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JEREMY SCAHILL Guerras sujas O mundo é um campo de batalha
Tradução Donaldson Garschagen
Para os jornalistas — os que foram presos por fazer seu trabalho e os que morreram na busca pela verdade.
É proibido matar; portanto, todos os assassinos serão punidos, a menos que matem em grande número e ao som de trombetas. Voltaire
Sumário
Mapas Nota ao leitor Prólogo
1. “Havia a preocupação […] de não criar uma lista negra americana” WASHINGTON, DC, 2001-2 2. Anwar Awlaki: uma história americana ESTADOS UNIDOS E IÊMEN, 1971-2002 3. Achar, atacar, acabar: a ascensão do JSOC WASHINGTON, DC, 1979-2001 4. O chefe: Ali Abdullah Saleh IÊMEN, 1970-2001; WASHINGTON, DC, 2001 5. O enigma de Anwar Awlaki REINO UNIDO, ESTADOS UNIDOS E IÊMEN, 2002-3 6. “Estamos num novo tipo de guerra” DJIBUTI, WASHINGTON, DC, E IÊMEN, 2002 7. Planos especiais WASHINGTON, DC, 2002 8. Sobrevivência, evasão, resistência, fuga WASHINGTON, DC, 2002-3 9. O criador de caso: Stanley McChrystal ESTADOS UNIDOS, 1974-2003; IRAQUE, 2003 10. “A intenção deles é a mesma que a nossa” SOMÁLIA, 1993-2004 11. “Um inimigo derrotado não é um inimigo destruído” IÊMEN, 2003-6 12. “Nunca confie num infiel” REINO UNIDO, 2003 13. “Você não precisa provar para ninguém que agiu certo” IRAQUE, 2003-5 14. “Sem sangue, sem sujeira” IRAQUE, 2003-4 15. A estrela da morte IRAQUE, 2004 16. “A melhor tecnologia, as melhores armas, o melhor material humano — e um monte de dinheiro para torrar”
AFEGANISTÃO, IRAQUE E PAQUISTÃO, 2003-6 17. “Grande parte daquilo era de legalidade duvidosa” FONTE: “CAÇADOR” 18. A prisão de Anwar Awlaki IÊMEN, 2004-7 19. “Os Estados Unidos conhecem a guerra. Eles são mestres da guerra” SOMÁLIA, 2004-6 20. Fuga da prisão IÊMEN, 2006 21. Perseguição transfronteiras PAQUISTÃO, 2006-8 22. “Todas as medidas tomadas pelos Estados Unidos beneficiaram a Al-Shabab” SOMÁLIA, 2007-9 23. “Se seu filho não vier para cá, será morto pelos americanos” IÊMEN, 2007-9 24. “Obama decidiu manter o rumo fixado por Bush” ESTADOS UNIDOS, 2002-8 25. Ataques com o selo de Obama PAQUISTÃO E WASHINGTON, DC, 2009 26. Os caras das operações especiais querem “resolver essa merda como fizeram na América Central nos anos 1980” WASHINGTON, DC, E IÊMEN, 2009 27. Suicídio ou martírio? IÊMEN, 2009 28. Obama abraça o JSOC SOMÁLIA, COMEÇO DE 2009 29. “Soltem a rédea do JSOC” ARÁBIA SAUDITA, WASHINGTON, DC, E IÊMEN, FINS DE 2009 30. Samir Khan: um improvável soldado de infantaria ESTADOS UNIDOS E IÊMEN, 2001-9 31. Tiro pela culatra na Somália SOMÁLIA E WASHINGTON, DC, 2009 32. “Se matam crianças inocentes e dizem que elas são da Al-Qaeda, todos nós somos da Al-Qaeda” WASHINGTON, DC, E IÊMEN, 2009 33. “Os americanos queriam mesmo matar Anwar” IÊMEN, FIM DE 2009-COMEÇO DE 2010 34. “Sr. Barack Obama […] espero que reconsidere sua ordem de matar […] meu filho” WASHINGTON, DC, E IÊMEN, COMEÇO DE 2010 35. Uma noite em Gardez WASHINGTON, DC, 2008-10; AFEGANISTÃO, 2009-10 36. O ano do drone IÊMEN E ESTADOS UNIDOS, 2010 37. Anwar Awlaki é empurrado para o inferno IÊMEN, 2010 38. A agência matrimonial da CIA
DINAMARCA E IÊMEN, 2010 39. “O leilão do assassino” WASHINGTON, DC, 2010 40. “Estamos aqui para o martírio, meu irmão” IÊMEN, 2009-10 41. A perseguição de Abdulelah Haider Shaye IÊMEN, VERÃO DE 2010 42. O presidente pode criar suas próprias regras WASHINGTON, DC, E IÊMEN, FIM DE 2010 43. “É provável que a cabeça de ponte da Al-Qaeda na Somália tenha sido facilitada” SOMÁLIA, 2010 44. “Anwar Awlaki […] com certeza tem um míssil em seu futuro” IÊMEN, 2011 45. O curioso caso de Raymond Davis: Ato I PAQUISTÃO, 2011 46. O curioso caso de Raymond Davis: Ato II PAQUISTÃO, 2011 47. O tsunami da mudança ÁUSTRIA E IÊMEN, 2011 48. A fortaleza de Abbottabad WASHINGTON, DC, 2010-1; PAQUISTÃO, 2011 49. “Pegamos o cara. Pegamos o cara” PAQUISTÃO, 2011 50. “Agora eles estão atrás do meu filho” SOMÁLIA, WASHINGTON, DC, E IÊMEN, 2011 51. “Foi a sangue-frio” PAQUISTÃO, 2011 52. “Os Estados Unidos consideram a Al-Qaeda como terrorismo, e nós consideramos os drones como terrorismo” IÊMEN, FIM DE 2011 53. A Casa Rosada WASHINGTON, DC, E SOMÁLIA, 2011 54. “Selvageria total em todo o país” SOMÁLIA, 2011 55. Abdulrahman desaparece IÊMEN, 2011 56. Hellfire WASHINGTON, DC, E IÊMEN, 2011 57. Pagar pelos pecados do pai WASHINGTON, DC, E IÊMEN, 2011
Epílogo: A guerra perpétua
Agradecimentos Siglas e abreviaturas Notas
Nota ao leitor
Esta é a história de como os Estados Unidos adotaram o assassinato como parte essencial de sua política de segurança nacional. É também a história das consequências dessa decisão para dezenas de países do mundo inteiro e para o futuro da democracia americana. Embora os ataques do Onze de Setembro tenham alterado radicalmente o modo como os Estados Unidos orientam sua política externa, as raízes dessa história precedem em muito o dia da queda das Torres Gêmeas. No mundo pós-Onze de Setembro existe também uma tendência a ver a política externa americana através de uma lente maniqueísta que, por um lado, leva a considerar a invasão do Iraque pelo segundo presidente Bush como um desastre absoluto que trouxe à nação a ideia de que estava numa guerra global e, por outro, que coube ao presidente Barack Obama pôr ordem na casa. Aos olhos de muitos conservadores, o presidente Obama tem sido fraco no combate ao terrorismo. Aos olhos de muitos liberais, ele travou uma guerra “mais inteligente”. A realidade, porém, é bem mais complicada. Este livro conta a história da expansão das guerras secretas dos Estados Unidos, do abuso das prerrogativas do Poder Executivo e do instituto do segredo de Estado, bem como do emprego de unidades militares de elite que prestam contas exclusivamente à Casa Branca. Guerras sujas revela também, ao longo de governos republicanos e democratas, a sobrevivência da concepção segundo a qual “o mundo é um campo de batalha”. O livro começa com um breve histórico do tratamento dispensado pelos Estados Unidos ao terrorismo antes do Onze de Setembro. Daí em diante, entrelaço diversos relatos que abrangem desde os primeiros dias do governo Bush até o segundo mandato de Obama. Chegamos a conhecer figuras da Al-Qaeda no Iêmen, chefes de milícias da Somália apoiados pelos Estados Unidos, espiões da Agência Central de Inteligência (Central Intelligence Agency, CIA) no Paquistão e Comandos de Operações Especiais encarregados de caçar pessoas acusadas de serem os inimigos dos Estados Unidos. Conhecemos homens que comandam as operações mais secretas das Forças Armadas e da CIA, e ouvimos as histórias de participantes que passaram a vida nas sombras, alguns dos quais falaram comigo com a condição de não ter sua identidade revelada. O mundo agora já sabe que a Equipe 6 dos Sea, Air, Land teams (SEALs) e o Comando
Conjunto de Operações Especiais (Joint Special Operations Command, JSOC) foram as unidades que mataram Osama bin Laden. Este livro revelará missões até agora desconhecidas ou pouco conhecidas dessas mesmas forças, que nunca serão discutidas por aqueles que exercem o poder nos Estados Unidos nem imortalizadas em filmes de Hollywood. Mergulhei fundo na vida de Anwar al-Awlaki, o primeiro cidadão americano conhecido marcado para morrer por seu próprio governo — apesar de nunca ter sido acusado de crime algum. Também ouvimos aqueles que ficam no fogo cruzado — civis que enfrentam bombas lançadas por drones e atos de terrorismo. Entramos na casa de civis afegãos cujas vidas foram destruídas por uma incursão aérea noturna malsucedida das Operações Especiais, o que os transformou de aliados dos Estados Unidos em potenciais homens-bomba. Alguns casos relatados neste livro podem parecer desconexos no princípio, pois se referem a pessoas completamente diferentes entre si. Entretanto, tomados em conjunto, revelam a assombrosa visão do que nos espera no futuro, num mundo assolado por guerras sujas sempre em expansão.
Jeremy Scahill
Prólogo
O adolescente sentou-se do lado de fora da casa, com os primos, reunidos para um churrasco.1 Seu cabelo era comprido e despenteado. Sua mãe e seus avós sempre lhe diziam que cortasse o cabelo, mas o menino achava que tinha se tornado sua marca registrada e gostava dele assim. Poucas semanas antes, tinha fugido de casa, mas não por rebeldia de adolescente. Ele tinha uma missão. No bilhete que deixou para a mãe antes de pular a janela da cozinha ao nascer do sol e se encaminhar para o ponto de ônibus, admitiu que tinha apanhado dinheiro na bolsa dela — quarenta dólares — para a passagem, e pedia desculpas por isso. Explicou sua missão e pediu perdão. Disse que em breve estaria de volta. O menino era o mais velho da família. Não apenas da família integrada por seus pais e três irmãos, mas também na grande casa que eles dividiam com tias, tios, primos e dois de seus avós. Era o preferido da avó. Quando tinham visitas, era ele quem servia o chá e os biscoitos. Quando a visita ia embora, ele arrumava tudo. Uma vez, sua avó torceu o tornozelo e precisou ir para o hospital. Quando ela saiu da emergência, mancando, o menino estava ali para recebê-la e levá-la para casa em segurança. “Você é um garoto gentil”, 2 dizia sempre a avó. “Não mude nunca.” Sua missão era simples: ele queria encontrar o pai. Fazia anos que não o via e temia ficar apenas com lembranças nebulosas se não o encontrasse: o pai ensinando-o a pescar; a andar a cavalo; surpreendendo-o com um monte de presentes no aniversário; levando os filhos à praia ou para comer doces. Encontrar o pai não ia ser fácil. Tratava-se de um homem procurado. Tinha a cabeça a prêmio e escapara por pouco de morrer mais de uma dúzia de vezes. O fato de forças poderosas em diversos países estarem à procura do homem não dissuadiu o menino. Ele estava cansado de ver vídeos que pintavam seu pai como terrorista e como uma figura maligna. Ele o conhecia apenas como pai, e queria ter pelo menos um último momento com ele. Mas as coisas não aconteceram assim. Três semanas depois de ter pulado a janela da cozinha, o menino estava ali fora com os primos — adolescentes como ele — preparando um churrasco para jantar sob as estrelas. Nessa hora, deve ter ouvido o barulho dos drones — aviões não tripulados — chegando, seguidos do chiado dos mísseis. Foi atingido em cheio. O menino e seus primos ficaram estraçalhados. Tudo
o que restou dele foi a parte posterior da cabeça, com o cabelo ainda esvoaçando. Tinha completado dezesseis anos poucas semanas antes, e agora fora morto por seu próprio governo. Foi o terceiro cidadão americano a ser morto em operações autorizadas pelo presidente em duas semanas. O primeiro tinha sido seu pai.
I. “Havia a preocupação […] de não criar uma lista negra americana”
WASHINGTON, DC, 2001-2 — Eram dez horas da manhã de 11 de junho de 2002,1 nove meses depois dos ataques do Onze de Setembro. Senadores e representantes entravam em fila na sala S-407 do Capitólio dos Estados Unidos. Todos eram membros de um pequeno grupo de elite de Washington e, por lei, guardiães dos mais reservados segredos do governo americano. “Proponho por meio desta que a reunião da comissão seja fechada ao público”, disse o republicano Richard Shelby, um dos senadores pelo Alabama, com sua fala arrastada de sulista, “com a justificativa de que a segurança nacional dos Estados Unidos poderia ficar comprometida se os trabalhos se tornarem públicos”. A moção foi apoiada sem demora e a sessão secreta começou. Enquanto os membros da Comissão Especial de Inteligência do Senado e a Comissão Especial Permanente de Inteligência da Câmara dos Representantes se reuniam em Washington, DC, do outro lado do mundo, no Afeganistão, líderes políticos e tribais participavam de uma loya jirga,2 ou “grande conselho”, incumbida de decidir quem governaria o país depois da pronta derrubada do governo talibã pelas Forças Armadas dos Estados Unidos. Depois do Onze de Setembro, o Congresso americano concedeu ao governo Bush amplos poderes para perseguir os responsáveis pelos ataques. O governo talibã, que dirigia o Afeganistão desde 1996, tinha sido esmagado, privando a Al-Qaeda de seu santuário no país. Osama bin Laden e outros líderes da organização estavam foragidos. Mas para o governo Bush, a longa guerra estava apenas começando. Na Casa Branca, o vice-presidente Dick Cheney e o secretário de Defesa Donald Rumsfeld se concentravam no planejamento da invasão seguinte: a do Iraque. Tinham chegado ao poder com o plano de derrubar Saddam Hussein e, apesar de não haver ligação do Iraque com o Onze de Setembro, esses ataques foram usados como pretexto para pôr tal projeto em prática. Mas as decisões tomadas no primeiro ano do governo Bush iam muito além do Iraque, do Afeganistão e até mesmo da Al-Qaeda. Os homens do poder naquele tempo estavam determinados a mudar a forma como os Estados Unidos travavam suas guerras e, no processo, atribuir um poder sem precedentes à Casa Branca. Os dias de combate contra inimigos fardados e exércitos nacionais, segundo as regras das Convenções de Genebra, tinham terminado. “O mundo é um campo de batalha” era o mantra repetido pelos neoconservadores dos aparatos de segurança dos Estados
Unidos e mostrado em slides de PowerPoint para destacar os planos de uma guerra global, avassaladora e sem fronteiras. Mas os terroristas não seriam o único alvo. Os mecanismos de controle próprios do sistema democrático em vigor havia duzentos anos estavam no centro de interesse daqueles homens. A sala S-407 ficava no sótão do edifício do Capitólio. Não tinha janelas, e o acesso a ela se dava por um único elevador ou uma escada estreita. Considerada uma dependência de segurança, estava equipada com sofisticados dispositivos de contraespionagem3 para impedir qualquer tentativa de escuta ou monitoramento externo. Durante décadas, tinha sido usada para os mais delicados briefings feitos aos membros do Congresso pela CIA, pelas Forças Armadas americanas e por dezenas de outras figuras e entidades que povoam as sombras da política americana. Nessa sala, que estava entre as poucas em que os segredos mais bem guardados da nação eram discutidos, ações secretas eram explicadas e avaliadas. Quando se instalaram para a reunião a portas fechadas na Colina do Capitólio naquela manhã de junho de 2002, senadores e representantes ouviram uma história de como os Estados Unidos tinham ultrapassado um limiar. O propósito declarado da sessão era rever o trabalho e a estrutura das organizações contraterroristas americanas de antes do Onze de Setembro. Na época, muitos dedos apontaram as “falhas” da Inteligência americana que levaram àqueles acontecimentos. Depois daquele que foi o mais devastador ataque terrorista da história praticado em solo americano, Cheney e Rumsfeld acusaram o governo Clinton de não ter reconhecido a iminência da ameaça da Al-Qaeda, deixando o território americano vulnerável na época em que Bush assumiu o poder. Os democratas contra-atacaram e invocaram sua própria história de combate à Al-Qaeda na década de 1990. A apresentação de Richard Clarke aos legisladores americanos nesse dia em especial pretendia, em parte, mandar uma mensagem à elite do Congresso. Clarke tinha sido o tzar do contraterrorismo do presidente Bill Clinton e liderou o Grupo de Segurança Contraterrorista do Conselho de Segurança Nacional (CSN) durante a década que precedeu o Onze de Setembro. Também trabalhou no CNS do primeiro presidente Bush e foi secretário assistente de Estado no governo do presidente Ronald Reagan. Era um dos funcionários mais experientes4 em contraterrorismo dos Estados Unidos e, na época da sessão, estava saindo do governo, embora ainda mantivesse o cargo de conselheiro especial do segundo presidente Bush para segurança ciberespacial. Clarke, personagem da linha-dura que ganhou destaque num governo democrata, era conhecido por ter batalhado em favor de mais ações secretas5 quando Clinton estava no poder. Assim, era compreensível que o governo Bush o aproveitasse para defender um regime cujas táticas militares e de Inteligência tinham sido anteriormente classificadas de ilegais, antidemocráticas ou simplesmente arriscadas. Clarke disse que na era Clinton o diálogo dentro da comunidade de segurança nacional era marcado por grande preocupação com a possibilidade de violar uma antiga proibição presidencial de assassinato e por muito medo de repetir escândalos do passado. Disse ainda que, em sua opinião, criara-se na CIA “uma cultura segundo a qual quando se fazem operações
secretas em grande escala, elas se embaralham, fogem de controle e acabam respingando na Agência”.6 “A história das operações secretas nas décadas de 1950 a 1970 não foi feliz”, disse Clarke aos legisladores. A CIA orquestrou a deposição de governos populistas na América Latina e no Oriente Médio, apoiou esquadrões da morte em toda a América Central, instrumentalizou o assassinato do líder rebelde Patrice Lumumba no Congo e fomentou a ação de juntas militares e ditaduras. O dilúvio de assassinatos ficou tão fora de controle que em 1976 um presidente republicano, Gerald Ford, precisou editar a Ordem Executiva 11905 que proibia explicitamente os Estados Unidos de levar a termo “assassinatos políticos”.7 Os funcionários da CIA que tinham atingido a maturidade naquela era de sombras e chegaram a posições de comando durante a década de 1990, segundo Clarke, “tinham institucionalizado [a ideia de que] a ação secreta é arriscada e costuma sair pela culatra. E os sabichões da Casa Branca que estão pressionando em favor de ações secretas vão desaparecer quando [a Comissão de Inteligência do Senado] exigir prestação de contas sobre a bagunça que aquela ação secreta se tornou”. O presidente Jimmy Carter emendou a proibição do assassinato implementada por Ford para torná-la mais abrangente. Alterou os termos que limitavam a proibição a assassinatos políticos e estendeu-a a assassinatos praticados por terceiros, contratados pelos Estados Unidos. “Nenhuma pessoa empregada pelo governo dos Estados Unidos ou agindo em seu nome poderá se mobilizar ou conspirar a favor da mobilização para assassinato”,8 dizia a ordem executiva do presidente Carter. Embora o presidente Reagan e o primeiro Bush tenham mantido esses termos, nenhuma resolução presidencial definou o que constituiria um assassinato. Tanto Reagan quanto o primeiro Bush e Clinton contornaram a proibição. Reagan, por exemplo, autorizou um ataque à casa do ditador líbio Muammar Kadafi9 em 1986, como retaliação por sua suposta participação num ataque a bomba contra uma boate em Berlim. O primeiro presidente Bush autorizou ataques contra os palácios de Saddam Hussein durante10 a Guerra do Golfo de 1991. Clinton fez o mesmo durante a operação Raposa no Deserto11 em 1998. Clarke relatou para os legisladores que, no governo Clinton, fizeram-se planos para matar e capturar líderes da Al-Qaeda e de outras organizações terroristas, inclusive Osama bin Laden. O presidente Clinton declarou que a proibição não se aplicava a terroristas estrangeiros envolvidos em conspirações para atacar os Estados Unidos. Depois das explosões a bomba das embaixadas americanas no Quênia e na Tanzânia no fim de 1998, Clinton autorizou o uso de mísseis de cruzeiro12 contra supostos acampamentos da Al-Qaeda no Afeganistão e também um ataque contra uma fábrica no Sudão que, segundo o governo americano, produzia armas químicas. No fim, descobriu-se que a fábrica era na verdade um laboratório farmacêutico.13 Embora a autorização para ações letais tivesse sido concedida por Clinton, era considerada uma opção apenas para situações extraordinárias e somente por ordem do presidente, a depender de cada caso.14 Em vez de dar carta branca para essas operações, a Casa Branca na era Clinton exigia que cada ação proposta fosse minuciosamente verificada. Instituíram-se as estruturas legais e
“autorizações para ações letais” foram rubricadas pelo presidente, permitindo o uso de força mortífera na perseguição a terroristas no mundo todo. Mesmo assim, disse Clarke, o gatilho raramente era acionado.15 Clarke admitiu que as autorizações da era Clinton para assassinatos específicos “parecem uma série de documentos talmúdicos e um tanto bizarros”, acrescentando que eram cuidadosamente elaborados para reduzir o alcance dessas operações. “O governo, particularmente o Departamento de Justiça, não queria abandonar a proibição do assassinato de modo a jogar fora o bebê junto com a água do banho. Queriam que os desdobramentos das autorizações fossem limitados.” Acrescentou que as autorizações da era Clinton eram como “uma seleção bem reduzida. Mas isso, penso, foi por causa desse desejo de não abandonar totalmente a proibição de assassinatos e criar uma lista negra americana”. A portas fechadas, a representante Nancy Pelosi, que estava entre os mais poderosos democratas do Congresso, orientou seus colegas a não discutir publicamente nenhum dos memorandos confidenciais que autorizassem o uso de força letal. Os memorandos, disse ela, “se enquadram na forma mais restrita de notificação,16 no mais alto nível do Congresso. É extraordinário […] que essa informação nos seja passada aqui hoje”. Ela preveniu contra qualquer vazamento para a imprensa e acrescentou: “De jeito nenhum podemos confirmar, negar, garantir ou admitir ter conhecimento dos memorandos”. Perguntaram a Clarke se ele achava que os Estados Unidos deveriam revogar a política de proibição de assassinatos. “Acho que é preciso ter muito cuidado com a abrangência das autorizações para uso de força letal”, ele respondeu. “Não acredito que a experiência israelense de ter uma vasta lista negra tenha sido um grande sucesso. Não foi — com certeza não deteve o terrorismo nem as organizações cujos membros foram assassinados.” Clarke disse que quando ele e seus colegas do governo Clinton deram autorização para operações de assassinato dirigido, tencionavam que houvesse casos raros e precisos.
Não queríamos criar um amplo precedente que permitisse aos funcionários da Inteligência ter listas negras no futuro e se envolver habitualmente em coisas próximas ao assassinato […]. Tanto no Departamento de Justiça quanto entre elementos da Casa Branca e da CIA havia a preocupação de não criar uma lista negra americana que se tornasse uma instituição em funcionamento à qual pudéssemos apenas acrescentar nomes, tendo grupos de assalto para matar pessoas.
Com tudo isso, Clarke fazia parte de um pequeno grupo de funcionários da comunidade contraterrorista do governo Clinton que se mobilizava para tornar a CIA mais agressiva no uso da autorização para ações letais e lutava para dilatar os limites da proibição de assassinato. “Na esteira do Onze de Setembro”, declarou Clarke, “quase tudo o que propusemos antes dos
atentados está sendo feito.” Em breve, quase tudo seria tudo e mais um pouco.
Donald Rumsfeld e Dick Cheney rechearam o governo de destacados neoconservadores que tinham passado a era Clinton operando um verdadeiro governo na sombra, trabalhando com organizações de direita e para importantes grupos privados, preparando seu retorno ao poder. Entre eles estavam Paul Wolfowitz, Douglas Feith, David Addington, Stephen Cambone, Lewis “Scooter” Libby, John Bolton e Elliott Abrams. Muitos tinham dado os primeiros passos na Casa Branca das eras Reagan e Bush. Alguns, como Cheney e Rumsfeld, já vinham da era Nixon. Muitos tinham sido atores essenciais17 na construção de uma visão política amparada pelo ultranacionalista Projeto para um Novo Século Americano (Project for the New American Century, PNAC). Apesar da decisão presidencial de usar a força na Iugoslávia e no Iraque e promover uma série de ataques aéreos a outras nações, eles viam o governo Clinton como uma posição praticamente pacifista que tinha debilitado a dominação americana e deixado o país vulnerável. Acreditavam que os anos 1990 tinham sido uma “década de negligência defensiva”.18 Os neoconservadores havia muito defendiam a posição de que os Estados Unidos, com o fim da Guerra Fria, tinham se tornado a única superpotência e deviam exercer sua força com agressividade sobre o globo, redefinindo mapas e expandindo seu império. No centro dessa visão estava um aumento radical dos gastos militares, segundo planos traçados por Cheney e seus assessores quando ele foi secretário de Defesa, em 1992. O esboço de Cheney para o Guia de Planejamento da Defesa, como afirmavam os neoconservadores no documento de fundação d o PNAC, “propunha um esquema19 para manter a preeminência americana, impedindo a ascensão de outra potência rival, moldando a ordem internacional no que se refere à segurança de acordo com os princípios e interesses americanos”. Wolfowitz e Libby foram os principais autores20 do manifesto de Cheney sobre a defesa, que afirmava que os Estados Unidos deviam ser a única superpotência e empreender todas as ações necessárias para impedir “potenciais concorrentes21 de sequer aspirar a um maior papel regional ou global”. O plano deles, no entanto, foi descartado por forças mais poderosas22 do governo do primeiro Bush, em especial o chefe do Estado-Maior Conjunto, general Colin Powell; o secretário de Estado, James Baker; e o conselheiro de Segurança Nacional, Brent Scowcroft. A versão final, para frustração de Cheney e dos neoconservadores, amenizou em boa medida o tom imperialista. Uma década depois, antes mesmo do Onze de Setembro, os neoconservadores — de volta ao poder com o governo do segundo Bush — recolheram aqueles planos da lata de lixo da história e se empenharam em implementá-los. Expandir a projeção das forças americanas era essencial, assim como a constituição de unidades operacionais de elite ágeis. “Nossas forças, no próximo século, devem ser ágeis, letais, prontamente mobilizáveis e exigir um mínimo de apoio
logístico”,23 declarou Bush filho num discurso da campanha de 1999 redigido por Wolfowitz e outros neoconservadores. “Precisamos ter condições de projetar nosso poderio a grandes distâncias, em dias ou semanas, e não em meses. Em terra, nosso armamento pesado deve ser mais leve. Nosso armamento leve deve ser mais letal. Todo ele deve ser mais fácil de mobilizar.” Os neoconservadores também vislumbravam um domínio mais eficaz dos Estados Unidos sobre os recursos naturais do planeta e o confronto direto com os Estados-nações que se interpusessem no caminho. A mudança de regime em numerosos países seria considerada com seriedade, principalmente no Iraque, rico em petróleo. “Fervorosos defensores24 da intervenção militar americana, poucos neoconservadores serviram nas Forças Armadas e menos ainda foram eleitos para cargos públicos”, observou Jim Lobe, jornalista que acompanhou a ascensão do movimento neoconservador durante a década que precedeu o Onze de Setembro. Eles tinham um “objetivo incansável de domínio militar global e desprezavam as Nações Unidas e o multilateralismo em geral”. Lobe acrescentou que
na concepção neoconservadora, os Estados Unidos são no mundo uma força do bem; têm a responsabilidade moral de exercer essa força; seu poderio militar deve ser dominante; devem ser globalmente comprometidos mas jamais impedidos, por compromissos multilaterais, de tomar atitudes unilaterais em prol de seus interesses e valores; e devem ter uma aliança estratégica com Israel. Saddam deve sair, afirmam eles, porque é uma ameaça a Israel e também à Arábia Saudita, e porque acumulou e usou armas de destruição em massa.
O grupo do PNAC concluiu que
os Estados Unidos procuraram durante décadas desempenhar um papel mais permanente na segurança regional do Golfo. Embora o conflito não resolvido com o Iraque proporcione a justificativa imediata, a necessidade de uma substancial força americana no Golfo transcende o regime de Saddam Hussein.25
Semanas depois de assumir o governo, Rumsfeld e Cheney passaram a pressionar em favor da retirada da chancela americana ao Estatuto de Roma, que reconhecia a legitimidade de um tribunal internacional de justiça, assinado pelo presidente Clinton no apagar de luzes de seu mandato. Eles não queriam que as forças americanas ficassem sujeitas a um eventual julgamento por seus atos em todo o mundo. Assim que se tornou secretário de Defesa, Rumsfeld determinou que sua equipe jurídica — e as de outras instâncias do governo americano — descobrissem de imediato “como podemos cair fora e anular a assinatura de Clinton”.26 Mesmo na comunidade de veteranos da política externa do Partido Republicano, esses
personagens eram vistos como extremistas. “Quando vimos essa gente voltando, todos os que estavam por ali disseram: ‘Meu Deus, os malucos estão de volta’27 — ‘os malucos’ — era assim que falávamos daquela gente”, lembra Ray McGovern, que trabalhou na CIA durante 27 anos, foi informante da Segurança Nacional do primeiro Bush quando este era vice-presidente e trabalhou com ele quando foi diretor da CIA, no fim da década de 1970. McGovern disse que, uma vez no poder, os neoconservadores ressuscitaram ideias que líderes experientes em política externa tinham descartado em governos republicanos anteriores, acrescentando que essas ideias extremistas em pouco tempo “seriam resgatadas das cinzas e implementadas”. Na opinião desses homens, se “temos muito peso para distribuir, devemos distribuí-lo. Devemos nos afirmar em áreas críticas, como o Oriente Médio”, relatou McGovern. Por décadas, Cheney e Rumsfeld foram líderes de um movimento militante que atuava fora do governo e, durante as gestões republicanas, agia dentro da própria Casa Branca. Sua missão era dar ao braço executivo do governo dos Estados Unidos poderes sem precedentes para travar guerras ocultas, praticar operações secretas sem fiscalização e espionar cidadãos americanos. Em sua opinião, o Congresso não tinha nada a ver com a fiscalização dessas operações, devendo apenas financiar os órgãos que as poriam em prática. Para eles, a presidência deveria ser uma ditadura de segurança nacional que responderia apenas a suas próprias convicções sobre o que era melhor para o país. Os dois homens trabalharam juntos pela primeira vez na Casa Branca de Nixon em 1969, quando Rumsfeld contratou Cheney,28 então universitário, como seu assessor no Gabinete de Oportunidade Econômica. Foi o pontapé inicial da carreira de Cheney nos centros de comando da elite republicana e do projeto de uma vida dedicada a reforçar os poderes do Executivo. Quando o escândalo se abateu sobre a Casa Branca de Nixon na década de 1970 — com os bombardeios clandestinos do Laos e do Camboja, revelados por uma lista de “inimigos” internos e a deplorável invasão do quartel-general do Comitê Democrático Nacional no hotel Watergate —, o Congresso começou a atacar29 as prerrogativas do Executivo e o sigilo extremo que permeava o governo. O Congresso condenou30 o bombardeio do Laos e do Camboja e cancelou a tentativa de Nixon de vetar a Lei dos Poderes de Guerra de 1973, que limitava os poderes do presidente para autorizar ações militares. A lei determinava que o presidente “consultasse o Congresso31 antes de lançar as Forças Armadas americanas em hostilidades ou em situações nas quais o iminente envolvimento em hostilidades esteja claramente indicado pelas circunstâncias”. Na ausência de uma declaração formal de guerra, o presidente deveria informar o Congresso, por escrito e dentro de 48 horas, sobre qualquer ação militar, “as circunstâncias que determinavam a intervenção das Forças Armadas; a autoridade constitucional e legislativa sob a qual essa intervenção ocorreria e a abrangência e duração estimadas das hostilidades ou do envolvimento”. Cheney considerava a Lei dos Poderes de Guerra inconstitucional e uma intromissão nos direitos do presidente como comandante em chefe das Forças Armadas. Ele chamou essa época de “pior momento”32 da autoridade presidencial americana.
Depois que o escândalo de Watergate forçou a renúncia de Nixon, Cheney passou a chefe de gabinete do presidente Ford, e Rumsfeld tornou-se o mais jovem secretário de Defesa da história americana. Em 1975, o Congresso intensificou sua investigação do submundo das operações secretas da Casa Branca, sob os auspícios da Comissão Church, assim chamada por ter como presidente o senador democrata Frank Church, de Idaho. A comissão investigou uma ampla gama de abusos cometidos pelo Poder Executivo, entre eles operações de espionagem contra cidadãos americanos.33 A investigação da Comissão Church pintou um quadro das atividades secretas ilegais praticadas sem fiscalização do Judiciário ou do Congresso. Investigou também o envolvimento dos Estados Unidos na deposição e morte do presidente socialista do Chile, Salvador Allende,34 democraticamente eleito, em 1973, mas Ford alegou imunidade do Executivo e evitou a devassa.35 Em certo ponto das investigações da comissão, Cheney tentou induzir a Agência Federal de Investigação (Federal Bureau of Investigation, FBI)36 a investigar o famoso jornalista Seymour Hersh e a conseguir um processo por espionagem contra ele e contra o New York Times em retaliação às denúncias sobre espionagem interna ilegal praticada pela CIA. O objetivo era intimidar outros jornalistas e evitar que tornassem públicas ações secretas polêmicas da Casa Branca. O FBI recusou o pedido de Cheney de perseguir Hersh. O resultado final da investigação da Comissão Church foi um pesadelo para Cheney e seu movimento de fortalecimento do Executivo: a criação de comissões parlamentares37 legalmente incumbidas de inspecionar as operações americanas de Inteligência, inclusive ações secretas. Em 1980, o Congresso aprovou uma lei38 que exigia que a Casa Branca transmitisse às novas comissões de inteligência informações sobre todos os programas de espionagem. Cheney e Rumsfeld passariam a maior parte do resto de suas carreiras tentando cercear a autoridade dessas comissões. Ao término do governo liberal de Carter, Cheney concluiu que os poderes da presidência tinham sido “gravemente enfraquecidos”.39 Durante os anos do governo Reagan, ele foi representante de Wyoming no Congresso, tendo apoiado com firmeza uma virada radical no sentido de dar mais poderes à Casa Branca. Charlie Savage, ganhador do prêmio Pulitzer, observa em seu livro Takeover: The Return of the Imperial Presidency and the Subversion of American Democracy [A tomada do poder: A volta da presidência imperial e a subversão da democracia americana] que o Departamento de Justiça de Reagan tentou pôr fim “ao ressurgimento do Congresso40 [ocorrido] na década de 1970”, emitindo um relatório no qual se propunha que a Casa Branca pudesse desconsiderar leis que “se imiscuíam inconstitucionalmente no Poder Executivo”. A Casa Branca de Reagan lançou mão de um instrumento que lhe permitia reinterpretar leis e emitir decretos presidenciais que burlassem a fiscalização do Congresso. No início da década de 1980, o governo Reagan estava profundamente empenhado em incentivar uma insurgência direitista contra o governo sandinista de esquerda na Nicarágua, na América Central. A pedra de toque dessa campanha era o apoio secreto dos Estados Unidos aos esquadrões da morte dos “contras”. Reagan autorizou também que fossem minados os portos
em torno da Nicarágua, o que levou ao julgamento dos Estados Unidos na Corte Mundial por uso ilegal de força.41 Em 1984, quando finalmente o Congresso americano proibiu toda a ajuda americana aos contras, aprovando a Emenda Boland,42 alguns funcionários da Casa Branca, liderados pelo coronel Oliver North, que trabalhava no CSN, deram início a um plano clandestino de arrecadação de recursos para os rebeldes direitistas, em flagrante violação da lei americana. Esses recursos foram gerados pela venda ilícita de armas ao governo iraniano, violando o embargo de armas vigente. Catorze membros43 do governo Reagan, entre eles o secretário de Defesa, seriam processados por envolvimento nessas operações. Quando o escândalo Irãcontras se tornou público e o Congresso investigou com rigor suas origens, Cheney destacou-se como o principal defensor da Casa Branca na Colina do Capitólio, manifestando sua opinião minoritária44 em defesa do programa secreto que a maior parte de seus colegas tinha considerado ilegal. O “relatório minoritário” de Cheney defendendo a Casa Branca qualificava como “histérica” a investigação do caso Irã-contras. Ele afirma que a história “deixa pouca ou nenhuma dúvida de que o presidente deve desempenhar o papel principal na condução da política externa dos Estados Unidos” e conclui que, “portanto, as ações do Congresso no sentido de limitar o presidente nessa área deveriam ser revistas com um grau considerável de ceticismo. Se prejudicarem o cerne das funções presidenciais em política externa, devem ser abolidas”. O primeiro presidente Bush indultou os aliados de Cheney condenados por ligação com o caso Irã-contras, e Cheney permaneceu como secretário de Defesa durante a Guerra de Golfo de 1991. Nessa posição, continuou dando forma a sua ideia de um Poder Executivo como poder supremo. Enquanto foi secretário de Defesa, começou a plantar as sementes de outro programa que ajudaria a consolidação da supremacia do Executivo: encomendou à Halliburton, gigante do setor de infraestrutura para campos de petróleo, um plano de privatização45 da burocracia das Forças Armadas na maior medida possível. Cheney compreendeu bem cedo que o uso de empresas privadas para travar as guerras dos Estados Unidos criaria outra barreira para a fiscalização e proporcionaria mais sigilo em torno do planejamento e da execução dessas guerras, declaradas ou não. Ele passaria a comandar a Halliburton durante a maior parte da década de 1990, atuando como ponta de lança na criação de um exército corporativo secreto que finalmente se tornaria o fulcro de suas guerras abertas ou secretas quando ele voltasse à Casa Branca, em 2001. Durante a era Clinton, Cheney também se dedicou ao Instituto Americano de Empreendedorismo,46 de orientação neoconservadora, aperfeiçoando uma agenda política e militar que poderia ser implementada a partir do momento em que seu partido voltasse ao poder. Quando o segundo presidente Bush tomou posse, Cheney se tornou o mais poderoso vice-presidente da história. E sem perda de tempo começou a trabalhar para aumentar esse poder.
Em 10 de setembro de 2001, um dia antes que o Boeing 757 que fazia o voo 77 da American Airlines se estatelasse contra a parede oeste do Pentágono, Donald Rumsfeld esteve naquele mesmo edifício para fazer um de seus principais discursos como secretário de Defesa. Havia dois retratos dele na parede47 — um deles mostrava-o como o mais jovem secretário de Defesa da história americana, o outro como o mais velho. O Onze de Setembro ainda não tinha ocorrido, mas mesmo assim Rumsfeld ocupava a tribuna naquele dia para uma declaração de guerra. “O assunto de hoje é um adversário que representa uma ameaça, uma grave ameaça,48 à segurança dos Estados Unidos da América”, urrou Rumsfeld.
Esse adversário é um dos últimos bastiões do planejamento centralizado do mundo. Governa impondo planos quinquenais. A partir de uma única capital, ele tenta impor suas exigências a outros fusos horários, continentes, oceanos e além. Com coerência brutal, reprime o pensamento livre e esmaga novas ideias. Atrapalha a defesa dos Estados Unidos e põe a vida de homens e mulheres fardados em risco.
Rumsfeld — veterano paladino da Guerra Fria — disse a sua nova equipe que
talvez esse adversário se pareça com a antiga União Soviética, mas esse inimigo não existe mais: nossos antagonistas são hoje mais sutis e implacáveis. Vocês poderiam pensar que estou falando de um dos últimos déspotas decrépitos do mundo. Mas os tempos deles também estão quase no passado, e eles não podem se equiparar à força e ao tamanho deste adversário. O adversário está mais perto de casa. É a burocracia do Pentágono.
