagem. Alguns homens engoliram um comprimido de sonífero para o longo voo transatlântico. Analistas da NSA e da CIA juntaram-se aos SEALs. Logo depois que o avião decolou, Bissonnette ocupou um assento vago ao lado de uma analista da CIA e lhe perguntou: “Quais são as probabilidades?”.37 De que o homem na propriedade fosse Bin Laden, é claro. “Cem por cento”, ela respondeu. Bissonnette recostou-se, lembrando-lhe que já tinha escutado essas afirmações da boca de analistas de Inteligência e que tinham se revelado infundadas. A analista da CIA mostrou-se ainda mais convicta de sua avaliação, dizendo a Bissonnette que não apoiara a ideia da incursão e teria preferido um ataque aéreo. “Às vezes o chefe do JSOC é o grande gorila da sala”, disse ela. “Eu gostaria de poder simplesmente apertar um botão e lançar-lhe uma bomba.” Bissonnette respondeu: “Vocês fizeram a parte mais árdua do trabalho para nos trazer até aqui”, acrescentando: “Mas estamos muito felizes por ter nossos trinta minutos de diversão”. Na manhã de sexta-feira, 29 de abril, às 8h20 da manhã,38 Obama encontrou-se com Thomas Donilon, consultor de Segurança Nacional, seu assistente Dennis McDonough, John Brennan e o chefe do Estado-Maior William Daley na Sala de Recepção Diplomática da Casa Branca. Obama anunciou aos presentes, dispostos num semicírculo: “Tomei a decisão. Vamos lá.39 E a única coisa capaz de nos fazer não ir é se Bill McRaven e sua gente julgarem que as condições do tempo ou do solo aumentam o risco para as nossas forças”. A missão teria o nome de operação Lança de Netuno, homenagem ao tridente do deus romano do mar, símbolo comum nos equipamentos dos SEALs que aparece no quepe da unidade. Em sua segunda noite em Jalalabad, Bissonnette e outros SEALs sentaram-se em torno de uma fogueira, discutindo em que parte do corpo de Bin Laden atirariam. “Tentem não acertar o filho da puta no rosto”,40 disse um SEAL que ele chamava de “Walt”. “Todo mundo vai querer ver a foto.” Os homens especularam a respeito de como aquela incursão favoreceria a carreira de seus oficiais comandantes. Bissonnette previu que McRaven seria promovido a comandante do Socom.41 “E vamos reeleger Obama, com certeza”,42 acrescentou Walt. “Já posso vê-lo falando como matou Bin Laden.” A incursão, planejada para a noite de sábado, 30 de abril, coincidia com o Jantar dos Correspondentes da Casa Branca, o que significava que o presidente e praticamente todos os membros graduados de sua equipe de segurança nacional estariam socializando com a elite da imprensa e com celebridades de Hollywood enquanto se desenrolava a incursão. Alguns assessores do presidente queriam adiar a operação para depois do jantar, por temerem que se algo desse errado, obrigando o presidente e outras autoridades a deixarem o evento, o sigilo da incursão fosse por água abaixo. A incursão fora planejada, especificamente, para ocorrer numa noite sem lua,43 de modo que os helicópteros se aproximassem da forma mais sorrateira possível. Por acaso, uma excessiva nebulosidade acabou obrigando McRaven a adiar a incursão44 para a noite seguinte.
Obama telefonou a McRaven para uma verificação final. Já era tarde da noite em Jalalabad quando McRaven levantou o fone. Disse ao presidente que seus homens estavam prontos para partir. “Eu não poderia ter mais confiança45 do que a que tenho em você e em suas forças”, disse o presidente. “Desejo boa sorte a você e a suas forças. Por favor, transmita a eles meu agradecimento pessoal pelo trabalho e também a mensagem de que vou acompanhar pessoalmente, bem de perto, essa missão.” O presidente e a primeira-dama chegaram ao Washington Hilton às dezenove horas da noite de sábado para o Jantar dos Correspondentes.46 Lá estavam também Panetta, Gates, Vickers e vários outros membros da equipe que planejara o ataque contra Bin Laden. No semblante de Obama nada transparecia da tensão quanto aos preparativos que estavam sendo feitos do outro lado do globo. O presidente estava calmo e jovial, fazendo piadas, entre elas uma endereçada ao bilionário Donald Trump, que estava na plateia. Trump estivera em evidência na imprensa, promovendo sua fútil teoria de que o presidente não era cidadão americano. O anfitrião do jantar, Seth Meyers, estrela do programa de TV Saturday Night Live, chegou a fazer uma piada sobre Bin Laden, obviamente sem imaginar que várias pessoas na festa estavam profundamente envolvidas no plano de matá-lo daí a horas. “As pessoas acham que Bin Laden está escondido no Hindu Kush”, disse Meyers. “Mas você sabia que todos os dias, das quatro às cinco da tarde, ele é âncora de um programa na C-SPAN?”* A câmera mostrou o presidente gargalhando.
No Afeganistão, as instruções finais antes do início da operação Lança de Netuno foram dadas numa sala “onde só sobravam lugares em pé”,47 como escreveu Bissonnette, com SEALs do outro esquadrão da base lotando a sala. O presidente tinha autorizado os SEALs a resistir a quaisquer unidades paquistanesas que os confrontassem na missão. O oficial que dava as instruções às equipes explicou-lhes o que deveriam dizer no caso de serem presos pelos paquistaneses: estavam tentando recuperar um drone que tinha caído. A ideia provocou risos. “A história era ridícula.48 Éramos aliados do Paquistão no papel, e, se perdêssemos um avião não tripulado, o Departamento de Estado negociaria diretamente com o governo paquistanês para tê-lo de volta”, afirmou Bissonnette, incrédulo. “A história não convenceria ninguém e seria muito difícil sustentá-la durante horas de interrogatório”, escreveu.
A verdade é que, se chegássemos a esse ponto, nenhuma história que inventássemos justificaria a presença de 22 SEALs com 27 quilos de equipamento high-tech nas costas, um especialista em descarte de material bélico explosivo e um intérprete — num total de 24 homens —, mais um cão, incursionando num bairro de subúrbio a poucos quilômetros de uma academia militar paquistanesa.
O comandante do DEVGRU encerrou a sessão de instruções. McRaven, disse ele, tinha lhes dado sinal verde.49 Daí a 24 horas, os SEALs estariam voando para Abbottabad. Os membros da equipe de segurança nacional de Obama começaram a chegar à Casa Branca por volta das oito horas da manhã50 do domingo, 1o de maio. Pratos de sanduíches foram comprados na Costco.51 Fizeram-se pedidos a várias pizzarias52 para evitar uma encomenda grande, que chamaria muita atenção. Por volta das treze horas,53 a equipe de segurança nacional de Obama começou a se reunir na Sala de Situação. Obama estava terminando uma partida de golfe54 na Base Aérea Andrews — para não passar a impressão de que algo de anormal estava para acontecer. Na CIA, Panetta e seu assistente, Mike Morell, reuniram-se com o comandante do Socom, numa sala protegida. No papel, Panetta era o encarregado da operação. Na realidade, era o almirante McRaven que dirigia a Lança de Netuno. Obama voltou para a Casa Branca aproximadamente às catorze horas, ainda usando os sapatos de golfe e um agasalho, e desceu a escada para a Sala de Situação, onde foram exibidas as observações finais de Panetta sobre a operação. No entanto, Obama e sua equipe não quiseram acompanhar a mais delicada missão da história dos Estados Unidos da Sala de Situação, construída para tais operações. Em vez disso, as mais altas autoridades americanas se espremeram numa salinha muito menor, ao lado. Essa salinha tinha o mesmo sistema protegido de comunicações por vídeo e telefonia, mas nela só cabiam sete pessoas.55 Dois televisores de tela plana, de dimensões modestas, achavamse instalados lado a lado numa parede. No dia da incursão contra Bin Laden, a sala de reuniões tinha sido ocupada pelo general de brigada Marshall “Brad” Webb, comandante assistente do JSOC. Ele e outro oficial do JSOC estavam monitorando a operação em tempo real com um laptop. O sinal vinha de um drone furtivo RQ-17056 que sobrevoava Abbottabad. Além disso, eles tinham comunicações seguras com McRaven em Islamabad, com Panetta na sede da CIA e com o general Cartwright no Centro de Operações do Pentágono. Quando os homens propuseram transferir o centro de comando para a Sala de Situação, disseram-lhes que deveriam manter tudo como estava.57 Ao lado, na Sala de Situação, o círculo de consultores próximos de Obama58 debatia se o presidente deveria acompanhar a missão ao vivo. Enquanto a discussão prosseguia, várias autoridades de primeiro escalão, entre elas a secretária de Estado Hillary Clinton e o vicepresidente Biden, começaram a passar para a salinha do general Webb. Pouco depois, o presidente entrou na sala. “Preciso ver isso”,59 disse. O comandante supremo sentou-se numa cadeira dobrável à direita de Webb. Obama mais tarde comentou a disposição dos assentos, dizendo: “[Webb] começou a se levantar e as pessoas estavam começando a cumprir o protocolo e imaginando como redispor as coisas. Eu disse: ‘Não se preocupem com isso. Concentrem-se só no que estão fazendo’. E foi assim que acabei [numa] cadeira dobrável”.60
Eram 23 horas em Abbottabad,61 e na propriedade de Bin Laden as famílias já tinham se deitado. Muitos quilômetros a oeste, do outro lado da fronteira entre o Paquistão e o Afeganistão, em Jalalabad, 23 membros da Equipe 6 dos SEALs estavam numa base aérea preparando-se para dar início à sua missão. Meia hora depois, os helicópteros Black Hawk62 decolaram. Às 2h30, a Casa Branca recebeu a primeira informação de que os helicópteros tinham decolado. “O clima era de roer as unhas até o sabugo63 e de prender a respiração”, comentou Brennan. O s SEALs estavam empregando na missão dois helicópteros Black Hawk MH-60, especializados, pilotados por homens do JSOC, apelidados “Patrulheiros da Noite”. Os Black Hawks eram uma versão stealth, ou seja, de baixa assinatura radar, que os Estados Unidos vinham desenvolvendo havia anos.64 Esse aparelho, de características singulares, nunca tinha sido objeto de descrição pública. Fora alterado com tecnologia avançada que lhe permitia voar em silêncio e evitar detecção por radar. Para mascarar ainda mais sua presença, os pilotos voariam em alta velocidade e o mais perto do solo possível.65 O general Hugh Shelton, excomandante do Socom, cujo filho é piloto do JSOC, declarou que os Patrulheiros da Noite são os melhores pilotos das Forças Armadas americanas. “Eles conseguem, literalmente… São capazes de pilotar um helicóptero de cabeça para baixo, se quiserem, e podem pousar num trem em movimento… de noite”, ele me disse. “Sempre que haja uma missão que não pode falhar,66 você vai querer que esses homens sejam os pilotos.” Três Chinooks MH-4767 decolaram do mesmo aeródromo em Jalalabad assim que os Black Hawks entraram no Paquistão. Um deles pousou no lado afegão da fronteira. Os outros dois voaram até um rio remoto em Kala Dhaka,68 localizado na região de Swat, mais ou menos a oitenta quilômetros ao norte da propriedade de Bin Laden. Ali a Força de Reação Rápida esperaria. Se a incursão dos SEALs enfrentasse problemas sérios, a QRF chegaria a Abbottabad em cerca de vinte minutos.69 Nesse ínterim, os Black Hawks voaram em direção à propriedade e chegaram aos arrabaldes de Abbottabad. No Afeganistão, o almirante McRaven dirigia a operação de um ponto seguro em Jalalabad. Em Kabul, o general David Petraeus e um de seus auxiliares monitoravam os acontecimentos70 numa sala de controle secreta. Se os paquistaneses fizessem decolar seus caças a jato, Petraeus estava pronto para mobilizar a reação da força aérea americana.
* Acrônimo de Cable-Satellite Public Affairs Network (rede por cabo e satélite para assuntos públicos), rede de três cadeias a cabo americanas dedicada à cobertura contínua e ao vivo de atividades do governo (presidência e Congresso dos Estados Unidos). (N. T.)
49. “Pegamos o cara. Pegamos o cara”
PAQUISTÃO, 2011 — O presidente Obama e sua equipe espremiam-se em torno de uma mesa na salinha ao lado da Sala de Situação, vendo imagens granuladas dos Black Hawks se aproximando do noroeste de Abbottabad. Os poucos assentos já estavam ocupados, mas todos os presentes mantinham-se em silêncio, só quebrado por uma ou outra pergunta1 ao assistente de McRaven, o general Webb. A bordo dos helicópteros, alguns SEALs tinham tentado um cochilo a caminho daquela missão, sem dúvida a mais importante da carreira de todos eles. Matt Bissonnette disse que só acordou direito quando o helicóptero estava a dez minutos da cidade.2 Ajeitou seus óculos de visão noturna e preparou o equipamento de rapel. Com as pernas do lado de fora do helicóptero, observava a paisagem que corria sob seus pés. “Sobrevoávamos várias casas3 com piscinas iluminadas e jardins bem cuidados atrás de altos muros de pedra. Eu estava acostumado com aldeias pobres de cabanas de adobe”, lembrou-se. “De cima [de Abbottabad], tive a impressão de estar sobrevoando um subúrbio nos Estados Unidos.” Passando sobre o muro sudeste da propriedade, o Black Hawk entrou em voo estacionário perto da área onde os SEALs tinham planejado descer. Com os óculos de visão noturna, Bissonnette divisava detalhes do solo.
Olhando o conjunto, dez metros abaixo,4 vi roupa lavada sacudindo no varal. Os tapetes estendidos para secar estavam se sujando com a poeira dos rotores. Havia lixo em redemoinho pelo quintal, e, num curral próximo, cabras e vacas se atropelavam, assustadas com o barulho do helicóptero.
Foi nesse ponto que as coisas passaram a divergir do plano original. O Black Hawk começou a perder altura rapidamente. Isso aconteceu, em parte, devido à alta temperatura, mas foi também decorrência do peso extra5 do sistema aplicado ao aparelho para impedir sua detecção pelo radar. Numa altitude elevada, o piloto pode tentar voar na vertical para evitar a queda, mas em baixa altitude essa opção pode ser mortal. O piloto do Black Hawk em perigo tentou controlá-lo girando noventa graus para a direita. Bissonnette sentiu o corpo flutuar sobre o piso do aparelho e procurou um lugar onde se firmar. Espremido contra os outros SEALs, não conseguiu puxar o corpo para dentro. “Puta merda,
estamos entrando”,6 pensou, vendo o muro da propriedade aproximar-se cada vez mais. Bissonnette juntou as coxas contra o peito, na esperança de evitar que fossem esmagadas se o helicóptero caísse de lado. “O helicóptero estremeceu7 quando a dianteira cravou no chão, mole como um dardo. Num instante o chão tinha vindo em alta velocidade ao meu encontro. No instante seguinte eu estava totalmente imóvel. Foi tudo tão rápido que nem senti o impacto.” O piloto do Chalk Um conseguira ir até o fim de seu plano de emergência — fazer o helicóptero pousar no pátio maior da propriedade. A cauda do aparelho comprimiu-se de encontro ao muro da propriedade, de 3,5 metros de altura, num ângulo que impedia que os rotores do aparelho batessem no chão e se despedaçassem, transformando-se em metralha perigosa. “Se qualquer outra parte8 atingisse o muro, ou se tivéssemos virado e o rotor tocasse o chão primeiro, nenhum de nós teria saído andando, ileso”, escreveu Bissonnette. Os pilotos, ele disse, “conseguiram fazer o impossível”. O “pouso forçado” salvou a vida dos SEALs, mas a possibilidade de negar o que a missão era na verdade tinha ido por água abaixo. O mesmo se poderia dizer de qualquer esperança de surpreender os ocupantes da propriedade. O plano original tinha de ser abandonado. Em vez de descer por cordas dentro da propriedade, os SEALs teriam agora de executar o ataque partindo do lado de fora dos muros. A perda do elemento surpresa talvez permitisse que seus alvos se armassem e se preparassem para resistir aos comandos americanos. “Senti um aperto no coração”,9 escreveu Bissonnette.
Até a ordem de circular, tudo estava funcionando como planejado. Tínhamos conseguido burlar os radares e evitar os mísseis do Paquistão durante o trajeto, e havíamos chegado sem que nos detectassem. Agora, a invasão estava indo à merda. Tínhamos ensaiado essa possibilidade, mas como plano B. Se o alvo estivesse realmente lá dentro, o fator surpresa seria fundamental, mas agora estava desaparecendo.