O que estava em jogo, afirmou, era grave — “uma questão de vida ou morte, ao fim e ao cabo, de todos os americanos”. Rumsfeld disse a sua plateia, composta de antigos executivos da indústria da Defesa transformados em burocratas do Pentágono, que pretendia racionalizar as guerras americanas. “Alguém perguntaria: como é possível que o secretário de Defesa ataque o Pentágono diante de sua própria gente?”, disse Rumsfeld à plateia. “Eu responderia que não tenho vontade de atacar o Pentágono, quero libertá-lo. Precisamos salvá-lo de si mesmo.” A isso, Rumsfeld e sua equipe chamaram de “revolução nos assuntos militares”.49 A equipe estrelada de política externa de Bush subiu ao poder com uma agenda de reorganização radical das Forças Armadas americanas, para pôr fim ao que eles chamavam de enfraquecimento das defesas nacionais da era Clinton e reativar as iniciativas de implantação de poderosos sistemas de mísseis defensivos50 favorecidos por Reagan e outros paladinos da Guerra Fria. Como lembrou Douglas Feith, vice de Rumsfeld, “a ameaça do terrorismo jihadista51 estava na lista de preocupações do governo de Bush desde que este assumiu, no início de 2001, mas chamava menos atenção do que a Rússia”. O foco no “terrorismo” nos primeiros dias do
governo se centrava nas ameaças representadas por Estados-nações — Irã, Síria, Coreia do Norte e Iraque — e levou a uma mudança de regime. Cheney e Rumsfeld tinham passado a maior parte da década de 1990 traçando um caminho que lhes permitisse redesenhar o mapa do Oriente Médio, mas não consideraram a ameaça assimétrica representada pela Al-Qaeda e por outros grupos terroristas. O Iraque, e não a Al-Qaeda, era sua obsessão. “Desde o início,52 estávamos reunindo provas contra Hussein e buscando uma forma de derrubá-lo e transformar o Iraque num novo país”, disse Paul O’Neill, ex-secretário do Tesouro. “E se fizéssemos isso, tudo estaria resolvido. Era só encontrar o modo de fazê-lo. Essa era a questão. Que o presidente dissesse: ‘Tudo bem. Encontrem uma maneira de fazer isso’.” Na segunda reunião do CSN, em 1o de fevereiro de 2001, Rumsfeld disse abertamente: “O que queremos mesmo é pensar em como ir atrás de Saddam”. Ironicamente — apesar de todo o “blá-blá-blá” de Rumsfeld sobre a debilidade da era Clinton e das acusações dos neoconservadores contra os democratas, que teriam cochilado em relação à vigilância da Al-Qaeda —, o próprio Rumsfeld, de início, estava reticente sobre a iminência da ameaça representada pelo grupo antes do Onze de Setembro. O jornalista Bob Woodward detalhou uma reunião que teria sido realizada em 10 de julho de 2001, dois meses antes dos ataques. O diretor da CIA, George J. Tenet, reuniu-se com Cofer Black, chefe do Centro de Contraterrorismo (Counterterrorism Center, CTC) da CIA em Langley, na Virgínia. Os dois homens revisaram as informações da Inteligência americana sobre Bin Laden e a Al-Qaeda. Segundo Woodward, Black
expôs a situação,53 que consistia em interceptação de comunicações e outros recursos de Inteligência altamente confidenciais que mostravam a crescente probabilidade de que em breve a Al-Qaeda atacaria os Estados Unidos. Tratava-se de uma massa de fragmentos e detalhes que, no entanto, conformavam um panorama convincente, tão convincente que Tenet decidiu que ele e Black iriam imediatamente à Casa Branca.
Na época,
Tenet estava tendo dificuldade para pôr em marcha um plano de ação imediato contra Bin Laden, em parte porque o secretário de Defesa, Donald H. Rumsfeld, questionara todas as interceptações e demais recursos de Inteligência da Agência de Segurança Nacional. “É possível que tudo isso não passe de um grande engano?”, Rumsfeld perguntara. Talvez fosse um plano para dimensionar as reações e a defesa dos Estados Unidos.
Depois de analisar os dados da Inteligência com Black, Tenet ligou para a conselheira de Segurança Nacional, Condoleezza Rice, de seu carro, a caminho da Casa Branca. Quando Black
e Tenet se encontraram com ela, naquele mesmo dia, segundo Woodward, “sentiram que não estavam convencendo a conselheira. Ela foi cortês, mas eles sentiram a rejeição”. Mais tarde, Black diria que “a única coisa que não fizemos foi puxar o gatilho da arma que tínhamos apontada para a cabeça dela”. Foi então que os aviões pilotados pelos sequestradores do Onze de Setembro se chocaram contra as Torres Gêmeas e o Pentágono. Na mesma hora, Rumsfeld e sua equipe vislumbraram que a luta contra o terrorismo não só não prejudicaria seus planos para o Iraque, mas poderia até mesmo proporcionar o argumento para colocá-los em prática. E talvez mais importante: o momento que se seguiu ao ataque permitiu que Rumsfeld, Cheney e seu séquito concretizassem as ambições que acalentavam havia muito tempo a respeito de um Executivo todo-poderoso, com o direito praticamente ilimitado de travar guerras passando por cima de todas as fronteiras, justificados, em sua opinião, por uma ameaça global à segurança nacional. Os objetivos e planos de que eles falaram, a meia-voz, em reuniões extraoficiais em pouco se tornariam a política oficial dos Estados Unidos. Quando a equipe de guerra do presidente Bush começou a planejar uma resposta aos ataques do Onze de Setembro, Rumsfeld saiu na frente para pôr o Iraque imediatamente na lista de alvos. Na preparação das reuniões que Bush faria no fim de semana de 15-6 de setembro em Camp David, Feith dirigiu a Rumsfeld um memorando com a lista “dos alvos prioritários imediatos54 para uma ação inicial”: a Al-Qaeda, o Talibã e o Iraque. “A agenda estava clara55 desde a noite de 11 de setembro”, contou-me o general Hugh Shelton, na época chefe do EstadoMaior Conjunto e o mais antigo conselheiro militar do presidente Bush. Ele disse que Rumsfeld e Wolfowitz começaram a pressionar imediatamente em favor de um ataque ao Iraque. “Precisamos entrar no Iraque. Precisamos fazer isso imediatamente”, diziam eles. “Isso apesar de não haver nenhum indício56 que relacionasse [o Onze de Setembro] ao Iraque”, disse Shelton. “Mesmo assim, o rufar de tambores começou naquela noite. Eles não ficaram nada satisfeitos quando cheguei ao gabinete com os planos que tinha [para responder aos ataques do Onze de Setembro] e viram que nenhum deles incluía o Iraque.” Segundo Richard Clarke, em 12 de setembro o presidente Bush lhe disse três vezes que procurasse “uma partícula” de indício que ligasse o Iraque aos ataques. Wolfowitz enviou um memorando a Rumsfeld no qual dizia que “mesmo uma probabilidade de 10%57 de Saddam Hussein estar por trás dos ataques” significaria que “a prioridade máxima deve ser voltada para eliminar a ameaça”. Junto com Shelton do lado dos que se opunham à invasão do Iraque estava um de seus antecessores, Colin Powell, secretário de Estado. Uma década antes, durante a Guerra do Golfo, Powell tinha batido de frente com Wolfowitz58 — na época, subsecretário de Defesa — e com os líderes ideológicos civis do Pentágono que pretendiam enviar tropas e tudo o mais a Bagdá para depor Saddam. Mas Powell e outros conservadores tradicionais, como o ex-secretário de Estado James Baker e Brent Scowcroft, ganharam a queda de braço. Agora, com os ataques do Onze de Setembro ainda frescos na memória, Wolfowitz e os ideólogos tinham certeza de atingir seus
objetivos. Em Camp David, disse Shelton, Wolfowitz continuou pressionando a favor de uma investida contra o Iraque, mesmo depois que Shelton, Powell e altos funcionários da Inteligência afirmaram que não havia indícios do envolvimento do país nos ataques. Como a discussão estava centrada no Afeganistão e no ataque ao santuário da Al-Qaeda, “exatamente como se esperava, Wolfowitz trouxe a questão à baila: ‘Precisamos usar isso como motivo para atacar o Iraque’”, relembra Shelton. O dr. Emile Nakhleh, experiente analista da CIA na época, também estava assessorando o presidente durante o período imediatamente posterior ao Onze de Setembro. Nakhleh estava na Agência havia uma década e passara a maior parte desse tempo viajando por países muçulmanos com propósitos supostamente acadêmicos. Tendo dado início ao Programa de Análise Política da Estratégia Islâmica da CIA e na condição de professor residente especializado em grupos militantes islâmicos e em governos do Oriente Médio, ele era para a Agência o equivalente a um general de três estrelas. Em resposta às pressões de Rumsfeld e Wolfowitz a favor de uma invasão do Iraque naquelas primeiras reuniões, contou-me Nakhleh, em dado momento ele se levantou e disse a eles: “Se vocês querem ir atrás daquele filho da puta [Saddam] para acertar contas com ele, sintam-se à vontade, mas não temos informação de que Saddam esteja ligado à Al-Qaeda ou ao terrorismo, e não temos informações claras”59 sobre armas de destruição em massa (Weapons of Mass Destruction, WMD). Nakhleh revelou que depois das primeiras reuniões sobre o Onze de Setembro, “minha conclusão e a de outros analistas era de que eles estavam se encaminhando para a guerra. O trem tinha dado a partida, sem se importar com os dados apresentados pela Inteligência”. O presidente Bush engavetou as discussões sobre o Iraque durante algum tempo, tendo prometido em campanha não se envolver em questões de “construção nacional”. Disse que queria uma política externa “modesta”.60 Mas suas opiniões mudavam rapidamente. Foi preciso algum tempo — e mais de uma dúzia de visitas61 de Cheney e seu chefe de gabinete, “Scooter” Libby, à CIA — para que se fabricassem os “indícios” de um programa de produção de WMD e assim se pusessem em prática os planos de invasão do Iraque. Nesse ínterim, porém, eles tiveram de travar uma guerra contra a fiscalização externa do Executivo e seu dever de prestar contas. A campanha da CIA e das Forças Especiais no Afeganistão foi, no início, um estardalhaço. Enquanto a guerra do Afeganistão gerava manchetes espetaculares que trombeteavam a agilidade e a decisão da campanha militar americana contra o débil governo talibã, Cheney, Rumsfeld e seus parlamentares neoconservadores estavam atarefados conspirando em favor de uma guerra global. Essa guerra se estenderia à frente interna, com escuta telefônica não autorizada, prisão em massa62 de árabes, paquistaneses e outros imigrantes muçulmanos, e uma prodigiosa reversão das liberdades civis dos cidadãos americanos. Para travar essa guerra, eles deveriam desmantelar e manipular uma burocracia de fiscalização e exame legal que tinha sido construída ao longo de sucessivos governos. Tudo isso abriria as portas para uma bateria de táticas que já tinham sido empregadas mas agora poderiam
ser mobilizadas numa escala sem precedentes: ações secretas, operações ilegais, prisões secretas, sequestros e o que passou a ser uma nova designação de assassinato: a caça de Alvos de Grande Valor.
Saindo da era Reagan-Bush, na qual a instituição da ação secreta foi prejudicada pelo escândalo Irã-contras, o presidente Clinton instaurou novos mecanismos de fiscalização e criou um rigoroso sistema legal63 para a aprovação de ações secretas letais. Quando Clinton, ou seu conselheiro de Segurança Nacional, propunha uma ação secreta, a proposta tinha de passar por um sistema de fiscalização interna: primeiro pela CIA, onde a advocacia geral da Agência analisava sua legalidade antes de passá-la para novos exames (e, possivelmente, para a proposição de mudanças em decorrência da apreciação legal) por parte de duas distintas comissões da CIA — o Grupo de Planejamento de Ações Secretas e o Grupo de Análise de Ações Secretas. Depois que a ação proposta era analisada e modificada por essas comissões, voltava à área jurídica da CIA para uma análise legal final e depois era devolvida à Casa Branca, onde seria submetida ao Grupo de Trabalho Interagências para Ações Secretas, integrado por representantes de diversos órgãos do Poder Executivo. Esse grupo analisava as possíveis consequências da ação secreta e mais uma vez apreciava sua legalidade. Depois de um exame final pelos chefes e seus suplentes de órgãos relevantes, a ação era apresentada ao presidente para autorização. Ações desse tipo raramente eram aprovadas. Quando o presidente Bush tomou posse, no início de 2001, seu governo indicou que pretendia manter muitos desses mecanismos de controle. A Diretriz Presidencial de Segurança Nacional-I (NSPD-I), assinada por Bush em 13 de fevereiro de 2001, refletia em boa medida64 o sistema da era Clinton para a aprovação de ações secretas. Contudo, em março Bush pediu à conselheira de Segurança Nacional, Condoleezza Rice, que solicitasse à CIA “a preparação de uma nova série de autorizações65 para a ação secreta no Afeganistão”. Clarke e seus congêneres da CIA que comandavam a “Unidade Bin Laden” começaram a projetar ações secretas que tinham como alvo a Al-Qaeda, enquanto o governo propunha reforços nas verbas da CIA para o combate ao terrorismo. Clarke insistiu muito num golpe contra a Al-Qaeda em retaliação66 ao ataque a bomba contra o navio USS Cole na costa do Iêmen em outubro de 2000. Como acontecera na era Clinton, muitos dos planos tinham como alvo líderes da Al-Qaeda no Afeganistão. No fim de maio, Rice e Tenet se reuniram com Clarke, Cofer Black e com o chefe da Unidade Bin Laden para discutir a “ofensiva” contra a Al-Qaeda. Na época, a CIA praticava ações para obstaculizar Bin Laden, mas entre aqueles altos funcionários do governo havia o consenso de que era preciso “quebrar a espinha”67 da Al-Qaeda. Eles endossaram também a ajuda secreta ao Uzbequistão,68 mas se abstiveram de oferecer ajuda significativa à Aliança do Norte e a outros grupos que combatiam o Talibã no Afeganistão. Em outras palavras, deram continuidade à política da era Clinton para a Al-Qaeda e o Afeganistão, ainda que com mais dinheiro e mais foco.
Um esboço da NSPD de combate ao terrorismo começou a circular em junho. Stephen Hadley, vice-conselheiro de Segurança Nacional, qualificou o programa da Comissão do Onze de Setembro como “assumidamente ambicioso”,69 destacando uma iniciativa plurianual que envolvia “todos os instrumentos do poder nacional”, inclusive um programa de ações secretas de longo alcance. Mas este último ainda passaria por cinco reuniões70 de adjuntos antes de ser apresentado aos líderes. Numa dessas reuniões, em agosto de 2001, a Comissão de Adjuntos do CSN “concluiu71 que não era ilegal para a CIA matar Bin Laden ou um de seus imediatos” com um ataque do drone Predator. Embora o uso de drones fosse se tornar uma das preferências do esquema americano de assassinatos dirigidos, antes do Onze de Setembro havia muitas divergências sobre o tema entre o pessoal de Bush envolvido no combate ao terrorismo. No último ano do governo Clinton, os Estados Unidos começaram a operar drones72 no Afeganistão a partir de uma base americana secreta no Uzbequistão chamada K2.73 Já havia um projeto de criação do drone armado, mas o artefato ainda não estava em operação.74 Cofer Black afirmava75 que os drones não deviam ser usados nem mesmo para reconhecimento, sugerindo que o governo esperasse até que ele pudesse ser armado. Lembrou que um Predator tinha sido localizado sobre território afegão em 2000, levando o governo talibã a mobilizar caças MiG. “Não acredito que a importância do reconhecimento seja maior que o risco de encerrarmos o programa por culpa dos ânimos exaltados pela imagem de talibãs desfilando com um Predator carbonizado diante das câmeras d a CNN”,76 afirmou Black. Afinal, o governo decidiu engavetar77 o uso de drones de reconhecimento no Afeganistão até que eles pudessem ser armados para atacar. Mas enquanto Black, Clarke e outros membros da equipe de contraterrorismo pressionavam a favor do uso do Predator para operações de assassinato dirigido, as principais lideranças da CIA manifestavam sérias preocupações com a possibilidade de pôr em prática esse programa, fazendo eco a muitas das preocupações do pessoal de contraterrorismo da era Clinton com a criação de listas negras. Segundo a Comissão do Onze de Setembro, Tenet
em especial punha em questão se ele, como diretor da Agência Central de Inteligência, devia operar um Predator armado. “Esse é um campo novo”,78 nos disse ele. Tenet formulava perguntas-chave: Qual é a cadeia de comando? Quem efetua o disparo? Os líderes dos Estados Unidos se sentem bem tendo a CIA fazendo isso, escapando ao comando e ao controle militares normais?
Charles Allen, diretor assistente da CIA para coleta de informações79 entre 1998 e 2005, disse que tanto ele quanto o número três da agência, A. B. “Buzzy” Krongard, “ficariam felizes em puxar o gatilho,80 mas Tenet estava apavorado” e acrescentou que nenhum funcionário da CIA tinha autoridade para usar drones na eliminação sumária de pessoas, mesmo tratando-se de
terroristas. Enquanto se desenrolavam esses debates no interior da Agência, faltava apenas uma semana para o Onze de Setembro quando o governo Bush marcou uma reunião de “primeiro escalão” para discutir a ameaça da Al-Qaeda. Na reunião de 4 setembro,81 um anteprojeto da NSPD foi oficialmente apresentado e aprovado “depois de breve discussão” para ser levado à assinatura de Bush. A conselheira de Segurança Nacional Condoleezza Rice teria dito ao presidente que em sua opinião eles levariam três anos para pôr em prática82 o ambicioso programa. Em 10 de setembro, Hadley continuava pressionando o diretor Tenet e a CIA a preparar esboços de autorizações legais “para o ‘amplo programa de ações secretas’83 previsto no anteprojeto da diretriz presidencial”. Hadley instou Tenet a preparar também documentos “que autorizassem uma ampla variedade de outras atividades secretas, inclusive capturar ou usar força letal” contra “elementos de comando e controle” da Al-Qaeda. De acordo com o relatório da Comissão do Onze de Setembro, esse capítulo devia detalhar documentos da era Clinton e ser amplo o bastante para “abranger quaisquer ações secretas relacionadas [a Osama bin Laden] que sejam consideradas”. Embora o governo Bush estivesse trabalhando para ampliar o alcance do uso de força letal contra Bin Laden e seus principais subordinados, o processo foi marcado pelas mesmas preocupações manifestadas durante a era Clinton sobre a concessão de autorização generalizada para matar. A Casa Branca de Bush estava enveredando por um caminho semelhante ao do governo Clinton, tentando burlar a proibição de assassinar e, ao mesmo tempo, exigindo análise minuciosa de cada proposta de operação letal. No Onze de Setembro, tudo isso ia mudar. Quando as Torres Gêmeas desmoronaram, a mesma coisa aconteceu com o sistema de fiscalização e análise das operações secretas letais cuidadosamente construído no transcurso da década anterior.
“Só uma crise84 — real ou percebida como tal — produz uma mudança verdadeira.” Assim escreveu o ícone conservador Milton Friedman em seu livro Capitalismo e liberdade. Friedman foi um importante assessor de sucessivos governos republicanos e exerceu forte influência sobre muitos funcionários da Casa Branca de Bush. Orientou Rumsfeld85 no começo de carreira, assim como Cheney, e destacados neoconservadores no governo pediam-lhe conselho86 com regularidade. Friedman apregoava:
Quando essa crise ocorre,87 as ações empreendidas dependem das ideias vigentes. Esta é, acredito, nossa função básica: desenvolver alternativas para as políticas existentes, mantê-las vivas e disponíveis até que o politicamente impossível se torne politicamente inevitável.
Para os altos funcionários das áreas de Segurança Nacional e Defesa de Bush, que passaram os oito anos de governo Clinton — ou mais — desenvolvendo essas alternativas, os ataques do Onze de Setembro e o apoio quase unânime do Congresso controlado pelos democratas ofereceram uma oportunidade imperdível de tornar suas ideias inevitáveis. Numa misteriosa premonição, os neoconservadores do PNAC tinham afirmado em seu relatório “Reconstrução das defesas americanas”, pouco mais de um ano antes do Onze de Setembro, que “o processo de transformação, mesmo que traga mudanças revolucionárias, provavelmente será longo, a menos que ocorra alguma catástrofe ou evento catalisador — como um novo Pearl Harbor”.88 Cheney e Rumsfeld podem não ter sido capazes de ver o Onze de Setembro chegando, mas mostraram-se mestres em explorar os ataques. “O ataque de Onze de Setembro foi um desses acontecimentos históricos tão poderosos que incentiva novos modos de pensar e perturba os complacentes”, lembrou Feith. “Ele criou a oportunidade de dar a muitas pessoas — amigos e inimigos, nos Estados Unidos e fora deles — uma nova perspectiva. Rumsfeld, Wolfowitz e eu achamos que o presidente tem o dever de usar sua tribuna89 privilegiada.” De acordo com a Constituição americana, é o Congresso, não o presidente, que tem o direito de declarar guerra. Mas 72 horas depois do Onze de Setembro, o Congresso deu um passo radical na direção oposta. Em 14 de setembro de 2001, a Câmara e o Senado deram ao presidente Bush plenos poderes para travar uma guerra global, aprovando a Autorização para Uso de Força Militar (Authorization for Use of Military Force, AUMF). O documento estabelecia que “o presidente fica autorizado a usar toda a força necessária e adequada90 contra nações, organizações e pessoas que em juízo tenham planejado, autorizado, cometido ou ajudado os ataques terroristas cometidos em Onze de Setembro de 2001, ou dado abrigo a essas organizações ou pessoas, para evitar qualquer ato futuro de terrorismo internacional contra os Estados Unidos por parte dessas nações, organizações e pessoas”. O uso do termo “pessoas” foi interpretado pelo governo como um sinal verde para o assassinato. A autorização foi aprovada pela Câmara com um único voto contra e pelo Senado por unanimidade.91 O único voto contra a AUMF foi da representante democrata liberal Barbara Lee, da Califórnia. “Por mais difícil que possa ser esse voto, algum de nós deve alertar sobre a necessidade de moderação”,92 disse ela, com a voz embargada, quando falou no plenário da Câmara naquele dia. “Deve haver alguns de nós93 que digam: vamos dar um passo atrás por um momento e pensar nas implicações de nossos atos de hoje — vamos compreender melhor suas consequências”, disse ela em sua justificativa de voto. “Precisamos ter o cuidado de não embarcar numa guerra cujo fim não se vê sem ter uma estratégia de saída nem um alvo definido.” O discurso de dois minutos de Barbara Lee foi toda a resistência oposta pelo Congresso ao pedido de plenos poderes e autorização para a guerra que a Casa Branca pedia. Fortalecido pelo esmagador aval bipartidário a uma guerra global e sem fronteiras contra um inimigo sem país, o governo Bush declarou o mundo um campo de batalha. “Temos de trabalhar, porém, como uma espécie de lado negro,94 por assim dizer”, proclamou Dick Cheney
no programa Meet the Press da NBC em 16 de setembro de 2001, antecipando o que estava por vir. “Temos de trabalhar nas sombras, no mundo da Inteligência. Muito do que temos a fazer deve ser feito em sigilo, sem nenhuma discussão, usando recursos e métodos acessíveis a nossos órgãos de Inteligência, se quisermos ter êxito.” O presidente assinou publicamente a AUMF, tornando-a lei em 18 de setembro de 2001, mas a resolução que assinara secretamente na véspera foi ainda mais relevante. A diretriz presidencial secreta,95 que permanece sigilosa até hoje, concedia à CIA autorização para capturar e manter em custódia militantes suspeitos no mundo inteiro, o que levaria à criação de uma rede daquilo que os funcionários do governo chamavam internamente de “lugares negros”, prisões secretas que podiam ser usadas para encarcerar e interrogar pessoas. Acabava também com os empecilhos representados pela fiscalização e pelo exame interagências do processo de autorização de assassinatos dirigidos. Talvez ainda mais importante, acabava com a exigência da assinatura do presidente para cada operação secreta letal. Os advogados do governo concluíram que a proibição de assassinato não se aplicava a pessoas classificadas como “terroristas”, o que dava grande liberdade à CIA para autorizar operações de morte. O presidente Bush queria que a CIA tomasse a frente. Tinha o homem certo para a função.
Cofer Black passou grande parte de sua carreira na África, atuando nas sombras. Seu batismo de fogo foi em Zâmbia, durante a guerra da Rodésia; passou depois à Somália e esteve na África do Sul96 durante a guerra brutal do regime de apartheid contra a maioria negra. Durante sua permanência no Zaire,97 Black trabalhou no programa de armas secretas do governo Reagan que pretendia armar forças anticomunistas em Angola. No início da década de 1990, muito antes da maior parte dos integrantes da comunidade de contraterrorismo, Black tornou-se obcecado por Bin Laden e declarou-o a grande ameaça a ser neutralizada. De 1993 a 1995, trabalhou disfarçado de diplomata na embaixada dos Estados Unidos em Cartum, Sudão, onde servia na verdade como chefe da estação da CIA.98 Bin Laden estava também no Sudão, construindo a rede internacional que, ao término do período de Black, a CIA chamaria de “Fundação Ford do terrorismo islâmico sunita”.99 Os agentes de Black que perseguiam Bin Laden trabalhavam nas condições da “diretriz operacional”100 da era Clinton, que restringia seu trabalho à coleta de informações sobre Bin Laden e sua rede. Black queria autorização para matar o saudita bilionário, mas a Casa Branca de Clinton ainda não tinha assinado101 a autorização, como viria a fazer depois do ataque a bomba contra embaixadas americanas na África. “Infelizmente, naquele tempo a licença para matar — chamada oficialmente de Documento Letal — era tabu na organização”,102 disse Billy Waugh, agente da CIA que trabalhou com Black no Sudão. “No começo da década de 1990, fomos forçados a aderir ao parecer legal hipócrita e aos bons samaritanos.” Entre as ideias rejeitadas de Waugh estava um suposto complô para assassinar Bin Laden em Cartum e jogar o corpo na embaixada iraniana,103 numa tentativa de culpar Teerã,
ideia que, segundo Cofer Black, Waugh “adorava”. Nos primeiros dias do governo Bush, Black começou a pressionar novamente na tentativa de conseguir autorização para pegar Bin Laden. “Ele costumava vir a meu gabinete104 e me divertia contando sobre todas as vezes que tinha tentado fazer alguma coisa com Bin Laden antes do Onze de Setembro”, lembra Lawrence Wilkerson, chefe de gabinete do secretário de Estado Colin Powell na época. Segundo Wilkerson, Black dizia que “por causa da falta de coragem da [Força] Delta e por falta de competência burocrática da CIA, ele nunca pôde fazer nada”. Black teria dito a Wilkerson que
todas as vezes que apresentam uma oportunidade à Delta, por exemplo, eles chegam com essa lista de perguntas que precisam ser respondidas, como: “Que tipo de prego existe na porta?”. “Que tipo de tranca tem a porta?” “Qual é o número de série da tranca?”, e toda essa patacoada, que não passa das besteiras de sempre das Forças de Operações Especiais porque não querem fazer nada.
Para grande alegria de Black, todos esses cuidados em breve seriam descartados, como tudo o mais. Em 6 de agosto de 2001,105 o presidente Bush estava em sua fazenda de criação de cavalos, em Crawford, Texas, onde recebeu o briefing diário intitulado “Bin Laden decidido a atacar os Estados Unidos”.106 Mencionava duas vezes a possibilidade de que ativistas da Al-Qaeda tentassem sequestrar aviões, dizendo que as informações do FBI “indicam um modelo de atividade suspeita nos [Estados Unidos] compatível com a preparação de sequestro ou outros tipos de ataque, inclusive levantamentos recentes em edifícios do governo federal em Nova York”. Nove dias depois, Black falou numa conferência secreta do Pentágono sobre contraterrorismo. “Seremos atingidos em breve”,107 disse ele. “Muitos americanos morrerão, e pode acontecer nos Estados Unidos.” Depois do Onze de Setembro, Bush e Cheney reescreveram as regras do jogo. Black já não precisaria apontar uma arma para a cabeça de alguém a fim de conseguir licença para operações letais. “Minha emoção pessoal foi porque agora a coisa começou oficialmente”, recordou Black. “A analogia seria a do cachorro acorrentado que agora é solto. Eu simplesmente não aguentava esperar.”108 Na primeira reunião que teve com o presidente Bush depois dos ataques de Onze de Setembro, Black detalhou o modo como os paramilitares da CIA se mobilizariam no Afeganistão para caçar Bin Laden e seus escudeiros. “Quando acabarmos, eles vão ficar com a boca cheia de formigas”,109 prometeu Black, numa tirada que no círculo mais restrito do governo valeu-lhe o apelido de “O Cara da Boca Cheia de Formigas”. Dizia-se que o presidente adorava o jeito de Black. Quando ele disse a Bush que a operação não seria incruenta, o presidente declarou: “Vamos em frente.110 Guerra é guerra. Estamos aqui para ganhar”. Philip Giraldi, funcionário de
carreira da CIA especializado em recrutamento e treinamento de agentes que frequentou The Farmer [A Fazenda] — unidade de treinamento na área rural da Virgínia — junto com Black, lembra-se de tê-lo encontrado por acaso no Afeganistão, pouco depois que as primeiras equipes americanas lá pousaram, após o Onze de Setembro. “Fazia muitos anos que eu não o via”, disse Giraldi. “Fiquei surpreso111 ao constatar como ele tinha se tornado tacanho. Falava o tempo todo em trazer a cabeça de Bin Laden numa bandeja — e com isso queria dizer exatamente a cabeça de Bin Laden numa bandeja.” Giraldi disse que Black “tinha uma visão limitada das coisas” e detestava os aliados europeus mais próximos dos Estados Unidos, inclusive os britânicos: “Ele não confia nem um pouco neles”. Quando se tratava da emergente guerra americana global, contou Giraldi, Black era “um verdadeiro entusiasta, o que é pouco comum na Agência. Lá em geral as pessoas são meio céticas. Se você é um funcionário da Inteligência em campo, logo fica cético em relação a uma porção de coisas. Mas Cofer era um desses entusiastas”. Em 19 de setembro, a equipe da CIA de codinome Quebra-Queixo foi mobilizada. Black deu a seus homens instruções diretas e macabras. “Cavalheiros, quero lhes dar suas instruções112 e quero que fiquem bem claras. Discuti o assunto com o presidente e ele está de pleno acordo”, disse Black ao agente secreto da CIA Gary Schroen e sua equipe. “Não quero capturar Bin Laden e seus bandidos, quero-os mortos”, esclareceu. “Eles devem ser mortos. Quero ver fotos da cabeça deles espetadas em lanças. Quero despachar a cabeça de Bin Laden numa caixa de gelo seco. Quero poder mostrar a cabeça de Bin Laden ao presidente. Prometi a ele que faria isso.” Schroen disse que foi a primeira vez em seus trinta anos de carreira que lhe ordenaram assassinar um adversário em vez de tentar capturá-lo. Black perguntou se tinha sido claro. “Perfeitamente claro, Cofer”, respondeu Schroen. “Não sei onde vamos encontrar gelo seco aqui no Afeganistão, mas com certeza conseguiremos fabricar lanças no campo.” Depois Black explicou por que aquilo seria necessário. “Precisamos de algum DNA”,113 disse ele. “Essa é uma boa maneira de obtê-lo. Pegue um facão, decepe a cabeça dele e pronto, você terá um bom punhado de DNA, e assim vai poder examiná-lo e fazer testes. É melhor do que arrastar o corpo inteiro!” Quando diplomatas russos que se reuniram com Black em Moscou antes da invasão total do Afeganistão lhe lembraram a derrota dos soviéticos para os mujahedin apoiados pelos Estados Unidos, Black revidou: “Vamos matá-los”, disse. “Vamos espetar a cabeça deles em lanças. Vamos abalar o mundo deles.”114 Num prenúncio das coisas que estavam por vir, as operações secretas organizadas por Black de imediato depois do Onze de Setembro se apoiavam firmemente em funcionários terceirizados. A equipe inicial da CIA era composta de cerca de sessenta membros antigos da Força Delta, ex-SEALs e outros operadores das Forças Especiais que trabalhavam para Black como terceirizados independentes e constituíam a maior parte do primeiro grupo de americanos115 que foram ao Afeganistão depois do Onze de Setembro. No início, a lista de pessoas pré-selecionadas como alvos de assassinato dirigido era pequena: as estimativas oscilam entre sete e vinte e poucas pessoas,116 incluídos Bin Laden e seu segundo
homem, Ayman al Zawahiri. E as operações estavam dirigidas basicamente para o Afeganistão. Em 7 de outubro, o presidente Bush lançou oficialmente117 a operação Liberdade Duradoura (Operation Enduring Freedom, OEF) e as Forças Armadas americanas começaram uma série de ataques aéreos, seguidos de invasão por terra. Nos primeiros dias da campanha do Afeganistão, o pessoal da CIA e as Forças Especiais trabalharam em conjunto. “Estamos lutando pelos objetivos do contraterrorismo no palco afegão”, escreveu o chefe de Operações Especiais Contraterroristas num memorando dirigido ao pessoal da CIA em outubro de 2001.
E embora visando a grandes objetivos num terreno incerto e esquivo, lutamos também pelo futuro das operações bélicas integradas da CIA/DoD contra o terrorismo no mundo todo. Vamos cometer erros enquanto mapeamos novo território e testamos novas metodologias, mas nossos objetivos são claros e nosso conceito de parceria é sólido.118
Na época, a CIA tinha uma capacidade paramilitar muito reduzida,119 mas como principal órgão encarregado da caça aos culpados dos ataques do Onze de Setembro, podia requisitar forças das Operações Especiais para desempenhar suas missões. Rumsfeld não tinha interesse em servir de equipe de apoio à CIA, e a crescente projeção que a Agência vinha ganhando na guerra que se desenrolava não caiu bem para o secretário de Defesa, que não podia fazer nada além de zombar do governo Clinton. Ele, Cheney e seus aliados neoconservadores achavam que a CIA tinha se tornado um pálido reflexo liberal do que fora no passado. A ação secreta, pensavam, tinha sido interrompida por advogados e por uma intromissão desnecessária da fiscalização por parte do Congresso, o que atrapalharia aquilo que eles viam como operações de vida ou morte que deviam ser executadas em sigilo. Embora Cofer Black tivesse o mesmo ardor de Rumsfeld no que diz respeito a matar “terroristas”, isso não bastava. Rumsfeld não queria nada com os burocratas fiscalizadores da CIA e não queria ter suas forças sob o controle da Agência. Cheney deixou claro que naquele governo os advogados da CIA e as comissões parlamentares não seriam vistos como defensores da lei ou parte de um sistema necessário de controles. Como Rumsfeld gostava de dizer, tais instituições eram um estorvo para “a iniciativa de luta contra os terroristas”. Os advogados seriam consultados para dar sua chancela a políticas secretas, e somente alguns membros selecionados do Congresso seriam ouvidos. Os briefings ao Congresso, inclusive aqueles de pleno acesso obrigatório à “Gangue dos Oito” — a elite dos membros da Câmara e do Senado que era historicamente informada das operações da Inteligência relacionadas a ações secretas — seriam censurados e redigidos internamente na Casa Branca, o que significa que os legisladores receberiam uma versão asséptica dos fatos. Nos meses que se seguiram ao Onze de Setembro, Cheney, Rumsfeld e suas equipes empreenderam diversas iniciativas importantes que visavam garantir que nenhuma burocracia
atravessaria seu caminho quanto aos planos de usar as forças americanas mais sinistras sem controle externo. Cheney queria dissuadir a CIA da ideia de que ela tinha algum tipo de independência. Em vez de ser o principal verificador de dados e mecanismo de Inteligência do presidente, a CIA, em seu novo papel, poria em prática políticas predeterminadas. Cheney queria eliminar os exames interagências das ações letais propostas, como tinha sido praxe na era Clinton. Logo depois do Onze de Setembro, a Casa Branca reuniu um grupo de advogados dos altos escalões do governo cuja missão seria justificar legalmente a tortura, o sequestro e o assassinato. O grupo, que se autodenominou “Conselho de Guerra”,120 era liderado por David Addington, assessor jurídico e conselheiro de longa data de Cheney e seu colaborador no “relatório minoritário”121 defendendo a operação Irã-contras. Também faziam parte do grupo122 o assessor jurídico da Casa Branca Alberto González e seu adjunto, Tim Flanigan; o chefe da área jurídica do Pentágono, William Haynes; e o vice-procurador-geral adjunto John Yoo. O Conselho de Guerra excluiu deliberadamente123 o chefe da área jurídica do Departamento de Estado e outros advogados das Forças Armadas e do Departamento de Justiça que historicamente eram incluídos no exame legal das estruturas de combate ao terrorismo. Esse ponto estava claro: o grupo fora criado para produzir a justificativa legal de táticas empregadas numa guerra suja e secreta, e não para avaliar independentemente a legalidade dessas táticas. Para travar sua guerra global, a Casa Branca fez amplo uso das táticas que Cheney vinha defendendo havia muito. Seria fundamental para sua campanha do “lado negro” o uso de autorizações presidenciais que, por sua natureza, limitariam muito qualquer fiscalização pelo Congresso. Segundo a Lei de Segurança Nacional de 1947, exige-se que o presidente emita uma autorização antes de qualquer ação secreta. A lei determina que a ação deve estar de acordo com a lei e a Constituição do país.124 A autorização presidencial assinada por Bush em 17 de setembro de 2001 foi usada para criar um programa secreto altamente confidencial cujo nome em código era Greystone125 ou GST, como se mencionava nos documentos internos, para servir de guarda-chuva126 sob o qual muitas das atividades mais clandestinas e legalmente discutíveis seriam autorizadas e postas em prática nos primeiros dias da Guerra Global contra o Terror (Global War on Terrorism, GWOT). Baseava-se na interpretação do governo sobre a AUMF aprovada pelo Congresso, que declarava alvo legítimo qualquer suspeito de ligação com a AlQaeda, em qualquer parte do mundo. Com efeito, a autorização presidencial declarava legais e previamente autorizadas todas as ações secretas, o que, segundo os críticos, violava o espírito da Lei de Segurança Nacional. Com o GST, foi criada uma série de programas compartimentalizados127 que, juntos, constituíam efetivamente uma operação global de assassinato e sequestro. A autorização para assassinatos dirigidos foi radicalmente simplificada. Essas operações já não precisavam da aprovação direta do presidente caso a caso. Black, chefe do CTC, agora podia ordenar diretamente os ataques.128 O dia em que Bush assinou o memorando de notificação que autorizava, entre outras
iniciativas, o programa de Alvos de Grande Valor, o corpo de funcionários do CTC e “congêneres estrangeiros selecionados” foram informados sobre isso em Washington, DC. “Cofer [Black] apresentou uma nova autorização presidencial que amplia nossas opções129 para tratar dos alvos terroristas — uma das poucas vezes que uma coisa assim aconteceu desde que a CIA foi proibida oficialmente de praticar assassinatos, em 1976”, lembra Tyler Drumheller, antigo chefe das operações clandestinas da CIA na Europa. “Estava claro que o governo via aquilo como uma guerra que seria travada, em grande parte, por efetivos da Inteligência. Isso exigia uma nova forma de operar.” John Rizzo, advogado veterano da CIA que colaborou na redação da autorização, diria mais tarde que “nunca em minha experiência participei ou tive notícia de uma autorização presidencial de tamanha abrangência e tão agressiva. Foi simplesmente extraordinário”.130 O GST era também veículo das operações de captura conhecidas como transferências internacionais de presos. Com amparo do GST, a CIA começou a se relacionar com órgãos de Inteligência de diversos países para estabelecer acordos131 que lhe permitisse atuar em seus territórios e criar prisões clandestinas em lugares onde as pessoas pudessem ficar detidas, ser submetidas a interrogatório e mantidas à distância da Cruz Vermelha, do Congresso americano e de qualquer coisa vagamente assemelhada a um sistema judiciário. Esses acordos davam imunidade não só aos funcionários do governo americano como também a terceirizados privados.132 O governo não queria levar suspeitos de terrorismo a julgamento “porque eles recorreriam a advogados”,133 disse Jose Rodriguez, que na época comandava o Diretório de Operações, responsável por toda a “ação” posta em prática pela agência. “Nosso trabalho, antes de mais nada, é obter informação.” Para isso, os interrogadores eram autorizados a usar técnicas hediondas, às vezes medievais, muitas das quais foram aperfeiçoadas pelo estudo das táticas de tortura dos inimigos dos Estados Unidos. Os advogados do Conselho de Guerra emitiram uma série de documentos legais,134 mais tarde apelidados de “Memorandos da Tortura” pelas organizações defensoras dos direitos humanos e das liberdades civis, que procuravam racionalizar essas táticas como sendo necessárias e diferentes da tortura. “Precisamos levar todos os integrantes do governo a agir como homens135 e nos dar as autorizações necessárias”, lembrou Rodriguez, que, com Black, se tornaria um dos principais arquitetos da política da tortura. “Eu já tinha tido, na Agência, uma porção de experiências em que tivemos de assumir a culpa. E não estava disposto a permitir que isso acontecesse com as pessoas que trabalham para mim.” A CIA começou a manter prisioneiros em segredo no Afeganistão em dependências do campo de pouso de Bagram, que tinha sido confiscado pelas forças americanas. No início, tratava-se de uma operação localizada, com prisioneiros amontoados em contêineres de navio. Com o tempo, ela se expandiu para um punhado de outros lugares discretos, entre eles uma prisão subterrânea perto do aeroporto de Cabul e uma velha olaria136 ao norte da cidade. Funcionando como uma subestação da CIA, a olaria, que se tornou conhecida como Salt Pit137 [salina], seria
usada para manter prisioneiros, inclusive aqueles que tinham sido capturados em outros países e levados para o Afeganistão. Os funcionários da CIA que trabalharam em contraterrorismo desde os primeiros dias depois do Onze de Setembro dizem que a ideia de uma rede de prisões secretas no mundo todo não era inicialmente um plano de grandes proporções, formando-se138 à medida que as operações se tornavam mais abrangentes. A princípio, a CIA cogitou em usar navios e ilhas remotas — como as ilhotas desabitadas que salpicam o lago Kariba139 em Zâmbia — como possíveis locais de detenção nos quais pudessem interrogar suspeitos de ligação com a Al-Qaeda. No fim das contas, a CIA construiu sua própria rede de prisões clandestinas em pelo menos oito países, entre eles Tailândia, Polônia, Romênia, Mauritânia, Lituânia e na ilha de Diego Garcia, no oceano Índico. No início, porém, por carecer de prisões secretas próprias, a Agência começou a enviar os suspeitos140 para o Egito, Marrocos e Jordânia para interrogatório. Usando os serviços de Inteligência de outros países, podiam torturar livremente141 os prisioneiros sem as incômodas averiguações do Congresso. Nos primeiros momentos do programa GST, o governo Bush enfrentou pouca resistência do Senado e da Câmara. Democratas e republicanos davam imenso espaço ao governo para travar sua guerra secreta. Por sua parte, a Casa Branca às vezes se negava a informar detalhes142 de suas operações secretas às comissões parlamentares de fiscalização, mas pouco se protestava contra essa reserva. O governo tomou também a decisão unilateral de reduzir a Gangue dos Oito143 a apenas quatro membros: os presidentes de ambas as câmaras legislativas e os presidentes das comissões de Inteligência da Câmara e do Senado. Esses congressistas ficaram proibidos de discutir as informações recebidas com quem quer que fosse. Na prática, isso queria dizer que o Congresso não tinha controle algum sobre o programa GST. Era exatamente o que Cheney queria.