Fez-se silêncio na Casa Branca, enquanto Obama e seus consultores aguardavam notícias do helicóptero acidentado. “Podíamos acompanhar a situação em tempo real”, disse depois o presidente. “Por isso, ali no nível máximo, todo mundo, creio, prendia a respiração. Aquilo não estava no roteiro.”10 “Foram realmente momentos carregados de emoção”,11 afirmou a secretária de Estado Hillary Clinton. Mais tarde ela diria ao escritor Peter Berger: “Aquilo lembrava um episódio da série 24 ou qualquer filme que se possa imaginar”. Biden, que se opusera à opção da incursão de comandos, manuseava, nervoso, seu rosário, assistindo ao desenrolar do acidente. “O que se podia ver ali era que não aconteceu a primeira coisa que, como nos disseram, teria de acontecer para que a missão tivesse sucesso”, comentou Biden. “O helicóptero não pousou no lugar certo, e foi como se todo mundo quisesse dizer: ‘Parem!’.”12
Se a equipe de segurança nacional de Obama estava abalada com o acidente, o mesmo não acontecia com McRaven. Ou pelo menos ele não deu essa impressão. “Já vamos corrigir a missão”,13 disse ele, calmamente, a Panetta. “Diretor, como pode ver, temos um helicóptero caído no pátio. Meus homens estão preparados para emergências assim e vão resolvê-la.” A serenidade e a confiança de McRaven impressionaram as autoridades na sala. “O almirante McRaven teve uma conduta notável, imperturbável e profissional”, disse depois Ben Rhodes, consultor assistente de segurança nacional. “Sua fisionomia não se abalou.”14 Mais tarde, Obama referiu-se a McRaven como “uma pedra de gelo”.15 De acordo com Obama: “Tivemos a sensação de que,16 apesar de o helicóptero ter pousado com violência, seus passageiros não tinham se ferido e iriam ainda cumprir a missão”.
Todos os SEALs do helicóptero acidentado haviam sobrevivido sem ferimentos graves. E como o segundo helicóptero, que deveria ter depositado seus SEALs no terraço do prédio, pousou do lado de fora da propriedade, foi acionado o plano b. Bissonnette e Will, o tradutor, seguiram em direção à casa de hóspedes, onde disseram ter sido recebidos a tiros de fuzil AK-47, e responderam o fogo. Em pouco tempo, saiu da casa de hóspedes uma mulher com uma criança pequena nos braços. Era Mariam al-Kuwaiti, mulher do mensageiro. “Ele está morto”,17 disse ela. “Vocês atiraram nele. Ele morreu. Vocês o mataram.” Will a revistou, em busca de armas, e transmitiu o recado a Bissonnette. Abaixando-se, Bissonnette abriu a porta e olhou para dentro. “Vi os pés de alguém estirado no chão na entrada do quarto de dormir”,18 disse. Com Will às suas costas, ele entrou na casa e deu vários outros tiros em Kuwaiti. Embora Bissonnette tenha afirmado que tinham atirado nele, outros relatos, inclusive o de Bergen, levam a crer que Kuwaiti estava desarmado. “O AK-47 do mensageiro19 foi encontrado depois ao lado de sua cama. É improvável que tenha sido usado, devido à sua localização e ao fato de não terem sido achados cartuchos da arma”, escreveu Bergen. Enquanto isso, outro grupo de SEALs20 avançava para a casa principal, abatendo outros dois membros da família de Kuwaiti, diante de mulheres e crianças horrorizadas. Fazia cerca de dez minutos que os homens estavam em solo. Os SEALs do Chalk Dois tinham conseguido entrar na propriedade pelo portão principal. Quando os comandos pisaram dentro da casa de Bin Laden, perderam contato21 com a equipe de Obama na Casa Branca. Mais tarde, o presidente disse:
Houve longos períodos22 em que tudo o que fizemos foi esperar. E esses foram os mais longos quarenta minutos de minha vida, com a possível exceção de quando Sasha teve meningite, com três meses de idade, e fiquei esperando o médico me dizer que ela estava bem. Foi uma situação muito tensa.
Em Targeting Bin Laden, documentário para o History Channel, Obama disse ainda: “Ficamos totalmente no escuro,23 era difícil saber com exatidão o que estava acontecendo. Sabíamos que havia tiros e também algumas explosões”. Nesse ínterim, o portão que bloqueava a escada da casa foi pelos ares. Os SEALs começaram a subir os degraus, que “se dispunham em ângulos de noventa graus,24 formando uma espécie de escada em espiral, com lanços separados por pequenos patamares”. No segundo andar havia quatro portas. Os SEALs revistaram cada um dos cômodos e começaram a subir para o terceiro andar, onde acreditavam que o Caminhante e sua família residissem. Ao fazê-lo, viram uma cabeça que apareceu por um instante atrás da parede, no alto da escada. Analistas de informações haviam adiantado que Khalid,25 filho de Bin Laden, morava no segundo andar. Os informes diziam também que Khalid não usava barba. A descrição coincidia com o homem que olhara pelo canto da parede da escada. “Khalid”, murmurou um SEAL. “Khalid.” Quando o rapaz de 23 anos juntou coragem para olhar pelo canto da parede de novo, levou uma bala no rosto. “O que Khalid estaria pensando26 naquele momento?”, perguntou Bissonnette depois. “Olhar pelo canto… A curiosidade matou o gato. Acho que matou Khalid também.” Os comandos acabaram de subir as escadas, passando por cima de placas de cerâmica molhadas pelo sangue de Khalid. Enquanto avançavam pelo corredor do terceiro andar, viram a cabeça de um homem aparecer numa porta. Um dos homens disparou duas rajadas curtas contra a figura.27 O homem desapareceu no quarto. Ao entrar, os homens viram duas mulheres. Imaginando que pudessem estar usando coletes com explosivos, um deles as agarrou e levou-as para um canto do quarto, para que seus colegas pudessem continuar. Outro SEAL se viu, no escuro, face a face diante de um homem alto.
No mesmo segundo,28 atirei nele, duas vezes, na testa. Pá! Pá! No segundo tiro, ele caiu [...]. Desabou no chão, diante da cama, e atirei de novo, pá!, no mesmo lugar. Dessa vez usei minha mira holográfica eletro-óptica de ponto vermelho. Ele estava morto. Não se mexia. Tinha a língua para fora. Vi que ele fazia as últimas inspirações, num gesto reflexo.
Bissonnette e outro SEAL entraram no quarto. “Vimos imediatamente o homem deitado no chão ao pé da cama”,29 ele contou.
Sangue e massa cinzenta escorriam do crânio. À beira da morte, ele se contorcia, em convulsão. Eu e o outro invasor apontamos nossos lasers para seu peito e fizemos vários disparos. As balas rasgaram-lhe a carne, sacudindo o corpo contra o assoalho, até parar de
mexer.
O quarto estava ainda completamente às escuras, de modo que Bissonnette ligou a luz de seu capacete para examinar melhor o rosto do homem. Estava coberto de sangue. “Um buraco na testa30 tinha feito o lado direito de seu crânio cair”, lembrou-se. “O peito dele estava rasgado a partir do lugar onde as balas tinham entrado em seu corpo. Ele jazia numa poça de sangue que aumentava cada vez mais.” O SEAL que atingiu o homem disse: “O público americano31 não quer nem saber que cara tem isto”. Os SEALs não tinham certeza de que o homem abatido era Bin Laden. Seu rosto era agora uma massa informe. Começaram a tirar amostras de DNA de seu corpo, e um dos comandos borrifou o rosto ensanguentado do homem com o líquido de sua mochila de hidratação. Bissonnette pôsse a limpar o rosto do morto. “A cada movimento, o rosto ficava mais conhecido.32 Parecia mais jovem do que eu esperava. A barba era negra, como se tivesse sido tingida. Eu não parava de pensar em como não era nem um pouco parecido com a imagem que eu tinha”, escreveu ele. Um dos SEALs passou uma mensagem de rádio para a rede de comando: “Temos uma possível, repito, uma possível aterrissagem do alvo no terceiro andar”. Bissonnette começou a tirar fotos do corpo do homem. Depois ajoelhou-se para se concentrar no rosto. Virou sua cabeça inerte para ter fotos de perfil. A seguir, pediu a um companheiro que abrisse um dos olhos do homem para poder fotografá-lo em close-up. Na sacada, o SEAL que falava árabe interrogava as mulheres e as crianças. Veio pelo rádio uma ordem para preparar o Black Hawk acidentado para ser destruído. Nessa altura, mesmo porque a missão tinha durado mais que o previsto, a reserva de combustível para os helicópteros restantes, inclusive o CH-47 em voo estacionário ali perto, estava baixando. Bissonnette continuou a tirar fotos, enquanto seu companheiro coletava amostras do sangue e da saliva do homem. Os SEALs tinham dois conjuntos idênticos de fotos e de amostras de DNA que seriam levados de volta a Jalalabad separadamente, em cada um dos Black Hawks. “Planejamos assim para que uma amostra de DNA e um conjunto de fotos sobrevivessem,33 se um dos helicópteros fosse derrubado no voo de volta para Jalalabad”, explicou depois Bissonnette. O SEAL que falava árabe interrogou a mulher mais velha no quarto. Quando perguntou quem era o homem morto, ela disse “O xeque”, mas recusou-se a dar maiores explicações. Depois de ouvir vários nomes, o SEAL voltou-se para as crianças. Perguntou a uma das meninas, que lhe disse que o homem era Osama bin Laden. Ele perguntou se ela tinha certeza, e a menina confirmou. O SEAL virou-se de novo para a mulher mais velha. “Agora pare de me encher o saco”, gritou, e perguntou-lhe mais uma vez34 quem era o homem no quarto. Chorando, a mulher confirmou que era Osama bin Laden. O SEAL comunicou a dupla confirmação. Nesse momento, dois SEALs graduados, entre eles o comandante do esquadrão de Bissonnette, entraram no quarto. O comandante examinou o rosto de Bin Laden. “É, parece que é nosso cara”, disse. O SEAL graduado saiu do quarto e mandou um rádio para McRaven: “Por Deus e
pelo país, transmito Geronimo”, disse ele. “Geronimo E.K.I.A.” Era a sigla, em inglês para “Geronimo morto em ação”.35 Na apinhada sala de reuniões da Casa Branca, do outro lado do mundo, a equipe de segurança nacional de Obama exultou. “Pegamos o cara”, disse Obama calmamente. “Pegamos o cara.”36 O almirante McRaven procurou evitar comemoração antes da hora.
Ouçam, recebi um aviso de Geronimo,37 mas tenho de lhes dizer que se trata de uma primeira comunicação. Por favor, mantenham suas expectativas um pouco controladas. Em geral, os quadros operacionais, em missão, estão com a adrenalina lá em cima. Eles são profissionais, mas é bom não considerarmos isso favas contadas até eles voltarem e termos comprovações.
O chefe do JSOC acrescentou: “Estamos com SEALs no solo sem transporte”. Fazia pouco mais de meia hora que os SEALs estavam na propriedade quando Bin Laden foi morto. A possibilidade de um enfrentamento com forças paquistanesas crescia a cada segundo. No segundo andar da casa maior, os homens tentavam juntar o máximo possível de pertences de Bin Laden38 e de possíveis fontes de informações. Terminado o processo de fotografar e colher amostras de DNA, dois SEALs tiraram o corpo do quarto, arrastando-o pelas pernas. Bissonette começou a revistar a área, agarrando papéis e alguns cassetes. Achou também duas armas:39 um fuzil AK-47 e uma pistola Makarov. Nenhuma delas estava carregada. O tempo se esgotava. Fora da propriedade, o intérprete e alguns SEALs tinham conseguido deter alguns curiosos, mas Abbottabad estava acordando. Autoridades paquistanesas poderiam chegar a qualquer momento, e os helicópteros que circulavam sobre a propriedade estavam ficando sem combustível. Valera a pena ter trazido o intérprete, já que moradores do bairro tranquilo tinham ouvido o barulho de helicópteros e de explosões, e alguns tinham descoberto que a energia elétrica fora cortada. Gul Khan declarou ao jornal India Today: “Vi soldados saindo dos helicópteros40 e correndo em direção à casa. Alguns deles nos disseram, num pashto castiço, que desligássemos as luzes e ficássemos dentro de casa”. Entrevistado pela CNN depois da incursão, um homem não identificado disse, por intermédio de um tradutor: “Não vimos as roupas deles,41 mas estavam falando pashto e nos disseram que fôssemos para casa. Depois de algum tempo, [quando a] falta de eletricidade acabou e a luz voltou, eles nos mandaram apagar todas elas”. Um outro homem que prestou declarações à CNN, por meio de um tradutor, disse: “Tentamos ir lá, mas eles apontaram as armas com mira de laser para nós e disseram: ‘Não, vocês não podem ir lá’. Estavam falando pashto, e por isso pensamos que eram afegãos, e não americanos”. Os SEALs que estavam na casa se surpreenderam com a quantidade de materiais disponíveis, mas não podiam levar tudo. Tinham cinco minutos. “Sabíamos que era arriscado ficar sem
combustível,42 ou permanecer no alvo tempo demais, dando à polícia ou às Forças Armadas tempo para reagir”, lembrou Bissonnette depois. “Conseguimos o que fomos buscar: Bin Laden. Era hora de partir, enquanto ainda era tempo.” Bissonnette dirigiu-se à zona de pouso. Logo se juntaram a ele os SEALs que estavam no segundo andar da propriedade de Bin Laden, carregados de objetos que tinham reunido na casa. “Parecíamos um acampamento de ciganos,43 ou Papai Noel na noite de Natal”, ele escreveu. “Alguns levavam nos ombros sacolas de náilon tão cheias que lhes dificultava a corrida até o helicóptero. Vi um SEAL com uma CPU numa mão e uma sacola de couro para roupa de ginástica repleta de objetos na outra.” O cadáver de Bin Laden, agora num saco mortuário, foi posto no Black Hawk que sobrou,44 o qual, na opinião dos SEALs, teria melhores chances de sair incólume do Paquistão. O grande Chinook — o CH-47 — podia levar os SEALs. Antes de decolar, o comandante explodiu o Black Hawk acidentado, de modo que sua tecnologia de baixa assinatura radar não pudesse ser examinada pelos paquistaneses. Obama e sua equipe viram, pela TV, a fogueira de 60 milhões de dólares.45 As notícias sobre os estranhos acontecimentos em Abbottabad espalharam-se depressa. À uma hora, pouco antes que os SEALs decolassem46 para deixar a propriedade, o comandante do Exército paquistanês, general Ashfaq Parvez Kayani, estava em seu escritório e recebeu uma ligação do diretor de operações militares, o general de divisão Ishfaq Nadeem. Com base nos informes iniciais que tinha recebido, Kayani julgou que a Índia poderia estar realizando algum tipo de ataque no interior do Paquistão. Telefonou para o marechal Rao Qamar Suleman, comandante da Força Aérea, e ordenou que a força atacasse qualquer aeronave não identificada. Por volta da 1h08, os SEALs decolaram em Abbottabad. Obama determinou à sua equipe de segurança nacional: “Informem assim que nossos helicópteros saírem do espaço aéreo paquistanês”.47 O Black Hawk e o Chinook seguiram rotas mais diretas, porém separadas,48 para sair do Paquistão, com o Black Hawk parando num ponto de reabastecimento no país. Todos os militares americanos cruzaram a fronteira para o Afeganistão ilesos, levando o corpo de Bin Laden. No aeródromo em Jalalabad,49 uma caminhonete branca Toyota Hilux esperava para transportar o cadáver de Bin Laden até um hangar próximo. Quando o Black Hawk pousou, três Rangers do Exército agarraram o corpo do líder da Al-Qaeda. “Não, porra”, disse um dos SEALs aos Rangers. “Isto é nosso.” O corpo de Bin Laden foi levado de helicóptero para Bagram, onde se tiraram novas amostras de DNA, e depois para o mar da Arábia,50 onde se encontrava o porta-aviões USS Carl Vinson. “Foram respeitados os procedimentos tradicionais do sepultamento islâmico”,51 dizia um e-mail de 2 de maio enviado do Carl Vinson pelo contra-almirante Charles Gaouette a Mullen e outros oficiais militares.
O corpo do morto foi lavado (ablução) e depois envolto num lençol branco. Foi posto numa bolsa mortuária com peso. Um oficial leu textos religiosos, traduzidos para o árabe por um falante nativo. Completada a leitura, o corpo foi colocado numa tábua plana, que foi inclinada, e deslizou para o mar.