O governo Bush não foi o criador do programa de transferência internacional de presos da CIA. Ele teve início no governo Clinton, em meados da década de 1990, quando foi assinada uma resolução presidencial144 que autorizava a CIA e as Forças de Operações Especiais, juntamente com o FBI, a capturar suspeitos de terrorismo no mundo inteiro sem respeitar tratados bilaterais de extradição ou convenções internacionais. A resolução de Clinton também permitia que funcionários do governo americano enviassem suspeitos de terrorismo para o Egito,145 onde, bem longe das leis americanas e dos direitos dos presos, eles podiam ser interrogados por agentes da mukhabarat (polícia secreta) que não estavam sujeitos às restrições americanas sobre a tortura. O programa exigia autorização direta146 para cada operação de captura. No governo Clinton, foram efetuadas mais de setenta transferências.147 Em alguns casos, aviões americanos pousavam nos países e levavam os presos de volta aos Estados Unidos para julgamento. Entre as transferências internacionais de presos de maior destaque estavam a de Mir Aimal Kasi,148 paquistanês que baleou e matou dois funcionários da CIA diante do quartel-general da Agência
em 1993 e foi recambiado do Paquistão em 1997; a de Ramzi Yousef,149 o cérebro do atentado a bomba contra o World Trade Center em 1993; a de Wali Khan Amin Shah,150 que planejou explodir numerosos aviões americanos ao mesmo tempo em 1995; e a de Tsutomu Shirosaki,151 membro do Exército Vermelho japonês, que praticou um atentado a bomba contra a embaixada americana em Jacarta e acabou capturado em 1996. Todas essas transferências se fizeram sob o amparo de mandados de juízes americanos e terminaram com julgamentos civis. No entanto, em casos em que os Estados Unidos preferiram a Inteligência à justiça, os presos foram levados a terceiros países onde não teriam direitos legais. Em 1998, o Congresso aprovou uma lei pela qual se instituía que
a política dos Estados Unidos não contempla expulsão, extradição152 ou qualquer outra forma de retorno involuntário de uma pessoa a um país em que haja indícios consistentes de que essa pessoa correrá risco de ser submetida a tortura, independentemente de sua presença física nos Estados Unidos.
As diretrizes presidenciais de Bush depois do Onze de Setembro jogaram essas preocupações pela janela, e a CIA intensificou o uso daquilo que os defensores dos direitos humanos passaram a chamar de “táxis de tortura”. No fim de 2001, quando o novo programa de morte/captura começava a funcionar a pleno vapor, o número três da CIA na época, Buzzy Krongard, declarou que a “guerra contra o terror” seria “vencida em grande parte153 por forças que não são conhecidas, em ações que não serão vistas e com métodos sobre os quais é melhor não querer saber”. Um funcionário americano diretamente envolvido no translado de presos declarou ao Washington Post: “Não metemos o cacete154 neles. Mandamos eles para outros países para que metam o cacete neles lá”. Outro funcionário que supervisionou a captura e a transferência de prisioneiros disse ao jornal que “se você não violar os direitos humanos de alguém em algum momento, provavelmente não conseguirá cumprir sua tarefa”155 e acrescentou: “Não acho conveniente promover a ideia de tolerância zero nesse assunto. Esse foi o grande problema da CIA durante muito tempo”. Cofer Black pôs um ponto final nisso quando falou ao Congresso sobre a nova “flexibilidade operacional” empregada na guerra contra o terror. “Essa é uma área muito confidencial, mas tenho de dizer que tudo o que vocês precisam saber é que houve um antes do Onze de Setembro e um depois do Onze de Setembro”, disse Black. “Depois do Onze de Setembro, a coisa desandou.”156 As primeiras fases do programa de transferência internacional de presos no pós-Onze de Setembro deram início a algo que tornaria uma disputa de muitos anos entre o FBI e a CIA sobre quem assumiria a liderança das investigações no caso dos ataques terroristas. Também trouxeram à tona o pouco apreço da Casa Branca de Bush por qualquer coisa que lembrasse uma
abordagem dentro da lei acerca da questão dos responsáveis pelos ataques. Quando o regime talibã se esfacelou e os soldados americanos começaram a ser despejados no Afeganistão, dezenas de quadros operacionais da Al-Qaeda passaram a recuar para a fronteira com o Paquistão. Em novembro, forças paquistanesas157 prenderam Ibn al-Shaykh al-Libi, instrutor da Al-Qaeda que supostamente comandava o campo de treinamento de Khalden no Afeganistão, onde foram treinados Richard Reid, o futuro “homem da bomba no sapato”,158 e Zacarias Moussaoui, chamado de Vigésimo Sequestrador. Os paquistaneses entregaram Libi a agentes do FBI estacionados na Base Aérea de Bagram para interrogatório. O FBI considerava o prisioneiro uma provável fonte valiosa sobre a Inteligência da Al-Qaeda e uma possível testemunha contra Moussaoui. Jack Cloonan, agente do FBI com base em Nova York, disse a seu pessoal no Afeganistão: “Tratem disso159 como se estivesse acontecendo exatamente aqui, em meu escritório de Nova York”. E acrescentou: “Lembro-me de ter falado com eles por uma linha telefônica segura. Disse a eles: ‘Façam um favor a si mesmos, informem o cara sobre seus direitos. Pode estar fora de moda, mas se não o fizermos, isso vai aparecer. Pode levar dez anos, porém se não o fizerem, isso vai atingir vocês e a reputação do Bureau. Façam disso um exemplo brilhante do que achamos certo’”. Os interrogadores de Libi disseram que ele foi um colaborador, “sinceramente gentil”160 e que concordou em dar informações sobre Reid em troca da promessa de proteção para sua família. No entanto, enquanto o FBI achava que estava fazendo progressos com Libi, quadros operacionais da CIA, por ordem de Cofer Black,161 irromperam em Bagram e exigiram a custódia do prisioneiro. Os agentes do FBI se opuseram,162 mas a Casa Branca passou por cima deles. “Você sabe para onde está indo”,163 disse um dos homens da CIA a Libi ao tirá-lo do FBI. “Antes de você chegar lá, vou achar sua mãe e foder com ela.” A CIA levou Libi para o USS Bataan,164 no mar da Arábia, onde estava também o chamado talibã-americano John Walker Lindh, que tinha sido preso no Afeganistão, e combatentes de outras nacionalidades. Do navio, Libi foi transferido para o Egito, onde foi torturado por agentes egípcios. Seu interrogatório foi focado num objetivo que se tornaria ponto central do programa de transferência e tortura: dar prova de uma relação entre o Iraque165 e os acontecimentos do Onze de Setembro. Uma vez sob custódia da CIA, Libi foi bombardeado com perguntas que tentavam ligar os ataques e a Al-Qaeda ao Iraque. Mesmo depois que seus interrogadores declararam que tinham quebrado sua resistência e que ele estava “obediente”, o gabinete de Cheney interveio diretamente166 e ordenou que ele continuasse submetido a técnicas aperfeiçoadas de interrogatório. “Depois de um interrogatório realmente pesado167 — isto é, técnicas aperfeiçoadas e extremadas de interrogatório —, ele admitiu que a Al-Qaeda e Saddam estavam trabalhando em conjunto. Admitiu que eles trabalhavam juntos na produção de WMDs”, disse o antigo interrogador do FBI Ali Soufan ao programa Frontline da PBS. Mas a Agência de Inteligência de Defesa (Defense Intelligence Agency, DIA) lançou sérias dúvidas sobre as afirmações de Libi, observando, num relatório confidencial, que ele “não dava detalhes”168
sobre o suposto envolvimento do Iraque e afirmando que “provavelmente esse indivíduo estava enganando deliberadamente” seus interrogadores. Observando ainda que ele tinha “estado sob interrogatório ao longo de várias semanas”, a análise da DIA concluiu que Libi poderia estar “descrevendo a seus interrogadores cenários que ele sabia que chamariam a atenção deles”. Apesar dessas dúvidas, a “confissão” de Libi foi entregue ao secretário de Estado Colin Powell169 para que a usasse na apresentação fraudulenta sobre a Guerra do Iraque feita pelo governo americano ante as Nações Unidas. Em seu discurso, Powell diria que “posso trazer-lhes o caso170 de um ativo e experiente terrorista que diz que o Iraque dava treinamento à Al-Qaeda para o uso dessas armas”. Mais tarde, depois que essas afirmações se comprovaram falsas, Libi reconheceu, segundo Soufan, que tinha mentido. “Eu disse o que vocês queriam ouvir”,171 contou. “Queria parar com a tortura. Disse alguma coisa que vocês queriam ouvir.” O modelo que desde o início começou a se firmar com o programa de transferência e interrogatório centrava-se em dois objetivos principais: desmantelar a rede da Al-Qaeda para evitar novos ataques e servir de apoio para uma invasão do Iraque. Na busca desses objetivos, nenhuma opção ou tática seriam deixadas de fora. Enquanto o Departamento de Estado advertia para o perigo de uma declaração de guerra global mal planejada e pressionava a favor de uma resposta restrita e dentro da lei ao Onze de Setembro, Cheney começou a traçar planos para ambiciosas operações globais de sequestros e assassinatos em que inicialmente certos elementos da CIA desempenhariam papéis de liderança. Cheney, segundo antigos altos funcionários da CIA e do Departamento de Estado, começou de fato a dirigir uma caçada humana global172 usando uma mistura de Forças de Operações Especiais e quadros operacionais da Divisão de Atividades Especiais (Special Activities Division, SAD) da CIA, o braço paramilitar da Agência. Esses ex-funcionários comentaram que tais operações ocorriam numa cultura em que embaixadores, comandantes das Forças Armadas americanas convencionais e até mesmo chefes de postos da CIA no estrangeiro eram mantidos na ignorância a respeito de operações secretas ou clandestinas. Para executar o programa, Cheney se valeu da brecha obscura na lei americana e nas prerrogativas de comando que se interpõe entre a jurisdição da CIA e a das Forças Armadas. Em novembro de 2001, Cheney convocou uma reunião173 na Casa Branca para dar os retoques finais numa resolução presidencial, redigida por Addington e outros juristas, que determinava de que forma os prisioneiros capturados no exterior seriam julgados. Como de hábito, os advogados do Conselho de Guerra foram convidados para a reunião, que, no entanto, excluiu altos funcionários do Departamento de Estado e do Conselho de Segurança Nacional (National Security Council, NSC). Powell e a assessoria jurídica do Departamento de Estado tinham dito ao presidente Bush174 que em sua opinião, pelas Convenções de Genebra, os presos do Talibã e da Al-Qaeda tinham direito a proteção legal e tratamento humano sob custódia do inimigo. Advertiram ainda que se não oferecessem essa proteção aos inimigos, poriam em perigo a vida175 de soldados americanos que caíssem prisioneiros nessa guerra. Em 7 de fevereiro de 2002, o presidente Bush tomou uma decisão. Assinou outra resolução presidencial,
baseada na suposição de que as Convenções de Genebra eram “singulares” e não se aplicavam a militantes do Talibã e da Al-Qaeda aprisionados pelos Estados Unidos. A resolução foi assinada logo depois que o governo Bush começou a mandar prisioneiros capturados no Afeganistão e em outros países para a prisão militar de Guantánamo, em Cuba. Embora o Congresso estivesse desatento quanto a suas responsabilidades de fiscalização desde o começo da guerra contra o terror, o governo sabia que isso não ia durar. No início de 2002, já se levantavam algumas vozes na Colina do Capitólio exigindo informações da CIA e do governo sobre as táticas empregadas pela Agência na perseguição a suspeitos. É provável que os detalhes sobre como funcionavam essas operações do “Programa Cheney” no período imediatamente seguinte176 ao Onze de Setembro e sobre quem de fato as executava nunca venham a ser revelados. “Deliberadamente, mantivemos o círculo de pessoas informadas sobre a localização das prisões clandestinas restrito a poucas pessoas. Não dissemos nada ao FBI”,177 lembra Rodriguez, o funcionário da CIA que coordenou a construção e o uso das prisões clandestinas. “Muita gente, mesmo que ocupasse os mais altos postos de segurança, deixou de ser informada. Até onde sei, a localização das prisões clandestinas não era conhecida nem mesmo pelo presidente.” Rodriguez disse ainda que não se tratava de desconfiança em relação àqueles altos funcionários mantidos de fora do círculo de informados, “mas eles simplesmente não precisavam saber”. As estratégias que alimentaram a escalada dessa força se tornariam modelo para um programa secreto que Rumsfeld criaria no Pentágono. Rumsfeld notava que a CIA se tornava o macho alfa do GWOT sob o comando de Cheney. Decidiu então levar o Pentágono a romper com o que ele chamava “dependência quase total da CIA”178 e erguer uma cortina de ferro em torno das atividades mais delicadas dos principais combatentes de elite dos Estados Unidos. Esse projeto foi idealizado como uma operação de Inteligência paralela à CIA, mas também como a mais eficiente máquina de morte e captura que o mundo já vira — que, por sua própria natureza, não se reportaria a ninguém além do presidente e de seu círculo mais chegado.
2. Anwar Awlaki: uma história americana
ESTADOS UNIDOS E IÊMEN, 1971-2002 — O mundo era um lugar diferente quando George W. Bush fazia campanha para a presidência, em 2000. O dia 11 de setembro não tinha nenhum significado especial para os americanos, e Osama bin Laden não estava no centro das atenções das Forças Armadas e da máquina de Inteligência dos Estados Unidos. Para muitos árabes e muçulmanos, a era Clinton tinha resultado em esperanças desfeitas de que a questão palestina fosse negociada a favor deles. Muitos muçulmanos americanos viam Bush, e não o vicepresidente de Clinton, Al Gore, como sua esperança1 para a eleição presidencial de 2000. Mas não se tratava apenas da Palestina. Muitos muçulmanos partilhavam valores sociais conservadores com cristãos evangélicos como Bush em questões referentes a casamento, direitos dos homossexuais e aborto. Um desses muçulmanos americanos era um jovem imã do Novo México chamado Anwar al-Awlaki. “Sim, discordamos numa porção de pontos quando se trata da política externa dos Estados Unidos”, disse Awlaki em 2001. “Somos conservadores quando se trata de valores de família. Somos contra a decadência moral que estamos vendo na sociedade. Mas também apreciamos muitos dos valores dos Estados Unidos. A liberdade é um deles;2 a oportunidade é outro.” Em muitos aspectos, a história de Awlaki era a história clássica de pessoas de uma terra distante que buscavam uma vida melhor nos Estados Unidos. Seu pai, Nasser Awlaki, foi um brilhante estudante do Iêmen que chegou aos Estados Unidos em 1966 com uma bolsa da Fundação Fulbright3 para estudar economia agrícola na Universidade Estadual do Novo México. “Eu lia muito sobre os Estados Unidos quando tinha apenas quinze anos”, lembra Nasser.
Minha impressão sobre o país, quando eu era ainda um menino na escola elementar e até os últimos anos do ensino médio, era de que os Estados Unidos eram um país de democracia e a terra das oportunidades. Ansiava o tempo todo por estudar nos Estados Unidos da América.4
Ao chegar, Nasser foi primeiro para Lawrence, Kansas, a fim de estudar inglês e depois dirigiu-se para o Novo México. “Eu queria conhecer essa gente do Novo Mundo5 que tinha construído uma das nações mais avançadas que já se viu”, declarou ele num ensaio de apresentação a seus colegas de classe nos Estados Unidos. Nasser escreveu que queria estudar “para ajudar meu
povo a se tornar mais progressista e avançado”. Ele tinha se casado logo depois de terminar o ensino médio, mas não pôde trazer Saleha para viver com ele nos Estados Unidos com a bolsa de 167 dólares por mês. “Como eu queria muito trazer minha mulher, concluí o bacharelado em agricultura em apenas dois anos e nove meses”, contou ele quando nos conhecemos em sua casa grande e moderna em Sana’a, capital do Iêmen, em dezembro de 2011. Depois de se formar, Nasser voltou ao Iêmen, conseguiu um visto para a mulher e voltou a Las Cruces, Novo México, onde fez mestrado. Em 22 de abril de 1971,6 nasceu o filho deles, Anwar. “Naquele tempo, era hábito distribuir charutos aos colegas da faculdade”, disse ele, rindo. “Estava escrito no charuto: ‘É um menino’. O dia em que Anwar nasceu foi inacreditável para mim. No Hospital Memorial de Las Cruces.” Nasser queria criar Anwar como americano, não apenas na nacionalidade, mas no caráter. Em 1971, quando a família se mudou para que Nasser fizesse o doutorado na Universidade de Nebraska, eles inscreveram o pequeno Anwar nas aulas de natação da sede local da Associação Cristã de Moços. “Ele já nadava de verdade com dois anos e meio”, lembrou Nasser. “E era muito bom naquilo.” Na sala de estar de sua casa em Sana’a, Nasser pegou o álbum da família e me mostrou fotos do pequeno Anwar, acomodado sobre um tapete, num retrato posado feito num shopping center. Finalmente, a família se instalou em St. Paul, Nasser conseguiu emprego na Universidade de Minnesota7 e matriculou Anwar na Escola Elementar Chelsea Heights. “Ele era um menino americano”, disse Nasser, mostrando uma foto de Anwar em sala de aula. Anwar, de cabelos compridos e esvoaçantes, está sorrindo e apontando para o Iêmen num globo terrestre. Outra foto de família mostra o adolescente magrelo de óculos escuros e boné de beisebol na Disneylândia. “Anwar foi realmente criado como qualquer outro menino americano, gostava de esportes e se dava muito bem na escola. Era muito bom aluno e praticava todo tipo de esporte.” Em 1977, Nasser decidiu mudar-se com a família para o Iêmen — não sabia por quanto tempo. Acreditava que tinha o dever de usar sua formação americana para ajudar o paupérrimo país de origem. Queria que Anwar voltasse um dia aos Estados Unidos para cursar a universidade, mas achava que seria bom para o menino conhecer a terra natal da família. Assim, no último dia de 1977, a família voltou para Sana’a. Anwar, aos seis anos, mal falava árabe, mas aprendeu rapidamente. Chegou a ser o quarto de sua classe no fim de seu primeiro semestre em Sana’a, e em um ano falava com facilidade. Nasser e alguns de seus colegas acabaram abrindo uma escola particular que ensinava tanto em inglês quanto em árabe. Anwar esteve na primeira turma, junto com Ahmed Ali Abdullah Saleh, filho do presidente do Iêmen. Os dois seriam colegas de classe durante oito anos. Ahmed Ali se transformaria num dos homens mais temidos do Iêmen, líder da Guarda Republicana. Anwar, por sua vez, começou um curso para seguir os passos do pai na área acadêmica. Anwar passaria os doze anos seguintes no Iêmen, época em que seu pai se tornaria mais chegado a seus amigos americanos em Sana’a. Nasser e diversos outros iemenitas formados nos
Estados Unidos ou no Reino Unido trabalhavam com a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (US Agency for International Development, USAID) e fundaram uma faculdade de agronomia com uma verba de 15 milhões de dólares oferecida pelos Estados Unidos. Em 1988, Nasser foi nomeado ministro da Agricultura. Depois que Anwar completou os estudos secundários, um colega de Nasser na USAID prontificou-se a ajudar a encontrar uma boa faculdade para Anwar nos Estados Unidos. Nasser queria que o filho estudasse “engenharia civil, com ênfase em hidráulica e no problema dos recursos hídricos do Iêmen. Porque o Iêmen sofre muito com a escassez de água”. Seu colega da USAID sugeriu a Universidade Estadual do Colorado (CSU) e ajudou Anwar a conseguir uma bolsa do governo dos Estados Unidos. Para isso, Anwar precisaria ter passaporte iemenita. “Naquela época, eu era apenas um professor universitário como qualquer outro e não tinha recursos para custear os estudos de meu filho nos Estados Unidos”, lembrou Nasser. “Foi aí que o diretor americano da USAID me disse que seria fácil se Anwar tivesse passaporte iemenita, cumprindo assim os requisitos para ganhar uma bolsa. Então conseguimos o passaporte para ele.” As autoridades iemenitas deram-lhe a cidade de Áden como lugar de nascimento. Mais tarde, isso causaria problemas para Anwar.
Anwar pousou no aeroporto de O’Hare,8 em Chicago, em 3 de junho de 1990, e de lá dirigiuse para Fort Collins, Colorado, para estudar engenharia civil.9 “Seu sonho de juventude era terminar os estudos [nos Estados Unidos] e voltar para servir o Iêmen”, disse Nasser. Durante o primeiro ano de Anwar na universidade, os Estados Unidos desencadearam a Guerra do Golfo contra o Iraque. Nasser recorda uma ligação telefônica que recebeu de Anwar quando as bombas americanas começavam a cair sobre Bagdá. Ele estava assistindo à transmissão de Peter Arnett, o famoso correspondente da CNN, que falava da capital iraquiana.
Pela CNN ele viu fotos que mostravam um blecaute completo em Bagdá. Então Anwar pensou que a cidade estivesse mesmo completamente destruída. Bagdá tem um grande significado cultural para os muçulmanos, por ter sido a sede da dinastia abássida. Por isso, ele ficou bastante desapontado com o que acontecera. Nesse momento, começou a se preocupar seriamente com os problemas muçulmanos em geral.
Anwar admitiu que, ao chegar aos Estados Unidos para cursar a faculdade, não era bem um muçulmano praticante,10 mas, depois de começada a Guerra do Golfo, tornou-se mais politizado e acabou liderando a Associação de Estudantes Muçulmanos11 no campus. Interessouse também pela guerra no Afeganistão e viajou para esse país nas férias de inverno de 1992. Os mujahedin, apoiados pelos Estados Unidos, tinham expulsado os ocupantes soviéticos em 1989, mas o Afeganistão continuava mergulhado na guerra civil e se tornara destino de muitos jovens
muçulmanos, entre eles um número surpreendente de iemenitas, com o intuito de explorar uma frente da jihad. “Veio a invasão do Kuwait, seguida da Guerra do Golfo. Foi então que comecei a levar minha religião mais a sério”, diria Anwar mais tarde.
Tomei a iniciativa de ir ao Afeganistão para lutar. Passei um inverno lá e voltei com a intenção de encerrar minha permanência nos Estados Unidos e partir para o Afeganistão para sempre. Planejava voltar no verão, mas Cabul foi libertada pelos mujahedin, vi que a guerra tinha acabado e acabei ficando nos Estados Unidos.12
As notas de Anwar na faculdade começaram a despencar13 à medida que ele investia mais em política e religião. Mais tarde, ele afirmaria que perdeu a bolsa de estudos14 por causa de sua militância. “A notícia chegou a mim por meio de um contato na embaixada americana em Sana’a. Eles estavam recebendo relatórios sobre minhas atividades islâmicas no campus e sabiam que eu tinha ido ao Afeganistão, e essa foi a única razão para cortarem minha bolsa”, disse. Em retrospecto, esse momento parece ter sido decisivo na trajetória de Anwar. Tinha surgido uma faísca que, combinada com os acontecimentos que sobrevieram, alterou seu caminho. Anos mais tarde, Anwar dizia que a bolsa que tinha recebido era parte de um complô do governo dos Estados Unidos com a intenção de recrutar estudantes do mundo todo para serem agentes do país. “O governo americano, por intermédio de seus programas de bolsas para estudantes estrangeiros, criou em seu favor um conjunto de quadros no mundo todo. Entre eles há líderes em todas as áreas: chefes de Estado, políticos, empresários, cientistas etc. Todos eles têm algo em comum: foram sem exceção alunos de universidades americanas”, escreveu ele. “Esses programas ajudaram o país a reforçar seu poder no mundo e disseminar seu controle. A maneira como os Estados Unidos estão administrando um império sem chamá-lo de império é uma das grandes inovações de nosso tempo.” Ele falava de si próprio como uma pessoa incomum que resistiu a esse desígnio imperial. “O projeto de me tornar um dos milhares de homens e mulheres no mundo inteiro que devem lealdade aos Estados Unidos não funcionou. Eu já não servia para o papel. Eu agora era um fundamentalista!”15 Os membros da família Awlaki não se consideram especialmente religiosos, apenas bons muçulmanos que rezam cinco vezes ao dia e tentam levar a vida de acordo com o Alcorão. A religião não era totalmente sem importância, mas para os Awlaki a identidade tribal vinha em primeiro lugar. Eles eram também pessoas modernas que se relacionavam com diplomatas e empresários de vários países. Quando estava se politizando, Anwar frequentava uma mesquita perto da universidade no Colorado, e o imã local pediu-lhe que fizesse o sermão16 de uma sextafeira. Anwar concordou e percebeu que tinha dom para falar em público. Começou a pensar que talvez sua verdadeira vocação fosse a oração, não a engenharia. “Ele era uma pessoa muito promissora.17 E esperávamos que tivesse um grande futuro”, lembra o tio de Anwar, o xeque
Saleh bin Fareed, um rico empresário e líder da tribo aulaq no Iêmen. “Acho que Anwar nasceu para ser líder. Estava no sangue dele e em sua cabeça.” Anwar se formou pela Universidade Estadual do Colorado18 em 1994 e decidiu permanecer no estado. Casou-se com uma prima do Iêmen e arrumou trabalho como imã na Sociedade Islâmica de Denver.19 Nasser contou que Anwar nunca tinha falado em tornar-se imã quando viajou para os Estados Unidos, mas que se encaminhou para isso depois que lhe pediram algumas vezes para pregar. “Ele achou que essa seria uma área em que poderia ser útil e fazer alguma coisa. Acho que começou por acaso. Mas suponho que depois ele passou a gostar daquilo, e então decidiu se afastar da engenharia como profissão” para abraçar a missão de pregar o Islã. Anwar interessou-se pelos escritos e discursos de Malcom X20 e passou a se preocupar com o drama da comunidade afro-americana. Em Denver, “começou a pensar sobre os problemas sociais dos Estados Unidos, conheceu muitos negros e ia visitá-los em prisões, tentava ajudá-los”, disse Nasser. “Por isso, envolveu-se mais a fundo com os problemas sociais do país, referentes a muçulmanos e outras minorias.” Falando de Awlaki, um membro da mesquita de Denver disse que “ele conseguia falar diretamente com as pessoas — olhando nos olhos delas. Ele tinha essa magia”.21 Um ancião da mesquita de Awlaki em Denver revelou ao New York Times que teve uma briga com o imã porque ele aconselhara um jovem fiel saudita a aderir à jihad na Tchechênia contra a Rússia. “Ele tinha o dom da palavra”,22 disse o ancião. “Mas eu lhe disse: não fale de jihad com minha gente.” Em 13 de setembro de 1995,23 a mulher de Anwar deu à luz seu primeiro filho, um menino chamado Abdulrahman. Um ano depois, em 1996, Anwar mudou-se com a família para San Diego, Califórnia, e tornou-se imã da Masjid al Ribat al Islami.24 Também começou um mestrado em liderança educacional25 na Universidade Estadual de San Diego. No fim da década de 1990, quando os Estados Unidos estavam na expectativa da eleição presidencial de 2000, Nasser viajou para lá para um tratamento médico e visitou o filho em San Diego. Nasser mostrou-me uma foto de Anwar de barba, num barco, segurando um grande peixe que tinha fisgado. “Ele já era um imã, com a barba grande e tudo, você sabe”, lembrou Nasser, sorrindo ao ver o retrato do filho, que usava uma camiseta amarela com o logo de uma organização islâmica local e um boné de beisebol. Um antigo vizinho de Awlaki em San Diego, Lincoln Higgie III, falou dele como “muito dado e alegre”,26 com uma esposa muito “recatada” e um filho “adorável”. “Ele gostava de pescar atum”,27 lembrou Higgie, “de vez em quando me trazia alguns filés preparados pela mulher dele.” Enquanto esteve de visita ao filho, Nasser frequentou as orações das sextas-feiras e assistiu às prédicas de Anwar. “Era uma mesquita normal. Tinha capacidade para cerca de quatrocentas pessoas, os que vinham eram, em sua maior parte, muçulmanos normais: engenheiros, médicos, donos de restaurante e coisas assim. De todo o mundo muçulmano, do mundo árabe”, recordou Nasser. “Eu costumava ouvir os sermões dele. Na verdade, naquela época, ele estava pedindo aos muçulmanos que participassem do processo democrático nos Estados Unidos de forma
encorajadora — na verdade, durante a campanha presidencial de Bush filho em 2000, ele achava que os republicanos conservadores seriam melhores que os democratas liberais e incentivou os muçulmanos a votar em Bush. Dizia que era porque ele era contra o aborto e coisas assim. Eram observações coerentes com a tradição muçulmana”, lembrou Nasser. “Ele era bastante ativo na comunidade muçulmana e nunca tolerou violências. Era muito pacífico nos Estados Unidos. Tudo o que fazia, na verdade, era representar o Islã da melhor forma possível.” Em 1999, Anwar teve seu primeiro atrito com o FBI.28 Ficou visado pelo Bureau por causa de um suposto contato com Ziyad Khaleel, um afiliado à Al-Qaeda que, segundo a Inteligência americana, teria comprado uma bateria para o telefone via satélite de Bin Laden. Também havia recebido a visita de um colega de Omar Abdel Rahman, o “xeque cego”,29 acusado de participar do ataque a bomba contra o World Trade Center em 1993. A investigação de 1999 teria descoberto outros vínculos que o FBI achou significativos, como a ligação com a Fundação Terra Santa,30 instituição muçulmana de caridade acusada de levantar fundos para entidades palestinas de benemerência ligadas ao Hamas, organização considerada terrorista pelo Departamento de Estado americano. Durante os dois anos de sua permanência em San Diego, segundo dados fiscais levantados pelo FBI, Awlaki foi vice-presidente de outra organização, a Sociedade Beneficente para o Bem-estar Social (Charitable Society for Social Welfare, CSSW).31 Segundo um agente do FBI, tratava-se de uma “organização de fachada32 que levantava fundos para terroristas”. Embora nunca tenha havido acusações contra a CSSW, promotores federais classificaram-na como subsidiária de uma organização maior fundada por Abdul Majeed alZindani,33conhecido iemenita supostamente ligado à Al-Qaeda. No entanto, de acordo com essa lógica, o Departamento de Trabalho dos Estados Unidos34 também seria culpado de associação ilícita por ter financiado projetos de milhões de dólares da CSSW entre 2004 e 2008. A família de Anwar rejeita a sugestão de que ele estivesse levantando dinheiro para grupos terroristas e insiste em que trabalhava em prol dos órfãos35 do Iêmen e outros países do mundo árabe. A investigação americana sobre Anwar foi encerrada por falta de provas. Em março de 2000, o FBI concluiu que Awlaki “não preenche as condições para prosseguimento da investigação”.36 Mas não seria essa a última vez que o FBI se interessaria por Anwar. Dois homens37 que frequentavam a mesquita de Anwar em San Diego, Khalid al-Mihdhar e Nawaf al-Hazmi,38 em breve estariam entre os dezenove sequestradores de aviões que cometeram os atentados do Onze de Setembro. Quando Anwar se mudou com a família para Falls Church, Virgínia, Hazmi frequentou também a mesquita de lá. Depois do Onze de Setembro, investigadores americanos acusariam Anwar de ser “conselheiro espiritual”39 de Hazmi. Nasser me contou que perguntou ao filho sobre suas ligações com Hazmi e Mihdhar, e soube que Anwar tinha um relacionamento esporádico e estritamente religioso com esses homens. “Eu mesmo perguntei a ele. Ele respondeu: ‘Eles rezam na mesquita como qualquer outra pessoa, e os vejo casualmente”,’ afirmou Nasser, perguntando:
Por que motivo deste mundo você acha que a Al-Qaeda teria confiança em Anwar para lhe contar a respeito da coisa mais importante para a qual eles estavam se preparando? É inverossímil, porque ele não tinha laços de nenhum tipo com grupos como aquele. Tenho certeza. Estou completamente seguro disso.
A julgar pelos sermões de Anwar dessa época, não há nenhum indício de que ele tivesse alguma afinidade com a Al-Qaeda. Em 2000, Anwar começou a gravá-los em CD40 e vendê-los em caixas. Os sermões eram extremamente populares41 entre os muçulmanos dos Estados Unidos e de outros países do mundo anglófono. Ele gravou ao todo mais de cem CDs,42 a maior parte deles contendo palestras sobre a vida do profeta Maomé, de Jesus e de Moisés, assim como teorias sobre o além. Como disse o New York Times, “as gravações parecem isentas de radicalismo óbvio”.43 Começaram a aparecer convites regulares para que Anwar falasse em mesquitas e centros islâmicos em todos os Estados Unidos e no exterior. “Eu estava muito contente44 com ele”, disse Abu Muntasir, membro fundador de um grupo do Reino Unidos chamado JIMAS (acrônimo do nome árabe da Associação para o Reavivamento do Caminho do Mensageiro) que hospedou Awlaki diversas vezes. “Ele preencheu uma lacuna para os muçulmanos ocidentais que buscavam uma expressão da religião diferente do Islã da geração de seus pais, com a qual eles tinham dificuldade de se entender.” Apesar da natureza apolítica de sua prédica, Anwar mais tarde diria que agentes da Inteligência americana tinham enviado “espiões”45 a sua mesquita de San Diego para colher informações sobre suas atividades. “Não havia nada acontecendo na mesquita que pudesse se enquadrar na vasta categoria do que hoje chamamos de terrorismo, no entanto, é minha firme convicção de que o governo, por alguma razão, estava tentando com insistência plantar espiões na mesquita”, acusou ele. Há outro mistério referente aos primeiros embates de Anwar com o FBI que talvez nunca seja esclarecido. Quando era imã em San Diego, Anwar foi preso duas vezes,46 acusado de usar os serviços de prostitutas. No primeiro caso, ele assumiu a culpa para levar uma multa menor e pagou quatrocentos dólares. No outro, foi multado em 240 dólares e sentenciado a três anos de liberdade vigiada e a duas semanas de prestação de serviços comunitários. Essas prisões seriam usadas mais tarde para mostrar Anwar como um hipócrita, mas o pregador tinha outra explicação: o governo americano estava tentando chantageá-lo para que ele se tornasse um informante. Contou que em 1996 estava parado com sua minivan num sinal vermelho quando aproximou-se do veículo uma mulher de meia-idade, batendo na janela do passageiro. “Abri o vidro, e antes que ela, ou eu, pudesse dizer uma palavra, fui cercado por policiais47 que me fizeram descer do veículo e me algemaram”, lembrou ele. “Fui acusado de procurar os serviços de uma prostituta e depois me soltaram. Eles fizeram questão de deixar claro para mim, sem lugar para dúvida, que a mulher era uma policial disfarçada. Eu não sabia o que pensar sobre o
incidente.” Então, poucos dias depois, ele recebeu a visita de dois homens que se identificaram como agentes federais e disseram que queriam sua “colaboração”. Anwar disse que eles desejavam “informações referentes à comunidade muçulmana de San Diego. Fiquei irritadíssimo com o convite e deixei claro que jamais deveriam esperar de mim esse tipo de colaboração. Nunca mais soube deles”. Até um ano depois, quando foi preso pela segunda vez pelo mesmo motivo. “Daquela vez me disseram que se tratava de um flagrante armado e que eu não ia conseguir escapar”, lembrou Anwar. Talvez ele estivesse mesmo procurando prostitutas, e a imagem de homem piedoso que construiu fosse um engodo elaborado. Porém mais tarde haveria outros sinais de que Anwar Awlaki pode não ter sido visto pela Inteligência americana como um simples alvo de investigação, mas como um colaborador potencial. Anwar estava incomodado com seus atritos com a lei na Califórnia. “Achei que se o problema em San Diego fosse com o governo local, eu deveria pôr-me a salvo e mudar-me para algum outro lugar.”48 Nasser conseguiu para ele uma bolsa parcial49 na Universidade George Washington, em Washington, DC, onde faria um doutorado. Àquela altura, a mulher de Anwar dera à luz o segundo filho e ele precisava de um emprego. Por isso, passou a trabalhar como guia espiritual50 no conselho inter-religioso da universidade e conseguiu emprego como imã numa conhecida mesquita da Virgínia, Dar al Hijrah. “Nossa comunidade precisava de um imã que falasse inglês […] alguém que pudesse oferecer [uma interpretação moderna do Islã] com a força plena da fé”,51 disse Johari Abdul Malik, o diretor para assuntos comunitários de Dar al Hijrah. A mesquita queria uma pessoa que pudesse apresentar as mensagens do Alcorão a um público de muçulmanos americanos. “Awlaki”, disse Malik, “era essa pessoa. E ele transmitia sua mensagem com dedicação.” A família se radicou num subúrbio da Virgínia em janeiro de 2001. Embora as reflexões de Anwar anos mais tarde indiquem que seu ódio pelos Estados Unidos forjou-se nos anos que precederam o Onze de Setembro, se isso era verdade, ele fez um bom trabalho de dissimulação referente a sua imagem pública de figura altamente respeitável na comunidade muçulmana convencional.