50. “Agora eles estão atrás do meu filho”
SOMÁLIA, WASHINGTON, DC, E IÊMEN, 2011 — Eram 23h35, hora de Washington. O presidente Obama entrou no corredor que leva ao Salão Leste da Casa Branca. Assumiu seu lugar na tribuna, usando um terno escuro, com gravata vermelha e uma bandeirinha americana na lapela esquerda. “Boa noite”,1 começou. “Esta noite, posso anunciar ao povo americano e ao mundo que os Estados Unidos realizaram uma operação que matou Osama bin Laden, líder da AlQaeda e um terrorista responsável pela morte de milhares de homens, mulheres e crianças inocentes.” O presidente não fez referência aos SEALs ou ao almirante McRaven. “Por ordem minha, os Estados Unidos executaram uma operação dirigida contra uma propriedade em Abbottabad, Paquistão. Uma pequena equipe de americanos executou a operação com coragem e eficiência extraordinárias”, disse ele. “Nenhum americano se feriu. O grupo teve todo o cuidado para evitar baixas civis. Após uma troca de tiros, mataram Osama bin Laden e tomaram seu corpo sob custódia.” Nas semanas seguintes, multiplicaram-se as controvérsias, enquanto autoridades da Casa Branca deixavam vazar detalhes que se mostravam falsos ou exagerados. Embora o governo afirmasse explicitamente que a operação tinha sido de “morte ou captura”, e não um assassinato, Bin Laden estava desarmado ao ser morto, e as armas recuperadas em seu quarto não estavam carregadas. Entretanto, ao fazer uma exposição a repórteres logo depois da incursão, um alto funcionário do governo declarou que Bin Laden “resistiu à força de ataque”2 e “foi morto num tiroteio quando nossos homens invadiram a propriedade”. Na realidade, a incursão esteve longe de ser o tiroteio espetacular descrito inicialmente por autoridades da Casa Branca. Em menos de vinte minutos, os SEALs tinham baleado sete dos onze adultos3 na propriedade, matando quatro homens e uma mulher. Para as autoridades paquistanesas,4 mulheres e crianças tinham saído feridas na incursão. Peter Bergen, que teve acesso à propriedade, e diversas testemunhas afirmaram que todos os feridos pareciam estar desarmados. O grupo de direitos humanos Anistia Internacional classificou a incursão como ilegal em seu relatório anual de 2011. “O governo dos Estados Unidos5 deixou claro que a operação foi realizada no quadro da teoria americana de um conflito armado global em curso entre os Estados Unidos e a Al-Qaeda, no qual os Estados Unidos não reconhecem que sejam aplicáveis as leis internacionais de direitos
humanos”, disse o relatório. “Na ausência de maiores esclarecimentos, a morte de Osama bin Laden parece ter sido ilegal.” No dia seguinte ao da operação, Brennan deu uma entrevista coletiva, destinada a fornecer detalhes sobre a incursão, mas cheia de erros. Brennan começou dizendo que Osama bin Laden tinha sido morto num tiroteio e que não houvera chance de capturá-lo vivo. Mais adiante, acrescentou que Bin Laden utilizava mulheres, na propriedade, como escudos humanos. “Pensando no caso de uma perspectiva visual, temos aqui Bin Laden, que vinha pedindo esses ataques, morando nessa propriedade de 1 milhão de dólares, morando numa área muito distante da linha de frente, escondendo-se atrás de mulheres, postas diante dele como um escudo”, disse. “Acho que isso realmente mostra como foi falsa a história contada sobre ele ao longo dos anos. Além disso, em vista do que Bin Laden esteve fazendo escondido ali, enquanto punha outras pessoas para executar ataques, creio que isso também mostra a natureza da pessoa que ele era.”6 Brennan afirmou ainda que a mulher que morrera fora atingida enquanto protegia Bin Laden, embora, na verdade, ela tivesse sido morta junto com o marido. Mais tarde a Casa Branca obrigou Brennan a se desdizer.7 Os vazamentos provenientes da Casa Branca indignaram a comunidade das Operações Especiais e fizeram, por fim, que Bissonnette, um dos SEALs que tinham atirado em Bin Laden, escrevesse seu próprio livro sobre a incursão, sob o pseudônimo de Mark Owen, intitulado Não há dia fácil. Segundo Bissonnette, o livro foi escrito para esclarecer os fatos. O número de ex-SEALs e outros veteranos que começaram a falar sobre o caso tornou-se tão grande que McRaven ordenou8 que os membros das Forças de Operações Especiais, na ativa ou não, parassem de dar entrevistas à imprensa. Na noite em que Obama anunciou a morte de Bin Laden, milhares de americanos saíram às ruas diante da Casa Branca e da Times Square, em Nova York, gritando: “USA! USA!”. Para os parentes de vítimas dos ataques de Onze de Setembro, a morte de Bin Laden fechava as contas. No entanto, a operação contra o líder da Al-Qaeda insuflara vida nova na guerra global de Washington. A sigla JSOC, antes envolvida num manto de segredo, tornou-se famosa entre os americanos, e a imprensa passou a tratar os SEALs como celebridades. A Disney chegou a tentar registrar como sua a marca “SEAL Team 6”,9 e em Hollywood começou a ser rodado o filme A hora mais escura — para o qual seus produtores ganharam acesso a materiais sigilosos.10 Enquanto continuava na imprensa a batalha em relação aos vazamentos — e também sobre versões contraditórias de como se dera a morte de Bin Laden —, nos bastidores a Casa Branca mergulhava no planejamento de operações mais mortíferas contra Alvos de Grande Valor. Entre esses alvos estava Anwar Awlaki.
Ahmed Abdulkadir Warsame, somaliano que os Estados Unidos afirmavam estar ligado à Al
Shabab da Somália, foi capturado pelo JSOC, em abril de 2011, no golfo de Áden. Warsame estava num bote quando foi detido por uma equipe anfíbia.11 Autoridades americanas de contraterrorismo alegaram que ele tinha se encontrado com Awlaki e que estava formando vínculos entre a Al-Shabab e a AQPA. Os homens do JSOC levaram-no a uma prisão militar temporária a bordo do USS Boxer, onde, durante mais de dois meses, Warsame ficou incomunicável, antes de ser transferido para Nova York12 e indiciado com base em acusações de conspiração e apoio material à Al-Shabab e à Al-Qaeda. Na comunidade de direitos civis, houve quem louvasse o governo Obama por julgar Warsame num tribunal federal, em vez de mandá-lo para Guantánamo, mas o Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) não teve permissão para vê-lo durante os dois meses de interrogatórios contínuos13 a bordo do Boxer, nem ele teve acesso a advogados. O caso de Warsame provocou um debate jurídico em torno das políticas do governo Obama de capturar e deter suspeitos de terrorismo, sobretudo à luz das campanhas de contraterrorismo, cada vez mais amplas, na Somália e no Iêmen. As resoluções executivas emitidas por Obama dois dias depois de sua posse como presidente determinava que o governo notificasse o CICV14 quanto a qualquer pessoa sob a custódia do governo americano e lhe desse acesso a ela. Para aqueles que durante muito tempo tinham combatido as políticas de detenção do governo Bush, o caso Warsame mostrou que Obama estava transgredindo suas próprias resoluções executivas. “Isso é ilegal e indesculpável.15 Significa, de fato, que o sr. Warsame desapareceu durante esse período, com todos os perigos concomitantes gerados por essa detenção oculta. Lembra as antigas detenções na baía de Guantánamo e no ‘buraco negro’ da CIA”, afirmou o Centro de Direitos Constitucionais. O grupo acusou o governo Obama de “forçar” o significado da AUMF, concedida pelo Congresso para possibilitar a perseguição aos atacantes do Onze de Setembro, e de usá-la, uma década depois, “para capturar e deter, talvez indefinidamente e em qualquer lugar do mundo, qualquer pessoa que esse governo afirme ser suspeito de terrorismo”. Entretanto, o governo Obama não estava apenas capturando e detendo suspeitos: eles eram interrogados como parte de uma campanha, cada vez mais intensa, para caçar terroristas. Depois da captura de Warsame, autoridades americanas não identificadas jactaram-se16 junto a importantes meios de comunicação americanos de que o somaliano lhes proporcionara informações capazes de levar à ação. A ação gerada por essa informação não ocorreria na Somália, e sim no Iêmen, contra um dos inimigos mais procurados de Washington.
“Eu quero Awlaki”,17 disse Obama à sua equipe de contraterrorismo. “Não deem descanso a ele.” Bin Laden estava morto e Ayman al-Zawahiri em breve assumiria seu lugar como líder da organização central da Al-Qaeda, mas Obama e sua equipe tinham designado como novo
Inimigo Público Número Um aquele cidadão americano que se mudava de um lado para outro nas terras áridas do Iêmen. Numa vida diferente, Obama tinha sido professor de direito constitucional, mas como presidente criara uma estrutura legal alternativa para lidar com Awlaki. O Poder Executivo encabeçado por Obama atuara como promotor, juiz e júri. Como autoridade suprema, ele dera seu veredicto. Agora, suas forças, escolhidas a dedo, cumpririam a execução. Três dias depois de Obama ter anunciado ao mundo que o JSOC matara Osama bin Laden, a equipe de contraterrorismo lhe apresentou uma atualização dos dados sobre o Iêmen. A CIA e o JSOC acreditavam ter localizado a moradia de Awlaki no sul do Iêmen e afirmavam que tinham de aproveitar o momento para pegá-lo. Encorajados pela incursão contra Bin Laden, os generais de Obama vinham pressionando para que o presidente autorizasse uma espécie de blitzkrieg18 para desferir um golpe fulminante contra a Al-Qaeda em vários países. No Iêmen, o JSOC vinha falando em virar a mesa e assumir a ofensiva. O presidente Obama havia determinado a John Brennan19 que o atualizasse, a cada “terçafeira de terror”, a respeito de todas as informações disponíveis sobre Awlaki. Agora o presidente se via diante de uma oportunidade concreta para acabar com ele. De acordo com o relato de Daniel Klaidman, Warsame proporcionara informações cruciais sobre Awlaki. Os SEALs da Marinha que capturaram Warsame tinham também se apoderado de seu laptop, pen drives e outros dispositivos de armazenamento de dados. “O computador estava cheio20 de e-mails e outras provas que o ligavam diretamente a Awlaki. Warsame havia se encontrado com o clérigo apenas dois dias antes, para fechar um importante negócio de armas”, segundo Klaidman.
A proximidade entre Warsame e Awlaki e outros membros graduados da AQPA dava-lhe acesso a informações críticas, do tipo “sistema de vida”, que ele transmitiu aos americanos ao ser interrogado. Contou-lhes como Awlaki viajava, mencionando até os tipos de veículos que usava e a configuração de seus comboios. Forneceu informações sobre as maneiras como Awlaki transmitia e recebia comunicações, assim como sobre as complexas medidas de segurança tomadas por ele e por seu círculo.
Tudo isso somado a interceptações de sinais feitas pelo JSOC e pela CIA, e a “detalhes vitais sobre o paradeiro de Awlaki”,21 obtidos junto aos serviços de informações do Iêmen, levava agora ao que a Casa Branca acreditava serem as melhores condições já surgidas até então para matar Awlaki. As aeronaves militares americanas estavam a postos. Obama deu sinal verde. A operação caberia ao JSOC. Um avião Dragon Spear,22 das Operações Especiais, armado com mísseis Griffin de curto alcance, ganhou o espaço aéreo iemenita, apoiado por jatos Harrier, dos fuzileiros navais, e drones Predator, rumo a Shabwah. Um drone de reconhecimento Global Hawk voaria acima desses aparelhos para transmitir sinais ao vivo aos planejadores da missão.
Ciente de que os Estados Unidos estavam tentando matá-lo, o clérigo americano tomara precauções para limitar o número de pessoas com quem se comunicava. Mudava de residência frequentemente e estava sempre trocando de veículos. Na noite de 5 de maio, Awlaki e alguns amigos estavam passando de carro por Jahwa, na zona rural no sul de Shabwah, quando a caminhonete em que viajavam foi sacudida por uma explosão próxima que estilhaçou as janelas do veículo. Awlaki viu um clarão e supôs que um foguete tinha sido disparado contra o carro. “Acelere!”,23 gritou para o motorista. Olhou em torno e tomou pé da situação. Ninguém tinha ficado ferido. A caçamba da caminhonete estava cheia de botijões de gasolina, mas ainda assim o veículo não tinha explodido. Alhamdulillah, pensou Awlaki. “Graças a Deus.” Pediu cobertura. Enquanto Awlaki e os amigos corriam para se afastar do que supunham ser uma emboscada, os planejadores do JSOC viam, via satélite, seu carro emergir das nuvens de poeira causadas pelo Griffin. Tinham errado o disparo. O rastreador de alvos funcionara mal, e o sistema de guia não conseguiu fixar-se no veículo de Awlaki. A missão estava agora entregue aos Harriers e ao drone. Segundo ataque. Uma enorme bola de fogo iluminou o céu. No momento em que já se dispunham a comemorar, os planejadores viram, chocados, a caminhonete aparecer de novo. O para-choque traseiro fora atingido, mas o veículo continuava a rodar. Os Harriers já estavam com pouco combustível e tiveram de abandonar a missão. O terceiro ataque teria de ser feito pelo drone. Awlaki olhou pela janela, à procura dos autores da emboscada. Foi então que ele viu o drone no céu. Em meio à fumaça e à poeira, Awlaki disse ao motorista que não entrasse numa área povoada. Pararam num pequeno vale com algumas árvores. Os irmãos Abdullah e Musa’d Mubarak al-Daghari, conhecidos na comunidade da AQPA como irmãos Harad,24 tinham visto o ataque de longe e vinham depressa para ajudar Awlaki. Enquanto o drone sobrevoava o local, os planejadores americanos não tinham como ver o que estava acontecendo no solo. Um ex-planejador do JSOC, que leu os relatórios americanos sobre a missão malograda, explicou-me que a missão só tinha satélites que proporcionavam “imagens de cima para baixo”. Com esses satélites, disse: “Não se vê merda nenhuma.25 Você está olhando para formigas se mexendo. Eles só viam veículos, e as pessoas nos veículos eram espertas. Poeira, cascalho, fumaça e chamas tinham ocultado o Alvo de Grande Valor. Os irmãos Harad rapidamente meteram Awlaki e o motorista no utilitário Suzuki Vitara26 deles, enquanto pegavam o veículo de Awlaki. Instruíram Awlaki a ir para um penhasco no qual poderia se abrigar, se conseguisse chegar lá sem ser atingido pelos mísseis americanos. Os irmãos Harad partiram então na direção oposta, dirigindo a caminhonete que os americanos tinham tentado explodir momentos antes. Com dois veículos em movimento, cada qual numa direção, os planejadores americanos tiveram de decidir qual deles seguir. Optaram pela caminhonete de Awlaki.27 O clérigo olhou para cima e viu os drones ainda no ar. Conseguiu chegar ao penhasco nas montanhas. Dali, viu outra salva de mísseis ser disparada e explodir a caminhonete, matando os irmãos Harad. O JSOC comemorou o que julgava ter sido um ataque bem-sucedido. Awlaki fez as orações
vespertinas e refletiu sobre a situação. Naquela noite “aumentou minha certeza de que nenhum ser humano morrerá antes de completar sua vida e [atingir] o tempo que lhe é devido”, pensou. Adormeceu nas montanhas, sendo despertado por amigos que o levaram para a segurança da casa de seu velho amigo Shaykh Nadari. Na hora dos ataques, Nadari dormia, mas acordou com o barulho das explosões e sentiu o chão estremecer. “Quando chegou a manhã e a luz começou a se espalhar, ela trouxe consigo o xeque Anwar”, lembrou ele mais tarde. “Ele entrou em nossa casa com um sorriso alegre, e com isso soubemos que tinha sido ele o alvo dos ataques. Os homens se abraçaram, e Awlaki lhe falou dos ataques. Calculava que dez ou onze mísseis tinham sido disparados. Nadari lhe perguntou qual era a sensação de ser bombardeado pelos americanos. “Achei mais fácil do que pensamos que fosse. Sentimos um pouco de medo, mas Alá Todo-Poderoso nos envia tranquilidade”, disse Awlaki ao amigo. “Dessa vez, onze mísseis erraram o alvo, mas da próxima, o primeiro foguete pode atingi-lo.” Awlaki ficou com Nadari alguns dias e depois seguiu seu caminho. Aquela foi a última vez que os dois homens se viram. “Estávamos esperando que fosse ele”,28 disse uma autoridade americana depois do ataque. Ao correr a notícia do ataque, autoridades americanas não identificadas confirmaram que o ataque tinha visado Awlaki. E por algum tempo, julgaram ter tido êxito. Os operadores americanos de drones “não sabiam que os veículos tinham sido trocados,29 o que teve como resultado a morte das pessoas erradas e Awlaki [estar] ainda vivo”, de acordo com uma autoridade de segurança iemenita. Awlaki podia ter escapado, mas os Estados Unidos agora o tinham sob a sua mira. “O governo dos Estados Unidos vem visando a Al-Awlaki30 já há algum tempo, [e o] ritmo dessa operação vem aumentando”, disse Fran Townsend, ex-assessora de segurança interna do governo Bush.
Cabe crer que eles tinham um plano operacional para atacar toda a liderança [da Al-Qaeda], que o ataque com drones contra Al-Awlaki, se eles tivessem oportunidade disso, deveria ter ocorrido na mesma época da operação contra Bin Laden, de modo que pretendiam enviar um recado muito claro, de que todos os líderes da Al-Qaeda, onde quer que fossem encontrados, seriam atacados.
Nasser Awlaki não tinha acesso ao filho, mas soubera, por intermediários, que Anwar estava vivo. Percebeu que, tendo fracassando mais uma vez em sua missão de achá-lo e matá-lo, o governo dos Estados Unidos estaria mais determinado do que nunca a pôr fim àquilo. Viu na TV os noticiários sobre a incursão contra Bin Laden e ouviu comentaristas, intelectuais e altas autoridades americanas compararem seu filho ao líder da Al-Qaeda e até darem a entender que Awlaki seria o seu sucessor na liderança da organização. “Eles mataram Bin Laden e agora estão
atrás de meu filho”,31 disse.