Na manhã de 11 de setembro de 2001, Anwar Awlaki estava sentado no banco de trás de um táxi.52 Acabava de chegar ao Aeroporto Internacional Reagan, em Washington, e seguia para casa depois de um voo noturno de volta de uma conferência em Irvine, Califórnia. Ouviu as notícias sobre o ataque e disse ao motorista que o levasse direto para a mesquita. Awlaki e seus colegas ficaram imediatamente preocupados com a possibilidade de ataque à mesquita, devido ao ódio que estava fermentando. Na noite anterior, a polícia tinha sido chamada à mesquita porque um homem havia estacionado seu carro diante do edifício e gritado ameaças53 aos que estavam lá dentro durante meia hora. A mesquita ficou fechada por três dias54 e divulgou um comunicado à imprensa condenando os ataques. “Nossa dúvida principal era ‘como devemos
reagir?’”,55 disse Awlaki ao Washington Post, explicando as razões para o fechamento da mesquita. “Nossas respostas são, principalmente para nossas irmãs, mais visíveis por causa das roupas: fiquem em casa até que as coisas se acalmem.” Quando a mesquita foi reaberta, uma empresa de segurança56 pertencente a muçulmanos foi contratada para revistar carros, bolsas e pessoas que entravam em suas dependências. Igrejas locais57 ofereceram apoio a Dar al Hijrah, inclusive acompanhantes para mulheres muçulmanas temerosas de se aventurar fora da mesquita. Esse fato foi enaltecido publicamente por Anwar, diante de sua congregação e de repórteres, mas ele não deixou de informar seus fiéis sobre o preconceito contra muçulmanos e crimes de ódio — como o incidente em que uma muçulmana chegou cambaleando à mesquita em 12 de setembro, depois de ser agredida por um homem com um bastão de beisebol.58 Em seu primeiro sermão após a reabertura da mesquita, Anwar condenou os ataques, chamando-os de “hediondos”.59 “Nossos corações estão sangrando pelos ataques que atingiram o World Trade Center, assim como outras instituições dos Estados Unidos, apesar de nossa forte oposição à política americana favorável a Israel”, disse ele, lendo a condenação aos ataques do xeque Yusuf al-Qaradawi, o famoso e polêmico teólogo egípcio. “Estamos aqui para construir, não para destruir […]. Somos a ponte entre os Estados Unidos e 1 bilhão de muçulmanos do mundo inteiro”, acrescentou Awlaki. Quando sobreveio o Onze de Setembro, Awlaki não tinha televisor. “Eu lia as notícias pela internet”, disse ele dias depois dos ataques. Mas depois do que aconteceu, corri à loja Best Buy60 e comprei uma TV. E ficávamos grudados em nossas TVs. Para nós, muçulmanos, foi uma questão complicada porque sofremos duas vezes”, afirmou ele.
Sofremos como muçulmanos e como qualquer ser humano diante de uma perda trágica. E além de tudo sofremos as consequências do que poderia acontecer conosco na condição de comunidade muçulmana americana, já que os responsáveis pelos ataques são, até agora, identificados como árabes ou muçulmanos. Eu acrescentaria que fomos empurrados para o primeiro plano por causa desses acontecimentos. Temos sido alvo de grande atenção da imprensa, além da vigilância do FBI.
Enquanto Anwar se reunia com outros líderes muçulmanos para decidir como reagir aos ataques, mais uma vez ele entrou na mira do governo americano. “O Onze de Setembro caiu numa terça-feira”, lembrou Anwar mais tarde. “Na quinta, o FBI bateu à minha porta.”61 Os agentes começaram a perguntar a Awlaki sobre suas relações com dois dos suspeitos. Mostraram-lhe fotos62 dos sequestradores — inclusive dos dois que frequentavam a mesquita de San Diego, assim como de Hani Hanjour, que também passara uns tempos en San Diego e, ao lado de Hazmi, comparecera a um sermão63 de Awlaki em Falls Church, Virgínia, em 2001. Awlaki “disse que não sabia o nome64 de Hazmi, mas que identificava sua foto. Embora tenha
admitido que se encontrou com Hazmi várias vezes, disse não se lembrar de nenhum assunto específico sobre o qual tivessem conversado”, segundo a Comissão do Onze de Setembro. Awlaki disse também65 que não tinha tido nenhum contato com Hazmi na Virgínia, apenas em San Diego, e que não conhecia Hanjour. Segundo a comissão, Awlaki “descreveu Hazmi66 como um estudante saudita de fala mansa que costumava aparecer na mesquita com um companheiro, mas que não tinha um grande círculo de amigos. Segundo arquivos do FBI já divulgados sobre as reuniões de Awlaki com agentes federais depois do Onze de Setembro, Awlaki falava de Hazmi como “um solitário”,67 acrescentando que era “muito calmo, uma ótima pessoa”. Segundo o FBI, Awlaki não via Hazmi como “uma pessoa muito religiosa,68 já que nunca usara barba e nem sempre comparecia às cinco sessões diárias de oração”. Pouco depois daquela reuião, os agentes do FBI voltaram mais uma vez e pediram a Awlaki que trabalhasse com eles na investigação. Na visita seguinte, Awlaki contratou um advogado.69 Num arquivo do FBI posterior a esse encontro lê-se: “A investigação sobre a associação de Anwar Awlaki e pessoas ligadas aos ataques terroristas de 11 de setembro de 2001 nos Estados Unidos continua70 no WFO (Gabinete Operacional do FBI em Washington)”. (O nome de Awlaki às vezes aparece grafado como Aulaqi.) De acordo com depoimentos posteriores prestados à Comissão do Onze de Setembro, Awlaki teve, no ano 2000, uma série de conversas telefônicas71 com o saudita Omar al-Bayoumi, que ajudou Hazmi e Mihdhar a encontrar apartamentos em San Diego. Um investigador do FBI disse à comissão que achava que os homens estavam usando o telefone de Bayoumi na ocasião, sugerindo que Awlaki tivera contato direto com os sequestradores. Ainda assim, com base naquelas primeiras entrevistas, os investigadores não chegaram a uma conclusão sobre as ligações de Awlaki com os três sequestradores. A Comissão do Onze de Setembro afirmou que os futuros sequestradores “respeitavam Awlaki como figura religiosa e estabeleceram uma relação muito próxima com ele”, mas acrescentou que “o indício é fraco72 no que se refere a motivações específicas”. Enquanto o FBI revirava a relação de Awlaki com os sequestradores, centenas de pessoas lotavam a mesquita de Dar al Hijrah para ouvir a prédica do imã às sextas-feiras. Ele aconselhava as famílias e ajudava novos imigrantes a encontrar casa e emprego. Entre os que vieram pedir-lhe ajuda estava um casal palestino que assistia a todos os sermões. Estavam tendo problemas com o filho, psiquiatra das Forças Armadas dos Estados Unidos. O casal achava que ele não tinha interesse pela religião deles. Nasser se lembra de Anwar ter lhe dito que eles pediram: “Por que não fala com nosso filho, para que venha conosco à mesquita?”. Anwar se prontificou a ajudar. O filho deles se chamava Nidal Malik Hasan,73 o homem que mais de uma década depois cometeria um dos piores massacres74 da história numa base militar americana. Da mesma forma que a relação de Awlaki com alguns dos sequestradores do Onze de Setembro levou a uma devassa em sua vida, sua ligação com Hasan mais tarde seria usada para levantar suspeitas sobre sua participação em outros planos terroristas.
Sem dúvida, as mesquitas de Awlaki pareciam atrair diversos personagens que no futuro se tornariam terroristas. Mas é difícil determinar até onde ele sabia quem eram essas pessoas ou o que estavam planejando. Quando se examinam as experiências e as declarações de Awlaki nesse período, o mistério se aprofunda. O que se desenrolou entre Awlaki e o governo dos Estados Unidos a portas fechadas nos meses que se seguiram ao Onze de Setembro e o que foi representado publicamente por Awlaki e pela imprensa americana na mesma ocasião é uma fábula bizarra, cheia de contradições. É como se Awlaki estivesse vivendo uma vida dupla. Nas semanas seguintes aos ataques, enquanto Anwar lidava com os agentes do FBI em privado, para o público ele se tornava uma celebridade, procurado por dezenas de meios de comunicação para personificar a visão de um muçulmano “moderado” sobre os ataques do Onze de Setembro. Repórteres de TV seguiam-no por toda parte. Programas nacionais de rádio pediam entrevistas. Era citado com frequência nos jornais. Awlaki convocou seus seguidores a doar sangue para as vítimas dos ataques e dinheiro para suas famílias. A liderança da mesquita falava dele como um homem conhecido por “seu compromisso inter-religioso, seu engajamento cívico e sua tolerância”.75 A agência de notícias Associated Press divulgou que entre os que frequentavam seus sermões, “a maioria dizia não acreditar que ele fosse abertamente político ou radical”.76 Embora às vezes fizesse denúncias mordazes da política externa americana, também condenava com veemência os ataques. De início, chegou a manifestar que os Estados Unidos teriam razão em empenhar-se num “conflito armado” contra os responsáveis pelos ataques. “Sem sombra de dúvida”, disse ele à rede PBS. “Já firmamos nossa posição […] deve dar-se um jeito nas pessoas que fizeram isso, eles precisam pagar o preço do que fizeram. E toda nação da face da Terra tem o direito de se defender.”77 Para os jornalistas “que lutavam para explicar o Islã, Awlaki era o clérigo a quem recorrer a qualquer hora.78 Ele condenava o assasinato em massa, convidava os repórteres a acompanhá-lo e explicava pacientemente os rituais de sua religião”, segundo o New York Times. Num outro artigo, o jornal diz que “Awlaki se afirma como [representante de] uma nova geração de líderes muçulmanos capazes de fazer convergir Oriente e Ocidente”.79 No fim de setembro de 2001, Awlaki disse:
Acho realmente lamentável que seja preciso afirmar nossa posição, pois nenhuma religião compactuaria com isso, portanto deveria ser consensual. Mas estávamos numa situação em que tínhamos de dizer que o Islã não aprova isso. Não é possível que os que fizeram isso sejam muçulmanos, e se eles se dizem muçulmanos é porque subverteram a religião.80
O Washington Post consultou Awlaki diversas vezes depois do Onze de Setembro e até encarregou-o de estrelar uma transmissão pela internet81 sobre o Ramadã. “Nossas posições precisam ser reiteradas e precisam ser muito claras”,82 disse ele num sermão transmitido
nacionalmente pela PBS, poucas semanas depois dos ataques.
O fato de que os Estados Unidos tenham semeado a morte e o homicídio de […] civis no Iraque, o fato de os Estados Unidos estarem apoiando a morte e o assassinato de milhares de palestinos não justifica o assassinato de um civil americano em Nova York ou em Washington, e a morte de [milhares de] civis em Nova York e Washington não justifica a morte de um civil no Afeganistão. Essa é a diferença entre certo e errado, mal e bem, de que todos pretendem falar.
Mesmo condenando os ataques, Awlaki não poupou críticas, em sua análise, à posição americana em relação ao mundo islâmico. Num sermão pronunciado uma semana depois do Onze de Setembro, Awlaki trouxe à tona a caracterização da Al-Qaeda e seus propósitos feita pelo governo Bush. “Disseram que foi um ataque à civilização americana. Disseram que foi um ataque à liberdade americana, ao modo de vida americano”, disse ele. “Mas não foi nada disso. Foi um ataque à política externa americana.”83 Quando os Estados Unidos começaram a fazer pressão sobre o Afeganistão, em outubro de 2001, Awlaki foi entrevistado pelo Washington Times. “Somos totalmente contrários ao que os terroristas fizeram. Queremos levar os responsáveis à justiça”, disse. “Mas também somos contra o extermínio de civis no Afeganistão.”84 Ao se aproximar o primeiro Ramadã depois dos ataques, Awlaki disse: “Este ano vamos ter um nível mais alto de ansiedade em nossa comunidade”. A festa religiosa muçulmana seria encoberta por um “ânimo sombrio, por causa dos acontecimentos de setembro e da guerra em curso no estrangeiro”, disse ele, acrescentando: “Queremos sempre que o Ramadã chegue em tempos de calma, mas infelizmente este ano isso não vai acontecer”.85 Deixou bem claro também que era contrário à guerra dos Estados Unidos contra o Talibã. “Em minha opinião pessoal, sinto que os Estados Unidos apressaram-se ao travar essa guerra”,86 disse ele a um entrevistador.
Poderia haver outros caminhos para resolver o problema, um dos quais seria a pressão diplomática, tirando proveito de todos os países muçulmanos que proclamaram seu apoio aos Estados Unidos quanto a essa questão e manifestaram sua preocupação com o que aconteceu no Onze de Setembro. Condenações muito veementes vêm de todo o mundo muçulmano. Assim, isso poderia ser capitalizado e servir para exercer alguma pressão sobre o Afeganistão ou sobre quem quer que tenha feito isso, em vez de correr para a guerra como estamos vendo.
Mais de uma década antes da chamada Primavera Árabe, Anwar criticava também o apoio
americano a líderes autocráticos e seus regimes repressivos no Oriente Médio e predominantemente em países muçulmanos. “Não tem de haver nesses regimes uma mudança radical, repentina, da noite para o dia, mas é preciso que haja pelo menos alguma pressão por parte dos Estados Unidos para que esses regimes se abram um pouco e concedam mais liberdade ao povo”,87 disse. Percorrendo os subúrbios da Virgínia durante o Ramadã, no fim de 2001, Awlaki falou para uma câmera operada por um jornalista do Washington Post.
Desde que a guerra começou, houve muitas baixas entre civis.88 Muitas. E, infelizmente, isso não foi noticiado pela imprensa, ou pelo menos não numa proporção justa, portanto é preocupante que pessoas comuns no Afeganistão estejam pagando o preço disso. Elas são os peões nesse jogo político. Depois do Onze de Setembro, os sentimentos dos muçulmanos americanos se assemelhavam aos de qualquer pessoa nos Estados Unidos. Solidariedade para com as famílias das vítimas e a sensação de que quem quer que tivesse feito aquilo deveria ser levado à justiça […] era esse o sentimento dominante entre todos os muçulmanos americanos, na verdade entre todos os muçulmanos do mundo. A guerra mudou isso, porque temos lembranças do Iraque ainda frescas em nossa memória. Em 1990 nos disseram que seria uma guerra contra Saddam Hussein. Mas depois de dez anos ele ainda está no poder e quem sofre é o povo iraquiano. Um milhão de pessoas morreram no Iraque. E agora essas lembranças nos assaltam de novo. Dizem que é para pegar os terroristas, mas eis o que temos novamente: baixas entre civis.
O entrevistador perguntou a Awlaki o que ele achava de Bin Laden e do Talibã. “Eles representam uma concepção muito radical,89 uma visão extrema, e até certo ponto o que alimenta essa visão radical são as condições que prevalecem no mundo muçulmano”, disse ele. “Trata-se sem dúvida de um grupo extremista. Alguns ensinamentos foram distorcidos. É um método para justificar pontos de vista usando textos religiosos, e isso pode ocorrer em qualquer religião.” No vídeo, Awlaki aparenta estar lutando sinceramente para decidir como reagir ao Onze de Setembro. Aparece também como um pai carinhoso, assoando o nariz do filho menor. Em outro momento, ele segura a mão do bebê saltitante, a caminho da mesquita. Por um breve instante, Awlaki chega a cantar parte da música tema do programa infantil Barney: “Eu te amo, você me ama”. É difícil, vendo horas de gravação, concluir que ele não passava de um bom ator. À medida que a violência e o fanatismo contra muçulmanos se generalizavam, Awlaki pôde ver que as comunidades árabes e islamitas dos Estados Unidos estavam sendo visadas pelo governo federal. As pessoas que vinham ouvir seus sermões lhe contavam sobre o assédio que estavam suportando por causa de sua raça e de sua crença. Pessoas eram presas, mesquitas
invadidas, e agentes federais90 perseguiam negócios de muçulmanos. Como muitos muçulmanos americanos, Awlaki acreditava que sua gente estava sendo discriminada pela religião ou pela raça. “Há um sentimento91 entre os muçulmanos de que estão sendo perseguidos, ou pelo menos de que são os únicos que estão pagando o alto preço do que aconteceu”, disse Awlaki à Rádio Pública Nacional em outubro de 2001.
A partir daqueles acontecimentos, houve um reforço na imagem negativa do Islã que a imprensa vem projetando. Há 1100 muçulmanos detidos nos Estados Unidos. Há um bombardeio em curso contra um país muçulmano, o Afeganistão. Então há várias razões para que os muçulmanos se sintam assim. É verdade que já foi dito que esta guerra não é contra o Islã, mas por todas as razões práticas são os muçulmanos que estão sendo atingidos.
Quando dois membros de sua antiga mesquita de San Diego foram detidos por supostas “fortes ligações” com os sequestradores que tinham frequentado o local, Awlaki censurou o FBI. “Não havia necessidade de prendê-los de maneira tão rude”,92 disse. Ele e seus colegas tinham recomendado paciência e cooperação com as autoridades, contou Awlaki, mas destacou que “nossa gente não vai nos dar ouvidos quando vir que é assim que o FBI a trata. Isso reforça nossa opinião de que somos uma comunidade sitiada […] cujos direitos civis estão sendo violados”. E prosseguiu: “Isso não está certo”, afirmando que os dois homens tinham tentado colaborar voluntariamente com as autoridades antes de serem injustamente detidos. “Isso dá a impressão de que eles estão envolvidos. Acaba com a reputação deles. Estou convencido de que são inocentes.” Nas semanas que se seguiram ao Onze de Setembro, Awlaki comentou em dezenas de entrevistas à imprensa a luta que ele e outros líderes muçulmanos vinham enfrentando em suas comunidades, inflamadas pelo sentimento de que os Estados Unidos estavam travando uma guerra contra os muçulmanos e o Islã. “As opiniões que dominam são as radicais,93 que querem o confronto armado com seus governos. Então o que vemos agora é que todas as vozes moderadas estão em silêncio no mundo muçulmano”, disse ele numa entrevista. Em outra, Awlaki afirmou: “Nós, muçulmanos americanos,94 nos sentimos divididos entre nossa nação e nossa solidariedade com os muçulmanos do mundo inteiro.” Awlaki começou a avisar os Estados Unidos de que enfrentariam uma reação se lançassem mão do que os muçulmanos viam como uma guerra contra sua religião. “Meu receio é que por causa desse conflito as opiniões de Osama bin Laden se tornem atraentes para parte da população do mundo muçulmano”, disse. “Seria uma coisa assustadora, portanto os Estados Unidos precisam ter muito cuidado para não se colocarem como inimigos do Islã.”95
Um dos desdobramentos mais estranhos na história de Awlaki depois do Onze de Setembro foi sem dúvida o convite que recebeu de funcionários do Departamento de Defesa (Department of Defense, DoD) para falar aos participantes de um almoço no Pentágono em 5 de fevereiro de 2002. Num e-mail confidencial mais tarde revelado, um dos organizadores do evento, funcionário do Pentágono, escreveu: “Tive o privilégio96 de ouvir uma das exposições do sr. Awlaki em novembro e admirei seus vastos conhecimentos e a forma como comunicou aquelas informações e lidou com um elemento hostil que estava na plateia. Gostei em especial do que ele disse sobre como a pessoa comum do Oriente Médio vê os Estados Unidos e a imprensa internacional”. O e-mail conclui que o evento teria de ser agendado para breve porque Awlaki “vai viajar por um longo período”, acrescentando “acho que, se vier, o senhor vai gostar. [Awlaki] é muito informativo e este é com certeza um tema de grande interesse sobre o qual todos gostaríamos de saber um pouco mais”. Segundo documentos confidenciais do Pentágono já revelados, “naquele período, o secretário do Exército97 estava ansioso para fazer a apresentação de um muçulmano moderado”, e acrescentou que Awlaki “era considerado membro promissor da comunidade islâmica. Depois de investigado por razões de segurança, Awlaki “foi convidado para um almoço no Pentágono, ao qual compareceu,98 na secretaria da Consultoria Jurídica do Exército. (É improvável que Awlaki tenha comido o sanduíche “Lado Leste Lado Oeste”99 servido no evento, que incluía carne, peru e bacon no pão de centeio marmorizado.) A ida ao Pentágono pode ter sido apenas um fato fortuito, decorrente de deficiências na investigação e da reputação de Awlaki na época, moldada pelas dezenas de aparições dele na imprensa, mas também alimentou rumores de que Awlaki cooperava com o governo americano nas investigações sobre o Onze de Setembro. Quando perguntei a Nasser Awlaki sobre o tal almoço no Pentágono, ele se entusiasmou. “Isso! Você sabe, é inacreditável”, disse-me o pai de Anwar. “Uma vez, ele me disse que ia entrar para o Exército americano para ser sacerdote muçulmano.” Numa conversa que teve com o filho naquele período, Anwar
contou-me que estava muito aborrecido por não ter sido convidado para ir à Casa Branca, como outros dignitários muçulmanos durante o Ramadã, quando Bush tomou essa iniciativa, promovendo um jantar de Ramadã. Ele se surpreendeu por não ter sido chamado, já que era o imã de um grande centro religioso americano.
Awlaki pode não ter ido à Casa Branca, mas no começo de 2002 foi convidado a ministrar um serviço religioso no Capitólio. O sermão que pronunciou na época foi reproduzido no documentário Muhammad: Legacy of a Prophet [Maomé: o legado de um profeta].100 Em março de 2002, agentes federais americanos fizeram uma série de incursões101 contra mais de uma dúzia de organizações muçulmanas sem fins lucrativos, estabelecimentos e
residências de muçulmanos. Essas ações foram executadas sob a bandeira de uma força-tarefa interagências e faziam parte de uma ampla investigação sobre as finanças do terror denominada operação Green Quest [Busca Verde].102 Entre as organizações investigadas estavam respeitados núcleos de estudos, como o Instituto Internacional de Pensamento Islâmico103 e a Escola de Graduação em Ciências Sociais e Islâmicas104 da Universidade Cordoba, na Virgínia. As casas de vários líderes e funcionários dessas organizações também foram vasculhadas, e seus pertences, confiscados.105 Essas incursões faziam parte de uma operação supostamente dirigida contra o financiamento do terrorismo. Os policiais apreenderam discos rígidos de computador, arquivos confidenciais e livros. Os arquivos apreendidos encheram quinhentas caixas.106 Nunca foi apresentada acusação alguma baseada nessas incursões contra as organizações investigadas e seus líderes. Organizações muçulmanas convencionais e grupos de defesa dos direitos civis condenaram as operações, chamadas por eles de caça às bruxas. Awlaki fez um sermão contundente, dizendo que a operação Busca Verde “foi um ataque contra cada um de nós”107 da “comunidade muçulmana”, e advertiu: “Se hoje isso aconteceu com essas organizações, vocês serão os próximos”. Em outro sermão, Awlaki declarou: “Talvez em breve o Congresso aprove uma lei declarando o Islã ilegal nos Estados Unidos. Não pensem que isso não pode acontecer. Tudo é possível no mundo de hoje porque não há direitos onde não houver uma luta por eles”.108 O que Awlaki não sabia era que ele próprio tinha sido identificado como alvo da investigação109 pela força-tarefa Busca Verde, que, afinal, concluiu que ele não tinha conexão com os grupos visados. Ao mesmo tempo, o FBI tentava obrigá-lo a cooperar em diversas investigações.110 Awlaki acreditava que estavam usando suas prisões por prostituição em San Diego para tentar atraí-lo.111 Na verdade, sua hipótese não era absurda. Pois era exatamente isso o que os homens do FBI estavam tentando fazer nos meses que se seguiram ao Onze de Setembro, quando Awlaki estava na Virgínia. “Eles esperavam que Awlaki passasse a cooperar com a investigação sobre os atentados se conseguissem surpreendê-lo com acusações semelhantes na Virgínia”, noticiou mais tarde o US News & World Report.
Fontes do FBI disseram que os agentes teriam visto o imã trazendo prostitutas da área de Washington para a Virgínia, e pensaram em aplicar uma lei federal normalmente reservada para surpreender proxenetas que transportam prostitutas através das divisas estaduais.112
Awlaki estava sendo festejado pela imprensa e apresentado como a voz do Islã moderno; um homem que falava com eloquência sobre a luta da comunidade muçulmana para administrar o sentimento de indignação pelos ataques do Onze de Setembro e fazia oposição às guerras que os Estados Unidos tinham desencadeado em contrapartida. Reservadamente, porém, Awlaki estava planejando ir embora do país. O imã Johari Abdul Malik, que era o diretor de assuntos
comunitários da mesquita de Awlaki na Virgínia, disse que tentara convencer Anwar a permanecer nos Estados Unidos em 2002. “Por que você quer ir embora?”,113 Malik perguntou. E diz que Awlaki respondeu:
Por causa do clima, não se pode trabalhar direito em razão do antiterrorismo, investigações sobre isso e aquilo. O FBI quer falar com a gente. Não foi isso que eu escolhi. Prefiro ir para algum lugar onde possa pregar, ensinar, falar todos os dias de algo que não seja o Onze de Setembro.
Awlaki disse também que estava pensando em se candidatar ao Parlamento do Iêmen114 e em ter seu próprio programa de TV115 no Golfo. Malik disse ainda que “Awlaki sabia que tinha sido preso por contratar serviços de prostitutas e que a revelação desse fato pelas autoridades americanas poderia arruiná-lo”.116 Awlaki também tinha mudado de tom em relação aos Estados Unidos. Estava indignado com a intolerância contra os muçulmanos e as guerras em países islamitas. As incursões, junto com a guerra dos Estados Unidos no Afeganistão e as ameças de guerra contra o Iraque, estimularam Awlaki a se tornar mais incisivo em suas críticas ao governo dos Estados Unidos. Num sermão, um dos últimos que pronunciou nos Estados Unidos, Awlaki disse:
Esta não é uma guerra contra o terrorismo. Precisamos ser totalmente claros quanto a isso. É uma guerra contra os muçulmanos.117 É uma guerra contra os muçulmanos e contra o Islã. E não está acontecendo apenas no mundo lá fora, mas bem aqui, nos Estados Unidos, que dizem estar travando essa guerra em nome da liberdade, enquanto cerceiam a liberdade de seus próprios cidadãos só porque são muçulmanos.
A vigilância a que o governo americano submetia muçulmanos, mesquitas e imãs indignava Awlaki, disse Nasser. “Assim, Anwar de uma hora para outra se encontrou numa posição muito difícil. O país em que ele nascera, o país que ele amava, no qual ele queria pregar sua religião”, no modo de ver de Anwar, “voltou-se na verdade contra os muçulmanos. Ele estava revoltado. E não podia praticar livremente sua religião nos Estados Unidos. Então achou que talvez a GrãBretanha fosse um bom lugar para ele”, recorda Nasser. “Ele me ligou e disse: ‘Pai, não posso concluir meu doutorado’.” Nasser ficou arrasado. Sonhava que o filho concluísse o doutorado nos Estados Unidos e voltasse ao Iêmen para ensinar na universidade, como ele tinha feito. Trocando os Estados Unidos pela Grã-Bretanha em 2002, Anwar também deixaria para trás a reputação de “moderado” que tinha construído na imprensa americana depois do Onze de Setembro. Seria Anwar Awlaki um colaborador disfarçado da Al-Qaeda? Um conselheiro espiritual dos sequestradores do Onze de Setembro, como o governo afirmaria mais tarde? Ou
seria um muçulmano americano radicalizado em função das experiências que viveu nos Estados Unidos? Quando deixou a Virgínia — quer estivesse encenando um papel público para dissimular suas verdadeiras opiniões como militante, quer apenas tentando escapar das investigações e interrogatórios do governo americano —, Awlaki entrou em rota de colisão com a história.
3. Achar, atacar, acabar: a ascensão do JSOC
WASHINGTON, DC, 1979-2001 — Em 21 de novembro de 2001, quando a GWOT estava sendo posta em marcha, o secretário de Defesa, Donald Rumsfeld, visitou Fort Bragg, quartel-general dos boinas-verdes. “Esta é uma guerra mundial1 ao terrorismo, e cada um de vocês, cada uma das organizações que vocês representam, é indispensável. E eu sei — sei com certeza que, quando forem chamados, vocês estarão prontos”, declarou Rumsfeld na base.
No início de sua campanha, o presidente George W. Bush disse: “Estamos no começo de nosso esforço no Afeganistão, mas o Afeganistão é apenas o começo de nosso esforço no mundo. Esta guerra só terminará quando os terroristas internacionais forem encontrados, detidos e derrotados”. Vocês são os homens e as mulheres que vão entregar pessoalmente essa mensagem aos inimigos dos Estados Unidos, selada com o poder e a fibra da maior força bélica da Terra.
Em sua aparição pública, Rumsfeld agradeceu às Forças Especiais convencionais, os boinasverdes, por seu importante papel no Afeganistão, mas quando falou daqueles que “entregariam pessoalmente” a mensagem dos Estados Unidos estava se referindo a um grupo especial de combatentes que ele via como sua melhor arma e a mais sigilosa. Embora alguns aspectos da visita de Rumsfeld a Fort Bragg fossem públicos, ele estava lá também para uma reunião secreta2 — com as forças cujas unidades poucas vezes eram mencionadas pela imprensa e cujas operações estavam sempre envoltas em segredo: o Comando Conjunto de Operações Especiais (Joint Special Operations Command, JSOC). No papel, o JSOC aparecia como uma entidade quase acadêmica, e sua missão oficial estava descrita em termos burocráticos e anódinos. Oficialmente, o JSOC era
o comando conjunto3 destinado a estudar as exigências e técnicas de operações especiais, garantir a interoperacionalidade e a padronização dos equipamentos, planejar e executar treinamento e exercícios dessas operações e criar táticas de operações especiais conjuntas.
Na verdade, o JSOC era a força secreta mais resguardada do aparelho nacional de segurança dos Estados Unidos. Seus membros eram conhecidos dentro da comunidade de operações secretas como ninjas, “comedores de cobras” ou, simplesmente, operadores. De todas as forças militares à disposição do presidente dos Estados Unidos, nenhuma era tão especial quanto o JSOC. Quando um presidente americano queria executar uma operação em sigilo absoluto, longe dos olhos bisbilhoteiros do Congresso, a melhor opção não era a CIA, e sim o JSOC. “Quem está se preparando para a mobilização?”, perguntou Rumsfeld, dirigindo-se aos operadores especiais. Os generais indicaram os homens de prontidão. “Sorte a sua. Para onde vocês vão? Ah, vocês teriam de me matar se dissessem, certo?”, gracejou Rumsfeld. “Eu estava só testando.” O JSOC nasceu das cinzas de uma missão fracassada que pretendia resgatar 53 reféns americanos presos na embaixada dos Estados Unidos em Teerã depois da revolução islâmica de 1979. Tendo como codinome operação Garra de Águia,4 a ação consistia na inserção de operadores de elite da Força Delta, comandados por um de seus famosos fundadores, o coronel Charlie Beckwith, para preparar uma pista de pouso que seria usada em um ataque à embaixada. Entretanto, quando dois dos helicópteros sucumbiram a uma tempestade de areia5 e um terceiro ficou preso ao solo, Beckwith e outros comandantes começaram a brigar sobre a questão de abortar ou não a missão. No meio do deserto iraniano, a perda de diversas aeronaves de importância vital6 acabou num impasse quanto a ir em frente com a missão. Beckwith brigou com os comandantes da Força Aérea, da Marinha e do corpo de fuzileiros navais. Finalmente, o presidente Carter deu ordem de abortar a missão.7 Oito militares americanos morreram8 na operação frustrada quando um helicóptero chocou-se contra um C-130 durante a evacuação. Foi um desastre. Os iranianos espalharam os reféns pelo país para evitar outra tentativa de resgate. Depois de 444 dias em cativeiro e negociações por debaixo dos panos que previam a troca dos reféns por armas,9 os americanos acabaram sendo soltos, minutos depois10 da posse do presidente Reagan. Nos bastidores, a Casa Branca e o Pentágono analisavam o que teria dado errado na missão. Determinou-se que para tais casos seria necessário ter uma equipe unificada de operações especiais de elite, plenamente capacitada e que tivesse suas próprias aeronaves, soldados, SEALs e Inteligência. Logo depois do fracasso da operação Garra de Águia, o Pentágono formou o Diretório Conjunto de Teste para começar a preparar outro resgate, com o codinome de operação Texugo do Mel.11 A missão nunca se realizou, mas teve início um programa secreto de formulação de planos para a fundação de uma equipe de operações especiais com qualificações de amplo espectro para garantir que desastres como o da Garra de Águia nunca mais acontecessem. Foi assim que, em 1980, o JSOC constituiu-se oficialmente, embora a Casa Branca e as Forças Armadas nunca tenham reconhecido sua existência. O JSOC era a única de todas as instituições militares e de Inteligência diretamente subordinada ao presidente, e pretendia ser seu pequeno exército privado. Pelo menos era assim que essa força era considerada na teoria. O coronel Walter Patrick Lang passou grande parte de sua carreira militar em operações
secretas. Logo no início, ajudou a coordenar a ação que levou à captura e ao assassinato de “Che” Guevara12 na Bolívia em 1967. Foi membro do Grupo de Estudos e Observação (Studies and Observation Group, SOG), que executou a campanha de assassinatos dirigidos para os Estados Unidos durante a Guerra do Vietnã e, finalmente, tornou-se chefe do programa global de Inteligência humana da DIA. Serviu no Iêmen, Arábia Saudita, Iraque e outras regiões de conflito. Foi quem iniciou o programa de língua árabe na Academia Militar de West Point. Ao longo de sua carreira, Lang pôde observar de perto a criação dos novos destacamentos americanos para operações especiais. A função principal das Forças Especiais “caretas”, como os boinas-verdes, era
treinar e comandar contingentes nacionais,13 normalmente forças irregulares contra forças regulares ou guerrilhas. Isso é o que elas fazem, portanto estão sintonizadas com estrangeiros. Recrutam pessoas comunicativas que trabalhem bem com estrangeiros. Gente que goste de se sentar para comer direto de uma tigela comum, com a mão direita, bocados de carne fibrosa de bode velho. E ouvir a avó de alguém desfiar lero-leros sobre o passado ancestral fictício de sua tribo. Eles gostam disso.
Lang comparava os boinas-verdes a “antropólogos armados”. O JSOC, dizia ele, era visto como
uma unidade de comando contraterrorista nos moldes do SAS (Serviço Aéreo Especial) britânico. E o SAS não tem essa de “vamos ser legais com os nativos”. Eles não fazem isso, são comandos, eles matam os nativos. Essa gente não é muito bem informada, num quadro mais geral, das consequências [que suas operações] podem ter para a posição dos Estados Unidos no mundo.
No começo, o JSOC era um pouco como uma ideia tardia dentro da burocracia militar. Não tinha orçamento próprio e era usado como força multiplicadora14 em zonas de conflito sob comando das áreas de responsabilidade das Forças Armadas convencionais, o sistema global usado pelo Pentágono para organizar forças de supervisão de operações em regiões específicas. A Força Delta15 foi instituída na década de 1970 como resposta a uma série de atentados terroristas que reforçaram a exigência de um aumento da capacidade dos combatentes americanos não convencionais e das Forças de Operações Especiais. “Muitos dos oficiais das Forças Armadas que se formaram nessa espécie de comando contraterrorista à moda de Charlie Beckwith são basicamente técnicos de guerra”, disse-me Lang. Depois do desastre da Garra de Águia no Irã, o JSOC seria criado como organização extremamente compartimentalizada, com Unidades de Missões Especiais (Special Mission Unit, SMUs) treinadas para o que eram chamadas operações 3As: Achar, Atacar, Acabar. Isso
significava procurar o alvo, localizá-lo e exterminá-lo. A agora famosa Equipe 6 dos SEALs da Marinha, que matou Osama bin Laden, foi criada para apoiar e executar essas missões. Seu fundador,16 Richard Marcinko, tinha servido na força-tarefa conhecida como Equipe de Ação Terrorista que planejou a Garra de Águia. Originalmente chamada de Mobilidade 6, essa unidade de elite, composta de 75 SEALs da Marinha, se transformaria na principal unidade de combate ao terrorismo à disposição do governo americano. Até seu nome já era propaganda. Na época da fundação da Equipe 6, existiam apenas mais duas equipes de SEALs, mas Marcinko queria que os soviéticos pensassem que havia outras equipes sobre as quais eles nada sabiam. No início, houve sérios problemas no seio do JSOC, pois seus efetivos foram formados a partir de diversas unidades de elite, entre elas a Força Delta, os SEALs e o 75o Regimento de Rangers do Exército, cada qual convencida da própria superioridade. O JSOC era treinado para operar em áreas proibidas, executando operações fulminantes de pequena escala ou de ação direta, ou seja, operações letais. Criou-se uma unidade temporária de Inteligência militar, o Grupo de Operações de Campo (Field Operations Group, FOG),17 que mais tarde se tornaria o braço interno de Inteligência do JSOC, conhecido como “a Atividade”. Uma de suas primeiras tarefas de destaque foi procurar informações para apoiar a operação de libertação do general James Dozier, sequestrado pelas Brigadas Vermelhas marxistas em dezembro de 1981 em Verona, Itália. Dozier foi o primeiro alto oficial americano a ser sequestrado. A Atividade descobriu sua localização depois de semanas de caçada, o que levou a uma bem-sucedida operação de resgate18 executada pelas forças antiterroristas italianas. Com sede na base aérea de Pope e em Fort Bragg na Carolina do Norte, o JSOC acabaria comandando a Força Delta e os Rangers, do Exército, e a Equipe 6 dos SEALs, rebatizada com o nome de Grupo de Desenvolvimento de Guerra Naval (Naval Warfare Development Group, DEVGRU). Seu efetivo aéreo formou-se a partir do 160o Regimento de Operações Especiais da Aviação, conhecido como “Patrulheiros da Noite”, assim como do 24o Esquadrão de Táticas Especiais. Os fundadores do JSOC criaram-no como uma força antiterrorista. No entanto, durante grande parte de seus primeiros anos ele foi usado em outro tipo de missão. Suas equipes eram mobilizadas em segredo e se juntavam a forças militares ou paramilitares buscando derrubar governos considerados hostis aos interesses dos Estados Unidos. Às vezes, o limite entre treino e combate se apagava, principalmente nas guerras sujas da América Latina na década de 1980. O JSOC foi usado em Granada,19 em 1983, quando o presidente Reagan ordenou a invasão americana, e durante toda a década de 1980 em Honduras, onde os Estados Unidos coordenavam o apoio aos contras da Nicarágua e combatiam a insurgência guerrilheira hondurenha. Durante seu primeiro mandato, Reagan pareceu ansioso por rotular o terrorismo como ameaça à segurança nacional, para que fosse combatido por uma força dinâmica. Em 1983, na época do bombardeio de Beirute, ele garantiu publicamente “rápida e eficaz retribuição” aos terroristas e assinou uma Decisão Diretiva de Segurança Nacional (National Security Decision Directive, NSDD) confidencial e uma autorização secreta liberando “o uso de sabotagem, morte20 e ataques retaliatórios preventivos” contra grupos
terroristas. A NSDD e a autorização mencionam o projeto de formação de “equipes de ação” letais da CIA e, segundo consta, autorizava a cooperação com o JSOC. Quadros operacionais do JSOC aliaram-se a Forças Armadas estrangeiras em toda a América Latina e no Oriente Médio para combater sequestradores. Envolveram-se ainda na ação que levou à morte do traficante colombiano Pablo Escobar21 em Medellín, em 1993. Essas operações fizeram surgir uma força de combatentes americanos versados em técnicas específicas e singulares de contrainsurreição. Nos últimos tempos da Guerra Fria, os quadros operacionais do JSOC tinham se tornado a nata da elite, os combatentes veteranos mais experientes das Forças Armadas americanas. Na década de 1990, eles continuaram a desempenhar papéis centrais, ainda que secretos, nas guerras dos Bálcãs, Somália, Tchetchênia, Irã, Síria e por toda a África e a Ásia. Na antiga Iugoslávia,22 o JSOC ajudou na caça de acusados de crimes de guerra, mas fracassou na captura de seus dois alvos principais, os servo-bósnios Ratko Mladic´ e Radovan Karadžic´. Com uma resolução presidencial secreta23 do presidente Clinton, o JSOC foi autorizado a agir em solo americano em operações contraterroristas e no combate a ameaças relacionadas a WMDs, driblando a lei de Posse Comitatus, que proíbe os militares de atuar dentro do país. Na verdade, algumas das missões mais delicadas do JSOC foram executadas dentro dos Estados Unidos. Em 1993, membros da Força Delta participaram da desastrosa incursão contra a comunidade do culto Ramo Davidiano em Waco, no Texas.24 Setenta e cinco pessoas morreram na incursão, entre elas mais de vinte crianças e duas mulheres grávidas. O JSOC também executou operações de segurança dentro das fronteiras americanas quando o país sediou a Copa do Mundo de 199425 e os Jogos Olímpicos de 1996. No fim da década de 1990, o DoD reconheceu oficialmente a existência de grupos como o JSOC, embora esse nome não tenha se tornado público. “Criamos Unidades de Missões Especiais equipadas, armadas e treinadas para lidar com uma ampla gama de ameaças transnacionais”,26 disse Walter Slocombe, subsecretário de Defesa para políticas. Calcula-se que 80%27 das missões do JSOC anteriores a 2000 permaneçam confidenciais. “Eu diria que eles são a grande jogada. Se você fosse um jogador, seria a carta que esconderia na manga.”28 Foi assim que o general Hugh Shelton definiu o JSOC para mim. Shelton foi chefe do Estado-Maior Conjunto no governo Clinton e passou a maior parte da carreira29 nas Operações Especiais. Antes de ser nomeado pelo presidente Clinton, chefiou o Comando de Operações Especiais dos Estados Unidos (US Special Operations Command, Socom), que foi tecnicamente a organização que gerou as operações do JSOC.
Eles formam uma unidade de tipo cirúrgico. Não devem ser usados para atacar fortalezas ou algo assim — isso é o que fazem o Exército e a Marinha. Mas quando se precisa de alguém para saltar de paraquedas a cinquenta quilômetros do alvo, descer pela chaminé de um
castelo e fazê-lo explodir de dentro para fora — esses são os caras que devemos chamar.
Eles são “os profissionais silenciosos. Fazem as coisas, e fazem bem, mas não se vangloriam disso”, acrescentou. “Você não vai querer empregá-los em qualquer coisa que exija força bruta… E cuidei que isso não acontecesse, quando era o chefe.” No Onze de Setembro, Shelton era o chefe. E Rumsfeld o detestava, a ele e a suas ressalvas. Embora a história secreta do JSOC fosse discutida, em tom abafado, pelos corredores do Pentágono, muitos de seus veteranos mais condecorados achavam que ele estava sendo subutilizado ou, pior, mal utilizado. Depois de um começo auspicioso e uma jurisdição abrangente, o JSOC passou a ser visto como filho bastardo dentro do Pentágono e da Casa Branca. O escândalo Irã-contras tinha trazido um estigma para a ação secreta. Apesar de alguns êxitos, como o resgate do cidadão americano Kurt Muse30 de uma prisão panamenha na operação Causa Justa em 1989, as Forças de Operações Especiais passaram a ser usadas com reservas na década que antecedeu o Onze de Setembro. Durante a Guerra do Golfo de 1991, o chefe do Comando Central dos Estados Unidos (US Central Command, Centcom), general Norman Schwarzkopf, relutou em incluir o JSOC no plano de guerra,31 embora no final das contas tenha perdido essa batalha. O JSOC foi mobilizado e, entre outras missões, rastreou sistemas de mísseis SCUD para sabotá-los. Essa desconfiança começou a ceder um pouco durante a era Clinton. Naquele período, de acordo com a história oficial do Socom, o ritmo das Forças de Operações Especiais (Special Operations Forces, SOF) aumentou mais de 50%. “Só em 1996,32 as SOF foram enviadas a um total de 142 países e realizaram 120 missões contra o tráfico de drogas, doze missões de desativação de minas e 204 exercícios conjuntos.” Todavia, em vez de operações fulminantes dirigidas, o JSOC foi usado principalmente em ações de grande escala,33 que cada vez mais se tornavam missões de paz com envolvimento de coalizões internacionais, como ocorreu nas guerras da Bósnia e Herzegovina, Libéria, Serra Leoa, Haiti e Somália. O JSOC entrou em ação poucas vezes em missões fulminantes, de ação direta, para as quais tinha sido criado. O general Wayne Downing, que chefiou o Socom de 1993 a 1996 e foi também comandante do JSOC, disse que depois do fim da Guerra Fria, “a guerra não convencional” das Forças de Operações Especiais dos Estados Unidos “tinha recebido pouca atenção”,34 e acrescentou que sua “qualificação nessa área tinha atrofiado”. Disse que o JSOC “conserva excelentes condições de ação contraterrorista e contraproliferação, mas operava com uma postura mais reativa do que proativa”. Quando a ameaça representada pela Al-Qaeda começou a surgir, na década de 1990, o JSOC propôs missões35 destinadas a atingir a liderança da rede. Seus comandantes acreditavam que esse era seu principal papel e, ao que se sabe, as primeiras versões de operações planejadas contra Bin Laden e a Al-Qaeda no fim da década de 1990 incluíram o JSOC.36 Mas os comandantes do JSOC reclamavam que antes do Onze de Setembro suas forças “nunca tinham sido usadas37 para caçar terroristas que haviam tirado vidas americanas”. Segundo Downing,
durante o tempo em que esteve à frente do Socom, ele participou do preparo de aproximadamente vinte operações38 que visavam atingir grupos terroristas acusados de matar cidadãos americanos, mas o comando não podia “puxar o gatilho”. Downing afirmou que embora o JSOC “tivesse uma excelente qualificação para o ataque direto e capacidade de ‘acabar’,39 faltava-lhe competência para ‘achar’ e ‘atacar’, e Inteligência essencial” para travar uma guerra global contra o terrorismo. “Durante muito tempo, eles foram alvo de piadas. Eram os caras ‘grandões, maus, levantadores de peso’, sabe como é, lá no Fort Bragg, dentro do complexo deles”, lembra Lang.
Mas eles conquistaram muito reconhecimento e fizeram coisas como aquelas, porém eles nunca entraram em combate com ninguém, até aquela história de Clinton na Somália [o infausto incidente com os helicópteros Black Hawks em 1993]. Você tem de admitir, eles eram muito valentes — não há dúvida sobre isso —, mas é certo que seus dias de glória, como uma espécie de faxineiros globais contra os inimigos da justiça e da verdade, só começaram depois do Onze de Setembro. Antes eles não fizeram muita coisa de fato.
Rumsfeld chegou ao poder com o propósito de mudar essa equação. Ele não só queria que o Pentágono assumisse as operações secretas da CIA, mas pretendia tomar para si mesmo o controle delas, simplificando radicalmente a cadeia militar de comando. O JSOC foi criado em segredo para operações que, por sua própria natureza, deviam ser mantidas em segredo para praticamente todas as demais instâncias militares e de governo. Depois do Onze de Setembro, Rumsfeld agiu rápido para criar uma estrutura que driblasse o Estado-Maior e começasse a se entender diretamente com o comando de combate para executar operações fulminantes em áreas de sua responsabilidade. Segundo o Título 1040 do Código dos Estados Unidos, o chefe do Estado-Maior Conjunto seria o mais alto conselheiro militar do presidente e devia servir como canal de contato com ele. “[Rumsfeld] não gostava nem um pouco disso”, lembra Shelton. “Tentava diminuir minha autoridade ou suprimir membros de minha equipe”, disse ele. Rumsfeld “queria ser o cara da política e das operações”. Shelton disse-me que ele marginalizava “toda competência militar” e estava “sempre querendo descobrir a maneira de passar a tratar diretamente com os comandantes de tropas sem intermédio do chefe do Estado-Maior Conjunto, como seria natural para qualquer outro secretário de Defesa”. Em suas memórias, Shelton diz que o modelo de secretário de Defesa de Rumsfeld “se baseia na trapaça,41 na fraude, atende a propósitos políticos e tende a levar o Estado-Maior Conjunto a apoiar uma ação que pode não ser boa para o país, mas funciona para o presidente do ponto de vista político”. E acrescentou: “Foi o pior estilo de liderança que testemunhei em 38 anos de serviço ou que testemunhei nos mais altos níveis do mundo empresarial desde então”. Shelton disse que durante seu tempo como chefe do Estado-Maior Conjunto, no governo de
Clinton e no de Bush, interveio pessoalmente para interromper operações que acreditava que teriam resultado em morte de inocentes se tivessem ido em frente com base nos dados iniciais da Inteligência. Mas Rumsfeld pretendia agilizar o processo de autorização de operações de assassinato dirigido e não admitia ser atrapalhado pelos milicos. “Você precisa ter cuidado quando começa a matar gente, e ter certeza de que está matando as pessoas certas. E isso exige que se usem todos os efetivos que temos, para se certificar de não cometer erros. Pode ser feito com rapidez, mas precisa ser conferido”, disse Shelton. “Mesmo quando você não está disposto a perder a oportunidade de agarrar um terrorista, não vai querer provocar um incidente internacional que pode acabar nos equiparando ao terrorista.” Distante da opinião de Shelton sobre como essas forças cirúrgicas deveriam ser mobilizadas, Rumsfeld acreditava que o JSOC estava sendo subutilizado e pretendia transformá-lo: se até então ele fora a ponta de lança de uma nova campanha global de assassinatos, agora passaria a ser a própria lança. Rumsfeld e muitos outros na comunidade de Operações Especiais acreditavam que Clinton e a alta oficialidade da década de 1990 tinham reduzido forças42 como o JSOC a um estado de quase irrelevância na luta contra o terrorismo. Durante o governo Clinton, “a possibilidade de perseguir e capturar terroristas43 recebeu muita atenção nos mais altos escalões do governo”, concluiu um relatório encomendado por Rumsfeld três meses depois do Onze de Setembro. “Mas em algum ponto entre a origem e a execução, as opções das SOF sempre naufragavam por serem vistas como problemáticas.” O autor do relatório foi Richard Shultz, acadêmico especializado em Operações Especiais bélicas, e seu propósito era dissecar a estratégia contraterrorista de Clinton. Rumsfeld pretendia garantir que qualquer barreira legal ou burocrática que pudesse entravar a ação do JSOC fosse demolida. Shultz recebeu passe livre44 e carta branca para realizar entrevistas com altos oficiais e analisar a Inteligência. A conclusão final de seu relatório foi de que os Estados Unidos precisavam tirar o JSOC da prateleira da segurança nacional e situá-lo no centro da guerra contra o terror. O relatório Shultz, que teve partes adaptadas e transformadas num artigo dado a público pela revista neoconservadora Weekly Standard, mencionava que o incidente com os Black Hawks na Somália em 1993 tinha assustado a Casa Branca a ponto de paralisar as Forças de Operações Especiais. No fim de 1992, os Estados Unidos lideraram uma missão de paz das Nações Unidas45 que pretendia distribuir ajuda humanitária e, mais tarde, libertar a Somália dos chefes de milícias que tinham derrubado o governo. Mas esses chefes,46 em aberto desafio às forças dos Estados Unidos e das Nações Unidas, continuaram a pilhagem da Somália. No verão de 1993, depois de uma série de ataques contra forças das Nações Unidas, Clinton deu sinal verde47 ao JSOC para executar uma ousada operação de desmantelamento do círculo mais próximo do notório chefe de milícia Mohamed Farrah Aidid, cujas forças estavam consolidando rapidamente seu controle sobre Mogadíscio. Mas a missão descambou para o desastre48 quando dois helicópteros Black Hawks do JSOC foram derrubados, dando origem a uma grande batalha
entre as Forças de Operações Especiais e membros da milícia somaliana. Ao todo, foram mortos dezoito soldados americanos. Imagens de americanos arrastados pela cidade foram transmitidas para o mundo inteiro e acabaram provocando a retirada dos Estados Unidos. “O desastre de Mogadíscio49 assustou tanto o governo Clinton quanto os militares, e confirmou a ideia do Estado-Maior Conjunto de que operações independentes nunca deveriam ter sido confiadas às SOF”, afirma o relatório Shultz.
Depois de Mogadíscio, explicou um oficial do Pentágono, houve “relutância até mesmo em discutir medidas proativas, combinadas com a reação à ameaça terrorista, por meio de operações das SOF. O Estado-Maior Conjunto ficou satisfeito quando o governo assumiu uma posição dentro da lei. Ele não queria pôr em campo tropas de operações especiais”.
O general Peter Schoomaker, que comandou o JSOC de 1994 a 1996, disse que as resoluções presidenciais do governo Clinton “e os documentos e autorizações subsequentes, na minha opinião, foram emitidos só para constar.50 O presidente assinava coisas que qualquer pessoa informada sabia perfeitamente que nunca iam acontecer”, e acrescentou: “As Forças Armadas, a propósito, não queriam tocar no assunto. Havia muita relutância no Pentágono”. Entrevistados por Shultz, diversos funcionários que serviram no Estado-Maior Conjunto e em Operações Especiais na era Clinton afirmaram que funcionários como Richard Clarke, que defendiam o uso de soldados de Operações Especiais em campo, em operações de assassinato dirigido ou de captura, visando Bin Laden e outros nomes da Al-Qaeda, foram acusados de malucos por seus superiores, pois estariam “fora de si, sedentos de poder, querendo ser heróis e coisas assim”. Um antigo funcionário contou a Shultz que “quando recebíamos do grupo de contraterrorismo uma dessas propostas de ação das SOF, nossa função” não era “planejar sua execução, mas pensar em como íamos dizer não”. Shultz denunciou esses “desmanchaprazeres”, rótulo que aplicava aos responsáveis pelas restrições legais e burocráticas impostas na era Clinton, que “formaram uma falange impenetrável que assegurava que todas as discussões políticas de alto nível, todas as novas resoluções presidenciais firmes, os planos de contingência revistos e examinados e os ensaios gerais de missões acabassem por não dar em nada”. Na opinião de Shultz, “essas restrições autoimpostas se reforçavam umas às outras […] e mantinham marginalizadas as unidades de missões especiais” no governo Clinton, “mesmo que a Al-Qaeda atacasse […] alvos no mundo todo e trombeteasse sua intenção de fazer mais”. O relatório Shultz pintava um quadro em que as Forças de Operações Especiais se mostravam algemadas pela oficialidade e por funcionários civis que preferiam lançar mísseis de cruzeiro e enfrentar Bin Laden e suas tropas terroristas dentro da legalidade. O medo de falhar e da humilhação, combinado com a preocupação de não violar a proibição de assassinato e de não matar inocentes na perseguição dos culpados, pavimentou o caminho para o Onze de Setembro,
na opinião de Rumsfeld. Sua estratégia se reduzia a isto: ele queria os melhores matadores dos Estados Unidos matando inimigos dos Estados Unidos onde quer que estivessem. Enquanto o país iniciava sua guerra global, Shultz começou a informar51 altos funcionários do Pentágono sobre suas conclusões e recomendações. O relatório, classificado como “secreto”,52 era mordaz em sua denúncia da política de Clinton para o contraterrosrismo e defendia uma agressiva promoção do JSOC dentro do aparato de segurança nacional. Em vez de o JSOC ser uma força que poderia ser chamada em apoio a comandantes americanos convencionais em áreas de sua responsabilidade, esses comandantes é que apoiariam o JSOC. Foi uma promoção sem precedentes da principal força de operações clandestinas a uma posição de suprema autoridade. Rumsfeld, que só precisou tratar com o general Shelton “durante quinze minutos”,53 como disse o próprio Rumsfeld, foi em frente a toda a velocidade depois que Shelton foi substituído, em outubro de 2001, por um chefe do Estado-Maior Conjunto bem mais maleável, Richard Myers. Se Rumsfeld ia “empregar” o JSOC na “execução de uma guerra global contra a Al-Qaeda, era preciso aprender as lições de Mogadíscio”,54 concluía o relatório Shultz. “Essas lições revelam como as unidades das SOF são boas, mesmo quando mal empregadas pelos governantes. Imagine se fossem bem empregadas na guerra contra o terrorismo.” Fosse para bem empregá-las ou não, Rumsfeld estava a ponto de catapultar o JSOC da obscuridade a uma proeminência e a uma potência sem precedentes na máquina de guerra dos Estados Unidos. Para isso, ele teria de invadir os domínios da CIA e criar estruturas paralelas subordinadas a ele mesmo, e não ao Congresso ou ao Departamento de Estado. Também ia precisar de uma operação de Inteligência independente para apoiar sua programação secreta.
* * *
Desde o início do governo Bush, Rumsfeld e Cheney tinham atritos frequentes com o secretário de Estado Colin Powell, e estavam decididos a impedir que o profusamente condecorado ex-chefe do Estado-Maior Conjunto se pusesse no caminho de suas guerras. Powell não era uma pombinha, mas desde os primeiros momentos após o Onze de Setembro defendeu que os Estados Unidos elaborassem uma resposta militar firmemente focada na Al-Qaeda. Ele e seus assessores afirmaram que “nossos aliados e amigos55 no estrangeiro se sentirão mais à vontade com ataques americanos retaliatórios contra os responsáveis pelos ataques do que com uma guerra global contra terroristas islâmicos e Estados que os apoiam”, lembrou Douglas Feith. Powell, segundo ele, acreditava que uma “campanha punitiva de abrangência restrita manteria a política americana mais alinhada com a abordagem de combate ao terrorismo dentro da lei”. Mas os neoconservadores estavam decididos a travar guerras preventivas contra Estados-nações e queriam liberar a CIA da burocracia legal e fiscalizadora. “Esqueçam as ‘estratégias de retirada’”,56 disse Rumsfeld duas semanas depois do Onze de Setembro. “Buscamos um envolvimento sustentado que não implique prazos.” Como secretário de Estado,
Powell era responsável pelas relações e alianças internacionais. Sua agenda diplomática quase que de imediato entrou em conflito direto com a dos neoconservadores. Ele e seus embaixadores também tinham como atribuição monitorar as atividades da CIA no mundo. Eles deviam ser informados de todas as operações nos outros países — uma restrição que Rumsfeld e Cheney engoliam com dificuldade. Malcolm Nance, especialista da Marinha em contraterrorismo que treinou a elite das Forças de Operações Especiais dos Estados Unidos, pôde observar o modo como militares experientes estavam sendo marginalizados por Cheney, Rumsfeld e sua milícia de ideólogos dentro do governo. “Nenhuma dessas pessoas57 jamais tinha servido em combate, mas Colin Powell, Lawrence Wilkerson e seus auxiliares foram todos combatentes”, disse-me Nance.
E é engraçado, pois eles foram isolados no Departamento de Estado, e os ideólogos civis se instalaram no Pentágono, e eram eles que vinham com o que chamamos CCTC, “Conceitos de Combate de Tom Clancy”. Eles começaram a ler livros e revistas, e a pensar “vamos ser durões, vamos fazer isto e aquilo, vamos sair e alvejar gente na rua, e vamos começar a prender gente”. Os que tomavam as decisões eram quase infantis, queriam fazer grandes coisas, Dungeons & Dragons, sabe como é, capa e espada o tempo todo.
No Onze de Setembro, a CIA não tinha um grande contingente paramilitar próprio — no máximo seiscentos ou setecentos58 quadros operacionais secretos. Assim, muitos de seus ataques dependiam fortemente de efetivos das Forças Especiais e das Forças de Operações Especiais — que tinham mais de 10 mil homens — cedidos à Agência para missões específicas. “Toda a qualificação paramilitar59 vinha realmente das Forças Armadas, das Forças Especiais”, lembra Vincent Cannistraro, funcionário de carreira da CIA na área de contraterrorismo que também passou pelo Pentágono e pela Agência de Segurança Nacional (National Security Agency, NSA). “Ela na verdade não existe, exceto em forma de esqueleto, na CIA”, contou. “As Forças Especiais têm a qualificação. Os recursos empregados eram do DoD, e a transferência deles para a direção da CIA era uma decisão política tomada em âmbito nacional.” De início, subordinada ao presidente Bush, a CIA era o órgão dominante na guerra global. Mas Cheney e Rumsfeld bem cedo compreenderam que ela não precisava ser a única força oculta e que havia outro contingente à disposição da Casa Branca capaz de oferecer muito mais flexibilidade e quase nenhuma ingerência parlamentar ou do Departamento de Estado. Embora algumas operações precisassem passar pela CIA — sobretudo quando se tratava de estabelecer prisões clandestinas em colaboração com a Inteligência de outros países —, o grupo de Cheney não confiava nos burocratas da Agência. “Acho que Rumsfeld e Cheney pensavam que a CIA era um bando de maricas,60 o mesmo que pensavam do Departamento de Estado”, lembrou Wilkerson, antigo chefe de gabinete de Powell. Wilkerson contou que durante sua gestão
começou a ver um modelo “daquilo que considero uma ascensão do poder presidencial, poderes de comandante em chefe assumidos pelo vice-presidente dos Estados Unidos”. Cheney, particularmente, disse ele, tinha saudade das guerras secretas da década de 1980, “o período em que Ronald Reagan ajudou os contras a combater o governo sandinista” e a
relação quase simbiótica entre algumas Forças de Operações Especiais e quadros operacionais clandestinos da CIA. Acho que isso leva a um verdadeiro modelo para a Guerra contra o Terror, como se esperaria que fosse, porque era isso que Cheney queria. Operar no lado clandestino.
Rumsfeld considerava que o empréstimo de Forças Operacionais Especiais à CIA criava um intermediário problemático e obstrutivo que poderia levantar objeções legais intermináveis. Ele queria que as principais forças de ação direta dos Estados Unidos estivessem livres de restrições e prestassem contas apenas a ele e ao presidente. A CIA não pode fazer nada sem o conhecimento das comissões de fiscalização da Inteligência, ou sem informá-las quase que imediatamente depois”, disse Cannistraro, que colaborou na instituição do Centro de Contraterrorismo da CIA.
Antes do Onze de Setembro, quando a CIA executava uma operação paramilitar, havia elementos das Forças Especiais ligados a ela, e portanto esses elementos estavam sob controle civil, e o que estavam fazendo para a CIA era informado à Comissão de Fiscalização da Inteligência. Mas se a operação for executada pelas Forças Armadas, não se segue a mesma orientação, já que ela não precisa ser relatada às comissões fiscalizadoras da Inteligência. É uma operação militar. E portanto faz parte de uma guerra, ou da “preparação militar”.
Cannistraro disse-me que algumas das atividades mais polêmicas e secretas do mundo foram executadas “pelas Forças Armadas dentro do ‘Programa Cheney’, porque não precisavam ser informadas ao Congresso”. Enquanto Powell e o Departamento de Estado tomavam precauções61 para não estender o foco para além do Afeganistão, da Al-Qaeda e do Talibã, Rumsfeld pressionava para globalizar a campanha militar. “Não temos alternativa.62 Precisamos levar a batalha aos terroristas, onde quer que se encontrem”, declarou Rumsfeld em dezembro de 2001. “A única maneira de lidar com uma rede terrorista global é persegui-la onde ela estiver.” Rumsfeld queria Forças de Operações Especiais na frente e no centro, e pediu ao general Charles Holland, chefe do Comando de Operações Especiais, que fizesse uma lista63 de alvos regionais em lugares onde os Estados Unidos pudessem executar ataques retaliatórios ou preventivos contra a Al-Qaeda. No fim de 2001, Feith instruiu Jeffrey Schloesser, na época chefe da Célula de Planejamento Estratégico da Guerra contra o Terrorismo, a J-5 do Estado-Maior Conjunto, a preparar com sua
equipe um plano chamado “Próximos Passos”. O Afeganistão seria apenas o começo. Rumsfeld queria planos de ataque para a Somália, Iêmen, América Latina, Mauritânia, Indonésia e mais outros. Num memorando dirigido ao presidente Bush, duas semanas depois do Onze de Setembro, Rumsfeld disse que o Pentágono estava “explorando alvos64 e resultados desejáveis em países em que as relações da CIA com os serviços de Inteligência locais não podem ou não vão levar à execução de projetos dos Estados Unidos”. Isso incluía os países que receberiam os Estados Unidos “de forma amigável” e também os que não o fizessem. O mundo é um campo de batalha — esse era o mantra.
4. O chefe: Ali Abdullah Saleh
IÊMEN, 1970-2001; WASHINGTON, DC, 2001 — Assim que os aviões se chocaram contra o World Trade Center, Ali Abdullah Saleh entendeu que precisava agir rápido. O presidente iemenita era famoso nos círculos da Inteligência como um astuto sobrevivente que passara relativamente ileso pela Guerra Fria, pelas profundas divisões tribais em seu país e por ameaças terroristas. Quando sobreveio o Onze de Setembro, Saleh já tinha problemas com os Estados Unidos por causa do ataque a bomba ao USS Cole próximo ao porto de Áden, no sul do Iêmen, e estava resolvido a impedir que o Onze de Setembro marcasse o começo do fim de sua permanência no poder, de décadas. Enquanto o governo Bush começava a traçar planos para uma guerra sem fronteiras em resposta aos atentados, Saleh incubou um plano próprio que tinha um objetivo central: ficar no poder. Saleh passara a governar o Iêmen1 em 1990, depois da unificação do norte, que ele já governara desde a década de 1970, com o sul, governado por marxistas com base em Áden. Era conhecido em seu país como “o chefe”.2 O coronel Lang, que serviu durante anos como adido militar e da Defesa no Iêmen, conheceu Saleh em 1979. Fluente em árabe, Lang era convocado com frequência como tradutor para reuniões delicadas com outros representantes do governo americano. Ele e seu congênere britânico do MI-6 muitas vezes iam à caça com Saleh. “Saíamos3 com uma porção de carros e matávamos gazelas, hienas”, lembrou Lang, acrescentando que Saleh era “razoavelmente bom de mira”. Sobre Saleh, Lang disse: “Mesmo sendo um demônio, ele é realmente encantador”, falando das décadas de governo de Saleh como “um belo governo, num país que é um ‘pega pra capar’. É como ser o comandante de uma nave dos Klingon, entende? Eles estão só esperando”. Saleh, disse Lang, é mestre em jogar as tribos umas contra as outras, cooptando-as em momentos decisivos e terceirizando seus problemas.
Há um equilíbrio precário, o tempo todo, entre a autoridade do governo e a desses enormes grupos tribais. Normalmente, o governo só controla as terras ocupadas por suas forças, ou onde está prestando algum serviço desejado pelos líderes tribais e pela população, como atendimento médico ou educação. Então você acaba tendo uma porção de cidades protegidas, com uma série de postos de controle em volta delas e umas poucas expedições
punitivas que o governo põe em ação pelo país todo para castigar pessoas com quem eles estão disputando algo.
Durante a guerra dos mujahedin contra os soviéticos no Afeganistão, na década de 1980, milhares de iemenitas aderiram à jihad — alguns deles coordenados e financiados4 diretamente pelo governo de Saleh. “Todos eles foram enviados ao Afeganistão5 para enfrentar a invasão e a ocupação pelos soviéticos”, afirmou Saleh numa entrevista ao New York Times em 2008.
E os Estados Unidos obrigavam países amigos naquele tempo, incluído o Iêmen, os países do Golfo, Sudão e Síria a apoiar os mujahedin — que eles chamavam de combatentes da liberdade — e a lutar no Afeganistão. Os Estados Unidos apoiavam decididamente o movimento islâmico na luta contra os soviéticos. Então, depois do colapso destes no Afeganistão, os Estados Unidos de uma hora para outra adotaram uma atitude completamente diversa e extrema e começaram a pressionar os países a combater os movimentos islâmicos que existiam em territórios árabes e islâmicos.
Quando os jihadistas voltavam ao país de origem, Saleh lhes proporcionava um santuário.6 “Como no Iêmen temos pluralismo político,7 decidimos não combater esses movimentos”, disse Saleh. A Jihad Islâmica,8 movimento de Ayman al-Zawahiri, o médico egípcio que chegou a se tornar o número dois de Bin Laden, instalou uma de suas maiores células no Iêmen na década de 1990. Decididamente, Saleh não via a Al-Qaeda como grande ameaça. Na verdade, via os jihadistas como aliados convenientes que em algum momento poderiam ser usados em seus próprios planos internos. Em troca da liberdade que Saleh lhes oferecia para se deslocar e treinar no Iêmen, ele podia usar os jihadistas que tinham lutado no Afeganistão no combate aos secessionistas do sul9 e, mais tarde, aos rebeldes xiitas do imã Houthi10 em Sa’dah, no norte. “Eles eram os capangas11 que Saleh usava para controlar qualquer elemento problemático. Temos muitos casos em que Saleh usou esses caras da Al-Qaeda para eliminar opositores do regime”, disse-me Ali Soufan, ex-agente do FBI que trabalhou muito no Iêmen. Como eram valiosos para a agenda interna de Saleh, “podiam operar livremente. Conseguiam documentos iemenitas para viajar. Saleh era sua base mais segura. Fazendo esse jogo, ele tentava fazer de si mesmo o protagonista”. Em consequência desse relacionamento, na década de 1990, enquanto a Al-Qaeda se expandia, o Iêmen ofereceu-lhe terreno fértil para campos de treino e para recrutamento de jihadistas. Durante o governo Clinton, fora do pequeno grupo de funcionários que acompanhavam a ascensão da Al-Qaeda, a maior parte deles do FBI e da CIA, esse acordo mal provocou uma vibração no radar contraterrorista dos Estados Unidos. Isso mudaria em 12 de outubro de 2000, depois de um ataque do tipo Davi contra Golias a um
navio de guerra americano de 1 bilhão de dólares, o USS Cole, que estava atracado no porto de Áden para abastecimento. Pouco depois das onze da manhã, um pequeno barco a motor, carregado com duzentos quilos de explosivos,12 foi atirado contra o navio e abriu uma cratera de doze metros por doze no flanco do Cole. O ataque matou dezessete marinheiros americanos e feriu mais de trinta. “Um destróier até os valentes podem temer,/ Inspira horror no porto e em alto-mar”, 13 diria Bin Laden num vídeo de recrutamento da Al-Qaeda, declamando um poema escrito por um de seus assistentes.14 Segundo especialistas em Al-Qaeda, o ataque inspirou uma legião de novos recrutas — principalmente do Iêmen — a se filiar à organização e a grupos similares. Os agentes do FBI que viajaram ao Iêmen logo depois do ataque foram detalhadamente monitorados pelas autoridades iemenitas e recebidos no aeroporto por Forças Especiais locais que apontavam armas para eles. “O Iêmen é um país com 18 milhões de cidadãos e 50 milhões de metralhadoras”, relatou John O’Neill, que liderou as investigações do FBI sobre o ataque. Mais tarde, ele diria que “este pode ser o ambiente mais hostil15 em que o FBI já operou”. No verão de 2001, o FBI teve de se retirar por completo16 depois de uma série de ameaças contra seus agentes e um suposto complô que pretendia explodir a embaixada americana. “Enfrentamos com regularidade ameaças de morte,17 cortinas de fumaça e obstruções diplomáticas”, lembrou Soufan, um dos principais investigadores do FBI. De modo geral, o governo de Saleh18 obstruiu a investigação americana sobre o ataque a bomba, mas não foi nem de longe a única fonte de frustração para os investigadores. “Ninguém na Casa Branca de Clinton19 parecia se preocupar com o caso”, lembrou Soufan.
Esperávamos que o governo de Bush filho fosse melhor, mas com exceção de Robert Mueller, diretor do FBI, os principais funcionários do governo em breve deixaram o caso de lado, porque, segundo Paul Wolfowitz, vice-secretário de Defesa, “tinha caducado”.
Soufan e uns poucos funcionários do contraterrorismo americano observaram que a explosão do USS Cole fortaleceu a posição de Bin Laden. “O ataque ao Cole havia sido uma grande vitória”,20 comentou Lawrence Wright em seu livro seminal sobre a Al-Qaeda, O vulto das torres. “Os campos da Al-Qaeda no Afeganistão ficaram lotados de novos recrutas, e doadores dos Estados do Golfo chegavam carregando maletas cheias de petrodólares, como nos dias de glória da jihad afegã.” Uma semana antes do Onze de Setembro, Saleh vangloriou-se pela Al Jazira de que seu governo não tinha autorizado o FBI a interrogar ou questionar nenhum alto funcionário iemenita sobre o ataque. “Recusamo-nos a lhes dar acesso21 ao Iêmen com tropas, aviões e navios”, declarou Saleh. “Ficaram sob vigilância direta de nossas forças de segurança. Respeitaram nossa posição e se submeteram ao que mandamos.”
Os ataques terroristas ao World Trade Center em 11 de setembro de 2001 trouxeram novas dificuldades para a relação entre o regime de Saleh e os Estados Unidos. Embora estando no poder desde o fim da década de 1970, depois do Onze de Setembro o mundo de Saleh poderia facilmente ter desmoronado em um instante. “Aqueles que fazem guerra22 contra os Estados Unidos escolheram a própria destruição”, declarou o presidente Bush quatro dias depois dos atentados. “A vitória contra o terrorismo não vai se decidir com uma única batalha, mas com uma série de ações contra organizações terroristas e contra aqueles que lhes dão abrigo e apoio.” A parte do “abrigo” foi interpretada por Saleh como um aviso ameaçador — e com razão. Os documentos presidenciais e outras resoluções emitidas por Bush depois do Onze de Setembro autorizavam a CIA e as Forças de Operações Especiais a combater a Al-Qaeda em qualquer parte do mundo em que seus quadros operacionais estivessem baseados. Enquanto as forças americanas pressionavam o Afeganistão, as Forças de Operações Especiais e a CIA continuavam a rastrear os movimentos dos quadros operacionais da Al-Qaeda com o objetivo de localizá-los, para morte ou captura, onde quer que eles pousassem. Depois da rápida derrocada do governo talibã de Cabul pelos Estados Unidos, muitos dos combatentes estrangeiros alinhados com Bin Laden se viram em fuga e em busca de refúgio. Um de seus principais portos seguros foi encontrado nos ermos do Iêmen. O governo Bush pôs o Iêmen numa lista23 de primeiros alvos prováveis na guerra contra o terror e poderia ter facilmente desmontado o governo Saleh, apesar da arrogante declaração deste, antes do Onze de Setembro, de que “o Iêmen é a tumba dos invasores”.24 Saleh estava determinado a não seguir o destino do Talibã e não perdeu tempo para armar as jogadas que lhe garantiriam isso. A primeira delas foi pegar um avião para os Estados Unidos. Em novembro de 2001, o presidente Saleh chegou a Washington, DC, onde manteve conversas25 com o presidente Bush, com o vice-presidente Cheney e com os diretorer do FBI, Robert Mueller, e da CIA, George Tenet. Disse a quem quisesse ouvir que o Iêmen estava do lado dos Estados Unidos. A imprensa foi trazida à Casa Branca para uma sessão de fotos dos dois líderes sorrindo e apertando-se as mãos. Em seus encontros com Bush, Saleh enfatizou a “condenação aos ataques terroristas de Onze de Setembro nos Estados Unidos e a denúncia, por parte do Iêmen, de todas as formas de terrorismo”, referindo-se a seu país como “um importante parceiro26 na coalizão contra o terrorismo”. Enquanto em público desenrolava-se o espetáculo de Saleh, com o governo Bush retratando-o como aliado na recém-denominada “Guerra Global contra o Terror”, a portas fechadas altos funcionários do governo intermediavam acordos para expandir a presença americana no Iêmen. Durante os encontros realizados em Washington, que incluíram visitas de Mueller e Tenet à suíte pessoal de Saleh no Ritz Carlton Hotel27 da 22th Street, o presidente iemenita ganhou de presente um pacote de ajuda28 no valor de 400 milhões de dólares, além de financiamentos do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional. E, o que era essencial para os Estados
Unidos, o pacote incluía a ampliação do treinamento das Forças Especiais do Iêmen pelos americanos. Esse treinamento permitiria levar as Forças Especiais dos Estados Unidos para dentro do Iêmen sem comprometer internamente a imagem de Saleh. Como parte do trato, os Estados Unidos instalariam um “campo de contraterrorismo”29 no Iêmen, comandado pela CIA, pelo Corpo de Fuzileiros Navais e por Forças Especiais americanas que seriam respaldadas pelo posto avançado americano no Djibuti, país africano próximo que também servia como base de drones Predator. Tenet conseguiu que os Estados Unidos fornecessem helicópteros e equipamento de escuta. Saleh deu também a Tenet uma permissão essencial para o uso de drones da CIA30 em território iemenita. “Saleh sabia o que fazer para sobreviver”,31 disse o dr. Emile Nakhleh, que foi alto funcionário da Inteligência da CIA. Durante as décadas em que esteve no poder, Saleh “aprendeu a falar a língua da Guerra Fria para se tornar benquisto por nós e por outros países ocidentais que falavam a língua do anticomunismo”. Depois do Onze de Setembro, Saleh “aprendeu rápido” que tinha de falar a língua do contraterrorismo, acrescentou Nakhleh.
Então ele veio para cá procurando apoio, procurando financiamento. Mas Saleh, desde o primeiro instante, nunca pensou que o terrorismo representasse uma ameaça para ele. Achava que o Iêmen fosse basicamente uma plataforma para a Al-Qaeda e outras organizações terroristas e que o objetivo real fosse Al Saud, a Casa de Saud. E então encontrou um jeito de lidar com eles. Assim, ele vinha aqui e falava conosco na língua que nos agradava e que compreendíamos, mas depois voltava para casa e fazia todo tipo de aliança com todo tipo de personagens tenebrosos que pudessem ajudá-lo a sobreviver. Não acho que ele pensasse sinceramente que a Al-Qaeda representasse uma séria ameaça a seu regime.
O coronel Lang disse que Bush
estava tão empolgado com o presidente Saleh, um sujeito atraente, amável e comunicativo, que na verdade ficou ansioso para ouvir o que Saleh dizia, como “Gostamos dos americanos, queremos ajudá-los, queremos cooperar com vocês”, esse tipo de coisa, e se dispôs a enviarlhe ajuda, inclusive militar.
Durante o encontro com o presidente Bush em novembro de 2001, Saleh “manisfestou a preocupação32 e a esperança de que a ação militar no Afeganistão não excedesse as fronteiras do país para se disseminar por outras partes do Oriente Médio, fomentando mais instabilidade na região”, segundo uma declaração da embaixada iemenita em Washington ao término da visita.