51. “Foi a sangue-frio”
PAQUISTÃO, 2011 — Três semanas depois da incursão que matou Osama bin Laden, os líderes da ISI paquistanesa ainda estavam furiosos. O presidente Obama e o presidente Zardari, do Paquistão, apresentaram publicamente uma frente unida na comemoração da morte do líder da Al-Qaeda, e Obama agradeceu ao governo do Paquistão por sua colaboração ao longo dos anos, dizendo: “Nossa cooperação com o Paquistão no contraterrorismo1 ajudou a nos conduzir a Bin Laden e à propriedade onde ele se escondia”. Zardari escreveu uma matéria publicada na página de opinião do Washington Post elogiando a incursão e afirmando que o Paquistão tinha “feito a sua parte”.2 O primeiro-ministro Yousaf Raza Gillani declarou: “Não vamos permitir3 que nosso solo seja usado pelo terrorismo contra qualquer outro país, e, portanto, penso que foi uma grande vitória, um sucesso, e felicito o êxito dessa operação”. Apesar das barretadas diplomáticas, no entanto, a violação da soberania paquistanesa foi um escândalo no país. “Foi a sangue-frio”,4 disse um alto funcionário da segurança paquistanesa. Um dia depois da incursão, o Ministério das Relações Exteriores do Paquistão emitiu uma declaração dizendo que a incursão tinha sido “uma ação unilateral não autorizada”,5 afirmando que “um fato como esse não deve servir como precedente para país nenhum, inclusive os Estados Unidos”. O ex-ministro das Relações Exteriores do Paquistão Shah Mahmood Qureshi — afastado por sua arrojada posição no caso Raymond Davis — qualificou a incursão de “agressão gratuita”6 contra o país, enquanto o líder oposicionista Chaudhry Nisar Ali Khan clamava pela renúncia do presidente e do primeiro-ministro. “Essa operação atropela nossa honra e nossa dignidade, e o presidente e o primeiro-ministro devem dar uma explicação ou renunciar”, disse. “O governo se mantém em silêncio e parece que ninguém responderá à propaganda contra o Paquistão.” “Todo paquistanês quer saber7 como as tropas americanas entraram sem permissão no Paquistão soberano e independente”, disse Altaf Hussain, líder do movimento Muttahida Qaumi. “Como é possível que uma incursão tenha ocorrido em pleno território paquistanês? Como é possível que os agressores tenham conseguido ir embora incólumes e despercebidos? Como é possível que o governo e a Inteligência tenham ignorado tudo isso?” O Parlamento paquistanês condenou a operação, chamando-a de “violação da soberania paquistanesa”,8 e instou Islamabad a “revisitar e rever os termos de seu acordo com os Estados
Unidos”. No entanto, apesar do estado delicado das relações entre os dois governos, algumas autoridades americanas agiam como se quisessem pôr mais lenha na fogueira. Durante uma entrevista coletiva logo depois da incursão, Brennan declarou que era “inconcebível9 que Bin Laden não tenha tido apoio do sistema” no Paquistão. Enquanto um grupo de 1500 paquistaneses10 protestava pelo assassinato de Bin Laden, os Estados Unidos reiniciavam os ataques com drones. Apenas quatro dias depois da incursão, a CIA atacou uma casa no Waziristão do Norte. Tendo ocorrido logo após a saga de Raymond Davis, a incursão contra Bin Laden foi vista como um mau presságio pelos serviços de Inteligência do Paquistão. O governo de Washington se tornava cada vez mais ousado em suas operações no Paquistão e atacaria com ou sem permissão da ISI. Obama cumprira a ameaça de uso de força unilateral em território paquistanês. Embora sem poder fazer muita coisa para revidar diretamente, a ISI deu início a uma campanha de caça aos paquistaneses que, segundo o órgão acreditava, tinham apoiado os Estados Unidos na operação Bin Laden. Três semanas depois da incursão, agentes da Inteligência paquistanesa detiveram o dr. Shakil Afridi, que tinha ajudado a CIA na falsa campanha de vacinação contra a hepatite B em Abbottabad, e o médico foi preso, julgado e condenado a 33 anos de cadeia.11 A secretária de Estado Hillary Clinton e legisladores americanos de prestígio se mobilizaram pela libertação de Afridi. Os senadores John McCain e Carl Levin disseram que a condenação era “chocante e ultrajante”,12 afirmando que Afridi era um herói. “O dr. Afridi deu o exemplo que gostaríamos de ter visto seguido há muito tempo por outros paquistaneses”, disseram os legisladores numa carta conjunta. “Ele deveria ser louvado e recompensado por seus atos em vez de punido e afrontado.” A ministra das Relações Exteriores do Paquistão reagiu. “Para nós, ele não é nenhum herói,13 podem crer”, disse ela. “É uma pessoa cuja atividade pôs em perigo nossas crianças.” A morte de Osama bin Laden certamente não inibiu o ritmo dos assassinatos no Paquistão. “Desde a morte do líder da Al-Qaeda,14 a ISAF não dá sinal de reduzir ou cessar sua missão. Na verdade, o ritmo tem sido mais acelerado que o normal nos três últimos meses”, gabou-se a ISAF num comunicado à imprensa emitido apenas uma semana depois do assassinato de Bin Laden. As incursões no Paquistão também continuaram. Em diversas ocasiões, forças da OTAN com base no Afeganistão executaram operações na fronteira, e numa delas mataram 25 soldados paquistaneses.15 De quando em quando, equipes dos SEALs ou membros da Divisão de Atividades Especiais da CIA cruzavam a fronteira e executavam operações no Paquistão. Os ataques com drones continuavam com força total. Apesar dos protestos no Paquistão, ficava claro que o governo Obama continuaria a agir unilateralmente no país, mesmo depois da morte de Bin Laden.
52. “Os Estados Unidos consideram a Al-Qaeda como terrorismo, e nós consideramos os drones como terrorismo”
IÊMEN, FIM DE 2011 — Enquanto o governo Obama festejava o sucesso da operação que matou Bin Laden, e o JSOC e a CIA fechavam o cerco contra Anwar Awlaki, a insurreição árabe se expandia. Três semanas depois da incursão em Abbottabad, o governo do presidente Ali Abdullah Saleh no Iêmen estava à beira do colapso. Os protestos aumentavam, e Saleh já tinha jogado praticamente todas as cartadas de que dispunha para manter os americanos do seu lado. Tinha dado passe livre à máquina contraterrorista dos Estados Unidos para bombardear o Iêmen e escancarado as portas para a continuação de uma guerra nem tão secreta. Mas à medida que seu poder se esvaía, a AQPA via oportunidades no caos. No verão de 2011, as unidades contraterroristas de elite, apoiadas pelos Estados Unidos, foram afastadas1 da luta contra a AQPA para defender o regime contra seu próprio povo. No sul do Iêmen, onde a presença da AQPA era mais forte, os mujahedin procuravam tirar partido de um Estado em implosão cujos líderes tinham adquirido reputação de corruptos e fracassado em proporcionar bens e serviços básicos. Em 27 de maio de 2011, centenas de militantes sitiaram Zinjibar,2 a cinquenta quilômetros de Áden, cidade de importância estratégica do sul do país, mataram soldados, expulsaram os governantes municipais e mantiveram o controle da cidade durante dois dias. A identidade desses militantes foi objeto de controvérsia. Segundo o governo iemenita, eram quadros operacionais da AQPA. Mas os militantes que tomaram a cidade não se diziam filiados à AQPA. Pelo contrário, apresentaram-se como um novo grupo, o Ansar al-Sharia,3 ou Defensores da Sharia. Autoridades iemenitas me disseram que Ansar al-Sharia era um nome de fachada da AlQaeda.4 Afirmaram que a primeira referência pública ao grupo de que se tinha notícia fora feita pelo principal clérigo da AQPA, Adil al-Abab, um mês antes do ataque a Zinjibar. “O nome Ansar al-Sharia5 é o que usamos para penetrar nas áreas em que trabalhamos para falar às pessoas sobre nosso trabalho e nossos objetivos, e dizer que estamos no caminho de Alá”, dissera ele, acrescentando que o novo nome pretendia dar destaque à mensagem do grupo, assim como evitar as associações com o nome Al-Qaeda. Quer as origens dos Ansar al-Sharia fossem mais independentes, quer o grupo fosse mero produto da campanha para renomear a AQPA, como
dissera Abab, sua importância em tempo pouco transcendeu as esferas de influência da AlQaeda no Iêmen, historicamente limitadas, e ao mesmo tempo popularizou alguns dos mais importantes princípios da AQPA. Meses depois do cerco a Zinjibar, estive em Áden, onde me encontrei com o oficial iemenita encarregado de retomar as áreas controladas pelos Ansar al-Sharia. O general Mohammed alSumali viajava no banco do passageiro de sua Land Cruiser blindada, que zumbia na autopista deserta que liga Áden à província de Abyan, onde militantes islâmicos tinham ocupado Zinjibar. Sumali, homem corpulento de óculos e bigode, era o comandante da 25a Brigada Mecanizada das Forças Armadas iemenitas e tinha sido incumbido de expulsar os militantes de Zinjibar. Sua missão tinha importância internacional: a retomada de Zinjibar era vista por muita gente como o último teste do regime vacilante de Saleh. O único movimento que se via na estrada era o de refugiados que escapavam dos combates em direção a Áden e reforços militares indo para Zinjibar. Sumali não queria ir até a linha de frente no dia em que estive com ele. “Você sabe, pode haver morteiros6 apontados para você”, disse ele. Em duas oportunidades, os ocupantes de Zinjibar tinham tentado assassinar o general naquele mesmo veículo. Havia um orifício de bala no para-brisa, logo abaixo da cabeça dele, e outro na janela lateral, com os vidros trincados pelo impacto inequívoco de projéteis. Quando concordei em não responsabilizar a ele ou a seus homens pelo que pudesse acontecer, ele cedeu. Embarcamos e partimos. Enquanto viajávamos pelo litoral do mar Arábico, passando por tubos de morteiro abandonados, tanques russos T-72 atolados em bermas de areia e eventuais camelos errantes, o general Sumali relatou o que tinha acontecido em 27 de maio, quando os Ansar al-Sharia tomaram a cidade. Sumali atribuía o fato a um “vacilo da Inteligência” e explicou: “Fomos surpreendidos no fim de maio com o grande fluxo de militantes terroristas para Zinjibar”. E acrescentou que os militantes “invadiram e atacaram alguns pontos da segurança. Foram capazes de cercar essas instituições. Ficamos surpresos quando o governador, seus auxiliares imediatos e autoridades municipais refugiaram-se em Áden”. Enquanto as Forças Armadas iemenitas começavam a dar combate aos militantes, contou-me o general Sumali, soldados das Forças Centrais de Segurança do Iêmen fugiam, deixando para trás armamento pesado. As CSF, cuja unidade contraterrorista era armada, treinada e financiada pelos Estados Unidos, estavam sob o comando de Yahya, sobrinho do presidente Saleh. A imprensa ligada aos militantes noticiou que as forças dos Ansar tinham confiscado “peças de artilharia pesada,7 armamento antiaéreo moderno, numerosos tanques e grandes quantidades de munição de diversos tipos”. Sumali disse que na semana seguinte, quando suas tropas tentaram repelir o ataque a Zinjibar, foram atacadas por militantes que usavam a artilharia capturada das unidades das CSF. “Muitos de meus homens foram mortos”, disse-me ele. Os combatentes islâmicos executaram também uma série de incursões arrojadas à base da 25a Brigada Mecanizada, na periferia sul de Zinjibar. Ao todo, mais de 230 soldados8 imenitas morreram em combates contra os militantes em menos de um ano. “Esses sujeitos são incrivelmente corajosos”, admitiu o general, referindo
se aos militantes. “Se eu tivesse todo um exército de homens com essa coragem, poderia conquistar o mundo.” Segundo Sumali, Zinjibar caiu por culpa de falhas da Inteligência, mas críticos do regime em desintegração de Saleh me contaram uma história diversa. Disseram que as forças do presidente Saleh permitiram que a cidade caísse. A luta começou num período em que Saleh enfrentava uma onda de apelos em favor de sua renúncia, dentro e fora do Iêmen. Muitos de seus principais aliados tinham passado para o movimento de oposição. Depois de 33 anos dominando seus opositores, disseram eles, Saleh via que o fim estava próximo. “Na verdade, foi o próprio Saleh quem entregou Zinjibar àqueles militantes”,9 acusou Abdul Ghani al-Iryani, um bem informado analista político. “Ele ordenou que a força policial evacuasse a cidade e a entregasse aos militantes porque queria alertar o mundo de que sem ele o Iêmen cairia em mãos de terroristas.” Essa teoria, embora não comprovada, não era destituída de fundamento. Desde a guerra dos mujahedin contra os soviéticos no Afeganistão, na década de 1980, até depois do Onze de Setembro, era público o uso que Saleh fazia da ameaça representada pela Al-Qaeda e outros militantes a fim de obter financiamento e armas junto aos Estados Unidos e à Arábia Saudita para fortalecer seu poder interno e neutralizar opositores. Um funcionário do governo iemenita que pediu para não ser identificado por não estar autorizado a falar publicamente sobre assuntos militares reconheceu que os homens da Guarda Republicana, treinada e apoiada pelos Estados Unidos, não reagiram10 quando os militantes entraram na cidade. Essas forças eram comandadas por Ahmed Ali Saleh, filho do presidente. Nem as forças leais a um dos mais poderosos oficiais do país, o general Ali Mohsen, comandante da 1a Divisão Blindada, se mobilizaram. Dois anos antes do cerco de Zinjibar, Mohsen tinha desertado do regime de Saleh e estava apoiando publicamente sua deposição. O general Sumali me disse que não poderia “confirmar ou negar” que os Ansar al-Sharia fossem na verdade a AQPA. “O que importa para mim, como soldado, é que eles pegaram em armas contra nós. Quem quer que esteja atacando nossas instituições, nossos acampamentos militares e matando nossos soldados, será combatido, seja ou não filiado à Al-Qaeda ou aos Ansar al-Sharia”, disse-me ele. “Não importa o nome que eles tenham. E não tenho como confirmar se os Ansar al-Sharia são ligados à Al-Qaeda ou se formam um grupo independente.” Em vez de lutar contra a AQPA, as unidades iemenitas de elite apoiadas pelos Estados Unidos — criadas e mantidas com o objetivo explícito de atuar apenas em operações de contraterrorismo — voltaram a Sana’a para proteger o regime cambaleante da fúria de seu próprio povo. As unidades apoiadas pelos Estados Unidos existiam “principalmente para a defesa do regime”, disse Iryani. “No combate de Abyan, as forças contraterroristas não foram mobilizadas da maneira adequada. Elas ainda estão aqui no palácio [em Sana’a], protegendo o palácio. É assim que as coisas são.” Ao mesmo tempo, John Brennan reconhecia que “o tumulto político”11 tinha levado as unidades treinadas pelos Estados Unidos “a focar em seu posicionamento para propósitos políticos internos, em vez de fazer o que pudessem contra a
AQPA”. Assim, sobrou para o general Sumali e suas forças convencionais a tarefa de combater os islâmicos que tinham assumido o controle de Zinjibar. Depois que passamos pela primeira linha de frente na periferia de Zinjibar, “Tiger 1”, e avançamos menos de um quilômetro em direção à “Tiger 2”, Sumali permitiu que eu saísse do veículo. “Só ficaremos dois minutos”, disse-me ele. “Este lugar é perigoso.” Na mesma hora, o general foi cercado por seus homens. Magros e emaciados, muitos deles usavam longas barbas e uniformes em frangalhos, quando tinham uniforme. Alguns deles imploravam a Sumali que lhes desse autorização por escrito para receber um adicional por combate. Um dos soldados disse a ele: “Eu estava com o senhor quando o senhor foi vítima de emboscada. Ajudei a repelir o ataque”. Sumali rabiscou algo num papel e entregou-o ao soldado. A cena continuou até que Sumali voltou a entrar no Toyota. À medida que nos afastávamos, ele falava a seus homens de dentro de seu veículo blindado com um megafone: “Continuem lutando. Não desistam!”. Fosse estratagema de um regime em crise permitir que militantes tomassem Zinjibar, fosse uma tomada de poder oportunista por parte da AQPA, a ocupação de diversas cidades do sul do Iêmen por forças islâmicas era significativa. Ao contrário do movimento Al-Shabab da Somália, a AQPA nunca tinha controlado faixas importantes do território do Iêmen. Mas os Ansar al-Sharia estavam determinados a fazer exatamente isso: declarar um emirado islâmico independente em Abyan.12 Depois que os Ansar al-Sharia e seus aliados consolidaram seu controle sobre Zinjibar, adotaram um programa voltado para a conquista de apoio popular. “Os Ansar al-Sharia foram muito mais eficientes13 na iniciativa de prover serviços básicos em áreas do Iêmen das quais o governo tinha praticamente desaparecido”, disse-me na ocasião Johnsen, o especialista em Iêmen da Universidade Princeton. “Eles dizem que estão seguindo o modelo do Talibã na tentativa de prover serviços e instaurar um governo islâmico onde o governo central deixou um vazio.” Os Ansar al-Sharia consertaram estradas, restabeleceram a eletricidade,14 distribuíram alimentos e instituíram patrulhas de segurança dentro da cidade e em seus arredores. Instituíram também tribunais islâmicos onde as disputas poderiam ser resolvidas. “A Al-Qaeda e os Ansar al-Sharia levaram segurança ao povo em áreas conhecidas por sua violência, pelos roubos, pelas barreiras nas estradas”, disse Abdul Rezzaq al-Jamal, o jornalista iemenita independente que com frequência entrevistava líderes da Al-Qaeda e passara longo tempo em Zinjibar. “As pessoas que conheci em Zinjibar estavam gratas à Al-Qaeda e aos Ansar al-Sharia por manter a segurança.”15 Mesmo implantando a lei e a ordem em Abyan, ocasionalmente essas organizações faziam cumprir sua política com métodos brutais, como a amputação de membros de suspeitos de roubo e açoitamento público de usuários de drogas. Na cidade de Jaar, controlada pelos Ansar al-Sharia, os moradores contaram que foram reunidos para um evento horrível16 em que militantes deceparam as mãos de dois jovens acusados de furtar fios da rede elétrica. As mãos amputadas foram levadas em desfile pela cidade, como forma de advertência a possíveis ladrões. Um dos jovens, de quinze anos, teria morrido pouco depois devido à