Mas para manter o Iêmen de fora da lista de alvos de Washington, Saleh precisava entrar em ação. Ou pelo menos dar a impressão de que estava fazendo isso. A comitiva de Saleh recebeu uma lista de diversos suspeitos da Al-Qaeda que o regime iemenita deveria perseguir como prova de boa vontade. No mês seguinte, Saleh ordenou que suas forças fizessem uma incursão numa aldeia33 da província de Marib, onde se supunha que residissem Abu Ali al-Harithi, um dos principais suspeitos da explosão do Cole, e outros militantes. A operação das Forças Especiais iemenitas foi um erro monumental. Tribos locais tomaram diversos soldados como reféns, e os homens visados pela incursão escaparam ilesos. Mais tarde, os soldados foram libertados por ação de mediadores tribais, mas a ação irritou as tribos e serviu de advertência a Saleh para que ficasse longe de Marib. Foi o começo do que se tornaria um complexo e perigoso jogo de xadrez para Saleh, que dava seus primeiros passos com o intuito de satisfazer o desejo de Washington quanto a assassinatos dirigidos no Iêmen, enquanto mantinha para si o controle do poder. Pouco depois das reuniões de Saleh em Washington, os Estados Unidos criaram uma forçatarefa para o Chifre da África e o Golfo de Áden. No fim de 2002, cerca de novecentos militares e funcionários da Inteligência34 foram enviados a um antigo posto avançado francês, Camp Lemonnier, no Djibuti, com o nome de Força-tarefa Conjunta Combinada — Chifre da África (Combined Joint Task Force — Horn of Africa, CJTF-HOA). Essa base secreta, situada a apenas uma hora de barco do Iêmen, tornar-se-ia em pouco tempo o centro de comando para ações secretas dos Estados Unidos no Chifre da África e na Península Arábica, servindo como plataforma de lançamento para que a CIA e o JSOC atacassem à vontade fora do palco da guerra declarada do Afeganistão. Quando começaram a montagem de Lemonnier, os Estados Unidos reforçaram a presença de “instrutores” militares no Iêmen. Embora oficialmente estivessem no país para modernizar suas forças contraterroristas, os americanos, sem perda de tempo, puseram-se a armar sua capacidade operacional35 para rastrear suspeitos da Al-Qaeda, achar e atacar sua localização, de modo que suas forças pudessem acabar com eles. O coronel Lang lembrou que
ao longo dos anos, houve lá toda espécie de gente que, do ponto de vista americano, seriam personagens duvidosos que teriam procurado abrigo no Iêmen. E Saleh joga seu próprio jogo, então oferece abrigo e um lugar de refúgio para essas pessoas. Assim, era sabido que havia inimigos dos Estados Unidos, e eles começaram a procurar essas pessoas.
Um ano depois do primeiro encontro de Saleh com Bush, os “treinadores” americanos lançariam sua primeira operação “quente”.
5. O enigma de Anwar Awlaki
REINO UNIDO, ESTADOS UNIDOS E IÊMEN, 2002-3 — Quando Anwar Awlaki chegou ao Reino Unido, ligou para seu tio rico, o xeque Saleh bin Fareed, que tinha uma casa no sul da Inglaterra. “Tio Saleh, estou aqui. Posso vê-lo?”,1 perguntou Anwar. “Seja bem-vindo”, respondeu Bin Fareed. Quando Anwar chegou à casa do tio, os dois puseram em dia assuntos familiares antes que a conversa se encaminhasse para os acontecimentos nos Estados Unidos. “Você tem alguma coisa a ver com o que aconteceu?”, Bin Fareed se lembra de ter perguntado, sabendo que Anwar tinha sido interrogado inúmeras vezes pelo FBI. Ele tinha ouvido também novas informações de que Anwar havia se encontrado com alguns dos sequestradores. “Não tenho nada a ver aquilo”, disse Anwar, segundo o tio. “Se eu tivesse alguma coisa com a Al-Qaeda ou com aquela gente, eu não estaria agora aqui na Inglaterra com você. Viajo livremente. No Reino Unido, ninguém encosta a mão em mim.” Ele contou que agentes americanos tinham dito: “Não temos nada contra você”. Anwar ficou com o tio enquanto se instalava na Inglaterra e começou a pregar para plateias muçulmanas em grupos comunitários, centros religiosos e mesquitas, com uma paixão, se não militância, cada vez maior. Falava da importância de defender e promover o Islã num momento em que estava sendo atacado, como ele acreditava. “Ele costumava viajar de trem — ia para Londres, para Birmingham, dava suas palestras e voltava”, lembrou Bin Fareed. Num discurso que fez naquele período na conferência anual da instituição de caridade JIMAS, na Universidade de Leicester, Awlaki lançou um apelo aos muçulmanos do Ocidente para que defendessem e pregassem sua fé. “Devemos nos preocupar2 com o que está acontecendo com nossos vizinhos, com nossos amigos, com nossos companheiros de trabalho, com as pessoas que vivem conosco”, disse ele.
E não estamos nos importando, sabendo que o destino de nossos vizinhos e amigos é o fogo do inferno, não estamos fazendo nada a esse respeito. Então, nossa função principal como minoria, como muçulmanos que vivem entre não muçulmanos, é proclamar publicamente a mensagem, e quando a entregarmos, que seja em termos simples e claros, sem confusão.
Recomendou que não fossem agressivos na divulgação do Islã, dizendo que deviam ser como os mensageiros da UPS, da DHL ou do FedEx. “Em vez de bater à porta com um martelo, e quando a
pessoa atender jogar o pacote na cara dela”, dizia ele, “você bate na porta gentilmente e, quando abrirem, você lhes dirige um sorriso.” Em meados de 2002, Awlaki voltou ao Iêmen para estudar na famosa Universidade da Fé, em Sana’a. “Tive licença3 da administração da universidade […] para frequentar qualquer curso, em qualquer nível, e aproveitei para assistir aulas de Tafsir [exegese do Alcorão] e de Fiqh [jusrisprudência islâmica] durante alguns meses”, escreveria Awlaki mais tarde, acrescentando que “também aproveitei os ensinamentos do xeque Abdul Majeed al-Zindani, reitor da universidade”. Mas enquanto Awlaki começava a dar seus próximos passos, os que o investigavam nos Estados Unidos não se esqueciam dele. Na época em que Awlaki viajou à Arábia Saudita4 e ao Iêmen para estudar o Islã, havia quem achasse, nos Estados Unidos, na Comunidade de Inteligência americana (Intelligence Community, IC) que o caso dele não devia ser encerrado, que o jovem imã poderia estar ligado ao Onze de Setembro e que nem todas as pistas sobre ele tinham sido investigadas. Alguns achavam que ele não devia ter sido liberado para sair dos Estados Unidos. “Quando ele deixou a cidade, foi como se tudo estivesse perdido”,5 disse uma fonte do FBI. Ainda assim, segundo a Comissão do Onze de Setembro, a investigação sobre o suposto envolvimento de Awlaki não trouxe indícios que pudessem ser considerados “fortes o bastante para justificar um indiciamento criminal”.6 Em junho de 2002, os agentes que o investigavam conseguiram um mandado de prisão7 contra ele, embora duvidassem muito de seu retorno aos Estados Unidos. A ordem de prisão não foi emitida por causa de seus supostos contatos com os sequestradores do Onze de Setembro, nem por solicitar serviços de prostitutas, mas por falsidade ideológica, remetendo a seu pedido de bolsa de estudos no início da década de 1990 em que declarava o Iêmen como país de nascimento. Quando chegou aos Estados Unidos para cursar a faculdade e se inscreveu na Previdência Social, Awlaki reafirmou o Iêmen como país de nascimento. Na ocasião em que teve de explicar-se diante das autoridades, ele resolveu o problema8 dizendo que seus documentos iemenitas estavam errados. Agora, dez anos depois, os policiais federais queriam reabrir o caso como pretexto para prendê-lo. “Ficamos em êxtase9 ao descobrir que podíamos conseguir um mandado de prisão contra esse cara”, lembrou um antigo agente da Força-tarefa Conjunta. As acusações que queriam impingir-lhe por falsificação de passaporte poderiam valerlhe dez anos de cadeia10 e ser usadas para pressioná-lo a cooperar com mais afinco com as investigações sobre o Onze de Setembro. Se um dia ele ia voltar aos Estados Unidos, os investigadores não sabiam. Pediram ao Departamento do Tesouro que pusessem o nome de Awlaki no sistema do TECS II,11 o Sistema de Comunicações de Fiscalização do Tesouro, que faria com que qualquer contato que ele tivesse com funcionários da Imigração ou da Alfândega soasse um alerta, resultando em sua prisão. Se tentasse entrar nos Estados Unidos, o FBI seria informado imediatamente. As chances pareciam remotas.
Mas Awlaki voltou, muito antes do que se poderia esperar, e quando isso aconteceu, uma sequência de eventos levantou sérias dúvidas sobre suas relações com o FBI.
Em Sana’a, Nasser Awlaki discutia com o filho. Anwar lhe dissera que não queria mais viver nos Estados Unidos. O assédio do FBI era excessivo, os muçulmanos estavam sendo perseguidos, presos, investigados. Mas o velho Awlaki não desistiria de ter um filho autenticamente americano que fizesse doutorado nos Estados Unidos. “Faça mais uma tentativa, Anwar”,12 disse Nasser ao filho em setembro de 2002. Nasser e a mulher se ofereceram para cuidar dos dois filhos mais velhos de Anwar, Abdulrahman e Maryam, enquanto Anwar e a mulher voltariam à Virgínia com o caçula, Abdullah, para tentar resgatar a vida deles nos Estados Unidos. “Era como se fosse um teste”, lembrou Nasser. “Se eles achassem que as coisas ficariam bem” nos Estados Unidos, Nasser levaria Abdulrahman e Maryam para os pais. Anwar acabou concordando. “Foi mesmo por insistência minha. Eu lhe disse: ‘Volte e veja como estão as coisas, e se tudo estiver bem continue seu doutorado na Universidade George Washington’”, disse Nasser. O FBI, ao que parece, estava a par dos planos de Anwar. Em 8 de outubro de 2002, Awlaki foi tema de um memorando13 confidencial de distribuição restrita emitido pela Inteligência de Comunições Eletrônicas (Electronic Communications, EC) do FBI. Seu conteúdo continua sendo confidencial. No dia seguinte, 9 de outubro de 2002, a Procuradoria dos Estados Unidos no Colorado entrou com um pedido de anulação14 da ordem de prisão contra Awlaki. O procurador que suspendeu a ordem de prisão disse que o governo reconhecia não haver indícios suficientes para sustentar uma acusação e que Awlaki não podia ser incriminado por “ter má reputação”.15 Dois dias depois de enviado o memorando da EC-FBI sobre Awlaki e um dia após ser apresentado o pedido de suspensão da ordem de prisão, Awlaki e a família chegaram ao aeroporto JFK,16 em Nova York, num voo procedente de Riade, Arábia Saudita, que pousou pouco depois das seis da manhã. Quando Awlaki passou pelo controle de passaportes, seu nome apareceu na lista do TECS II e do alerta de terrorismo. A justificativa que aparecia na tela era: “Passageiro antiterrorista”.17 Pesquisando em sua base de dados, os agentes descobriram a ordem de prisão que a Procuradoria no Colorado estava tentando suspender. Mas ela ainda estava vigente.18 Awlaki foi levado com a família por agentes do Serviço de Imigração e Naturalização (Immigration and Naturalization Service, INS) para uma área especial de controle, onde ficou detido por três horas.19 “O indivíduo foi acompanhado primeiramente pelo INS e depois pela Alfândega”,20 foi a mensagem registrada pelos agentes no boletim de ocorrência. Sua bagagem foi revistada,21 e os funcionários da Alfândega informaram seus superiores de que tinham Awlaki em custódia. Tentaram encontrar o agente especial do FBI indicado como elemento de contato nos avisos que apareceram nas telas quando inseriram o nome de Awlaki, Wade Ammerman. Mas de início eles não conseguiram encontrá-lo, porque o número do celular
dele estava inválido.22 Ammerman era um dos principais agentes da investigação sobre Awlaki. Uma alta autoridade da Alfândega, David Kane, disse aos agentes que pegaram Awlaki que ia procurar Ammerman.23 Por coincidência, Kane tinha trabalhado no caso Awlaki24 anos antes, quando Awlaki era imã em San Diego. Depois disso, Kane fora transferido para a Virgínia e voltou a investigar Awlaki como parte da operação Busca Verde, que visava as redes de financiamento do terror. Embora tivesse tentado ligar Awlaki a essas redes, disse que “não encontramos ligação25 entre o grupo e Awlaki”. Assim, Kane sabia exatamente quem era a pessoa que os funcionários da Alfândega do aeroporto JFK tinham em mãos em 10 de outubro de 2002. Mas quando finalmente conseguiu localizar o agente Ammerman, este disse que a ordem de prisão contra Awlaki tinha sido suspensa e que ele deveria ser solto. Kane disse que o FBI “não deu explicações”26 sobre a ordem. No boletim de ocorrência, os funcionários da Alfândega observaram que tinham “RECEBIDO UMA LIGAÇÃO DO S/A KANE AVISANDO QUE A ORDEM DE PRISÃO EMITIDA PELO DEPTO. ESTADO TINHA SIDO REVOGADA”,27 acrescentando que um representante do Gabinete Operacional do FBI em Washington tinha ligado para eles e dito que a ordem de prisão do Colorado “TINHA SIDO REVOGADA EM 9 DE OUTUBRO”. Curiosamente, a ordem de prisão só foi efetivamente revogada em 11 de outubro.28 Os documentos americanos que falam da detenção de Awlaki no JFK dizem que os Awlaki foram libertados pelos agentes às 9h20 da manhã, “com agradecimentos pela sua paciência”,29 e receberam um formulário no qual avaliariam sua experiência com as autoridades. Um funcionário da Saudi Arabian Airlines acompanhou os Awlaki até sua conexão para Washington, DC. “Os funcionários da Alfândega ficaram muito constrangidos com a situação e não sabiam o que dizer”, lembrou Awlaki mais tarde. “Ouvi um pedido de desculpas de um deles,30 com uma cara estranha. Eu mesmo estava chocado e perguntei: é isso mesmo? Ele disse sim, senhor, é isso mesmo. Vocês estão livres para embarcar.” No dia seguinte, a ordem de prisão foi oficialmente revogada, embora um dia antes o FBI soubesse claramente que isso ia acontecer. Livre para viajar dentro dos Estados Unidos, Awlaki voltou à Virgínia. Retomou contato com antigos colegas e começou a avaliar qual seria o futuro que podia ambicionar para sua família nos Estados Unidos, se é que havia algum. Foi então que aconteceu um curioso encontro. Em outubro de 2002, Awlaki fez uma visita a outro líder islâmico carismático,31 um iraquianoamericano de nome Ali al-Timimi, que era o principal pregador32 de Dar al-Arqam, um centro islâmico de Falls Church, Virgínia. Mas Timimi não era apenas religioso; era também um jovem cientista brilhante que frequentava a prestigiada Georgetown Day School em Washington e se formara em biologia. Na ocasião da visita de Awlaki, ele estava fazendo doutorado e trabalhava em pesquisa genética sobre câncer.33 Timimi foi identificado pelo FBI por possível envolvimento no “complô do antraz”34 descoberto depois do Onze de Setembro, e o Bureau acreditava também que ele devia estar envolvido com uma rede que pretendia treinar jihadistas do Ocidente em solo americano. Nunca se fez uma acusação formal a Timimi no caso do antraz.
O encontro de Timimi com Awlaki contribuiria para dar forma a uma teoria alternativa sobre a relação de Awlaki com o FBI, segundo a qual ele não seria apenas alvo ou pessoa de interesse para a investigação. Teria o FBI levado Anwar Awlaki a virar a casaca e feito dele um informante? A sucessão de indícios que apoiam essa teoria é sugestiva. O agente especial Ammerman, que facilitou a libertação de Awlaki no aeroporto JFK, não só tinha trabalhado no seu caso como também fora um dos principais investigadores35 de Timimi depois do Onze de Setembro. “Acho que ninguém ia querer que eu falasse36 sobre as coisas em que estava envolvido”, disse Ammerman a Catherine Herridge, jornalista da Fox News que investigou o caso e tinha contato frequente com agentes da lei americanos. Herridge supunha que o FBI “estava tentando cultivar37 Awlaki como um quadro de inteligência humana”, como o próprio Awlaki tinha afirmado anos antes. Mas teriam tido sucesso? Quando Awlaki chegou à casa de Timimi, começou a falar sobre recrutamento de jihadistas ocidentais. “Nunca na vida Ali tinha conversado com o cara38 ou se encontrado com ele”, contou-me o advogado de Timimi, Edward MacMahon. “Awlaki simplesmente apareceu na casa dele e perguntou se podia ajudá-lo a encontrar jovens que quisessem aderir à jihad.” MacMahon disse que Timimi desconfiou do surgimento “totalmente inesperado” de Awlaki. Na época, a comunidade muçulmana estava sob intensa vigilância do governo — grupos islâmicos tinham sido devassados, muçulmanos vinham sendo detidos com frequência para interrogatório e se suspeitava da existência de espiões e informantes infiltrados em organizações muçulmanas. “É preciso voltar no tempo para entender”, disse MacMahon.
A comunidade sabia que estavam fazendo todo tipo de investigação e Ali era um muçulmano de muito destaque. O que quero dizer é: por que o cara [Awlaki] estava ali? Por que estava pedindo a uma pessoa que nunca tinha visto na vida que o ajudasse a encontrar jovens para a jihad? Isso cheirava a cilada. Ali expulsou-o de sua casa.
Os amigos de Timimi disseram suspeitar que Awlaki podia estar trabalhando com o FBI e tentando enganá-lo.39 Em 2003, a casa de Timimi foi invadida por agentes federais. Ele acabou condenado40 por incitar onze muçulmanos jovens, quase todos americanos, a aderir ao Talibã para combater os Estados Unidos no Afeganistão. Os acusadores disseram que seus sermões contribuíram para inspirar a “Jihad Paintball do Norte da Virgínia”, que treinara com armas de paintball para unir-se à luta no Afeganistão. Durante os procedimentos legais, Timimi disse que acreditava ter visto um fio elétrico41 entre as roupas de Awlaki quando este chegou a sua casa, em 2002, e que o FBI tinha a gravação do encontro. Quando os advogados de Timimi pediram que as supostas fitas fossem dadas a conhecer, a promotoria respondeu que “Al-Timimi quer que o Tribunal determine que o governo exiba as fitas que ele afirma terem sido feitas por Awlaki
quando o visitou. Não temos autoridade para tal solicitação”.42 MacMahon disse que a resposta do governo dava a entender que “trata-se de uma questão de segurança nacional43 e confidencial”. Mas não foi apenas a aparentemente “despropositada” visita de Awlaki a Timimi que MacMahon achou suspeita. “Pensamos que [Awlaki] estava levando um fio, e queríamos saber como ele chegou” à casa de Timimi. Mais tarde, MacMahon soube que ele tinha sido levado por Nabil Gharbieh, supostamente membro da conspiração que mais tarde colaborou com a promotoria. “Como foi que Anwar Awlaki foi parar na casa de Ali?”, perguntou MacMahon, antes de mencionar sua própria teoria: “Porque [o agente especial] Ammerman fez com que Gharbieh o levasse até lá”. Ammerman encontrou-se com Awlaki quando este voltou à área de Washington, DC, em outubro de 2002 e foi ele na verdade o agente que fez com que Awlaki fosse liberado44 do aeroporto JFK para poder seguir até a capital. Se os dois homens falaram sobre Timimi, não sabemos. Mas há outras vagas pistas de uma ligação. Segundo o Washington Post
No fim de 2002, o Gabinete Operacional do FBI em Washington recebeu duas pistas semelhantes de muçulmanos do local: Timimi estava liderando “um grupo islâmico conhecido como Dar al-Arqam” que tinha “realizado treinamento de tipo militar”, escreveria mais tarde em seu depoimento o agente especial do FBI John Wyman. Ele e outro agente, Wade Ammerman, interessaram-se vivamente pelas pistas.45
Anos depois, essa série de acontecimentos levaria o parlamentar republicano Frank Wolf, da Virgínia, a exigir respostas do FBI. Numa carta dirigida ao diretor Robert Mueller, Wolf perguntou: “Existe alguma ligação46 entre o comunicado eletrônico do FBI sobre Awlaki, a moção de revogação de sua ordem de prisão e o repentino retorno de Awlaki aos Estados Unidos?”. Wolf notou também que “depois de sua detenção no [aeroporto] Kennedy, na manhã de 10 de outubro de 2002, um agente do FBI — o agente especial Wade Ammerman do Gabinete Operacional em Washington — ordenou que Awlaki fosse posto em liberdade pelos agentes da Alfândega depois de ser detido com base numa ordem de prisão vigente”, acrescentando:
Isso é especialmente questionável dada a coincidência desses acontecimentos. A moção da Procuradoria do Colorado que revogava a ordem de prisão só foi aprovada em 11 de outubro, um dia depois que o FBI ordenou a liberação de Awlaki. Por que o FBI ordenou a liberação de Awlaki se a ordem de prisão ainda estava vigente?
O pedido de acesso a um memorando de 8 de outubro da Inteligência do FBI e outros documentos sobre Awlaki, apresentado por jornalistas, foi negado. O Bureau enviou “27 páginas de vazio”,47 citando “segurança nacional e resoluções do executivo”, segundo Herridge, a
jornalista da Fox. É claro que há outras teorias sobre a visita de Awlaki aos Estados Unidos e seu encontro com Timimi — principalmente a que diz que Awlaki estava realmente tentando recrutar jovens ocidentais para a jihad. Também é possível que o FBI tenha intervindo para libertar Awlaki depois da detenção no aeroporto por querer seguir seus passos nos Estados Unidos e investigar seus movimentos e contatos. Não é raro que os agentes da lei permitam que suspeitos ou pessoas de seu interesse fiquem à solta, pensando que estão livres, para poder monitorá-los. Quanto a Timimi, acabou sentenciado a prisão perpétua. Entre as testemunhas da acusação48 estava Gharbieh, o homem que levou Awlaki ao encontro dele. Os advogados de Timimi alegaram que ele foi condenado com base em provas forjadas num julgamento nascido do pânico sobre a iminência de novo ataque no pós-Onze de Setembro. MacMahon sustentou que Timimi foi acusado com base em medos — não em provas. “Eles não iam correr nenhum tipo de risco”, disse ele. “Mas normalmente não usamos nosso sistema de justiça como uma espécie de curral, como os britânicos fizeram com os irlandeses na Irlanda do Norte.” MacMahon alegou que o FBI escondeu deliberadamente o papel de Awlaki no caso Timimi e acreditava que se esse papel tivesse sido reconhecido, Timimi poderia ter usado o fato como prova em sua luta pela liberdade. “Se eles tivessem revelado que Ammerman facilitou a viagem, eu teria entrado em detalhes no assunto, mas eles sonegaram essa informação”, disse.
O FBI simplesmente não vai admitir o que fez. Teria sido uma prova essencial no julgamento de Ali. O coitado pegou prisão perpétua. Como você sabe, a acusação contra ele foi de recrutar jovens para a jihad. Portanto, o fato de um agente do governo — alguém que trabalhava para o governo — ter vindo até ele para pedir que fizesse exatamente isso, e ter sido posto para fora, refutaria totalmente as acusações.
Anos mais tarde, o representante Wolf pressionou o governo americano sobre o assunto. “Como foi que Awlaki foi parar49 na casa de Ali al-Timimi com uma testemunha da acusação pouco depois de ter sido autorizado a voltar aos Estados Unidos? Será que o FBI sabia desse encontro antes” do retorno de Awlaki? Provavelmente nunca se saberá se Awlaki colaborou com o FBI na tentativa de obter uma acusação contra Timimi. Ele falou em numerosas ocasiões das tentativas do FBI de fazer dele um colaborador. Teria tido êxito? “Wade Ammerman testemunhou no caso [de Timimi]. Para mim, há provas incontestáveis de que Wade Ammerman tentou cooptar Anwar Awlaki. Ou talvez até pensasse que tinha conseguido”, disse MacMahon.
O que quero dizer é que Awlaki era uma das únicas pessoas nos Estados Unidos que teve contato com os sequestradores em diversos estados. Não é todos os dias que o FBI coopta um
alvo. Como é possível que não tenham prendido esse cara [Awlaki] quando o tinham em seu escritório? Estão caçando gente que joga paintball quando eles têm esse cara no escritório deles.
Anwar “nunca me contou que tinha tido esse problema em Nova York”, lembrou Nasser. E sobre as relações de Anwar com o FBI e as possíveis tentativas de cooptá-lo? “Ele nunca me falou disso”, acrescentou Nasser. O FBI negou-se a esclarecer o que aconteceu exatamente com Awlaki no fim de 2002 e por quê. Isso deixa muitas perguntas sem resposta, inclusive algumas que poderiam ter bastante importância para acontecimentos futuros. Será que os federais enredaram Awlaki com ameaças de indiciamento por solicitar prostitutas ou por suas relações com os sequestradores? Será que ele foi chantageado para cooperar? Será que Awlaki estaria colaborando com o FBI em troca de ser deixado em paz pelo governo? Se foi isso, ele teria entendido que o governo nunca o deixaria em paz e que lhe exigiriam que trabalhasse como informante para sempre? “Na minha opinião, e é apenas uma opinião, havia um plano para tentar o recrutamento”,50 disse-me um ex-alto funcionário de contraterrorismo do FBI.
Se Awlaki foi pressionado e fingiu aceitar, isso explicaria a revogação da ordem de prisão depois que ele foi solto. Eu acredito que ele fingiu cooperar durante algum tempo e depois simplesmente caiu fora. Isso explicaria também a relutância do FBI em revelar detalhes sobre o caso vigente que eles tinham em San Diego. Era constrangedor demais.
Se essa fosse a verdade, não seria interessante para nenhuma das partes reconhecê-la. Seja como for, disse Nasser, Anwar “decidiu que não era mesmo bom para ele ficar de novo nos Estados Unidos”. No fim de dezembro, Awlaki deixou os Estados Unidos, dessa vez para sempre. Um ano depois, quando lhe perguntaram por que ele tinha sido autorizado a ir embora, um funcionário do FBI respondeu: “Não sabemos como foi que ele saiu”.51
6. “Estamos num novo tipo de guerra”
DJIBUTI, WASHINGTON, DC, E IÊMEN, 2002 — Em meados de 2002, quadros operacionais da Inteligência dos Estados Unidos descobriram que o homem que eles haviam apontado como um dos cérebros da explosão do Cole em 2000, Abu Ali al-Harithi, estava no Iêmen. Funcionários americanos deram-lhe o apelido de “Padrinho do Terror do Iêmen”.1 Durante meses, equipes do JSOC e drones tinham estado à caça dele sem resultado, e o embaixador americano Edmund Hull se reunira com chefes tribais em Marib,2 dando-lhes dinheiro em troca de informações sobre o paradeiro e os movimentos de Harithi, que usava diversos telefones celulares3 e trocava seus chips com frequência para não ser localizado. Num domingo, 3 de novembro, a equipe de Inteligência, por interceptação de sinais das Operações Especiais do Iêmen, localizou Harithi numa propriedade em Marib depois que ele usou um telefone celular cujo número a Inteligência americana rastreara meses antes. “O pessoal das Operações Especiais tinha a propriedade sob vigilância”,4 lembrou o general Michael DeLong, na época vice-comandante do Centcom dos Estados Unidos. Eles estavam se preparando para invadir a propriedade quando Ali e seis de seus aliados saíram. Entraram em SUVs e fugiram.” Como parte da operação, a CIA tinha lançado um drone MQ-1 Predator5 de seu posto avançado no Djibuti para o espaço aéreo do Iêmen. Mas esse não era apenas um drone de espionagem: estava equipado com dois mísseis Hellfire antitanque. Estava sob controle operacional de uma divisão altamente secreta da CIA, a Divisão de Atividades Especiais. Enviava imagens ao vivo6 para o Centro de Contraterrorismo em Langley, Virgínia, assim como para o centro de comando no Djibuti. “Agora estávamos numa caçada equipados com um Predator de alta velocidade”,7 afirmou DeLong. As imagens enviadas pelo drone mostravam Harithi e seu grupo numa empoeirada Land Cruiser, num comboio8 que avançava pela madrugada a 160 quilômetros de Sana’a. Estavam passando por Marib, localidade que o embaixador americano deveria visitar no dia seguinte. Enquanto o comboio circulava pelo deserto iemenita, o motorista de Harithi gritava num telefone por satélite, falando com um homem com quem os quadros operacionais da Al-Qaeda deveriam se encontrar. “Estamos bem aqui”,9 ele gritou. Os analistas da Inteligência ouviram a voz de Harithi no fundo, dando instruções ao motorista, e perceberam que o drone tinha o jipe sob pleno controle. “Nossa Inteligência diz que é ele”, disse DeLong ao diretor da CIA, George
Tenet, enquanto ambos monitoravam as imagens ao vivo, cada um de sua base. “Um deles é americano — o cara gordo. Mas é da Al-Qaeda.” Tenet ligou para Saleh e informou que ia dar o sinal verde para o ataque. Saleh concordou, porém insistiu que a missão deveria ser mantida em segredo. Tenet anuiu. “Nós também não queremos publicidade”,10 lembrou-se DeLong. “Se surgirem perguntas, a versão iemenita oficial será de que uma SUV ocupada por civis chocou-se acidentalmente com uma mina terrestre no deserto e explodiu. Não haveria menção a terroristas nem a disparo de mísseis.” Uma vez resolvidas as formalidades, Tenet deu luz verde para a ação. Um míssil Hellfire de 150 centímetros foi lançado contra o jipe, que explodiu. Um dos passageiros sobreviveu ao golpe e conseguiu se arrastar por cerca de vinte metros11 antes de cair morto. Enquanto os restos do jipe queimavam no deserto, um quadro da CIA foi até o local para examinar o resultado do ataque e colher amostras de DNA12 dos mortos. Dias depois, revelou-se que entre os eles estava Ahmed Hijazi, também conhecido como Kamal Derwish, cidadão americano13 nascido em Buffalo, Nova York. Depois do ataque, funcionários do governo americano ligaram publicamente Hijazi ao que eles chamavam de célula do terror de Buffalo, conhecida como “Sexteto de Lackawanna”. Hijazi tinha sido citado como participante sem antecedentes14 do grupo conspiratório de seis iemenitas-americanos que fornecia material de apoio à Al-Qaeda. Organizações de direitos civis afirmaram que esses homens tinham sido incentivados e depois apanhados pelo FBI. Tinham sido presos dois meses antes do assassinato de Hijazi. Os investigadores do FBI disseram que ele era “membro de carteirinha da Al-Qaeda”15 e estava ajudando a pôr em marcha uma célula clandestina em Buffalo. Um dia depois do ataque do drone, o presidente Bush estava no Arkansas em campanha pelos candidatos republicanos às eleições parlamentares. Sem mencionar explicitamente o ataque, Bush mandou uma mensagem sobre sua estratégia para os quadros da Al-Qaeda no mundo todo. “A única maneira de tratá-los é como o que eles são: assassinos internacionais”,16 declarou Bush. “E a única maneira de encontrá-los é ter paciência, persistência e ir atrás deles. Os Estados Unidos da América estão fazendo exatamente isso.” No Pentágono, o secretário de Defesa Donald Rumsfeld se esquivava das perguntas sobre o papel dos Estados Unidos no ataque, dizendo apenas que se Harithi tinha sido morto, “seria uma coisa muito boa tê-lo fora de ação”.17 Quando pressionado sobre a proporção das operações americanas no Iêmen, Rumsfeld disse apenas: “Temos algum pessoal naquele país. Além do que já disse, não vou entrar no assunto dos nossos acordos com o governo do Iêmen”. Enquanto o governo Bush caracterizava o ataque que matara Hijazi e Harithi como uma operação bem-sucedida contra perigosos Alvos de Grande Valor, funcionários anônimos revelavam por diversos canais da imprensa que a operação tinha sido americana, mas que eles relutavam em discutir o assunto em virtude do dano que poderiam causar ao governo de Saleh. “A maior parte dos governos não simpatiza com a ideia de ter esquadrões de choque americanos ou Predators não tripulados perambulando por seu país, praticando justiça sumária”, relatou a
revista Newsweek, acrescentando que Saleh tinha dado aos Estados Unidos “consentimento para ir atrás da Al-Qaeda com seus próprios recursos tecnológicos”.18 Mas então, em 5 de novembro, Paul Wolfowitz, vice-secretário de Defesa, confirmou abertamente que se tratava de um ataque americano, irritando tanto Saleh quanto a CIA. “Foi uma operação tática de sucesso,19 e a cada vez que temos um êxito como esse, esperamos não apenas nos livrar de gente perigosa, mas também impor mudanças em suas táticas, em suas operações e em seus procedimentos”, declarou Wolfowitz na CNN.
E às vezes, quando as pessoas mudam, elas se expõem de novas maneiras. Portanto, temos apenas de manter a pressão em toda parte possível, frustrar os santuários em todo lugar que pudermos e pressionar cada governo que estiver dando apoio a essa gente para que fiquem fora disso.
Foi dito que Saleh ficara “extremamente irritado”20 com a revelação. “Isso vai causar grandes problemas para mim”,21 reclamou com o general Tommy Franks, comandante do Centcom. “É por isso que é tão difícil22 fazer acordos com os Estados Unidos”, disse o general iemenita Yahya M. al Mutawakel. “Eles não levam em conta as circunstâncias internas do Iêmen.” Para a comunidade de Inteligência e de Operações Especiais dos Estados Unidos, que junto com o governo de Saleh tinha inventado uma história para culpar um caminhão-bomba23 ou uma mina terrestre, a situação foi de causar fúria. Mas nem todos ficaram descontentes. Quando perguntaram ao senador Robert Graham, presidente da Comissão de Inteligência do Senado, se o ataque do drone tinha sido “o precursor de outros que estavam por vir”, ele respondeu sem meias palavras: “Espero que sim”.24 O assassinato dirigido de um cidadão americano fora do campo de batalha do Afeganistão suscitou a indignação de grupos defensores das liberdades civis e dos direitos humanos. Foi o primeiro assassinato dirigido praticado pelos Estados Unidos fora do campo de batalha e publicamente admitido desde a proibição de assassinatos políticos determinada por Gerald Ford em 1976. “Se houve um assassinato deliberado25 de suspeitos em vez da prisão, em circunstâncias em que eles não representavam ameaça imediata, o assassinato terá sido uma execução extrajudicial que viola a legislação internacional de direitos humanos”, declarou a Anistia Internacional numa carta ao presidente Bush. “Os Estados Unidos deveriam emitir uma declaração clara e inequívoca de que não aprovam execuções extrajudiciais em nenhum caso, e que qualquer funcionário envolvido nessas ações será levado à justiça.” Longe de emitir uma declaração desse tipo, o governo Bush não só assumiu a operação como opôs firme resistência a seus críticos, afirmando seu direito legal de matar pessoas que entendesse como terroristas em qualquer país, mesmo que se tratasse de cidadãos americanos. “Posso garantir que não temos aqui nenhuma dúvida constitucional”,26 disse a conselheira de
Segurança Nacional Condoleezza Rice na Fox, uma semana depois do ataque.
O presidente concedeu ampla autoridade a funcionários dos Estados Unidos em variadas circunstâncias para fazer o que fosse preciso para proteger o país. Estamos num novo tipo de guerra, e já deixamos muito clara a importância de travar esse novo tipo de guerra em campos de batalha diversos.
E acrescentou: “Isso é jurisdição ampliada”. O assassinato dirigido não chamou a atenção apenas de grupos de direitos humanos. “À medida que se faz isso mais e mais, começa a parecer uma política”, disse o ex-conselheiro jurídico da CIA, Jeffrey Smith. Se usados com regularidade, esses ataques levarão a crer “que assassinar pessoas é um comportamento aceitável […]. O assassinato como norma de conduta internacional27 expõe os líderes americanos e os americanos no estrangeiro”. Além de lançar o novo tipo de guerra no Iêmen e nas regiões circundantes, o ataque do drone que matou Hijazi serviria de precedente para o sucessor de Bush, Barack Obama, que cerca de uma década depois afirmaria o direito dos Estados Unidos de matar outro cidadão americano no Iêmen. No quadro geral, o ataque do Predator em 2002 foi um momento seminal na guerra contra o terror. Foi a primeira vez que se usou uma versão armada do drone Predator para atacar a AlQaeda fora do Afeganistão.28 “Isso quer dizer que as regras de combate mudaram”,29 disse ao Los Angeles Times um ex-funcionário da CIA familiarizado com operações especiais. O ataque foi o primeiro disparo na nova guerra sem fronteiras do governo dos Estados Unidos. “A melhor maneira30 de manter os Estados Unidos livres do terrorismo é ir atrás dos terroristas onde eles se escondem e fazem planos”, disse o presidente Bush em seu comunicado semanal pelo rádio, depois do ataque do drone. “E esse trabalho continua no mundo todo.” Bush reafirmou que tinha “enviado tropas” ao Iêmen, mas destacou que elas estavam apenas dando treinamento. Como dissera Bush, estavam em andamento os planos que levariam à prática a nova doutrina segundo a qual “o mundo é um campo de batalha.” No fim de 2002, as Forças Armadas e a Inteligência dos Estados Unidos corriam contra o relógio no aperfeiçoamento e na ampliação de Camp Lemonnier,31 nos arredores do aeroporto do Djibuti, preparando-o para o papel de base clandestina de operações do JSOC e outras equipes de Operações Especiais. De lá poderiam atacar à vontade alvos no Iêmen e na Somália classificados como terroristas pelos amplos parâmetros usados pelo presidente Bush para definir o que seria um combatente na guerra do terror. Em 12 de dezembro, Donald Rumsfeld fez uma visita surpresa à base, que ainda estava em construção. “Precisamos estar onde a ação está”,32 disse Rumsfeld a centenas de soldados em uniforme de campanha. “Ninguém duvida que esta parte do mundo é uma área em que há ação.” E continuou: “Há numerosos terroristas, por exemplo, atravessando o mar, no Iêmen.
Esses são problemas sérios”. Naquele dia, alguém perguntou a um porta-voz do Exército americano em Camp Lemonnier se a nova base já tinha efetuado alguma missão. “Nenhuma tão convencional a ponto de podermos falar dela”,33 ele respondeu. Em 13 de dezembro, a base adquiriu oficialmente plena operacionalidade.34 A operação americana no Djibuti recebeu o reforço de mais de quatrocentos soldados e marinheiros35 a bordo do USS Mount Whitney, um navio de comando e controle que navegava pelo Chifre da África e pelo golfo de Áden. Sua missão oficial: detectar, desorganizar e derrotar grupos terroristas, impedindo-os de expor à ameaça iminente os parceiros da coalizão na região. “Estamos chegando, estamos à caça, somos implacáveis”,36 declarou o comandante do Whitney, John Sattler. Seu navio ajudaria a coordenar uma ofensiva clandestina que englobava Somália, Iêmen, Quênia, Etiópia, Eritreia, Djibuti e Sudão. Como disse Sattler, em dezembro de 2002, seu navio estava decorado com papais-noéis de papel e outros motivos natalinos,37 além de um retrato de Osama bin Laden perfurado por tiros. Ele definia sua missão como uma caça de líderes terroristas que fugiam do Afeganistão e procuravam o Iêmen, a Somália e outros países da região. “Se eles vacilarem,38 nós os levaremos à justiça. Mesmo que não vacilem, se dormirem um pouco mais cedo à noite ou até um pouco mais tarde de manhã, estaremos lá.” Sattler negou-se a confirmar se suas forças estavam envolvidas no ataque do drone em novembro de 2002, mas disse: “Se eu fosse um terrorista, e achasse que enquanto rodava alegremente pela estrada com meus camaradas terroristas, de repente — sem aviso — pudesse deixar de existir, eu estaria olhando para a esquerda, para a direita e agora para cima, porque estaremos ali”. Em 22 de dezembro, Sattler reuniu-se com o presidente Saleh39 e outros altos funcionários do governo iemenita em Sana’a. Na época, a embaixada americana não comentou nada sobre a reunião. O governo iemenita disse apenas que tinha sido discutida uma “coordenação”40 na “guerra contra o terrorismo”. O New York Times caracterizou bem a opinião de um alto funcionário do governo Bush sobre o Iêmen: “Enquanto o sr. Saleh permitir que a CIA use drones Predator não tripulados sobre território iemenita e coopere com as Forças de Operações Especiais e com a CIA na caça aos membros da Al-Qaeda”,41 o governo continuará apoiando o presidente do Iêmen. O ataque mortífero do drone americano no Iêmen e a construção da base no Djibuti pressagiaram uma era de “ação direta” pelas forças contraterroristas dos Estados Unidos na região. “Desnecessário dizer que há um ano não estávamos aqui”,42 disse Rumsfeld em Camp Lemonnier. “Desconfio que se olharmos para trás, para um, dois, três ou quatro anos atrás, vamos achar que essas instalações deviam estar aqui.” Além de fortalecer a operação militar convencional dos Estados Unidos no Iêmen e no Chifre da África, as Forças de Operações Especiais americanas, incluindo membros do JSOC, na época com bases discretas no Qatar e no Quênia, foram postas em alerta para fazer novas incursões clandestinas no Iêmen e na vizinha Somália, do outro lado do golfo de Áden. Embora a CIA assumisse a liderança de muitas das operações futuras dos Estados Unidos na região, aquele foi um momento-chave na ascensão das
Forças de Operações Especiais americanas, principalmente o JSOC, a uma posição de influência sem precedentes dentro do aparato de segurança nacional dos Estados Unidos.