hemorragia. Em outro incidente, os Ansar al-Sharia decapitaram publicamente17 dois homens acusados de dar informações aos Estados Unidos para facilitar ataques com drones. Um terceiro foi executado em Shabwah.18 A AQPA aproveitou-se da impopularidade do governo iemenita, reconhecendo astutamente que sua mensagem de um sistema de lei e ordem baseado na Al-Sharia seria bem recebida em Abyan, que via o governo de Saleh como um fantoche dos Estados Unidos. Os ataques com mísseis americanos, a morte de civis, uma ausência quase total de serviços públicos e uma pobreza crescente criaram a oportunidade que a AQPA aproveitou. “Depois que grupos de militantes assumiram o controle da cidade, a AQPA chegou, assim como tribos de áreas que no passado tinham sido atacadas pelo governo iemenita e pelo governo dos Estados Unidos”, disse Iryani, o analista político iemenita. “Vieram porque tinham uma rixa com o regime e com os Estados Unidos. Existe um núcleo da AQPA, mas a grande maioria é de populares ressentidos com os ataques a suas casas, que os obrigaram a lutar.” Enquanto os Ansar al-Sharia assumiam o controle de cidades no sul, Washington discutia o modo de reagir. Algumas pessoas no governo Obama defendiam a entrada dos Estados Unidos no combate. O general James Mattis, que assumira o lugar de Petraeus no comando do Centcom, propôs que o presidente autorizasse um pesado ataque aéreo19 contra o Estádio de Futebol Unity, na periferia de Zinjibar, onde os combatentes dos Ansar al-Sharia tinham estabelecido uma base improvisada para atacar as Forças Armadas iemenitas. O presidente Obama torpedeou a proposta. “Não estamos no Iêmen para nos meter em conflitos domésticos”, disse o presidente. “Vamos permanecer focados nas ameaças a nosso país — que é nossa prioridade real.”20 Em vez do ataque aéreo, os Estados Unidos apoiariam as forças convencionais do general Sumali com suprimentos levados por helicópteros.21 Os americanos também proporcionariam às forças iemenitas em Abyan dados de Inteligência em tempo real obtidos por drones. “Foi uma parceria ativa. Os americanos ajudaram principalmente com logística e inteligência”, disse-me Sumali. “E então encurralamos as posições [deles] com a artilharia ou os ataques aéreos.” Em poucas ocasiões, revelou Sumali, os Estados Unidos executaram ataques unilaterais nas cercanias de Zinjibar que “tinham como alvo líderes da Al-Qaeda que estavam na lista negra de terroristas dos Estados Unidos”, e ressalvou: “Não coordenei diretamente esses ataques”. No fim de 2011, à medida que, em todo o sul, as cidades começavam a cair em mãos dos Ansar al-Sharia e o regime de Saleh se esfacelava, o governo Obama decidiu retirar22 do Iêmen a maior parte de seus efetivos militares, inclusive os que estavam dedicados ao treinamento de forças de contraterrorimo iemenitas. “Eles foram embora23 por causa da situação de segurança”, disse-me na época o ministro das Relações Exteriores Abu Bakr al-Qirbi. “Com certeza, acho que se eles não voltarem e se as unidades de contraterrorismo não forem equipadas com a munição e o material necessários, haverá um impacto” nas operações contraterroristas. Os Estados Unidos estavam mudando de tática. Com o regime de Saleh gravemente
debilitado, o governo Obama achou que naquela etapa teria muito pouco a ganhar com uma aliança. Os Estados Unidos intensificaram o uso de seu poderio aéreo e de drones, atacando no Iêmen a seu bel-prazer para pôr em marcha sua campanha contra a AQPA. O governo Obama logo começou a construir uma base aérea secreta24 na Arábia Saudita, mais próxima do que a base do Djibuti, que serviria como plataforma de lançamento para novos ataques com drones no Iêmen. O alvo número um continuava sendo o mesmo: Anwar Awlaki. Para conseguir qualquer coisa no Iêmen, o segredo é navegar por seu labiríntico sistema tribal. Durante anos, o patrocínio de uma rede tribal ajudou a fortalecer o regime de Saleh. Muitas tribos tinham uma opinião neutra sobre a AQPA, ou viam-na como um aborrecimento menor; algumas delas lutavam contra as forças da Al-Qaeda, outras davam abrigo e um santuário seguro à organização. A posição de muitas tribos em relação à Al-Qaeda dependia de como, em sua opinião, a AQPA poderia favorecer ou prejudicar seu próprio programa. Contudo, a política do governo Obama para o Iêmen tinha irritado muitos dos líderes tribais que tinham a possibilidade de manter a AQPA em xeque e, no decorrer de três anos de bombardeios regulares, acabou com a motivação que esses líderes ainda pudessem ter para tal coisa. Muitos líderes do sul do país25 falaram-me com raiva sobre ataques americanos e iemenitas que mataram civis e animais de criação, destruindo ou danificando dezenas de casas. O que os Estados Unidos conseguiram com os ataques aéreos e com o apoio às unidades contraterroristas dirigidas pela família de Saleh foi aumentar a simpatia das tribos pela AlQaeda. “Por que deveríamos combatê-los? Por quê?”, perguntou Ali Abdullah Abdulsalam, xeque tribal de Shabwah que adotara o nome de guerra de Mullah Zabara, em homenagem, disse-me ele, ao líder talibã mulá Mohammed Omar. “Se meu governo constrói escolas, hospitais e estradas e satisfaz as necessidades básicas, serei leal a meu governo e vou protegê-lo. Até agora, não temos serviços básicos como eletricidade ou água encanada. Por que lutaríamos contra a Al-Qaeda?”26 Ele me disse que a AQPA controlava amplas áreas de Shabwah e admitiu que o grupo “proporcionava segurança e evitava os saques. Se seu carro for roubado, eles vão trazê-lo de volta para você”. Nas áreas “controladas pelo governo, ocorrem roubos e saques. Você nota a diferença”. E Zabara acrescentou: “Se não ficarmos mais atentos, a Al-Qaeda vai tomar e controlar novas regiões”. Zabara fez questão de esclarecer que sabia que a AQPA era um grupo terrorista empenhado em atacar os Estados Unidos, mas essa estava longe de ser sua preocupação principal. “Os Estados Unidos veem a Al-Qaeda como terrorista, e nós consideramos que os drones são terrorismo”, disse ele. “Os drones voam dia e noite, assustando mulheres e crianças, perturbando o sono das pessoas. Isso é terrorismo.” Zabara disse-me que diversos ataques americanos em sua região tinham causado a morte de dezenas de civis e que sua comunidade estava cheia de bombas de fragmentação não detonadas que às vezes explodiam, matando crianças. Ele e outros líderes tribais pediram ajuda ao governo do Iêmen e ao dos Estados Unidos para removê-las, disse ele. “Não recebemos resposta, então usamos nossas armas para
detoná-las.” Disse também que o governo dos Estados Unidos deveria indenizar em dinheiro as famílias de civis mortos nos ataques de mísseis nos três últimos anos. “Exigimos compensação aos Estados Unidos pela morte de cidadãos iemenitas, como aconteceu no caso Lockerbie”, declarou. “O mundo é uma aldeia. Os Estados Unidos receberam indenização da Líbia pela explosão em Lockerbie, mas os iemenitas, não.” Encontrei-me com Mullah Zabara e seus homens no aeroporto de Áden, num ponto da costa ao largo da qual o USS Cole tinha sido atingido por uma bomba em outubro de 2000, matando dezessete marinheiros americanos. Zabara usava roupas pretas tribais, complementadas com a jambiya cingida diante do abdome e uma Beretta no quadril. Zabara era uma figura impressionante, de pele curtida e uma grande cicatriz em forma de lua crescente em volta do olho direito. “Não conheço esse americano”, disse ele a meu colega iemenita. “Portanto, se alguma coisa me acontecer em decorrência deste encontro — se eu for sequestrado —, simplesmente vamos matar você depois.” Todos riram, nervosamente. Conversamos durante algum tempo numa estrada à beira de um penhasco ao longo da costa antes que ele nos levasse à cidade para dar uma volta. Depois de vinte minutos de percurso, ele encostou a um lado da estrada, comprou uma caixa de seis Heineken numa birosca, atirou-me uma das latas e abriu uma para si. Eram onze da manhã. “Uma vez fui parado por uns caras da AQPA num dos postos de controle deles, e eles viram que eu tinha uma garrafa de Johnnie Walker”, lembrou ele enquanto engolia a segunda cerveja em dez minutos e acendia um cigarro. “Eles me perguntaram: ‘Por que você está com isso?’. Respondi: ‘Para beber’.” E riu com vontade. “Disse a eles que fossem encher o saco de outro e fui embora.” A mensagem do incidente era clara: os caras da Al-Qaeda não queriam problema com líderes tribais. “Não tenho medo da Al-Qaeda. Vou aos lugares deles e me encontro com eles. Somos todos líderes tribais conhecidos, e eles têm de recorrer a nós para resolver suas desavenças.” Além disso, acrescentou, “tenho 30 mil combatentes de minha própria tribo. A AlQaeda não pode me atacar”. Zabara serviu como mediador entre a AQPA e o governo iemenita, em nome deste, e foi decisivo para garantir a libertação de três assistentes sociais franceses27 mantidos como reféns pelo grupo militante durante seis meses. Zabara também foi requisitado pelo ministro da Defesa do Iêmen para interceder junto a militantes em Zinjibar em diversas ocasiões, inclusive para recuperar corpos de soldados mortos em combate em áreas controladas pelos Ansar al-Sharia. “Não tenho nada contra a Al-Qaeda nem contra o governo”, disse-me ele. “Participei da mediação para deter o banho de sangue e para chegar à paz.” Em Zinjibar, seus esforços não tiveram sucesso. Enquanto tentava a mediação, disse-me ele, deparou com quadros operacionais da AQPA provenientes dos Estados Unidos, França, Paquistão e Afeganistão. Perguntei-lhe se alguma vez tinha se encontrado com grandes líderes da AQPA. “Fahd al-Quso é da minha tribo”, respondeu com um sorriso, ao se referir a um dos mais procurados suspeitos do atentado contra o Cole. “Estive com [Said] al-Shihri e [Nasir] al-Wuhayshi há cinco dias em Shabwah”, acrescentou com naturalidade, falando dos dois principais líderes da AQPA, ambos
rotulados como terroristas pelos Estados Unidos.
Caminhamos juntos e eles disseram: “A paz esteja contigo”. Respondi: “A paz esteja convosco também”. Não temos nada contra eles. No passado, teria sido impensável chegar a eles. Ficavam escondidos em montanhas e grutas, mas agora andam pelas ruas e frequentam restaurantes.
“Por que isso?”, perguntei. “O regime, os ministros e funcionários do governo estão esbanjando o dinheiro reservado para combater a Al-Qaeda, e a Al-Qaeda está crescendo”, ele respondeu. Os Estados Unidos “bancam a Segurança Política e [as Forças de] Segurança Nacional, que gastam o dinheiro viajando de cá para lá, em Sana’a ou nos Estados Unidos, com suas famílias. Tudo o que as tribos recebem são os ataques aéreos contra nós.” E acrescentou que o contraterrorismo “tornou-se uma espécie de investimento” para as unidades apoiadas pelos americanos. “Se eles lutarem com seriedade, o financiamento acaba. Eles prolongaram o conflito com a Al-Qaeda para receber mais dinheiro” dos Estados Unidos. Em janeiro de 2013, Zabara foi assassinado em Abyan.28 Não se sabe quem o matou. Ainda naquele mês, o governo iemenita anunciou que Shihri morrera29 “por não resistir aos ferimentos recebidos numa operação contraterrorista”.
Não resta dúvida de que quando o presidente Obama tomou posse, a Al-Qaeda tinha ressuscitado suas atividades no Iêmen. Mas a real proporção da ameaça que a AQPA representava para os Estados Unidos ou para Saleh naquele momento histórico era motivo de polêmica. O que permanecia praticamente irretorquível no discurso americano sobre a AQPA e sobre o Iêmen era a possibilidade de que as ações americanas — assassinatos dirigidos, Tomahawks e ataques de drones — funcionassem na prática como um tiro no pé, dando de bandeja à AQPA uma oportunidade de recrutar mais gente e incitar o grupo a aumentar sua própria violência. “Não estamos gerando boa vontade com essas operações”,30 disse-me o ex-dirigente da CIA Emile Nakhleh.
Devíamos visar radicais de fato e em potencial, mas infelizmente […] outras coisas e outras pessoas estão sendo destruídas e mortas. Assim, a longo prazo, não há certeza de que isso ajude. Essas operações não vão contribuir para desradicalizar potenciais recrutas. Para mim, o problema maior é toda a questão da radicalização. Como podemos dar uma rasteira nisso? [...] Essas operações podem ter sucesso em casos específicos, mas não acho que contribuam necessariamente para a desradicalização de certos setores dessas sociedades.
O coronel Patrick Lang, que passou quase toda a carreira liderando missões delicadas em operações secretas, inclusive no Iêmen, disse-me que a ação da AQPA tinha sido
muito exagerada como ameaça31 aos Estados Unidos. Na verdade, muitos americanos acham que qualquer coisa que possa matar você, seja num aeroplano, caminhando pela Park Avenue ou qualquer coisa assim, é a maior ameaça do mundo, certo? Porque não estão acostumados a lidar com condições de perigo como estilo de vida, certo? Daí que à pergunta “a AQPA é uma ameaça aos Estados Unidos?”, eles respondem sim. A AQPA pode derrubar um avião, matar centenas de pessoas. Mas ela representa uma ameaça à existência dos Estados Unidos? É claro que não. Nenhuma dessas pessoas representa uma ameaça à existência dos Estados Unidos. Estamos completamente loucos a esse respeito. Temos essa reação histérica ao perigo.
Da mesma forma que o Afeganistão e o Iraque proporcionaram um laboratório para o treinamento e o desenvolvimento de toda uma geração de quadros operacionais especiais altamente qualificados e experientes, o Iêmen representou um paradigma que certamente perpassará a política de segurança dos Estados Unidos nas décadas vindouras. Foi durante o governo Bush que os Estados Unidos declararam ser o mundo um campo de batalha, assim qualquer país poderia ser alvo de assassinatos dirigidos, mas foi o presidente Obama quem pôs o selo do bipartidarismo nessa visão de mundo que quase que com certeza resistirá muito além do fim de seu mandato. “Isso vai prosseguir durante muito tempo”, disse Lang.
A Guerra Global ao Terror adquiriu vida própria. Era como uma casquinha de sorvete lambendo a si mesma. E como a indústria contraterrorista/contrainsurrecional se transformou numa coisa dessas, envolvendo tantas pessoas, fundações, jornalistas e autores de livros, generais e os caras que dão tiros — tudo isso junto acumula uma massa gigantesca de inércia que tende a manter as coisas na mesma direção [...]. Continua rolando. Seria preciso que os legisladores civis, alguém como o presidente, por exemplo, tomassem uma decisão consciente para decidir “tudo bem, rapazes, o espetáculo acabou”.
Mas Obama estava longe de decidir que o espetáculo tinha acabado.