7. Planos especiais
WASHINGTON, DC, 2002 — Em 2002, a disputa entre a CIA e o Pentágono pela supremacia na luta global dos Estados Unidos contra o terrorismo começou a se assemelhar a uma pequena guerra. Em 17 de abril, o Washington Post publicou uma matéria de primeira página dizendo que as Forças Armadas dos Estados Unidos tinham deixado Osama bin Laden escapar depois de ter sido ferido em Tora Bora, no Afeganistão, em dezembro de 2001, dizendo no parágrafo de abertura que tinha sido “o mais grave erro1 na guerra contra a Al-Qaeda”. Rumsfeld ficou furioso e achou que Cofer Black, na época chefe do contraterrorismo da CIA, tinha sido a fonte “profunda”2 para a matéria. Um mês depois, Black foi “designado para outro cargo”3 num escritório periférico da CIA em Tysons Corner, Virgínia. Houve quem dissesse que a transferência tinha sido obra de Rumsfeld.4 Seja como for, o Diretório Operacional da CIA e seu Centro de Contraterrorismo seguiram em frente com a campanha global de operações clandestinas de Cheney. Black foi readmitido5 no CTC por Jose Rodriguez, que, como seu predecessor, era um promotor entusiasta6 das “técnicas de interrogatório aperfeiçoadas” e das “prisões clandestinas” da CIA. Mas a divisão analítica da Agência era outra coisa. Os especialistas em assuntos iraquianos da CIA e o Departamento de Estado estavam causando problemas para a orientação do governo quanto à guerra contra o Iraque. Cheney e seu principal assessor, Scooter Libby, começaram a visitar a Agência7 para pressionar seus analistas a apresentar informações que ligassem o Iraque ao Onze de Setembro ou a um ativo programa de WMDs. Na época, a facção favorável à guerra contra o Iraque estava sendo apoiada8 pelos analistas do Departamento de Estado e da CIA. A IC, por ordem expressa do presidente Bush e sob intensa pressão do gabinete do vice-presidente, vinha revendo todas as informações do início da década de 1990 em busca de uma ligação entre Saddam e a Al-Qaeda, entre o Iraque e o Onze de Setembro. Estava se formando na IC um consenso sobre a inexistência de “informação confiável”9 a respeito do envolvimento do Iraque no Onze de Setembro “ou em qualquer outro golpe da Al-Qaeda”, pois mais do que uma parceria de cooperação, segundo um relatório apresentado pela CIA ao Congresso, a relação do Iraque com a Al-Qaeda “se parece com a que existe entre dois atores independentes que tentam se explorar mutuamente”. Insatisfeitos com essa resposta, Rumsfeld e Cheney começaram a instituir seu próprio aparelho de Inteligência, à medida que planejavam a expansão da capacidade de ação direta do JSOC no
mundo. Semanas depois do Onze de Setembro, a sala de Douglas Feith no Pentágono tornou-se sede de uma “operação de Inteligência paralela ad hoc” secreta que serviria a dois objetivos: colher “informações” que apoiassem a opção pela guerra “preventiva” contra o Iraque e fornecer a Rumsfeld, Wolfowitz e Feith “dados que possam ser usados para desacreditar, pôr em dúvida e contradizer as análises da CIA”.10 Quando a operação de Inteligência paralela foi descoberta, Rumsfeld tentou minimizar sua importância. “É negócio dele [Feith].11 Essa gente trabalha para ele”, disse Rumsfeld. “Estavam procurando redes terroristas, relações da Al-Qaeda com Estados terroristas, esse tipo de coisa.” Wolfowitz disse ao New York Times que o grupo de Inteligência paralela estava “ajudando a filtrar12 uma enorme quantidade de dados incrivelmente valiosos reunidos por nossos diversos serviços de Inteligência”, e falou de um “fenômeno que ocorre no trabalho de Inteligência, o fato de pessoas determinadas a demonstrar certa hipótese verem fatos que outras não veem, e não verem outros fatos que estas veem”. Acrescentou que “a lente através da qual se examinam os fatos afeta aquilo que se procura”, mas garantiu que o grupo “não estava fazendo avaliações de Inteligência independentes”. Em meados de 2002, o “negócio” de Feith tinha se transformado no Gabinete de Planos Especiais, cujo plano principal consistia em criar uma justificativa para a invasão do Iraque,13 como se tornaria claro mais tarde, depois que as propaladas WMDs não se materializaram e a imprensa convencional, um tanto quanto constrangida, começou a reexaminar as circunstâncias que poderiam levar à guerra. Wilkerson acusou Cheney, Rumsfeld e seus assessores de terem insistido em conhecer e analisar informações de campo em estado bruto, sem prévia interpretação, acreditando que “eles poderiam fazer mais do que a Agência fez”,14 acrescentando que sua “leitura” dos dados brutos “sempre conduziria a um cenário mais ameaçador do que o vislumbrado pela Agência”, já que, na opinião deles, ela “simplesmente não poderia fazer nada que não fosse tergiversar”. Wilkerson via essa posição com receio. “Qualquer profissional respeitável da Inteligência diria que não se entregam informações em estado bruto a leigos porque eles não sabem interpretá-las”, disse-me ele.
Foi assim que Cheney, Feith e aquela gente montaram uma colcha de retalhos — é o que aquilo era — de violações das sanções impostas ao Iraque, de desenvolvimento de um programa de WMDs e assim por diante. Eles simplesmente pegaram aquilo que demonstrava suas opiniões preconcebidas e juntaram tudo.
Só em 2002 Cheney realizou cerca de dez visitas pessoais à CIA. Seu principal assessor, Libby, fez diversas viagens,15 assim como o ex-porta-voz da Câmara, Newt Gingrich,16 na época “consultor” do Pentágono. William Luti,17 adjunto de Feith para o Oriente Próximo e o Sul da Ásia, também frequentou a Agência. Alguns analistas disseram que se sentiam pressionados a
ajustar suas avaliações à agenda política de Cheney e companhia, e que Libby inundara a CIA com pedidos de centenas de documentos que, segundo os analistas, levariam um ano para ser produzidos.18 Cheney chegava a Langley, solicitava uma sala de conferências19 no sétimo andar da sede da CIA e convocava vários analistas e altos funcionários da Agência. A equipe de Cheney, principalmente, estava “determinada20 a ligar Saddam e seu regime à Al-Qaeda”, lembrou Jose Rodriguez, que na época dirigia o programa de interrogatório de Alvos de Grande Valor e as prisões clandestinas. As “conexões entre o Iraque e a AQ eram indiscutivelmente frágeis”, reconheceu. “Eu poderia lhe dar uma lista de meia dúzia de países que tinham laços mais substanciais com a organização de Bin Laden do que o Iraque.” Não seria inusitado, para um vice-presidente dos Estados Unidos, fazer uma visita à CIA, mas segundo Ray McGovern, ex-analista da Agência — que foi relator de Segurança Nacional do vice-presidente Bush pai na década de 1980 —, as “numerosas visitas” de Cheney foram “sem precedentes”.21 Ele acrescentou que Cheney estava fazendo “pressão incessante” sobre os analistas para que produzissem as informações que ele queria. “É como convidar os vendilhões ao templo. É um santuário”, afirmou McGovern. “Não temos legisladores sentados à mesa, ajudando-nos a tirar as conclusões corretas, e essa é a única explicação para as numerosas visitas de Dick Cheney àquele lugar.” Um relatório investigativo preparado pelo senator Carl Levin, da Comissão de Serviços Armados do Senado, concluiu que o gabinete de Feith “criou e disseminou uma avaliação ‘alternativa’22 das relações do Iraque com a Al-Qaeda que foi além dos juízos emitidos pelos profissionais da IC e deu como resultado a apresentação de informações suspeitas sobre as relações entre o Iraque e a Al-Qaeda aos legisladores, por meios diretos e indiretos”. Feith editava23 especialmente seus relatórios dependendo da pessoa que os receberia. O gabinete de Cheney teve acesso a todos esses relatórios, mas o que Feith apresentou a Tenet, diretor da CIA, omitiu slides de PowerPoint de importância crucial para a Agência. As apresentações para a equipe de Cheney, segundo o relatório de Levin, “passavam a ideia24 de que os Estados Unidos tinham fortes indícios de uma ligação entre o regime de Hussein e a Al-Qaeda que não existiam”. Tenet não sabia que o gabinete de Feith estava assessorando o presidente e o vice sem seu conhecimento, e só descobriu isso um ano depois que o Iraque tinha sido invadido. “Os principais especialistas em Inteligência e o principal funcionário da Inteligência do presidente foram privados da oportunidade25 […] de corrigir imprecisões” nos relatórios de Feith, afirma o relatório de Levin. Mais importante ainda, a CIA foi “privada da oportunidade de informar a Casa Branca de aspectos relevantes sobre a confiabilidade de alguns dos relatórios nos quais se baseou o documento do subsecretário da Casa Branca, Feith”. Em agosto de 2002, a equipe de Feith apareceu numa reunião da IC em que estava sendo fechada a versão final do relatório sobre o Iraque. Analistas profissionais da Inteligência que estavam na reunião disseram que aquilo era “pouco usual”26 porque “membros de uma organização consumidora de informações”, como era o caso do pessoal de Feith, “normalmente
não participam da criação de produtos da Inteligência”. Durante a reunião, a equipe de Feith reclamou que o relatório não era direto e continha excessivas restrições. Pressionou ainda os analistas a incluir informações desacreditadas27 sobre um encontro realizado em Praga entre um dos sequestradores do Onze de Setembro, Mohammed Atta, e um funcionário da Inteligência iraquiana antes dos ataques. A equipe de Feith redigiu um memorando dirigido a Rumsfeld e Wolfowitz depois da reunião. Alegaram que a “CIA tentava desacreditar,28 descartar ou minimizar” a informação que Feith queria que fosse incluída no relatório final, o que resultara “em conclusões incoerentes em muitos casos”. E concluíram: “Portanto, o relatório da CIA deve ser lido com reservas — e a interpretação da CIA deve ser ignorada”. No fim, debaixo de grande pressão da equipe de Cheney e do gabinete de Feith, o relatório final da IC dos Estados Unidos sobre o Iraque incluiu “informações questionáveis”,29 segundo a investigação feita pelo Senado, que se adequavam à decisão de invadir o Iraque já tomada antes pelo governo. Mais tarde, Feith apresentou à Comissão Especial de Inteligência do Senado um relatório sigiloso. O Weekly Standard conseguiu o memorando e usou-o como prova de uma sólida ligação entre a Al-Qaeda e o regime iraquiano. O documento de Feith, diz o escritor Stephen Hayes, provava que “Osama bin Laden e Saddam Hussein tiveram uma relação operacional30 desde o início da década de 1990 até 2003”, afirmando claramente que “já não pode haver dúvida séria sobre o trabalho do Iraque de Saddam Hussein com Osama bin Laden e a Al-Qaeda para conspirar contra os americanos”. A campanha de pressão dirigida sobre a CIA e outros órgãos de Inteligência, junto com os relatórios de Feith, constituiriam a base das duvidosas acusações que transformariam a invasão do Iraque em realidade.
8. Sobrevivência, evasão, resistência, fuga
WASHINGTON, DC, 2002-3 — O ataque com um drone no Iêmen, em novembro de 2002, foi o tiro de largada da iniciativa que visava expandir a ação militar americana para além do campo de batalha afegão. O foco da imprensa da época continuava na campanha do governo Bush para justificar a invasão do Iraque, mas a CIA estava construindo um arquipélago de prisões clandestinas para lidar com o resto do mundo. Prisioneiros capturados em diversos países eram mantidos em gulags de serviços de Inteligência estrangeiros, onde eram interrogados e com frequência torturados sob direção dos agentes da Inteligência americana. A construção de prisões clandestinas da CIA estava em andamento e interrogavam-se presos de “grande valor”. Mas a disputa entre o FBI e a CIA estava se tornando insustentável. Alguns membros do FBI1 eram contrários ao que viam como táticas extremas empregadas pelos interrogadores da Agência. Outros, como Rumsfeld e Cheney, acreditavam que a CIA não ia longe o bastante e ficava limitada pela exigência de manter as comissões parlamentares a par de suas operações. Em dezembro de 2002, o diretor da CIA, George Tenet, gabou-se de que os Estados Unidos e seus aliados já tinham detido mais de 3 mil suspeitos2 de filiação ou associação à Al-Qaeda, em mais de cem países. Mas apesar dessas proclamações, o jogo estava apenas começando. O ardor pósOnze de Setembro que permitiu que as operações clandestinas fluíssem com força total e não fossem, em grande parte, questionadas pelo Congresso e pela imprensa estava arrefecendo. Jornalistas e juristas esgaravatavam coisas. Alguns membros do Congresso começavam a fazer perguntas. Havia rumores sobre “prisões secretas”. Cheney e Rumsfeld não estavam satisfeitos com as informações que vinham recebendo de interrogadores da CIA ou da Agência de Inteligência de Defesa (Defense Intelligence Agency, DIA), das Forças Armadas. “Temos de começar a pressionar a Inteligência”, observou Rumsfeld num memorando interno de março de 2002. “Não está indo nada bem”,3 afirmou.
Estamos enfrentando a tarefa de procurar terroristas um a um. Isso nunca foi tarefa do DoD. Mas hoje os terroristas estão bem organizados e bem financiados, estão tentando produzir armas de destruição em massa e podem causar muito dano aos Estados Unidos. Portanto, encontrá-los passou a ser incumbência do DoD.4
Rumsfeld e seus assessores começaram a procurar ajuda de um programa militar secreto. A Agência Conjunta de Pessoal de Resgate (Joint Personnel Recovery Agency, JPRA) era responsável pela coordenação do resgate de militares americanos presos em território inimigo, inclusive em “áreas proibidas”, onde sua mera presença, se conhecida, poderia desencadear uma crise ou um escândalo internacional de grandes proporções. Contudo, outro trabalho do JPRA era de relevância maior para Rumsfeld: preparar americanos para, em caso de captura, resistir5 às tentativas do inimigo de extrair-lhes informação. Todos os quadros operacionais das Forças Especiais dos Estados Unidos passavam pela horrível máquina de tortura do JPRA, o programa conhecido como Sere (Sobrevivência, Evasão, Resistência e Fuga). O Sere foi criado para apresentar a soldados, marinheiros e aviadores americanos o espectro completo da tortura que “uma nação totalitária,6 em total desrespeito aos direitos humanos e às Convenções de Genebra”, poderia aplicar-lhes caso fossem capturados. No treinamento do Sere, os militares eram submetidos a um regime infernal de táticas de tortura extraídas das técnicas usadas por cruéis ditaduras e terroristas. Durante o treinamento,7 os militares podiam ser sequestrados em seus quartéis, surrados, encapuzados, algemados e amontoados em vans ou helicópteros. Podiam sofrer afogamento simulado, açoites, ter a cabeça socada contra a parede. Com frequência eram privados de alimento e de sono, e sujeitos a tortura psicológica. “Na escola do Sere, ‘técnicas aperfeiçoadas de interrogatório’ são métodos de tortura do inimigo”,8 disse Malcolm Nance, que trabalhou no programa de 1997 a 2001 e ajudou a montar e modernizar seu currículo. Nance e outros instrutores do Sere estudaram os relatos de prisioneiros de guerra americanos ao longo da história. Dissecaram as táticas de interrogatório da China comunista, da Coreia do Norte, do Vietcongue, da Alemanha nazista e dezenas de outros regimes e grupos de terror.9 O conhecimento institucional do Sere foi “feito de sangue. Foi escrito com sangue. Tudo o que usamos no Sere já serviu para matar pelo menos um militar dos Estados Unidos — ou milhares deles, em alguns casos”. O Sere, disse Nance, “era um repositório de tudo o que se conhece [em táticas de tortura] fora daqui. Temos interrogatórios da época da Guerra Civil, literalmente, os interrogatórios originais”. O propósito do programa era preparar militares americanos para enfrentar as táticas de inimigos sem lei. Mas Rumsfeld e seus aliados viam uma finalidade diferente para ele. Nas primeiras etapas do programa Alvos de Grande Valor, a CIA e a DIA comandavam o espetáculo do interrogatório, mas membros do JSOC observavam tudo em detalhes. Internamente, o JSOC concluíra que os métodos usados pelos interrogadores americanos no Afeganistão não estavam dando resultado — não porque fossem cruéis demais, mas por não serem cruéis o bastante.10
Desde o início,11 foi feita uma pressão incrível sobre os interrogadores para que extraíssem informações úteis de cada pessoa que tínhamos sob custódia. Alguns desses presos eram
cúmplices, outros eram inocentes; alguns eram bem informados, outros não tinham ideia de nada,
lembrou o coronel Steven Kleinman, que passou 27 anos trabalhando na Inteligência americana e foi um dos mais experientes interrogadores da história moderna dos Estados Unidos. Ocupou muitos cargos, entre eles o de diretor de Inteligência na academia do JPRA.
Em muitos casos, simplesmente erramos ao levar o interrogatório e os interrogadores além dos limites. Por culpa disso, o interrogatório deixou de ser um método de obter informação para se transformar numa forma de castigo para os que não queriam cooperar.
Kleinman disse ainda que quando as táticas de tortura “se revelavam ineficazes para gerar o tipo de informação prática exigida pelos chefes” interrogadores veteranos, entre eles alguns do FBI e das Forças Armadas, sugeriam o uso de táticas alternativas não coercitivas e não violentas. Altas autoridades da Casa Branca “faziam pouco dessas táticas ou rejeitavam-nas” por achá-las “irrelevantes”. “Então optávamos por mais do mesmo, só que a pressão aumentava muito […] em alguns casos num grau alarmante”, disse Kleinman. “Quando nos víamos obrigados a escolher entre ser mais astutos ou mais brutais, preferíamos a segunda opção.” Para desenvolver novas táticas, Rumsfeld e sua equipe recorreram ao programa usado para treinar soldados americanos a resistir à tortura praticada pelo inimigo. Enquanto o JSOC revisava os “erros” dos programas de interrogatório e a CIA e a DIA comandavam a prisão clandestina do aeroporto de Bagram no Afeganistão, eles começavam a rever a possibilidade de interrogar combatentes inimigos capturados no campo de batalha num nível mais avançado. O programa Sere, acreditavam eles, poderia sofrer um processo de engenharia reversa.12 As táticas medievais que eles aprenderam com a história dos maiores torturadores seriam seu novo manual de interrogatório. “Estamos em guerra com um inimigo que já violou flagrantemente as leis da guerra”,13 declarou Rumsfeld no fim de 2001. “Eles não usam uniformes. Eles se escondem em cavernas, no estrangeiro, e entre nós aqui em casa.” Ao denunciar o desprezo do “inimigo” pelas leis da guerra, Rumsfeld e sua equipe se preparavam para seguir-lhe o exemplo. Já em dezembro de 2001, o gabinete de Rumsfeld começou a pedir a assistência da JPRA para a “exploração”14 de prisioneiros. De início, os chefes dos quartéis-generais da JPRA resistiram aos pedidos de Rumsfeld no sentido de exportar suas táticas de treinamento para as câmaras da guerra contra o terror. Num memorando de duas páginas dirigido à área jurídica do Pentágono, a JPRA alertou sobre o uso das táticas de “tortura” em prisioneiros inimigos. O comando da JPRA afirmou:
A necessidade de obter informação de uma fonte que não quer cooperar o mais rápido
possível — a tempo de evitar, por exemplo, um ataque terrorista iminente que possa resultar em perda de vidas — tem sido considerada um argumento convincente para o uso da tortura […]. Em essência, a coação física e/ou psicológica está sendo vista como alternativa ao processo convencional de interrogatório, mais demorado. O erro inerente a essa linha de raciocínio é a suposição de que, por meio da tortura, o interrogador pode extrair informação confiável e exata. A história e a análise do comportamento humano aparentemente refutam essa suposição.
A JPRA observou que “mais de 90% dos interrogatórios tiveram sucesso”, estabelecendo uma afinidade com o preso, e sabendo que depois de ser submetido a técnicas cruéis de interrogatório, a decisão do prisioneiro de resistir se fortalece. O memorando da JPRA observa que, quando muito torturados, os prisioneiros acabam “dando as respostas que acham que o interrogador está procurando. Nesse caso, a informação não é confiável nem exata”.15 Entretanto, Rumsfeld e equipe seguiram em frente. Feith e outras autoridades da Defesa instruíram a JPRA a começar a fornecer informação detalhada sobre o programa Sere a interrogadores americanos. No começo de 2002, a JPRA começou a informar o pessoal da DIA sobre “resistência do preso,16 técnicas e informações sobre exploração de presos”. Enquanto isso, o psicólogo mais destacado do Sere, o dr. Bruce Jessen, que também prestava serviços para a CIA, começou a desenvolver um “plano de exploração”17 para que os interrogadores da Agência recebessem instruções de como aplicar as táticas do Sere a presos. No início de julho de 2002, esses interrogadores começaram a receber treinamento18 de instrutores e psicólogos do Sere sobre táticas extremas de interrogatório. Ainda em julho, o gabinete de Rumsfeld requisitou documentos da JPRA,
incluindo trechos dos planos de aula de instrutores do Sere, uma lista de recursos coercitivos físicos e psicológicos usados no treinamento de resistência do Sere e o memorando de um psicólogo do Sere avaliando os efeitos psicológicos a longo prazo do treinamento de resistência sobre os alunos e os efeitos do afogamento simulado. A lista das técnicas 19 incluía procedimentos como privação sensorial, interrupção do sono, posições incômodas, afogamento simulado e surras. Ela se refere também a uma seção do manual do instrutor da JPRA que discute “pressões coercitivas”, como manter a luz permanentemente acesa e tratar a pessoa como se fosse um animal.
O assessor jurídico para Inteligência do Pentágono, Richard Shiffrin, reconheceu que o Pentágono queria os documentos para aplicar “engenharia reversa” aos conhecimentos do Sere sobre as táticas de tortura usadas pelo inimigo e aplicá-las a prisioneiros dos Estados Unidos. Ele
contou também que a JPRA forneceu aos interrogadores documentos sobre “experimentos de controle da mente”20 usados em prisioneiros americanos por agentes norte-coreanos. “Era como no filme Sob o domínio do mal”, disse Shiffrin. O comandante da JPRA mandou as mesmas informações também para a CIA.21 O uso dessas novas técnicas foi discutido no NSC,22 inclusive em reuniões a que compareceram Rumsfeld e Condoleezza Rice. No verão de 2002, os assessores jurídicos do Conselho de Guerra, liderados pelo conselheiro de Cheney, David Addington, tinham elaborado um fundamento legal que definia a tortura de uma maneira tão restrita que praticamente qualquer tática que não redundasse em morte era lícita.
Para que um ato configure tortura como se define [no estatuto federal sobre tortura], deve infligir dor difícil de suportar. A dor física, para ser considerada tortura, deve ser equivalente em intensidade à dor que acompanha grave ferimento físico, como a falência de um órgão, prejuízo de função corporal ou mesmo a morte,23
afirmou Jay Bybee, procurador assistente do Escritório de Assessoria Jurídica, no que se tornaria um infausto memorando legal de racionalização da tortura aplicada a prisioneiros dos americanos. “Para que a dor, ou o sofrimento, puramente mental seja considerada tortura dentro [do estatuto federal sobre tortura], deve resultar em dano psicológico significativo ou ter duração significativa, por exemplo, durante meses ou mesmo anos.” Um segundo memorando assinado por Bybee dava justificativa legal24 para usar uma série específica de “técnicas aperfeiçoadas de interrogatório”, entre elas o afogamento simulado. “Não haveria refutação alguma”,25 disse Rodriguez, da CIA, que coordenava interrogatórios nas prisões clandestinas. “Em agosto de 2002, percebi que tinha todas as autorizações de que precisava, toda a aprovação necessária. A atmosfera no país era outra. Todos queriam que salvássemos vidas de americanos.” E acrescentou: “Chegamos à fronteira da legalidade. Chegamos à fronteira, mas permanecemos dentro dos limites legais”. Em setembro de 2002, os líderes do Congresso foram informados sobre essas técnicas específicas de interrogatório.26 Alguns democratas, entre eles a representante Nancy Pelosi, diriam mais tarde que nunca tinham sido informados27 sobre o uso de afogamento simulado. Os relatores da CIA e seus colegas republicanos diziam outra coisa,28 afirmando que nenhum dos líderes da Câmara e do Senado informados sobre o método tinham apresentado objeções. Posteriormente, Pelosi esclareceu que, na época, ela tinha sido informada sobre a tática do afogamento simulado mas não de seu uso efetivo em interrogatórios. Seja qual for a verdade, o programa de tortura estava agora funcionando a todo vapor e, no que dizia respeito à Casa Branca, com o apoio legal do governo americano. “Em vez de cooptar esses quadros operacionais [da Al-Qaeda] e trazê-los para o nosso lado, usamos metodologias do Sere, que não
passam de metodologias do inimigo”, lembrou Nance. “Pegar [esses métodos], invertê-los e aplicá-los além das margens de segurança […] quebra completamente a fibra moral de quem quer que levante a mão e jure apoiar e defender a Constituição dos Estados Unidos.” Anos depois que as prisões clandestinas foram criadas e dezenas de prisioneiros transitaram entre elas, a Comissão Internacional da Cruz Vermelha (International Committee of the Red Cross, ICRC) reuniu testemunhos de catorze prisioneiros sobreviventes. Alguns tinham sido capturados29 na Tailândia, outros em Dubai ou no Djibuti. A maior parte tinha sido presa no Paquistão. O relatório da ICRC conta o que acontecia quando as forças americanas faziam um prisioneiro:
O detento era fotografado, vestido e nu, antes e depois da transferência. Fazia-se o exame de cavidade corporal (exame retal), e alguns detentos disseram que nesse momento recebiam um supositório (os detentos não sabiam que supositórios eram esses e que efeito teriam). Faziam com que o detento usasse uma fralda e se vestisse com um conjunto de moletom. Punham-lhe fones de ouvido, pelos quais ele às vezes ouvia música. Ele era vendado com pelo menos um pano amarrado na cabeça e punham-lhe óculos pretos. Alguns detentos disseram que antes das vendas e dos óculos tinham os olhos tapados com algodão […]. Ele tinha pés e mãos acorrentados e era transportado por terra até um aeroporto e posto num avião. Normalmente permanecia sentado e reclinado, com as mãos algemadas à frente. O tempo de viagem […] ia de uma hora a mais de 24 ou trinta horas. O detento não era autorizado a ir ao banheiro e se necessário tinha de urinar e defecar na fralda.
Segundo a ICRC, alguns dos prisioneiros eram levados de uma prisão clandestina a outra durante mais de três anos, sendo mantidos em “confinamento contínuo em solitária e incomunicáveis. Não tinham noção de onde estavam presos nem contato com pessoas que não fossem seus interrogadores e vigias”. O pessoal da guarda, americano, usava máscaras. Nenhum dos prisioneiros era autorizado a dar um telefonema ou escrever à família informando sobre sua prisão. Eles simplesmente desapareciam. Durante o período de prisão, alguns detentos ficaram confinados em espaços exíguos e foram mantidos nus por longo tempo, às vezes meses. Alguns permaneciam durante dias a fio nus e em “posições incômodas”, com os “braços estendidos e acorrentados sobre a cabeça”. Durante a tortura, eles não eram autorizados a usar o banheiro e “tinham de urinar e defecar ali mesmo”. Pancadas e chutes eram comuns, como era comum ter uma coleira no pescoço que era usada para jogar o preso contra a parede ou arrastá-lo pelos corredores. Usavam música alta para impedi-lo de dormir e manipulavam a temperatura. Se achavam que o preso estava disposto a cooperar, davam-lhe roupas para que se vestisse. Se era considerado não cooperador, era mantido nu. Manipulavam a alimentação — às vezes os presos eram submetidos a dieta líquida durante semanas a fio. Três prisioneiros disseram à ICRC que tinham sido submetidos a afogamento simulado. Alguns deles foram levados a uns dez lugares diferentes30 ao longo do período de prisão. “Durante esse tempo, me disseram que eu era um dos primeiros a receber essas técnicas de interrogatório, portanto não havia regras”, disse à ICRC um prisioneiro dos
primeiros tempos da guerra contra o terror. “Senti que eles estavam experimentando31 e ensaiando técnicas que seriam usadas depois em outras pessoas.” Na época em que a CIA começava a aplicar as táticas do Sere a um número maior de prisioneiros em suas prisões clandestinas, Rumsfeld estava insatisfeito com o rumo que a Agência estava dando aos interrogatórios. No fim de 2002, o JSOC instituiu uma força-tarefa encarregada de traçar planos para um futuro papel de seu pessoal no interrogatório de “combatentes considerados ilegais”.32 A CIA prestava contas à Casa Branca33 — especificamente ao gabinete de Cheney — sobre seus progressos com o uso das táticas do Sere nas prisões clandestinas, mas o JSOC poderia desfrutar de mais flexibilidade e ser muito menos fiscalizado. Os quadros operacionais do JSOC foram selecionados pela Casa Branca para participar de um programa paralelo de interrogatório conhecido abertamente pelo nome de Cobre Verde. Internamente, o programa era chamado de Caixa de Fósforo.34 O interrogatório devia ser uma de suas táticas principais, mas Cheney e Rumsfeld tinham planos muito mais ambiciosos para uma nova maneira misteriosa de travar uma guerra global e secreta.
* * *
Existem áreas nebulosas nas leis que regem as operações militares e de Inteligência dos Estados Unidos. O Título 50 do Código dos Estados Unidos, ou Lei Federal, determina as regras e estruturas das operações de Inteligência, enquanto o Título 10 compreende as ações militares. A nomenclatura empregada para designar as operações tem sérias implicações no que se refere à fiscalização e à prestação de contas. Os termos “ação secreta” e “operação clandestina” costumam ser usados como se significassem a mesma coisa. Não é assim. “Ação secreta” é uma locução legal e doutrinária que, em sentido amplo, designa a atividade cujos responsáveis devem ter sua identidade mantida em segredo. Espera-se que confira aos Estados Unidos a possibilidade de negar sua autoria. Operações desse tipo são extremamente arriscadas — não só em termos de risco operacional, mas porque muitas vezes envolvem agentes secretos americanos agindo dentro das fronteiras de um país soberano sem aviso a seu governo. Se a operação for exposta ou interrompida, a possibilidade de um escândalo é real. A definição legal de ação secreta,35 segundo o Título 50, é “atividade ou atividades do governo dos Estados Unidos para influenciar condições políticas, econômicas ou militares no estrangeiro, onde se pretende que o papel do governo dos Estados Unidos não seja exposto ou publicamente reconhecido”. Uma ação secreta exige uma autorização presidencial e que a Casa Branca informe seu conteúdo às comissões de Inteligência da Câmara e do Senado. Essa informação deve ser prestada antes da ação secreta, a menos que existam “circunstâncias extraordinárias”. A exigência de participação do Congresso foi instituída para evitar escândalos36 como o da invasão da baía dos Porcos, em Cuba, e o Irã-contras. Essas operações foram defendidas apaixonadamente por Cheney e Rumsfeld. Embora eles sem dúvida tenham lamentado que o
caso Irã-contras tenha se tornado público e suscitado controvérsia, não consideraram a operação em si um escândalo, mas um modelo de como os Estados Unidos deveriam conduzir seus negócios sujos. A doutrina militar define outro tipo de atividade, “as operações clandestinas”,37 nas quais o motivo do sigilo é proteger a integridade da missão e não dissimular o responsável, o governo dos Estados Unidos. As Forças Armadas podem executar operações que sejam ao mesmo tempo secretas e clandestinas, mas isso é raro. Ao contrário das ações secretas, as operações clandestinas não exigem a emissão de um documento presidencial se “hostilidades futuras” estiverem “previstas” no país em que serão executadas. Nesses casos, o governo não é obrigado a informar o Congresso. Essas operações são definidas como “atividades militares tradicionais”38 e atribuem às comissões de Inteligência direitos de fiscalização não imediatos.39 Pela lei americana, as Forças Armadas não estão obrigadas a revelar as ações específicas que constituem uma operação, mas o papel dos Estados Unidos “na operação como um todo” deve ser “aparente” ou, finalmente, “reconhecido”. Do ponto de vista de Rumsfeld e Cheney, os Estados Unidos estavam em guerra e o mundo era um campo de batalha. Portanto, estavam “previstas” hostilidades em todos os países da Terra, o que exigia dúzias, se não centenas, de potenciais “atividades militares tradicionais” espalhadas pelo mundo. Cheney e Rumsfeld descobriram que usando o JSOC — uma força operacional cujas atividades supostamente se enquadravam tanto no Título 10 quanto no 50 — podiam operar na lacuna que existe entre a lei que rege as Forças Armadas e a que rege a Inteligência. Grande parte das operações do JSOC poderia ser enquadradas na doutrina militar da “Preparação do Espaço de Batalha”, definida pelo Comando de Operações Especiais dos Estados Unidos como “a designação genérica de todas as atividades executadas antes do Dia D e da Hora H para planejar e preparar possíveis operações militares posteriores […] em áreas prováveis ou potenciais de emprego, treino e preparo para operações militares posteriores”. Essas atividades poderiam ser executadas como Forças de Operações Avançadas (Advance Force Operations, AFOs),40 “operações militares executadas por forças que precedem os elementos principais na área de operações”. Ao contrário do que ocorria com as operações da CIA, as AFOs podiam ser executadas com mínima fiscalização externa — durante um período de duração considerável — antes de um ato hostil “aberto” ou por uma “contingência” que podia nem ocorrer. As comissões de Inteligência do Senado viam essa lógica como uma forma de contornar41 a fiscalização e as leis, afirmando que o DoD queria mobilizar sem restrições seu aparelho de Inteligência cada vez mais formidável com o pretexto de planejamento operacional para futuras hostilidades militares, sem outorgar às comissões parlamentares o direito de fiscalização. Para somar mais uma camada de complexidade burocrática a essa área já turva da lei americana, estava o fato de que eram as comissões de serviços armados que autorizavam o financiamento das operações, mas as comissões de Inteligência tinham o poder de determinar o que constituía uma ação secreta. As comissões muitas vezes se desentendiam sobre essa questão
e protegiam ferozmente seu terreno, deixando uma grande abertura para abusos e para a exploração de lacunas ou áreas nebulosas. Embora a CIA devesse ser o principal órgão de execução de ações secretas, a Autoridade Nacional de Comando — integrada pelo presidente e por Rumsfeld — podia aplicar as autorizações concedidas dentro do Título 50 a outras organizações, delegando efetivos militares42 para as operações da CIA. O JSOC, por exemplo, foi usado para ações secretas em áreas politicamente frágeis, sem repercussão na lei internacional, ou para substituir a autoridade do Congresso para declarar guerra. As operações do Título 10 executadas dentro da “Preparação do Espaço de Batalha” tinham ainda menos exigências de informação ao Congresso e, com a resolução parlamentar que autorizava a guerra global, a Autoridade Nacional de Comando podia usar seu poder para ordenar operações militares sem ter de rotulá-las como ações secretas. Essa sempre foi uma área cinzenta aberta à exploração. E que era atraente para Cheney, Rumsfeld e suas equipes enquanto planejavam seus “Próximos Passos”. Rumsfeld tinha grandes planos para as Operações Especiais — e eles não incluíam nenhum controle ou mediação por parte da CIA. A saída de Cofer Black abriu uma porta para ele, garantindo-lhe mais controle sobre as guerras nas sombras. Mas o Congresso e a Agência não eram os únicos que Rumsfeld queria tirar do caminho. Ele incluía também a burocracia convencional das Forças Armadas e a alta oficialidade, que na opinião dele tinham se tornado brandos e medrosos. “A pior maneira de organizar uma caçada humana […] é deixar que seja planejada pelo Pentágono”, Rumsfeld escreveu num memorando interno em que expunha sua visão de como as unidades das SOF deveriam começar a atacar globalmente. “Temos de estar dispostos a aceitar os riscos inerentes a uma área de cobertura menor.” Em 22 de julho de 2002, Rumsfeld enviou uma resolução secreta ao general Charles Holland, comandante do Socom, em que prefigurava uma “caçada humana” descentralizada, que contornaria a estrutura tradicional do comando militar e operaria mais como um grupo de assalto privado. Recomendou a Holland que “criasse um plano”43 para lidar com a Al-Qaeda e grupos associados. Explicou que mais adiante eles precisariam encontrar uma forma de “passar ao largo” da burocracia do Pentágono e dar andamento a ordens de mobilização “em minutos ou horas, e não em dias ou semanas”. E acrescentou: “O objetivo é capturar terroristas para interrogatório e, se necessário, matá-los, e não simplesmente prendê-los num exercício de cumprimento da lei”. Mas Holland “não respondeu tão pronta e definitivamente, como o pessoal de Washington achou que ele faria”, lembrou Lawrence Wilkerson, coronel reformado que serviu trinta anos no Exército. “O pessoal de Washington, nesse caso, eram Rumsfeld e Cheney.” O general apresentou um plano de cinco anos,44 quando Rumsfeld queria ação imediata. Enquanto Rumsfeld e Cheney pressionavam a favor do começo imediato das Operações Especiais em âmbito global, comandantes militares de alta patente manifestavam a preocupação de que aqueles planos se sobrepusessem45 à capacidade militar de colher e explorar informações. Algumas equipes do JSOC no Afeganistão tinham se envolvido em lutas internas
com outras equipes do JSOC e, embora tenham matado um número enorme de afegãos e combatentes estrangeiros, nem sempre era claro quem eram as pessoas que estavam matando. Um dos grandes problemas era a falta de informações sólidas. Enquanto a CIA assumia a liderança na caça aos Alvos de Grande Valor, Rumsfeld pressionava os homens do JSOC a apresentar resultados. Mas sem boas informações, eles estariam caçando fantasmas. Quando Rumsfeld propôs reforçar o JSOC e torná-lo global, o general Holland opôs resistência. Disse-lhe que estava preocupado com a falta de “informações práticas”46 nas novas regiões-alvo propostas. Um alto comandante militar disse sem meias palavras que “a Inteligência não era boa o bastante47 para nos permitir uma campanha como aquela”. Rumsfeld e seus acólitos teriam ridicularizado os comandantes, principalmente o general Holland, pelo que eles viam como excesso de precaução. Um conselheiro do Pentágono que trabalhou junto de Rumsfeld na época disse ao jornalista investigativo Seymour Hersh que Rumsfeld e sua equipe estavam convencidos de que “havia poucos generais de quatro estrelas favoráveis ao Comando de Operações Especiais”, que era preciso ter mais “generais combativos”48 e que, mais adiante, os oficiais de alta patente que ascenderam durante a era Clinton precisariam ser “reavaliados”. Mais a gosto de Rumsfeld era o general Wayne Downing, que, estando na reserva, foi convocado, depois do Onze de Setembro, para servir como vice-conselheiro de Segurança Nacional e coordenar a campanha contra redes terroristas e “aqueles que as apoiam”.49 Embora tecnicamente subordinado à conselheira de Segurança Nacional Condoleezza Rice, ele funcionaria como defensor do JSOC dentro da Casa Branca. Downing fez o que pôde para que o JSOC voltasse a suas raízes de “força oculta/de baixa visibilidade”50 e adotasse uma “postura preventiva com grande capacidade de achar e atacar em operações prolongadas”. Começou a fazer pressão sobre as Forças de Operações Especiais para que se preparassem para a “futura luta indireta e clandestina da GWOT em países com os quais não estamos em guerra” e para executar operações em “áreas diversas, delicadas, não autorizadas e proibidas”. Recomendou que o JSOC prestasse contas diretamente ao secretário de Defesa e não encaminhasse suas operações através da cadeia de comando convencional. Na realidade, o JSOC já estava agindo com liberdade. Enquanto Downing passava por cima dos canais oficiais, Rumsfeld e Cheney, segundo Wilkerson, já tinham
contornado o Comando de Operações Especiais51 e iam rapidamente a Fort Bragg e começavam a dar instruções para as atividades da Força de Operações Especiais, ação direta, na maior parte dos casos, diretamente do gabinete do vice-presidente para o Comando Conjunto de Operações Especiais.