53. A Casa Rosada
WASHINGTON, DC, E SOMÁLIA, 2011 — Um mês depois da incursão contra Bin Laden, o almirante McRaven ainda era festejado em Washington. Em junho de 2011, ele compareceu ante o Congresso para ser confirmado como chefe do Comando de Operações Especiais dos Estados Unidos. O novo cargo representava uma promoção em relação ao de comandante em chefe e oficialmente encarregaria McRaven do programa global de assassinatos dirigidos das Forças Armadas. Assim que se apresentou ante a Comissão de Serviços Armados do Senado, choveram sobre ele louvores de republicanos e democratas pelo ataque contra Bin Laden e sua participação em outras operações. “Felicito-o e a seus colegas1 dos SEALs pelas extraordinárias operações”, disse o senador democrata Jack Reed. “Acho que sua determinação e seu tato para cada nível do conflito, a partir das aldeias do Afeganistão e do Paquistão até chegar aos mais complicados meandros de Washington, ficaram amplamente demonstrados.” O republicano John McCain fez eco a esses comentários, dizendo a McRaven: “O que o senhor conquistou em sua distinta carreira antes de 2 de maio de 2011 é realmente extraordinário. Mas naquele dia, na liderança da operação que matou Osama bin Laden, o senhor e seus homens ganharam um lugar permanente na história militar americana”. Foi então que o verdadeiro foco daquelas sessões do Congresso veio à tona: estariam McRaven e suas Forças de Operações Especiais “prontos e capacitados para expandir” suas “operações para o mundo todo a um chamado imediato?”, perguntou Reed. McRaven disse aos senadores que, em virtude do aumento vertiginoso da mobilização de Operações Especiais num campo de batalha global e em expansão, seriam necessários mais recursos e o treinamento de uma nova geração de quadros operacionais. Nesse ponto, o almirante foi direto aos alvos privilegiados do momento. “De meu ponto de vista, como ex-comandante do JSOC, posso dizer que estamos olhando com muita preocupação para o Iêmen e para a Somália”, declarou. Disse que para expandir com sucesso os “ataques fulminantes” naqueles países, os Estados Unidos teriam de aumentar o uso de drones, bem como ampliar a atuação da Inteligência em campo e as missões de vigilância e reconhecimento. “Qualquer expansão dos efetivos deve vir acompanhada de uma expansão proporcional dos elementos possibilitadores”, declarou McRaven. Quando viajei a Mogadíscio, no mês da promoção de McRaven, um grande símbolo da
presença nem tão discreta dos “elementos possibilitadores” americanos saltou-me aos olhos no momento em que pousamos. Acomodado num canto nos fundos do Aeroporto Internacional de Aden Adde, estendia-se um conjunto amuralhado de edifícios. Situadas no litoral do oceano Índico, as dependências lembravam uma pequena comunidade confinada, com uma dúzia de edifícios protegidos por muros altos e vigiados por sentinelas postadas nas torres de seus quatro cantos. Depois fiquei sabendo, por numerosas fontes somalianas e da Inteligência americana, que se tratava do novo centro de contraterrorismo2 comandado pela CIA e usado por quadros operacionais do JSOC. Os somalianos chamavam-no de “Casa Rosada”. Outros, simplesmente, de “Guantánamo”. Adjacentes ao conjunto havia oito grandes hangares de metal. A CIA tinha sua própria aeronave no aeroporto. O conjunto, que, segundo informações de funcionários do aeroporto e fontes da Inteligência somaliana, tinha sido concluído no começo de 2011, era guardado por soldados somalianos, mas os americanaos controlavam o acesso a ele. Em suas dependências, a CIA comandava um programa de treinamento em contraterrorismo3 para quadros operacionais e agentes da Inteligência somaliana com o objetivo de construir uma força de ataque nacional capaz de executar operações de sequestro e de “combate” dirigido contra a Al-Shabab. Como parte de seu programa de contraterrorismo em expansão, a CIA utilizava também a prisão clandestina sepultada nos porões da sede da Agência de Segurança Nacional da Somália, onde ficavam prisioneiros suspeitos de pertencerem à Al-Shabab ou de terem ligação com o grupo. Alguns dos presos, como o suposto braço direito do líder da Al-Qaeda, Saleh Ali Saleh Nabhan, tinham sido sequestrados nas ruas do Quênia e levados de avião para Mogadíscio. Outros tinham sido arrancados de voos comerciais na hora do pouso ou tirados de suas casas na Somália e trazidos à masmorra. Embora a prisão subterrânea fosse oficialmente controlada pela Agência Nacional de Segurança da Somália, os salários dos funcionários locais eram pagos por agentes da Inteligência americana, que também interrogavam diretamente os prisioneiros. Entre as fontes que me falaram sobre a prisão e o centro contraterrorista da CIA havia altos funcionários da Inteligência somaliana, membros do governo federal de transição da Somália, ex-prisioneiros da cadeia subterrânea, diversos analistas somalianos bem informados e líderes de milícias, alguns dos quais trabalhavam com funcionários americanos, inclusive da CIA. Um funcionário americano, que confirmou a existência dos dois lugares, disse-me: “Faz todo sentido4 ter uma forte parceria contraterrorista” com o governo da Somália. A grande presença da CIA em Mogadíscio devia-se à escolha da Somália, pelo governo Obama, como foco da atividade contraterrorista, que incluía ataques dirigidos praticados pelo JSOC, ataques de drones e múltiplas operações de vigilância. Os agentes americanos “estão presentes o tempo todo”,5 disse um alto funcionário da Inteligência somaliana. Às vezes, contou, viam-se trinta deles em Mogadíscio. Todavia, os homens que trabalhavam com a NSA não participavam de operações. Dedicavam-se a orientar e treinar agentes somalianos. “Nesse ambiente, é bastante espinhoso. Eles querem nos ajudar, mas a situação não lhes permite, por
mais que queiram. Não controlam a política, não controlam a segurança”, disse a fonte. “Eles não controlam a situação como no Afeganistão ou no Iraque. Na Somália a situação é fluida, a situação muda, as pessoas mudam.” Segundo fontes somalianas bem informadas, a CIA relutava em tratar diretamente com líderes políticos somalianos, que, apesar dos elogios em público, eram vistos pelos americanos como corruptos e indignos de confiança.6 Assim, os Estados Unidos punham os agentes da Inteligência somaliana diretamente em sua folha de pagamento. Fontes somalianas que conheciam o programa contam que os agentes recebiam dos americanos duzentos dólares mensais7 em dinheiro, num país em que a renda média anual era de cerca de seiscentos dólares. “Eles nos dão grande apoio financeiro”, disse o funcionário da Inteligência somaliana. “São de longe os maiores [financiadores].” Não ficava claro em que medida o presidente da Somália tinha controle — se é que tinha algum — sobre essa força contraterrorista, nem mesmo se estava bem informado de suas operações. O pessoal da CIA e outros agentes da Inteligência americana “não se davam ao trabalho de manter contato8 com a liderança política do país, o que diz muito sobre suas intenções”, contou-me Abdirahman “Aynte” Ali, pesquisador da Shabab que tinha também muitas fontes dentro do governo somaliano. “Essencialmente, parece que é a CIA que está em ação, executando a política externa dos Estados Unidos. O pessoal do Departamento de Estado deveria estar cuidando da política externa, mas parece que é a CIA quem faz isso no país.” As autoridades do governo somaliano que entrevistei disseram que a CIA era o principal órgão americano do programa contraterrorista em Mogadíscio, mas que às vezes há agentes da Inteligência militar americana envolvidos. Quando perguntei se eram do JSOC ou da DIA, o funcionário da Inteligência somaliana respondeu: “Não sabemos. Eles não nos dizem”. Enquanto a CIA construía sua agência de Inteligência somaliana, o diretor da Agência, Leon Panetta, compareceu ante o Congresso e foi interrogado sobre a luta contra a Al-Qaeda e suas afiliadas no Iêmen, na Somália e no norte da África. “Nossa abordagem tem sido empreender operações em cada uma dessas áreas para deter a Al-Qaeda e persegui-los até que já não tenham para onde fugir”, disse ele.
É o que estamos fazendo no Iêmen. Claro que se trata de uma situação perigosa e incerta, mas continuamos a trabalhar com o pessoal de lá na tentativa de desenvolver o contraterrorismo. Estamos trabalhando com o JSOC também em suas operações. O mesmo vale para o caso da Somália.9
Depois que revelei à Nation o caso do programa contraterrorista da CIA para a Somália, um funcionário do governo somaliano disse ao New York Times que o serviço de espionagem sustentado pela CIA estava se tornando um “governo dentro do governo.” “Ninguém, nem
mesmo o presidente, sabe o que a NSA está fazendo”, disse ele. “Os americanos estão criando um monstro.”10 Segundo ex-prisioneiros, a cadeia subterrânea da NSA, administrada por guardas somalianos, era formada por um longo corredor, ladeado por pequenas celas imundas e infestadas de percevejos e mosquitos. Um deles disse que ao chegar, em fevereiro de 2011, viu dois homens brancos11 usando coturnos, calças de uniforme de combate, camisas cinzentas metidas para dentro das calças e óculos escuros. Os ex-prisioneiros disseram que as celas não tinham janelas e o ar era viciado, úmido e fétido. Os prisioneiros não podiam sair. Muitos apresentavam erupções na pele e se coçavam sem parar. Alguns estavam presos havia um ano ou mais, sem acusações e sem acesso a advogados ou à família. Um dos ex-prisioneiros disse que os que estavam reclusos havia muito tempo andavam para lá e para cá sem parar,12 e outros ficavam se balançando, encostados às paredes. Um jornalista somaliano,13 preso em Mogadíscio depois de filmar uma operação militar sigilosa, disse-me que foi levado à prisão e posto numa cela subterrânea sem janela. Entre os presos que ele conheceu enquanto esteve lá havia um homem que tinha passaporte ocidental (ele omitiu a nacionalidade do preso). Alguns dos prisioneiros contaram-lhe que tinham sido apanhados em Nairóbi e levados num pequeno avião a Mogadíscio, onde foram entregues a agentes da Inteligência somalianos. Uma vez sob custódia, segundo o alto funcionário da Inteligência somaliana e ex-prisioneiros, alguns dos presos eram interrogados livremente por agentes americanos e franceses. “Nosso objetivo é agradar nossos parceiros, assim vamos obter mais [coisas] deles, como em qualquer relacionamento”, disse-me o funcionário da Inteligência somaliana. Os americanos, ele disse, operavam unilateralmente no país, mas os franceses estavam integrados à Amisom e a sua base aérea. Com efeito, em julho de 2011, pude ver um agente da Inteligência francesa com um comandante da Amisom controlando passageiros que desembarcavam de um voo procedente de Nairóbi. Fontes da Inteligência somaliana disseram-me que às vezes os franceses pediam que certos passageiros fossem retirados de aviões14 e interrogados. Segundo Aynte, em alguns casos, “os órgãos de Inteligência americanos e de outras nacionalidades avisavam a Inteligência somaliana de que algumas pessoas, alguns suspeitos, gente que estivera em contato com a liderança da Al-Shabab, estavam a caminho de Mogadíscio num avião [comercial] e deviam ser esperadas no aeroporto. Peguem e interroguem”. A prisão subterrânea estava instalada no mesmo edifício15 ocupado no passado pelo famigerado Serviço de Segurança Nacional da Somália (National Security Service, NSS) durante o regime militar de Mohamed Siad Barre, que governou de 1969 a 1991. Um ex-prisioneiro disseme que viu um velho símbolo do NSS do lado de fora. Durante o regime de Barre, a famosa prisão subterrânea e centro de interrogatório, que ficava atrás do palácio presidencial em Mogadíscio, foi um dos fundamentos do aparelho repressivo do Estado. Era chamado de Godka, ou “Buraco”.16
“O bunker está lá, e é lá que o órgão de Inteligência interroga as pessoas”, disse Aynte, que mantinha contato com funcionários da Inteligência somaliana. “Quando a CIA e outros órgãos de Inteligência — que na verdade estão em Mogadíscio — querem interrogar essas pessoas, vão lá e interrogam.” Funcionários somalianos “dão início ao interrogatório, mas as agências estrangeiras de Inteligência — os americanos e franceses — fazem também seu próprio interrogatório”. O funcionário americano posto à minha disposição para comentar o assunto disse que a “inquirição” de prisioneiros por quadros operacionais americanos naquelas dependências “tinha ocorrido em raras ocasiões” e sempre em conjunto com agentes somalianos. Num gesto dramático que, aparentemente, cumpria a promessa de campanha de fechar as abomináveis prisões clandestinas da CIA estabelecidas no governo Bush, Obama assinou a Resolução Executiva 13491 em 22 de janeiro de 2009. A resolução exigia que “a CIA fechasse com a celeridade possível17 todas as dependências de detenção atualmente em operação e não voltasse a operar nenhuma dependência de detenção no futuro”. Para os grupos de direitos humanos, o uso da prisão subterrânea se mostrava como uma subversão furtiva daquela resolução. Depois da publicação de minha reportagem sobre a prisão na Nation e de um artigo subsequente sobre o tema publicado por Jeffrey Gettleman no New York Times, uma coalizão de grupos de direitos humanos escreveu uma carta ao presidente Obama. Os artigos, diziam eles, “põem em dúvida18 o fato de os Estados Unidos estarem cumprindo suas obrigações de respeitar e garantir que se respeitem as exigências internacionais de direitos humanos referentes a nonrefoulement [não devolução], detenção arbitrária e tratamento humano”. Citando a Resolução Executiva 13491, eles disseram ao presidente que
o senhor deixou claro seu profundo compromisso de garantir que as operações contraterroristas fossem executadas com respeito aos direitos humanos e ao império da lei. Exortamos o senhor a reafirmar esse compromisso, revelando, na maior medida possível, a natureza do envolvimento americano em operações de detenção, interrogatório e transferência no estrangeiro, referentes à prisão na Somália, de modo que possa haver um diálogo público de peso quanto ao enquadramento dessas operações dentro da lei.
Apesar da retórica dos primeiros dias do presidente Obama e seus subordinados sobre a necessidade de equilíbrio entre liberdade e segurança, em dois anos de governo ficou claro que a Casa Branca vinha escolhendo sistematicamente a segurança em detrimento das liberdades civis. E embora alguns dos excessos da era Bush tenham acabado e outros tenham sido refreados, o programa de morte/captura estava crescendo, e não diminuindo. Muitas dúvidas graves ainda se projetavam sobre o programa de assassinatos dirigidos: estaria realmente tornando os Estados Unidos um país mais seguro? Essas operações resultariam em menos ou em
mais terrorismo? As ações empreendidas pela Casa Branca em nome da luta contra o terrorismo — ataques de drones, assassinatos, prisões — acaso não estariam ajudando grupos como a AlShabab, a AQPA e o Talibã a recrutar novos membros e simpatizantes?
No começo de 2011, a Al-Shabab controlava com firmeza uma região da Somália maior que a controlada pelo governo federal de transição, mesmo considerando que este era apoiado por milhares de soldados da União Africana, treinados, armados e financiados pelos Estados Unidos. Em Mogadíscio, apesar do dinheiro e das armas dos americanos, grande parte das forças da Amisom estava confinada a suas bases. Em vez de combater a insurreição, elas optaram por bombardear regularmente19 áreas controladas pela Al-Shabab e cheias de civis. O JSOC estava eliminando militantes, mas o número de civis mortos pelos bombardeios da Amisom levou alguns líderes de clãs a dar apoio à Al-Shabab. Enquanto isso, o governo somaliano era visto como fraco, ilegítimo ou coisa pior. “Noventa e nove por cento dos integrantes do governo são corruptos, imorais, desonestos, marcados pela comunidade internacional, disse-me Mohammed Farah Siad, um empresário de Mogadíscio que visitei em sua casa, perto do porto de Mogadíscio, no verão de 2011. Siad, que tinha seu negócio desde 1967, reclamava por ter de pagar propinas regulares e por ser roubado, assim como outros importadores, por funcionários do governo. “Acho que essas pessoas devem ter sido escolhidas por estar entre as piores. Quanto mais criminoso você for, quanto mais usuário de drogas, mais será escolhido para membro do Parlamento somaliano.” O governo, disse ele, existia para “trapacear por dinheiro”. Siad, que condenava decisivamente a Al-Shabab e a Al-Qaeda, disse que a Al-Shabab era muito mais bem organizada que o governo somaliano, e acreditava que se as tropas da Amisom se retirassem, a Al-Shabab tomaria o poder. “Imediatamente, em meia hora”, disse ele. “Em menos de meia hora.” Os somalianos, disse ele, viam-se obrigados a escolher entre os “ladrões” do governo e os “criminosos” da Al-Shabab. “Estamos órfãos”,20 concluiu. A Al-Shabab controlava o que “se calcula em metade da Somália, que é do tamanho do Texas. Então você pode imaginar como a área é grande — inclusive uma parte de Mogadíscio, a capital”, calculava Aynte. Estava claríssimo que se o governo somaliano era incapaz de instituir forças policiais e militares que pudessem estabilizar pelo menos a capital, a influência da AlShabab continuaria crescendo. Cada suicídio de homem-bomba dava prova de que o governo era vulnerável, e cada morteiro que explodia em áreas de civis trazia a mensagem de que o governo — e as forças da União Africana apoiadas pelos Estados Unidos — não estava do lado do povo. Com a maioria dos somalianos entre um governo pelo qual nutriam desprezo e militantes islâmicos que lhes infundia temor, o governo Obama deu a conhecer o que chamava de política “de duas vias”21 para a Somália. Seu governo trataria ao mesmo tempo com o “governo central”
de Mogadíscio e com chefes regionais e de clãs de toda a Somália. “A política de duas vias é apenas um novo rótulo22 para a velha e fracassada política do governo Bush, observou o analista somaliano Afyare Abdi Elmi. “Ela fortalece inadvertidamente as divisões de clãs, desgasta tendências democráticas e inclusivas e, principalmente, cria ambiente propício para o retorno do caos organizado ou do domínio dos chefes de milícias.” A política de duas vias dava espaço para que governos regionais autoproclamados e com base em clãs pretendessem reconhecimento e apoio dos Estados Unidos. “Governos locais pipocam a cada semana”, disse Aynte na época. “A maior parte deles não controla lugar nenhum, mas as pessoas anunciam esses governos municipais na esperança de que a CIA estabeleça um pequeno posto avançado em sua cidadezinha.” Em meados de 2011, segundo o New York Times, “em Washington, funcionários americanos disseram que estavam se travando debates sobre a questão de até que ponto os Estados Unidos podiam confiar no treinamento de milícias clandestinas e em ataques de drones armados para combater a Al-Shabab”. “Durante o ano passado, a embaixada dos Estados Unidos em Nairóbi, segundo um funcionário americano, tornou-se um enxame de quadros operacionais militares e da Inteligência que estão ‘em cócegas’ para multiplicar as operações na Somália.”23 Enquanto os Estados Unidos endureciam sua retórica e seus ataques contra a Al-Shabab, seus êxitos táticos ocorriam sobretudo em áreas rurais fora de Mogadíscio. Na capital somaliana, a força contraterrorista treinada e financiada pela CIA mostrava poucos ganhos tangíveis. “Até agora, o que não vimos foram resultados”, disse-me o alto funcionário da Inteligência somaliana no verão de 2011. Ele admitiu que nem as forças americanas nem as da Somália tinham sido capazes de executar com sucesso uma única missão dirigida em áreas da capital controladas pela Al-Shabab. No fim de 2010, segundo aquele funcionário, agentes somalianos treinados pelos Estados Unidos executaram uma operação numa área controlada pela Al-Shabab que foi um rotundo fracasso e resultou na morte de diversos agentes. “Houve uma tentativa, mas foi infeliz”, lembrou ele. Em 3 de fevereiro de 2011, a Al-Shabab transmitiu a execução24 de um suposto informante da CIA por seu canal de televisão, o Al-Kataib. Ao mesmo tempo que lutavam para ter algum êxito com o mais recente projeto da CIA na Somália, os Estados Unidos travavam sua campanha contra a Al-Shabab privilegiando o apoio dado às forças da Amisom, que estavam longe de executar sua missão com algo parecido com precisão cirúrgica. A Amisom divulgava frequentes comunicados à imprensa em que se vangloriava de seus triunfos contra a Al-Shabab e da retomada de territórios, mas a realidade era bem mais complicada. Caminhando pelas áreas que a Amisom tinha retomado em 2011, vi um emaranhado de túneis subterrâneos usados no passado pelos combatentes da Al-Shabab para se deslocar de um prédio a outro. Segundo alguns relatos, os túneis se estendiam ininterruptamente ao longo de quilômetros. Restos de comida, mantas e cartuchos de munição ainda estavam espalhados perto das posições de “ataque surpresa” usadas então por atiradores da Al-Shabab, protegidas por
sacos de areia — era tudo o que restara das posições da guerrilha. Não só os combatentes da AlShabab tinham sido expulsos das áreas de superfície: os civis que antes residiam nelas foram expulsos também. Quando estive lá, percebi em diversas ocasiões disparos de artilharia feitos pelas forças da Amisom, de sua base no aeroporto, contra o mercado de Bakaara, onde bairros inteiros tinham sido totalmente abandonados. As casas estavam em ruínas e os animais perambulavam por ali mascando lixo. Em alguns pontos, havia corpos sepultados às pressas em covas em que a terra mal os cobria. Do outro lado da estrada, num velho bairro da Al-Shabab, um corpo sem cabeça jazia poucos metros adiante de um novo posto de controle do governo. Numa série de entrevistas em Mogadíscio, diversos líderes internacionalmente reconhecidos do país, entre eles o presidente Sharif, pediram que o governo dos Estados Unidos aumentasse substancialmente e com rapidez a assistência prestada às Forças Armadas somalianas, em forma de treinamento, equipamento e armas. Mais ainda, diziam que sem instituições civis viáveis, a Somália permaneceria vulnerável a grupos terroristas que mais adiante poderiam desestabilizar não apenas a Somália, mas toda a região. “Acho que os Estados Unidos devem ajudar25 os somalianos a instituir um governo que proteja civis e seu povo”, disse Sharif. Mas os Estados Unidos não tinham fé em Sharif, nem em outros funcionários do governo — e tinham razões para isso. “Se [o governo somaliano] estivesse fazendo alguma coisa além de embolsar todo o dinheiro que lhe foi dado, teria muito mais recursos que a Al-Shabab”,26 disse Ken Menkhaus, o especialista em Somália da Davidson College. Segundo o Grupo de Monitoramento das Nações Unidas na Somália, o armamento e as munições entregues ao governo somaliano e a “milícias associadas” estavam aparecendo cada vez mais no mercado negro e acabavam em mãos da AlShabab. As Nações Unidas estimavam que “o governo e as forças governistas vendiam entre um terço e a metade de sua munição”27 no mercado negro. Na luta contra a Al-Shabab, o governo dos Estados Unidos não se alinhava incondicionalmente ao governo da Somália. A estratégia americana que estava se afirmando no país — tendo como política declarada o aumento da presença secreta e planos de financiamento — apresentava duas vertentes. Por um lado, a CIA treinava, pagava e ocasionalmente dirigia os agentes da Inteligência somaliana que não estavam sob controle firme do governo somaliano, enquanto o JSOC executava ataques unilaterais sem prévio conhecimento do governo. De outro, o Pentágono aumentava seu apoio a operações contraterroristas de forças militares africanas não somalianas e lhes proporcionava armamento. Em 2011, um somaliano que estava exercendo bastante controle em seu território era Indha Adde, ex-ministro da Defesa da União das Cortes Islâmicas e antigo aliado da Al-Shabab. Quando o visitei, no verão de 2011, ele tinha assumido a identidade de general Yusuf Mohammed Siad e ostentava um uniforme militar com três estrelas. Tornara-se oficial de alta patente das Forças Armadas somalianas. Enquanto os Estados Unidos e outras potências ocidentais, sob os auspícios da Amisom, comandavam exercícios de treinamento especializado dirigidos às Forças Armadas de Uganda e do Burundi, às quais também forneciam armamento e
equipamento ao custo de centenas de milhões de dólares, o governo da Somália mal podia pagar28 a seus próprios soldados. As Forças Armadas somalianas estavam carentes de verbas e mal armadas, seus soldados ganhavam mal, eram indisciplinados, e no final das contas, mais leais aos próprios clãs do que ao governo central. Foi assim que nasceu o programa alugue-umamilícia. E Indha Adde era um exemplo primoroso de como isso funcionava. Enquanto Washington fazia de tudo para esconder o apoio que dava aos chefes de milícias na Somália, os acordos que seus representantes na Etiópia, no Quênia e na Amisom faziam com chefes de milícias — similares aos que tinham sido intermediados pela Aliança pelo Restabelecimento da Paz e de Contraterrorismo da CIA no início da década de 2000 — eram, em Mogadíscio, um segredo de polichinelo. O governo dos Estados Unidos privilegiava suas próprias operações fulminantes unilaterais, mas o governo da Somália e a Amisom buscavam o apoio de personagens indigestos num esforço duplo: construir de forma independente algo que se assemelhasse minimamente a um Exército nacional, e — de forma bem parecida à tentativa americana com seu Conselho do Despertar nas áreas sunitas do Iraque em 2006 — comprar lealdade estratégica de antigos aliados do inimigo do momento. Indha Adde ganhou uma patente, apesar de nunca ter servido num exército regular, enquanto outros foram agraciados com ministérios em troca da cessão de suas milícias para a luta contra a Al-Shabab. Vários deles eram antigos aliados da Al-Qaeda ou da Al-Shabab, e muitos tinham combatido diretamente a invasão etíope patrocinada pelos Estados Unidos, ou tinham lutado contra a missão liderada pelos Estados Unidos na Somália, no começo da década de 1990, que culminou com o incidente da derrubada dos Black Hawks. Outras milícias eram pouco menos que representantes dos governos da Etiópia e do Quênia, ambos firmemente apoiados por Washington. Em 2011, Indha Adde tinha se transformado numa espécie de híbrido de suas personalidades anteriores, um chefe de milícia islâmico que acreditava na sharia, recebia dinheiro e armas da Amisom e cultivava relações amigáveis com a CIA. Grande parte de Mogadíscio era inacessível sem a anuência de Indha Adde, que controlava uma das maiores milícias e possuía mais veículos de combate na cidade que qualquer outro chefe de milícia. Seu técnico em mecânica, que montava caminhonetes especialmente armadas para seus homens (e guardava uma estranha semelhança com o ator americano Mr. T), era reconhecido como o melhor de Mogadíscio. Com alta patente militar e uma inundação de armas modernas, Indha Adde era mais poderoso — e pelo menos do modo como ele se via —, mais respeitável do que nunca. Eu estava diante de uma das casas de Indha Adde, esperando que sua comitiva preparasse a partida para as linhas de frente, quando um Toyota Corolla encostou. Em instantes, caixas e mais caixas de munição novinha começaram a ser descarregadas. Indha Adde levou-me a diversas linhas de frente em que sua milícia estava lutando contra a Al-Shabab. No caminho entre uma e outra de suas várias posições, fomos alvo de disparos contínuos de atiradores da Al-Shabab. Meses antes,29 o guarda-costas de Indha Adde tinha
levado um tiro na cabeça ao se postar diante do chefe numa batalha contra combatentes da AlShabab. Segundo o relato de testemunhas, Indha Adde lançou o corpo do homem sobre o ombro, levou-o até um lugar seguro, pegou uma arma automática e disparou contra os algozes. “Numa só noite, disparei 120 projéteis de AK-47,30 quatro carregadores e 250 balas de metralhadora. Sou o combatente número um nas linhas de fogo”, disse-me ele, enquanto caminhávamos pelos restos bombardeados de um bairro que seus homens tinham retomado havia pouco da Al-Shabab. Ao contrário dos homens da Amisom, Indha Adde não usava colete à prova de balas e a toda hora parava para atender a ligações no celular com fone de ouvido. “O papel de um general é uma via de mão dupla. Numa guerra convencional e bem financiada, os generais ficam na retaguarda e comandam dando ordens”, declarou. “Mas na guerra de guerrilhas, como a que temos, o general precisa estar na linha de frente para levantar o moral de seus homens.” Quando passávamos pelas trincheiras nas cercanias do mercado de Bakaara, que tinha sido ocupado por combatentes da Al-Shabab, a comitiva de Indha Adde se deteve. Numa das valas, de uma sepultura improvisada constituída de um pouco de areia amontoada de qualquer jeito sobre um corpo, sobressaía um pé humano. Um dos milicianos de Indha Adde disse que o corpo pertencia a um estrangeiro que lutava ao lado da Al-Shabab. “Sepultamos os mortos deles e capturamos soldados com vida”, disse-me Indha Adde com sua voz baixa e áspera. “Se são somalianos, cuidamos deles, mas quando capturamos um estrangeiro, ele é executado para que os outros possam ver que não temos piedade.” Perguntei a Indha Adde por que ele agora lutava do lado dos Estados Unidos contra seus antigos aliados da Al-Shabab, e ele despejou algo semelhante a versos decorados sem fazer uma só pausa: “Terroristas internacionais estrangeiros entraram no país, começaram a matar nossa gente. Mataram alguns de nossos pais, estupraram nossas mulheres e saquearam nossas casas. Tenho a obrigação de defender meu povo, meu país e minha religião. Tenho de libertar meu povo ou morrer tentando”. Os militantes da Al-Qaeda e da Al-Shabab tinham mudado, não ele, disse. “Os terroristas estão desvirtuando a religião”, disse ele. “Se eu soubesse antes o que sei agora — que os caras que eu estava protegendo eram terroristas —, teria entregado todos para a CIA sem pedir nada.”
Uma das forças mais poderosas a surgir da aliança entre o governo da Somália e as milícias para combater à Al-Shabab foi a Ahlu Sunna Wal Jama (ASWJ), organização paramilitar muçulmana sufista. Fundada31 na década de 1990 como entidade de tendências políticas, mas dedicada a promover o estudo do sufismo e à prestação de trabalhos comunitários e assumidamente não militante, a ASWJ se via como um para-choque contra o que entendia como um avanço do wahabismo na Somália. Proclamava como missão “pregar uma mensagem32 de paz e desautorizar as crenças e a plataforma política” de “movimentos fundamentalistas”.
Administrava madraçais e ensinava a memorização do Alcorão. Os serviços religiosos da seita, que incluía muitos cânticos de grupo, mais parecia um culto dominical evangélico do que as pregações das sextas-feiras nas mesquitas de todo o mundo muçulmano. Em 2008, a Al-Shabab começou a atacar líderes da Ahlu Sunna, executando assassinatos e profanando33 as sepulturas de seus anciãos. A Al-Shabab via a ASWJ como um culto cujas práticas de celebração da morte e de falar em línguas desconhecidas configuravam heresia. Depois de muita discussão34 dentro da comunidade ASWJ, seus integrantes formaram milícias para pegar em armas contra a Al-Shabab. No início, suas tropas, integradas por combatentes clânicos indisciplinados e por intelectuais religiosos, deixavam muito a desejar. Então, na surdina, a Etiópia começou a armar e financiar35 a ASWJ, dar-lhe treinamento e, no fim, a enviar soldados.36 No começo de 2010, a ASWJ era vista em geral como mandatária da Etiópia — e portanto dos Estados Unidos. Em março de 2010, depois de um acalorado debate interno, a ASWJ assinou um acordo formal de cooperação37 com o governo da Somália. Um dos primeiros beneficiários da nova condição da ASWJ como milícia paramilitar foi Abdulkadir Moalin Noor, conhecido simplesmente como “o Califa”, ou “o sucessor”. Seu pai, homem santo38 amplamente reverenciado, tinha morrido em 2009 aos 91 anos e designara Noor como novo líder espiritual do movimento. Educado em Londres, Noor administrava os investimentos da família fora da Somália. Quando o pai morreu, ele abandonou uma vida de segurança e conforto para voltar a Mogadíscio, onde recebeu o título de ministro de Estado. No entanto, Noor ainda apreciava os luxos do Ocidente. Circulava por Mogadíscio numa SUV blindada, com peles de animais sobre os assentos. Instalou uma rede de internet sem fio num acampamento da ASWJ perto da capital, que não tinha água encanada, e seu exemplar do Alcorão era lido num iPad novinho em folha. Em seu recém-comprado iPhone branco, mostrou-me um e-mail do ministro das Relações Exteriores da Etiópia. Noor, que se encontrava regularmente com funcionários do governo e agentes de Inteligência do Ocidente, não quis explicitar quem estava financiando a ASWJ do exterior, mas apontou os Estados Unidos como “aliado número um”39 da Somália. “Estou aqui para lhes agradecer, porque estão nos ajudando, lutando contra os terroristas”, disse-me ele. “E que me diz da área militar?”, perguntei. “Não quero mencionar uma porção de coisas”, ele respondeu. “Mas eles estão metidos até o pescoço. Estão trabalhando com nossa Inteligência, dando-lhe treinamento. Estão trabalhando com o pessoal da área militar. Eles têm forças especialmente treinadas aqui lutando contra a Al-Shabab. Não quero revelar, mas sei que estão fazendo um bom trabalho. Eles têm mesmo gente aqui combatendo a Al-Shabab. E com a ajuda de Alá esperamos que esse caos termine logo.” Em meados de 2011, as milícias da ASWJ tinham se afirmado como uma das mais efetivas forças de combate à Al-Shabab fora de Mogadíscio, retomando territórios na região de Mudug40 e em diversos outros bolsões do país. Mas, como ocorria com os mais poderosos grupos paramilitares da Somália, as coisas não eram bem o que pareciam.
O Grupo de Monitoramento das Nações Unidas na Somália declarou que algumas das milícias da ASWJ “são, aparentemente, mandatárias41 de Estados vizinhos, e não autoridades locais emergentes”. A ASWJ recebia apoio42 também da Southern Ace, empresa privada de segurança. Registrada formalmente em Hong Kong em 2007 e dirigida por um sul-africano branco, Edgar Van Tonder, a Southern Ace cometeu “graves violações43 do embargo de armamentos” imposto à Somália, segundo as Nações Unidas, e “começou também a explorar possibilidades de tráfico de material bélico, além de se envolver em experimentos hortícolas voltados para a produção de drogas,44 entre elas maconha, cocaína e ópio”. Entre abril de 2009 e o começo de 2011, segundo as Nações Unidas, a
Southern Ace e seus associados locais recrutaram e puseram em operação uma milícia de 220 integrantes, forte e bem equipada […] supervisionada por uma dúzia de zimbabuanos e três ocidentais, a um custo estimado de 1 milhão de dólares em salários e pelo menos 150 mil dólares em armas e munição. O resultado foi a criação de uma das forças mais poderosas […] com potencial para alterar o equilíbrio de poder na área.45
A Southern Ace começou a comprar armas no mercado de material bélico da Somália, entre elas dezenas de fuzis Kalashnikov, metralhadoras pesadas, lançadores-propelentes de granadas e uma metralhadora antiaérea ZU-23 com 2 mil projéteis. As compras de armas da empresa “eram tão grandes” que autoridades locais “notaram um aumento significativo no preço da munição e uma escassez de projéteis para a ZU-23”. Algumas dessas armas estavam montadas em veículos de tração nas quatro rodas e caminhonetes. A empresa importou das Filipinas para a Somália “uniformes de tipo militar e coletes à prova de balas para apoiar suas operações”,46 segundo as Nações Unidas. Apoiada pela Etiópia e pela Southern Ace, a ASWJ empreendeu uma série de importantes ofensivas contra a Al-Shabab que, segundo as Nações Unidas, foram executadas em violação ao embargo de armas. Sem dúvida, a Etiópia e os Estados Unidos viam a ASWJ como a principal contrapartida à retórica da Al-Shabab e da Al-Qaeda, e em apenas três anos transformaram uma entidade que na origem não era violenta num dos mais poderosos grupos armados da Somália. “Até certo ponto, o apoio de governos estrangeiros a forças que atuam como prepostas suas na Somália representa um retorno à era dos chefes de milícias47 da década de 1990 e início da década seguinte”, concluiu com concisão um relatório das Nações Unidas. Essas práticas, continuou, “mostraram-se historicamente contraproducentes”.
A Southern Ace estava longe de ser a única empresa mercenária a intervir na Somália. Nenhuma guerra americana moderna estaria completa sem a participação de Erik Prince,
fundador da Blackwater. Embora os crimes e escândalos de sua empresa tenham ficado intimamente ligados48 aos neoconservadores e à era Bush, as forças da Blackwater continuaram a desempenhar importante papel nas operações globais da CIA no governo Obama. Com a Blackwater submetida a profundas investigações e seus principais subordinados indiciados por conspiração e uso indevido de material bélico nas instâncias federais, Prince saiu dos Estados Unidos em 2010 e se radicou em Abu Dhabi, nos EAU, importante ponto de irradiação da atividade mercenária e da ação bélica terceirizada como um todo. Prince tinha ligações estreitas com a realeza, especialmente com o príncipe herdeiro de Abu Dhabi. Disse que tinha escolhido Abu Dhabi por causa da “grande proximidade com potenciais oportunidades49 em todo o Oriente Médio, e da excelente logística”, acrescentando que o lugar tinha “um ótimo ambiente para os negócios, impostos baixos ou inexistentes, livre-comércio e nenhum advogado ou sindicato fora de controle. É propício aos negócios e às oportunidades”. Depois de adotar os EAU como pátria, Prince deu continuidade a suas atividades mercenárias. Deixara os Estados Unidos, disse, para “evitar que os chacais metam a mão no meu dinheiro”,50 acrescentando que queria explorar novas oportunidades “na área energética”. Poucos dias antes do Natal de 2010, Prince pousou no aeroporto internacional de Mogadíscio, desembarcou do jatinho particular que o levara e foi conduzido à sala VIP, onde esteve reunido com pessoas não identificadas durante uma hora. Depois disso voltou para o avião e decolou. “Tínhamos ouvido falar muito nas ambições da Blackwater de deixar sua marca na Somália”,51 disse um funcionário ocidental na ocasião. Havia muito que Prince estava interessado em montar uma força particular de combate à pirataria que pudesse zarpar da costa da Somália. No fim de 2008, ele estava em negociação com mais de uma dúzia de companhias de navegação52 sobre a contratação da Blackwater para proteger seus navios em trânsito no Chifre da África e no golfo de Áden. Em 2006, ele tinha comprado um barco de 183 pés,53 o McArthur, que transformou numa nave-mãe antipirataria capaz de comportar helicópteros Little Bird, botes infláveis, 35 soldados privados e uma metralhadora calibre 50. “Poderíamos tirar os barcos de lá,54 perseguir e deter os barcos de pesca que os piratas estão usando a um custo bem menor do que a Marinha teria com suas belonaves de 1,5 bilhão, 2 bilhões de dólares”, disse Prince. A União Europeia, disse ele, “estava lá com 24 navios tentando cobrir uma área de 5 milhões de quilômetros quadrados do oceano Índico no combate a piratas somalianos. Isso dá 2,5 milhões de quilômetros quadrados por navio. É exatamente o que não se deve fazer”. Prince sugeriu que sua força poderia operar de forma análoga à dos navios corsários durante a Revolução Americana. “Um navio corsário era uma embarcação privada, com tripulação privada e um capitão privado, que recebia uma licença de caça. É chamada de carta de corso. Está prevista na Constituição”, declarou Prince num discurso pouco antes de partir para os EAU. “Eles tinham autorização para caçar barcos inimigos e faziam isso muito bem. Até o general Washington investia nesse tipo de operações de corsários.”
Não havia dúvida de que a pirataria vinha aumentando ao largo da costa da Somália. Os ataques de piratas continuaram a crescer no segundo semestre de 2010 — de setembro desse ano a janeiro de 2011, o número de reféns tomados por piratas subiu de 250 para 770.55 Os piratas começaram a exigir resgates cada vez mais exorbitantes e a usar “naves-mães” confiscadas para executar ataques mais ambiciosos. Em janeiro de 2011, soldados americanos executaram uma incursão antipirataria em terra, capturando três jovens somalianos56 e levando-os a bordo de um navio para interrogatório. Pouco depois, o líder das forças navais do Centcom, vice-almirante Mark Fox, sugeriu que os Estados Unidos empregassem medidas contraterroristas na luta contra piratas somalianos. Citando a progressiva sofisticação da tecnologia usada pelos piratas, assim como sua ligação com a Al-Shabab, Fox propôs que os ataques piratas fossem contidos em terra ainda embrionários. “A Al-Shabab é responsável57 por muita atividade de treinamento, acampamentos e esse tipo de coisa na Somália”, declarou. “Os piratas usam essas coisas. Na minha opinião, não pode haver uma separação entre a atividade contraterrorista e a contrapirataria.” Embora Fox possa ter exagerado as ligações entre a Al-Shabab e a pirataria — vários relatos indicam que a Al-Shabab estava extorquindo os piratas58 muito mais do que se coordenando com eles —, ele tinha razão ao dizer que os piratas estavam se tornando mais ousados. Em 16 de fevereiro de 2011, Abduwali Muse — o único pirata julgado pelo sequestro do Maersk Alabama, foi condenado a 33 anos de prisão.59 Dois dias depois, um iate particular, o SV Quest, de propriedade de Jean e Scott Adam, que moravam na Califórnia, enviou um SOS.60 Eles tinham sido capturados com os tripulantes Phyllis Macay e Robert Riggle, baseados em Seattle, a 440 quilômetros61 da costa de Omã. Uma flotilha pertencente à Quinta Frota dos Estados Unidos que estava no local começou a rastrear o Quest pouco depois de enviada a mensagem de sua captura, com o apoio de helicópteros62 e drones desarmados.63 A missão de resgate alcançou o Quest em águas internacionais entre o extremo norte de Puntland e a ilha iemenita de Socotra. No dia seguinte, o presidente Obama autorizou o uso de força letal.64 Mas se em todos os aspectos a neutralização dos piratas que tomaram o Maersk Alabama foi um sucesso, a missão de libertação de passageiros e tripulantes do Quest foi um desastre. Um bando de piratas extraordinariamente numeroso — dezenove membros — e incontrolável estava a bordo do iate, tornando impossível replicar o desfecho conciso do resgate do Alabama: “Três tiros, três piratas mortos”. Portanto, o impasse continuou até que dois piratas do Quest se dispuseram a subir a bordo de um dos navios65 para negociar com o FBI. Assim que começaram as conversações, os agentes do FBI prenderam os piratas. Na manhã seguinte, uma granada propelida por foguete (rocket-propelled grenade, RPG) foi disparada contra um dos barcos da Marinha e teve início uma troca de tiros.66 Dois piratas morreram. As forças americanas então lançaram-se à ação: duas lanchas motorizadas levaram quinze comandos SEALs até o iate, onde se travou um intenso combate corpo a corpo. Dois piratas foram mortos pelos SEALs, um
deles baleado e o outro esfaqueado. Mas já era tarde demais para os reféns.67 Dois estavam mortos e os demais tinham sido feridos de morte. Não ficou claro se foram executados ou apanhados pelo fogo cruzado. Numa entrevista coletiva concedida por telefone, o almirante Fox afirmou que os reféns tinham sido baleados antes da abordagem e da violenta operação de resgate. Um correspondente da BBC que falou com os piratas disse que eles assumiram a autoria do assassinato dos cativos,68 que no entanto só teriam sido mortos depois que a Marinha americana disparou os primeiros tiros, que mataram os dois primeiros piratas. Os quinze sobreviventes69 foram detidos pelos americanos, e catorze deles foram mais tarde indiciados por pirataria e sequestro (o décimo quinto era menor, e apurou-se que não tinha tido papel central no crime). Deixando manifesta uma das qualidades que determinaram a ascensão da Blackwater, Erik Prince viu, mais uma vez, oportunidade na crise. Em 2009, a Blackwater tinha firmado um acordo70 com o governo do Djibuti para operar o navio antipirataria McArthur a partir do território djibutiano (mais tarde, o navio foi vendido a uma subsidiária da Saracen International). O acordo resultou de uma série de reuniões entre autoridades do Djibuti com Prince e Cofer Black, ex-chefe do Centro de Contraterrorismo da CIA, que na época era alto executivo da Blackwater. Cálculos iniciais mostram que a empresa poderia ganhar cerca de 200 mil dólares pelo acompanhamento de cada navio das companhias de navegação. A tripulação era composta de 33 americanos, entre eles três grupos de seis atiradores que operavam em turnos ininterruptos. “A Blackwater não pretende prender nenhum pirata, e sim usar força letal contra piratas, se necessário for”, segundo um telegrama diplomático americano sobre o acordo, observando que a Blackwater “tinha feito briefings para o Africom, o Centcom e funcionários da embaixada dos Estados Unidos em Nairóbi”. O telegrama acrescentava que “não havia precedente de uma operação militar num ambiente puramente comercial”. A indústria da pirataria da Somália tinha sua base na região semiautônoma de Puntland, pouco interessada em cooperar com o governo de Mogadíscio apoiado pelos Estados Unidos. As autoridades de Puntland vinham enfrentando uma pressão cada vez maior da comunidade internacional para reprimir os piratas, e um movimento islâmico local ameaçava sua possibilidade de assinar lucrativos contratos de exploração de petróleo e minérios com grandes empresas. A Somália possui grandes depósitos de “urânio e reservas pouco exploradas de minério de ferro, estanho, gipsita, bauxita, cobre, sal e gás natural, assim como de petróleo”,71 segundo a CIA. No fim de 2010, o governo de Puntland anunciou que estava criando sua própria força de combate à pirataria e ao terrorismo,72 e declarou que tinha recebido financiamento de uma nação doadora do Golfo Pérsico. Revelou-se mais tarde73 que a nação doadora era nada menos que os EAU e que a empresa contratada para o treinamento da força de segurança era financiada por um de seus mais recentes residentes, Erik Prince. A empresa, a Saracen International, era administrada por veteranos da antiga empresa mercenária Executive Outcomes74 e tinha escritórios e empresas fantasmas75 em numerosos
países, entre eles África do Sul, Uganda, Angola e Líbano. Entre os principais personagens da empresa estava Lafras Luitingh, antigo oficial do Bureau de Cooperação Civil da África do Sul,76 notória força de segurança conhecida por caçar e matar opositores do regime de apartheid. Segundo um relatório confidencial da Inteligência da Amisom, Prince estava no “topo da cadeia de administração da Saracen” e “proporcionava capital de arranque77 para contrato da Saracen”. Segundo o Grupo de Monitoramento das Nações Unidas na Somália, Prince e Luitingh encontraram-se em Washington em outubro de 2009, e daí se reuniram com representantes do governo de Abu Dhabi.78 Os EAU contrataram também um ex-diplomata americano,79 o advogado Pierre-Richard Prosper, que tinha atuado como embaixador itinerante para questões relacionadas a crimes de guerra no governo do presidente Bush, e o ex-oficial da CIA Michael Shanklin, ex-chefe da estação da CIA em Mogadíscio. No fim de 2010, a Saracen estava treinando uma força antipirataria de mil homens80 no norte de Puntland. Esse exército estava sendo preparado também para capturar militantes islâmicos que estivessem ameaçando boas oportunidades de negócio. Os militantes islâmicos haviam reclamado que tinham sido “excluídos dos negócios de exploração de energia” em sua região. “Não se pode ter exploração de petróleo81 onde houver insegurança”, declarou Mohamed Farole, filho e assessor do presidente de Puntland, Abdirahman Mohamed Farole. Em maio de 2011, as operações da Saracen em Puntland estavam em andamento:82 na base de Bandar Siyada, perto de Bosaso, 470 soldados e pilotos tinham completado seu treinamento. Havia planos de equipar a força com três aeronaves de transporte e três de reconhecimento, dois helicópteros de transporte e dois helicópteros leves. A força que estava sendo montada seria, segundo o Grupo de Monitoramento das Nações Unidas, a mais bem equipada das forças autóctones de toda a Somália e a maior das iniciativas militares com apoio externo depois da Amisom. Provas fotográficas mostram que pessoal da Saracen já tinha sido enviado a Somália para fazer a segurança de figurões e de operações humanitárias. A Saracen também tinha feito acordo com o governo do presidente xeque Sharif em Mogadíscio para formar um destacamento de segurança pessoal para o presidente e outros altos funcionários do governo. As operações da Saracen em Mogadíscio já eram perceptíveis em outubro de 2010. Luitingh, Shanklin e um pequeno grupo da Saracen viajaram para Mogadíscio83 em 5 de outubro. Nas três semanas seguintes, receberam dos EAU quatro veículos blindados, equipados com torres de artilharia. Parecia que o presidente Sharif e seu primeiroministro tinham feito acordos secretos com a Saracen e pelo menos cinco outras empresas de segurança privada84 que haviam se estabelecido nos arredores do aeroporto internacional de Mogadíscio. Não demorou para que essas atividades ostensivas levantassem suspeitas e preocupações na Amisom e entre políticos somalianos. O comandante da Amisom, general Nathan Mugisha, manifestou sua preocupação com “grupos armados desconhecidos85 na área da missão”, em referência às operações da Saracen. Enquanto isso, legisladores somalianos anunciavam, no fim de 2010, que exigiam a suspensão de contratos86 com prestadores privados
de serviços de segurança, alegando que não tinham ideia de para que funções esses prestadores de serviço haviam sido contratados. Enquanto transcorria a última guerra privada de Prince e da Saracen, estourou o escândalo. O Grupo de Monitoramento das Nações Unidas declarou que a Saracen vinha atuando em flagrante violação ao embargo de armas à Somália e concluiu, em seu relatório, que, “apesar das efêmeras e malsucedidas iniciativas da Southern Ace no tráfico de armas e drogas, a mais flagrante violação do embargo de armas praticada por uma empresa privada durante o mandato do Grupo de Monitoramento das Nações Unidas foi perpetrada pela Saracen International, em associação com uma obscura rede de entidades a ela filiadas”.87 O Grupo de Monitoramento das Nações Unidas sugeriu que as operações continuadas da Saracen poderiam aumentar o apoio popular a milícias islâmicas locais e, possivelmente, à Al-Shabab. “A presença da Saracen aumentou a tensão88 no nordeste da Somália”, concluiu. Um ano depois, em resposta a um novo relatório das Nações Unidas, o advogado da Saracen acusou o grupo de monitoramento de publicar “um conjunto de insinuações sem fundamento e frequentemente falsas”. No começo de 2011, quando o envolvimento de Prince com a Saracen se tornou público, seu porta-voz, Mark Corallo, disse que Prince estava sendo levado simplesmente pelo imperativo humanitário de ajudar a “Somália a superar o flagelo da pirataria”89 e afirmou que ele não tinha interesse financeiro no trabalho da Saracen. “Não queremos nada com a Blackwater”,90 disse ao New York Times o ministro da Informação da Somália, Abdulkareem Jama, lembrando a matança de iraquianos inocentes na praça Nisour, em Bagdá, em 2007. “Precisamos de ajuda, mas não queremos mercenários.” Jama não mencionou que esteve presente, junto com outras autoridades da Somália, nas negociações do acordo com a Saracen.91 Na primavera de 2011, Puntland anunciou que estava suspendendo as operações da Saracen92 para aguardar a aprovação das Nações Unidas. Mas um alto funcionário do governo somaliano disse-me que a empresa ainda atuava discretamente93 em Mogadíscio, ao lado de forças somalianas de segurança. Entre outras empresas privadas de segurança94 com base no aeroporto de Mogadíscio estavam a AECOM Technology Corporation, a OSPREA Logistics, a PAE, a Agility, a RA International, a International Armored Group, a Hart Security, a DynCorp, a Bancroft e a Threat Management Group. Algumas delas treinavam os serviços de segurança da Somália, outras apoiavam a Amisom, outras ainda davam apoio logístico para grupos de ajuda e jornalistas. Algumas dessas empresas, como a Bancroft, eram bem conhecidas, mas as atividades desempenhadas por outras eram secretas e livres de fiscalização eficaz. Dessa forma, eram perfeitamente adequadas para a Somália. Eram convenientes para Washington também. “Não queremos pegadas95 nem coturnos americanos nesse solo”, disse Johnnie Carson, principal representante do governo Obama na Somália. Apesar do papel cada vez maior da CIA e do JSOC, e do uso de chefes de milícias transformados em generais e de empresas mercenárias, a maior vitória tática dos anos recentes na Somália não
foi conquistada pela Amisom, pela CIA ou pelo JSOC, nem por nenhuma força local apoiada pelos Estados Unidos, e sim por membros de uma milícia integrante da caótica Força Armada do governo somaliano. E foi por puro acidente.
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