Em poucos meses, Holland perderia seu posto no Socom. Era o começo do que viria a ser um projeto de muitos anos de Rumsfeld e Cheney com o
objetivo de destacar sua pequena unidade cirúrgica de elite da cadeia de comando mais ampla e transformá-la numa máquina mortífera global. Antes do Onze de Setembro, eles já tinham grandes planos para o JSOC, mas os ataques terroristas deram-lhes toda a munição de que precisavam para ganhar sua própria guerra contra a fiscalização dessas forças de elite e altamente letais. “Eu estava vendo o surgimento daquilo que veria mais tarde no Iraque e no Afeganistão, onde as Forças de Operações Especiais atuavam sem que o comando convencional tivesse ideia do que eles estavam fazendo”, disse Wilkerson. “Isso é perigoso, é muito perigoso.52 Você pode arrumar todo tipo de confusão se não informar o comandante do teatro de operações sobre o que está fazendo.” Wilkerson disse-me que quando trabalhava no governo Bush:
Tínhamos o JSOC operando como uma extensão do [governo], fazendo coisas que o Poder Executivo — leia-se Cheney e Rumsfeld — queria que ele fizesse. Isso significava mais ou menos ter carta branca. “Se você tem que fazer isso, faça.” Era muito assustador para mim, como soldado convencional.
Rumsfeld e Cheney não se entendiam com a CIA em matéria do jogo de Inteligência referente à guerra que se insinuava no Iraque. E como eles planejavam outras guerras, não confiavam nos analistas da CIA para lhes proporcionar as informações necessárias para atacar globalmente, sem demora e com frequência. Rumsfeld acreditava que as Operações Especiais precisavam ter sua própria operação de Inteligência, voltada especificamente para alimentar a campanha global de assassinato/captura. O JSOC já trabalhava em estreita colaboração com uma afamada operação de Inteligência em interceptação de sinais, a Atividade de Apoio à Inteligência, ou simplesmente a Atividade. Também conhecida como Raposa Cinzenta,53 a unidade especializou-se em vigilância eletrônica e interceptações. Mas Rumsfeld queria também uma entidade que espelhasse as competências54 da CIA — baseada na inteligência proporcionada por seres humanos, conhecida na comunidade como Humint (human intelligence). Na primavera de 2002, uma comissão presidida por Brent Scowcroft, ex-conselheiro de Segurança Nacional, recomendou que a NSA, o Gabinete Nacional de Reconhecimento e a Agência Nacional de Imagens e Mapeamento fossem tirados do controle do Pentágono e transferidos para a CIA.55 Rumsfeld reagiu com violência e levou a Inteligência americana para o sentido oposto. Em abril de 2002, foi lançado o Projeto Ícone.56 O financiamento para o programa, que não foi informado às comissões parlamentares de Inteligência, veio de verbas do Pentágono “realocadas”. As “novas equipes clandestinas”57 constituídas de “agentes, linguistas, interrogadores e técnicos” eram mobilizadas junto com Forças de Operações Especiais com um novo foco na coleta de informações humanas — obtidas a partir de interrogatórios de campo, da vigilância e do gerenciamento de fontes locais e equipamentos. Depois de operar inicialmente
com codinomes, o programa secreto ficaria conhecido como Braço de Apoio Estratégico (Strategic Support Branch, SSB).58 Em julho de 2002, o presidente Bush transferiu a Raposa Cinzenta59 para o Comando de Operações Especiais por resolução executiva, dando a Rumsfeld o controle sobre grande parte dos equipamentos e sistemas da Inteligência americana. Esse novo negócio da Raposa Cinzenta trabalhando com o SSB proporcionaria informações em tempo real às Forças de Operações Especiais para detectar militantes suspeitos, evitar futuros ataques e “preparar o campo de batalha” para potenciais operações militares. Em resumo, ele alimentaria uma caçada humana global. Se o negócio de Inteligência de Doug Feith representava uma ameaça à supremacia dos analistas da CIA, o SSB estava voltado para substituir as autoridades das estruturas de Inteligência humana da Agência. Qualquer país, amigo ou inimigo dos Estados Unidos, seria alvo legítimo para as operações. A CIA, os embaixadores americanos e os governos locais não seriam informados. Os primeiros memorandos de planejamento enviados por Rumsfeld indicavam que ele queria o SSB focado em operações de coleta de informações em “países-alvo emergentes, como Somália, Iêmen, Indonésia, Filipinas e Geórgia”. O SSB foi criado para “operar sem ser percebido60 e sob o controle direto do Secretário de Defesa”. O Washington Post conseguiu documentos internos do Pentágono que pediam um braço de Humint “receptivo a tarefas encomendadas diretamente pela Secretaria de Defesa”. As unidades do SSB operariam em “sigilo não oficial”, às vezes usando nomes e nacionalidades falsos com o objetivo de proteger “todo o espectro das operações de Humint”. Era um desafio direto à CIA, cujo Diretório de Operações tinha sido tradicionalmente o órgão encarregado de missões secretas, principalmente quando executadas em nações “amigas” ou em países nos quais “a guerra convencional é uma perspectiva distante ou improvável”. Havia uma linguagem própria nas instruções internas do SSB, na qual se definia “coordenação” como o fato de dar à Agência aviso com 72 horas de antecedência antes de lançar uma missão de coleta de informações, mas o SSB estava determinado a dinamizar radicalmente o ritmo e o alcance das operações militares secretas contra suspeitos de terrorismo, não importa onde residissem. “Cheney com toda certeza, e Rumsfeld também, ainda que em menor medida, viam a CIA como a irmã mais fraca61 e como uma organização que não era politicamente confiável”, lembrou Philip Giraldi, agente da CIA.
E essencialmente ficou decidido que iríamos seguir a trilha do JSOC. Mas é claro que a trilha do JSOC tinha problemas. Quando você usa as Forças Armadas como ponta de lança nessas atividades, não estando em guerra, quando você se envolve com o envio de pessoas a outro território soberano, abre todo tipo de precedente complicado, desses que as agências de Inteligência foram criadas para evitar.
As ações secretas permitem que quadros operacionais americanos passem por cima de convenções internacionais e violem as leis internas de outros países. As operações militares dos Estados Unidos, no entanto, são obrigadas pela lei americana a observar leis internacionais, as leis da guerra e as Convenções de Genebra, embora fosse óbvio que o governo Bush não via as coisas dessa forma no que se refere a certos prisioneiros militares. Usar Forças de Operações Especiais para ações secretas poderia representar para o país a perda da condição de signatário das Convenções de Genebra,62 uma acusação de espionagem e finalmente o rótulo de “combatentes ilegais”. Os críticos se preocupavam com a possibilidade de pôr membros das Forças Armadas dos Estados Unidos em risco, caso fossem capturados, com seus inimigos em condições de ignorar as proibições das Convenções de Genebra referentes a tortura e tratamento desumano alegando o precedente americano. Embora o SSB fosse comandado oficialmente63 pelo vice-almirante Lowell Jacoby, chefe da DIA, o verdadeiro capataz era Stephen Cambone, ideólogo político recrutado por Rumsfeld. Neoconservador de destaque, Cambone apareceu pela primeira vez no radar do Pentágono quando comandou a Iniciativa de Defesa Estratégica64 em 1990. Mais tarde, trabalhou em projetos especiais65 para Rumsfeld nas comissões do DoD que tratavam de sistemas defensivos com mísseis e armas espaciais. Trazer Cambone a bordo para ajudar a dar forma ao programa caçador-matador das Operações Especiais estava na cabeça de Rumsfeld desde que o Onze de Setembro abriu as comportas. Oficialmente, Cambone era assistente especial66 de Rumsfeld. Na verdade, era o batedor de Rumsfeld na criação da versão do “lado escuro” do DoD. Quando, depois do Onze de Setembro, Rumsfeld começou a tentar tomar da CIA o controle da GWOT, recorreu a Cambone. Num de seus famosos memorandos excêntricos, em 23 de setembro de 2001, Rumsfeld disse a sua equipe: “Queremos considerar seriamente passar as Operações Especiais para o CINC [comandante em chefe] do terrorismo global. Eles têm um centro conjunto de Inteligência. O esforço tem de ser global”.67 Naquele dia, Rumsfeld mandou uma nota a Cambone sob a rubrica “Competências”,68 pedindo a ele que tentasse descobrir “como poderemos desenvolver novas competências não convencionais para o Pentágono e para tropas, como as de Operações Especiais, de um tipo diferente. Precisamos de mais flexibilidade e versatilidade”. Três dias depois, na manhã de 26 de setembro de 2001, Rumsfeld mandou um novo memorando para Cambone sob a rubrica “Oportunidade”.69 “Esta é a hora de corrigir a Inteligência”, escreveu ele, dizendo que queria redesenhar a estrutura das forças americanas pelo globo, “reorganizar nossas forças na Europa e na Ásia, acelerar a transformação do Exército, reduzir os quartéis-generais e manter a defesa do território tinindo. Deve haver outras coisas que possamos fazer também”. Cambone se tornaria um poderoso ator na penumbra, com acesso a Rumsfeld e equipe. Uma de suas primeiras tarefas seria organizar as atividades das Operações Especiais destinadas a matar e capturar pessoas declaradas terroristas, ou inimigas, por Rumsfeld e pela Casa Branca. O coronel Lang disse:
São todos farinha do mesmo saco,70 isto é, “vamos conseguir as geringonças mais high-tech para comunicações e armas, vamos conduzir essas operações no mais alto nível de eficiência, vamos ter uma Inteligência realmente boa, assim pegar pessoas e matá-las”.
E Rumsfeld disse a Cambone: “Precisamos aumentar o número total das Forças Especiais”.71 Em 2002, Cambone começou a estudar os meios de liberar o maior número possível de atiradores.72 Começou transferindo algumas das tarefas tradicionalmente desempenhadas pelas SOF para as Forças Armadas convencionais, entre elas o treinamento de forças estrangeiras, as missões de transporte aéreo e a atuação como Força de Reação Rápida (Quick Reaction Force, QRF) para VIPs no Afeganistão. Rumsfeld e Cambone queriam todos os recursos das SOF voltados para o assassinato e a captura. O resto que ficasse com o grande exército. Em meados de 2002, Rumsfeld enviou uma ordem confidencial ao general Richard Myers, chefe do Estado-Maior Conjunto, solicitando uma mudança abrangente no modo como o JSOC e outras Operações Especiais funcionavam. Ele queria uma “autorização preliminar”73 para as operações e máxima autoridade para os comandantes de campo na execução das missões. O objetivo de Rumsfeld era reorganizar a estrutura das Forças de Operações Especiais americanas, demolindo barreiras para permitir a realização de operações rápidas, letais e globais sem mediação burocrática daqueles que não precisavam saber delas. As Unidades de Missões Especiais (Special Mission Unit, SMUs) do JSOC, a Força Delta, conhecida oficialmente como Grupo de Aplicações de Combate (Combat Applications Group, CAG),74 e a Equipe 6 dos SEALs eram interessantes para Rumsfeld porque estavam habituadas a operar com autonomia, mesmo nos velhos tempos de comandos regionais responsáveis por todas as tropas em operação dentro de sua área de responsabilidade (area of responsability, AOR). Essas SMUs integraram a Força Nacional de Missões e foram autorizadas a operar discreta e globalmente sem nenhuma coordenação com as autoridades do comando convencional. Rumsfeld queria que esse modelo fosse aplicado a todas as Forças de Operações Especiais. “Hoje demos diversos passos75 para fortalecer o Comando de Operações Especiais dos Estados Unidos, de modo que ele possa dar contribuições ainda maiores à GWOT”, declarou Rumsfeld. “Desde 1987, o Comando de Operações Especiais vem sendo organizado como comando de apoio, ou seja, proporcionando combatentes e materiais aos diversos comandantes regionais de combate, que então planejam e orientam missões. Isso acabou. De agora em diante”, afirmou Rumsfeld, “o Socom será seu próprio chefe — com um quartel-general em Tampa, Flórida, e Comandos do Teatro de Operações Especiais regionais capazes de organizar ataques e outras ações diretas com continuidade.” Rumsfeld disse que isso era necessário por causa da “natureza do inimigo e da necessidade de operações rápidas e eficientes na caça e no desmantelamento de redes terroristas mundiais”.
Em 2003, Rumsfeld criou um novo cargo para Cambone,76 que jamais existira dentro da burocracia civil do Pentágono: o de subsecretário de Defesa para Inteligência. Seu ocupante era chamado internamente de “tzar de Inteligência de Defesa” — e o cargo já foi fundado com uma autoridade sem precedentes, como se quisesse obrigar todas as entidades de Inteligência do Pentágono, antes independentes, a subordinar-se diretamente a Cambone.77 Isso incluía a DIA e a NSA. Steven Aftergood, da Federação de Cientistas Americanos, declarou que a criação do cargo era parte de um movimento que visava “desviar o centro de gravidade78 da IC mais para dentro do Pentágono”. Em termos reais, isso queria dizer que 85% do orçamento total do país para a Inteligência estaria sob controle de Cambone, e apenas 12% sob controle do diretor da CIA. “Rumsfeld não era má pessoa”,79 comentou comigo um antigo assessor de um comandante das Operações Especiais. “Ele tinha visão. Deixava que gente como Cambone metesse a mão na merda.” Líderes das Forças Armadas convencionais desprezavam Cambone. Um alto oficial do Exército, no começo da gestão de Cambone, escarneceu: “Se eu tivesse uma última bala no revólver, acabaria com Stephen Cambone”. O braço direito de Cambone era uma lenda no mundo de trevas das operações militares secretas, o general de divisão William “Jerry” Boykin, originário da Força Delta80 e com passagens pelo JSOC e pela CIA. Passou toda a carreira nas sombras da política externa americana, envolvido em operações não reconhecidas oficialmente no mundo inteiro. Na visão de Boykin, “durante as décadas de 1980 e 1990, as SOF tiveram grandes oportunidades81 de entrar em combate, preparar o campo de batalha, dar forma ao ambiente e coletar informações, mas receberam “aprovação para menos de 10% das oportunidades que se apresentaram”. Essas oportunidades, afirmou, “se perderam pela falta de apetite para correr riscos e por falta de visão e de compreensão das vantagens de preparar o espaço da batalha com antecedência. Havia também medo das consequências”. Boykin acreditava que as operações americanas de contraterrorismo tinham se tornado subservientes a padrões de Inteligência que exigiam praticamente 100% de certeza de que tanto o alvo quanto civis não seriam mortos. Ele disse que rejeitava a expressão “informações práticas”. “Deem-me a prática”, declarava, “ e eu lhes darei as informações.” No entanto, algumas pessoas alertaram sobre o risco dessa abordagem. Levar as Forças de Operações Especiais a executar operações como as da CIA e “ampliar seu papel como Rumsfeld pretende poderia ser muito perigoso para a política externa americana”,82 afirmou Jennifer Kibbe, do Instituto Brookings, e acrescentou que usar as Forças de Operações Especiais era “muito mais fácil do que usar a CIA. E essa facilidade era o que atraía Rumsfeld”. Isso significava que as Operações Especiais
podem executar operações secretas no estrangeiro, sem permissão dos governos locais e com pouca ou nenhuma fiscalização ou contestação do Congresso. Se Rumsfeld fizesse o que
queria, os falcões do governo em pouco tempo começariam a usar Forças Especiais para atacar ou subverter outros regimes da lista de alvos de Washington.
No que se refere ao Departamento de Estado, Powell e Wilkerson começavam a ver os efeitos dessa nova operação paralela fugir ao controle do Pentágono. “Logo no início da chamada ‘Guerra Global ao Terror’, tivemos coisas como embaixadores ligando, mandando emails ou telegramas depois de terem visto gente rondando as cidades onde estavam alocados, homens brancos, 1,95 metro de altura, cinquenta centímetros de bíceps, e não demorava muito para que o embaixador imaginasse quem era essa gente e por que estavam ali”, lembrou Wilkerson.
Começamos a ser obrigados a pressionar Rumsfeld a respeito do que ele estava fazendo, ou seja, mandando essas Forças de Operações Especiais para o mundo todo, sem avisar o pessoal local, sem avisar o embaixador, o chefe da missão naquele país. As coisas chegaram a tal ponto que tivemos uma morte na América do Sul, onde um desses homens, certa noite, ficou bêbado, sacou a arma e matou um motorista de táxi. Tivemos de tirá-lo do país às pressas.
Wilkerson acrescentou: “Nem sequer tenho certeza de que Rumsfeld soubesse de algumas delas [operações] que o gabinete do vice-presidente mandava executar”. “Aquilo foi crescendo e saiu do controle do vice-presidente. Tornou-se praticamente irrefreável”,83 contou-me Cannistraro, antigo alto funcionário da CIA.
Havia gente no Pentágono encarregada de dirigir “Operações Especiais especiais” que não passava pela cadeia de comando normal e era mantida de fora da ação coordenada com a CIA, com o Departamento de Estado ou com qualquer outra instância do governo. E tudo isso se justificava porque o Onze de Setembro mostrou que estávamos em guerra e que essa guerra devia ser tratada com medidas especiais. E aquilo saiu de controle. Havia alguns lugares em que, como não estavam coordenados nem informados, eles erravam e matavam gente que não tinha a ver com alvos reais.
E acrescentou: “Isso acontecia, e com frequência”. A Comissão Especial Permanente de Inteligência da Câmara dos Representantes chegaria à conclusão de que Pentágono “tinha mostrado propensão84 a aplicar o rótulo [de preparação do espaço de batalha] a qualquer lugar que tivesse tido algum dia o mais leve vínculo teórico com uma remota operação militar”. Para alguns oficiais de carreira que tinham servido nas Forças Armadas convencionais, as coisas que viam acontecer dentro do Pentágono eram iníquas.
“Sabíamos que as Convenções de Genebra estavam sendo sacrificadas85 desde muito cedo, por assim dizer”, disse-me o coronel Douglas Macgregor, oficial condecorado do Exército que comandou a mais famosa batalha de tanques86 da Guerra do Golfo de 1991. Ele pertenceu à equipe do Pentágono que estava mapeando os primeiros passos do planejamento da Guerra do Iraque em 2001 e 2002. Disse que ficou perturbado com o que via dentro do DoD desde que Cheney e Rumsfeld começaram a montar o SSB e o JSOC. “Para ser bastante honesto com você, eu fiquei fora daquilo. Não quis me envolver e não tinha interesse em participar porque temia que acabássemos violando a lei”, disse ele.
Fossem elas nossas próprias leis, as das Convenções de Genebra ou a “Lei da Guerra”, que é como nós, fardados, nos referíamos a ela, esperava-se que alguém se levantasse e dissesse: “Sinto muito, senhor secretário, sr. Cambone, general Boykin, vocês não têm autoridade para suspender as Convenções de Genebra. Ela foi ratificada pelo Senado dos Estados Unidos”. Mas temos outro problema. Não temos interesse no Senado, em manter quem quer que seja informado e em observar as leis. Então, se você não tiver ninguém em nenhum dos poderes — seja o Judiciário, o Legistativo ou o Executivo — interessado em fazer cumprir a lei, você pode fazer o que lhe der na telha. E acho que foi o que acabou acontecendo.
Em todas as Forças Armadas havia grande consternação ante a possibilidade de um desastre provocado por esse novo poder reivindicado por Rumsfeld e Cheney e pela aventura global que eles planejavam para as Forças de Operações Especiais dos Estados Unidos. “Pelo fato de entrar num país amigo87 com forças para executar uma missão militar, os Estados Unidos cometeram um ato de guerra, mesmo considerando que nosso interesse não estava no país, e sim em quartéis terroristas”, observou a coronel Kathryn Stone num relatório de 2003 para a Academia Militar do Exército:
A maior parte do mundo tinha chegado a olhar as guerras de fato travadas pela CIA como meio de vida, porque a maioria das potências tira proveito da ação de seus próprios congêneres da CIA em ação em países estrangeiros, sem ter nada a ganhar politicamente por reclamar de um ato de guerra quando a ação secreta de outro país é descoberta. No entanto, é pouco provável que o mundo tolere forças militares regulares dos Estados Unidos desfilando secretamente por toda parte. O mundo perguntaria, com razão: aonde isto vai parar? Se os Estados Unidos empregarem SOF para executar ações secretas condenáveis, o próximo passo seria um ataque clandestino com mísseis Tomahawk, ou quem sabe até um ataque com mísseis dissimulado, para encobrir as impressões digitais dos Estados Unidos?
A análise da coronel Stone mais tarde seria vista como profética, mas essas preocupações foram sepultadas. O coronel Lang lembrou:
Acho que ocorreu muita coisa por debaixo dos panos, e em consequência disso eles conseguiram bastante liberdade de ação. O presidente ficou passivo, em seu primeiro mandato deixou-os ir adiante em diversos casos, e eles tinham suas próprias ideias de como fazer as coisas, bem parecidas com o modo como os israelenses fazem. Sabe como é, o famoso “um por cento de Cheney”: na dúvida, acabe com eles. Basicamente é isso, capture-os ou mate-os. E foi o que fizeram durante muito tempo.
Rumsfeld e Cheney estavam começando a construir a infraestrutura de sustentação de uma guerra global livre de controle — e o JSOC seria sua arma por excelência. Eles precisavam de um general proativo para comandar sua guerra secreta. Encontraram-no na pessoa do general Stanley McChrystal, dos Rangers do Exército americano.
9. O criador de caso: Stanley McChrystal
ESTADOS UNIDOS, 1974-2003; IRAQUE, 2003 — Stanley McChrystal era filho de um general do Exército.1 Ingressou na Academia Militar de West Point em 1972,2 onde ganhou a reputação de “criador de caso”.3 Bebia muito e se mostrava ávido por ação. Uma noite, McChrystal e alguns amigos simularam uma invasão4 a um dos edifícios do campus, usando armas de verdade e bolas de meia como granadas. McChrystal quase levou um tiro dos seguranças e mais tarde foi punido por seus atos. Um prontuário cheio de problemas disciplinares, no entanto, não se interpôs no caminho de McChrystal, que se tornou comandante de batalhão. Formou-se pela West Point em 1976,5 concluiu a Escola de Forças Especiais em Fort Bragg em 1979 e comandou uma unidade de boinas-verdes de 1979 a 1980, embora não tenha participado da grande maioria das missões de destaque realizadas no início de sua carreira militar. “Perdi o Panamá6 e Granada, e isso me incomodava”, lembrou McChrystal. “Você sempre fica imaginando como se comportaria.” Nos anos que se seguiram a West Point, McChrystal trilhou um caminho duplo que lhe valeria a reputação de “guerreiro acadêmico”. Fez mestrado em segurança nacional e estudos estratégicos no Colégio de Guerra Naval dos Estados Unidos e em relações internacionais na Universidade Salve Regina. Subiu na hierarquia dos Rangers e serviu em unidades aéreas e das Forças Especiais. Em 1986, McChrystal tornou-se comandante do 3o Batalhão do 75o Regimento dos Rangers e, pelo que se sabe, revolucionou7 o sistema de treinamento, modernizou a tecnologia usada por suas forças e aumentou o ritmo do condicionamento físico e da preparação para operações noturnas. O primeiro trabalho conhecido de McChrystal com uma equipe do JSOC foi durante os preâmbulos da Guerra do Golfo de 1991, quando ele serviu como comandante de ações clandestinas nas operações Escudo no Deserto e Tempestade no Deserto. Embora enviado ao Golfo para ajudar a coordenar operações especiais, ele passaria a guerra entre a Arábia Saudita e Fort Bragg. Quando estava entrando para o mundo das operações nebulosas, McChrystal admite que “nunca tinha disparado contra ninguém”.8 Pelo contrário, ele se centrava no planejamento e na execução de missões, desenvolvendo técnicas de liderança e ascendendo na hierarquia das Operações Especiais. No fim da década de 1990, McChrystal tinha se tornado comandante dos Rangers. Dalton Fury, que chefiou uma equipe da Força Delta que caçou Bin Laden no Afeganistão, serviu como
oficial do estado-maior de McChrystal nos Rangers antes de se transferir para a Delta. De acordo com Fury:
Meus parceiros nos Rangers9 e eu tivemos uma oportunidade única de presenciar o que havia de bom e de ruim nele [McChrystal]. Acho que se fosse ferido no campo de batalha, derramaria sangue vermelho, azul e branco — as cores oficiais do 75o Regimento dos Rangers. Ele é 110% Ranger do Exército americano. Mesmo com as costas imprestáveis e os joelhos provavelmente deteriorados depois de uma vida de marchas e saltos de paraquedas, ele não admitia usar o botão de pausa humano.
Fury observou que, na condição de Ranger, “McChrystal era considerado um Nível II, comandante subordinado à estrutura de Comando Conjunto das Operações Especiais. O patamar mais alto, o Nível I, era reservado exclusivamente para membros da Força Delta e da Equipe 6 dos SEALs. Isso, ao que parece, sempre incomodou McChrystal. Ele não tinha temperamento para estar subordinado a alguém, nem para que seus Rangers fossem considerados cidadãos de segunda classe pelas Unidades de Missões Especiais de Nível I. Com efeito, McChrystal lutou durante anos para elevar a posição dos Rangers do Exército na máquina de Operações Especiais, recusando-se a vê-los como celeiro da Força Delta. “Os Rangers eram e ainda são tão qualificados para suas Tarefas Essenciais no cumprimento de missões quanto as unidades de Nível I para as suas”, lembrou um ex-Ranger que serviu sob o comando de McChrystal. “Ele acreditava que a perda de oficiais e suboficiais de qualidade para aquela que muitos consideram a verdadeira ponta de lança das unidades — o que lhe garantia mais verbas, mais autoridade e a atribuição dos alvos principais — prejudicava o Regimento.” Como explicou Fury, aos olhos de McChrystal “os Rangers estavam tão capacitados10 para sua missão principal de tomada de aeroportos e incursões quanto a Delta para o resgate de reféns em terra e os SEALs para atacar navios em movimento”. Fury lembrou-se de uma conversa que teve com o então coronel McChrystal na qual discutiram a fracassada operação Garra de Águia no Irã, a tentativa de resgate de reféns executada pela Força Delta em 1980, que se tornou uma mancha na comunidade de Operações Especiais.
Foi uma conversa interessante e esclarecedora. A essência da discussão foi a opinião do coronel McChrystal segundo a qual Beckwith devia ter dado continuidade à missão com menos quadros operacionais e helicópteros. Embora os riscos aumentassem substancialmente, para o coronel McChrystal o constrangimento aos olhos do mundo pelo malogro da tentativa foi exponencialmente mais devastador para a reputação de nossa nação do que a execução de uma missão de alto risco que poderia ter ainda uma chance de sucesso,
mesmo que pequena. McChrystal acreditava que o povo americano nunca mais aceitaria uma decisão como aquela.
Depois de se firmar como ícone dos Rangers, McChrystal poliu suas credenciais com períodos passados em Harvard e no Conselho das Relações Exteriores (Council on Foreign Relations, CFR) em Nova York. Em 1998, Dick Cheney, que na época presidia a Junta de Seleção da Sociedade Militar no CFR,11 recomendou McChrystal à sociedade para “ampliar” seu “entendimento das relações exteriores”. No CFR, McChrystal redigiu um documento de trabalho detalhado em que discutia os méritos da intervenção humanitária. Nesse documento, escrito antes do Onze de Setembro, afirma que “é uma realidade militar12 que a nação seja incapaz de uma ação mundial sem limites. É uma realidade política que a intervenção militar americana irrestrita ou injustificada não seja aceita ou tolerada, nem pelo Congresso nem por outras nações”, e acrescenta:
Nossas ações, principalmente as intervenções, podem desagradar regiões, nações, culturas, economias e povos, por mais virtuoso que seja o propósito. Devemos ter certeza de que o remédio que oferecemos por meio da intervenção não seja pior que a doença. Não devemos pôr em risco nossa capacidade militar de desempenhar missões essenciais para a defesa nacional […]. A perda ou a degradação do poder dos Estados Unidos é um preço que o mundo não pode pagar.
Ironicamente, McChrystal, que se considerava politicamente liberal, acabaria devendo sua fama a homens que fizeram tudo o que ele, em seu documento de trabalho do CFR, recomendava que não se fizesse. Quando ocorreram os ataques do Onze de Setembro, McChrystal era chefe do estado-maior do 18o Corpo Aerotransportado. Pouco depois, foi enviado ao Afeganistão para ajudar na instalação da Força-tarefa Conjunta Combinada 180 (Combined Joint Task Force 180, CJTF 180), que se tornaria o quartel-general13 da operação Liberdade Duradoura. Nos primeiros tempos da CJTF 180, McChrystal comandou uma “organização híbrida”14 integrada por Forças de Operações Especiais, unidades convencionais e Forças Especiais. A Força-tarefa, centrada na Base Aérea de Bagram, tinha a missão15 de coordenar o espectro completo do esforço de guerra, dirigindo operações que tinham como alvo as lideranças da Al-Qaeda e do Talibã, além de outras operações de contraterrorismo. Ela tomaria a liderança nas operações de detenção e interrogatório de suspeitos para obtenção de “informações práticas” no Afeganistão. A CJTF 180 comandou muitas das unidades que iniciaram o uso generalizado de incursões noturnas16 contra casas de suspeitos da Al-Qaeda ou do Talibã. Essas incursões eram consideradas um “ensaio para a guerra contra o terrorismo”17 que mais tarde seria travada em toda parte.
Em julho de 2002, McChrystal foi chamado a Washington para receber uma promoção. Cinco meses depois que ele deixou o Afeganistão, a CJTF 180 se envolveu num escândalo de abuso contra prisioneiros18 que eclodiu quando foi revelado que em dezembro de 2002 dois presos sob custódia da Força-tarefa tinham morrido de contusão muscular, expondo as “técnicas aperfeiçoadas de interrogatório” que lá estavam sendo usadas. Nunca ficou claramente determinado se os responsáveis pertenciam à Força-tarefa ou à Unidade de Missão Especial que usava as dependências da Força-tarefa para interrogatórios. Dois oficiais da Polícia Militar foram levados a julgamento19 por essas mortes. Embora o período que McChrystal passou no Afeganistão tenha sido breve, foi lá que ele estreitou suas relações de trabalho com uma lenda do mundo da Inteligência militar: o general Michael T. Flynn. Assessor de McChrystal no 18o Corpo Aerotransportado, Flynn foi destacado com ele para Cabul, onde serviu como diretor de Inteligência20 para a CJTF 180. Conhecido na juventude como surfista e boêmio,21 Flynn foi promovido a segundo tenente do Exército em 1981, tornouse oficial da Inteligência e fez numerosas visitas a Fort Bragg. Participou da invasão de Granada em 1983 e da invasão do Haiti no começo da década de 1990. Passou a carreira trabalhando em delicados programas de Inteligência militar e construindo sistemas de coleta de dados em áreas “proibidas”. Com McChrystal subindo, Flynn subia junto. Quando McChrystal retornou a Washington, Flynn voltou ao comando da 111a Brigada de Inteligência Militar, cujos membros, entre outras atividades, deviam ser mobilizados, “equipados com sistemas de baixa densidade”,22 tais como veículos aéreos não tripulados, “para eventuais operações em todo o mundo”. Esse período marcou um aumento radical no uso de diversos tipos de drones, que mais tarde se tornariam as armas por excelência, das guerras de Washington. Flynn estava na crista da onda da tecnologia de Inteligência, que estaria, por sua vez, no centro da campanha global cada vez mais acirrada de morte/captura. McChrystal observava dos bastidores o transcurso da invasão do Iraque. Antes que começasse a operação Choque e Pavor, um grupo de elite composto de comandos do JSOC, conhecido como Força-tarefa 20, foi destacado para atuar no Iraque, preparando a chegada da grande força de invasão. Sua missão era tríplice: ajudar as forças invasoras a localizar alvos para ataques aéreos, descobrir mísseis SCUD e outras armas de destruição em massa e caçar Alvos de Grande Valor, como Saddam Hussein. A “supersecreta”23 Força-tarefa 20 “vinha operando na região autônoma curda do norte do Iraque havia mais de uma década, e em 2002 suas forças se infiltraram no Iraque propriamente dito”, revelou William Arkin no Los Angeles Times em junho de 2003. “Os comandos instalaram ‘esconderijos’ e postos de escuta, bem como sensores acústicos e sísmicos nas estradas iraquianas para detectar atividade. Invadiram a rede de fibra óptica do país para escutar as comunicações.” A Força-tarefa, que mal chegava a mil integrantes,24 incluía equipes de alto nível, cada uma delas com doze comandos, que tinham carta branca para viajar por todo Iraque perseguindo Saddam Hussein, líderes do Partido Baath e estruturas de comando militar.
Embora a Força-tarefa 20 tivesse autonomia no campo de batalha e coordenasse suas operações diretamente com oficiais do Pentágono, seus homens às vezes se uniam a unidades militares convencionais. “Em 2003, soldados do JSOC estiveram entre os primeiros a chegar ao sul do Iraque,25 onde entraram sob a proteção de uma força-tarefa blindada da 3a Divisão de Infantaria”, relatam William Arkin e Dana Priest em seu livro Top Secret America (América ultrassecreta).
Segundo três comandantes do JSOC, esses soldados ajudaram a divisão a matar mais de 5 mil iraquianos no episódio que talvez tenha sido o mais sangrento da guerra, a marcha para Bagdá. “Parecia a Segunda Guerra Mundial, tal era o barulho”, disse um comandante do JSOC que estava lá. Os atiradores, em veículos blindados, enfrentavam ondas humanas do Exército iraquiano, fedayin e bandos de simpatizantes civis. Tinham ordens de matar qualquer pessoa que subisse nos veículos. “Aquele era o segredinho sujo, o reverso escuro da guerra”, disse ele. “Havia corpos para todo lado”.
Veículos blindados “também foram entregues aos comandos do JSOC para suas próprias missões de captura ou assassinato, dirigidas contra iraquianos baathistas leais a Saddam Hussein, e de busca e apreensão de armas de destruição em massa”. Eles nunca encontraram nada para apreender. McChrystal voltou do Afeganistão bem quando o planejamento da Guerra do Iraque estava a pleno vapor. Seu novo cargo era de vice-diretor de operações do Estado-Maior Conjunto (J-2). Como muitos funcionários militares e da Inteligência, não via o Iraque como uma ameaça terrorista e não era entusiasta da invasão. “Muitos de nós26 pensávamos que o Iraque não era uma boa ideia”, disse McChrystal ao jornalista Michael Hastings. “Cooptamos a imprensa na invenção da Guerra do Iraque”, disse ele. “Era possível vê-la chegando.” Os esforços americanos para combater a Al-Qaeda no Afeganistão, afirmou McChrystal, foram retardados pela invasão do Iraque. Ele disse:
Acho que, de certa forma, eles se complicaram do ponto de vista militar, mas o que acredito mesmo é que isso aconteceu27 porque a opinião do mundo muçulmano sobre o esforço americano mudou. Quando perseguimos o Talibã no Afeganistão em 2001, havia certo consenso de que tínhamos as condições e o direito de nos defender. E o fato de a Al-Qaeda ter sido protegida pelo Talibã era autêntico. Acho que a decisão de entrar no Iraque foi menos legítima, na opinião de muitos observadores. Assim, ao mesmo tempo que houve uma pressão sobre os recursos e uma redução de nossa capacidade de prender a atenção em vários lugares, acho que o mais importante foi que grande parte do mundo muçulmano agora
questionava o que estávamos fazendo e perdemos parte do apoio que na minha opinião teria sido de grande ajuda no longo prazo.
Não obstante suas apreensões, no primeiro mês da invasão americana no Iraque McChrystal emergiria das sombras e se tornaria — pelo menos durante um mês — um dos rostos mais conhecidos das Forças Armadas dos Estados Unidos. No Pentágono, ele falaria aos repórteres e, a portas fechadas, daria briefings confidenciais ao Congresso. Em abril de 2003, o representante Jose Serrano, democrata de Nova York, apelidou os briefings de “a mentira de cada dia”.28 Os sentimentos de Serrano eram partilhados por outros democratas da Câmara. “Não tiro grande proveito deles [os briefings]”, disse o representante John Conyers. “Fico sabendo mais por outras fontes que não comprometem minha possibilidade de falar” sobre a guerra, disse ele. “Acho que não era a melhor forma de usar meu tempo”, declarou à imprensa o representante Bobby Rush a respeito dos briefings. Outros legisladores, no entanto, entendiam que os briefings de McChrystal eram mais honestos e confiáveis do que as sessões tempestuosas protagonizadas por Rumsfeld. “Minha equipe sai atrás de informações pela manhã”,29 disse o então senador Joseph Biden, que apoiava a invasão do Iraque. “Elas são consideravelmente mais valiosas que as festejadas notícias dadas pelo secretário.” O senador John McCain disse: “Eles simplesmente informam os fatos sem enfeites30 […]. Não acredito que [Rumsfeld] nos informe sobre o quadro puramente militar, como fazem esses caras”. Numa entrevista coletiva, McChrystal chamou a atenção para a importância das Forças de Operações Especiais na Guerra do Iraque. “Elas são mais extensas31 nessa campanha do que em qualquer outra que eu já tenha visto. Provavelmente, como percentagem do esforço, elas não têm precedentes no caso de uma guerra que também tem um aspecto convencional”, declarou. “Provavelmente, este é o uso mais eficiente e amplo das Forças de Operações Especiais na história recente.” Disse que as Forças Armadas estavam usando “um processo bastante preciso e muito dirigido32 contra o regime”. Em 14 de abril, McChrystal já estava praticamente cantando vitória. “Vou adiantar33que os principais combates estão encerrados porque a maior parte das unidades iraquianas em campo deixou de mostrar coerência”, disse ele. Na verdade, a guerra estava apenas começando, e quer pensasse que a invasão do Iraque tinha sido uma “boa ideia” quer não, McChrystal estava a ponto de sentir o gosto da guerra em primeira mão, em campo. Mesmo quando Bush declarava “Missão Cumprida” no Iraque, McChrystal estava sendo solicitado por Cheney e Rumsfeld para comandar a mais poderosa equipe de assassinato/captura da história dos Estados Unidos. Em setembro de 2003, ele se tornou comandante do JSOC.
Mitos contraditórios foram criados em torno de Stanley McChrystal. O que predominou,
repetido incansavelmente em vários perfis publicados pela imprensa, foi o do “guerreiro acadêmico” em melhor forma física do que qualquer outro homem mais jovem sob seu comando. Na década de 1990, quando estava no Conselho das Relações Exteriores, fazia uma única refeição por dia e corria os vinte quilômetros34 que o separavam do gabinete, na ida e na volta, todos os dias. Era bem versado nos clássicos, mas gostava da comédia de Will Ferrell, Ricky Bobby: A toda velocidade, e fazia referência a ela, assim como citava frequentemente os filmes do Monty Python. Sua cerveja preferida era a Bud Lite Lime.35 Sem dúvida, é reverenciado e adorado pelos homens que serviram sob seu comando. “É um guerreiro singular36 na história americana. Tenho, é claro, uma enorme admiração pessoal pelo cara”, disse Andrew Exum, ex-Ranger que serviu sob o comando de McChrystal no Iraque.
Quando se é um jovem líder de pelotão dos Rangers, e Stan McChrystal sobe ao pódio diante de você, você está diante tudo o que quer ser na vida: nem mais nem menos que uma pessoa notável, um soldado fantástico, um sujeito competente e muito admirado. É por isso que ele é chamado de “papa” pelo pessoal da comunidade. É que acima dele não há ninguém.
Na verdade, McChrystal não foi o primeiro comandante do JSOC a ser chamado de “papa.” É uma referência que remete ao governo Clinton, quando a então procuradora-geral Janet Reno37 comentou que arrancar informações do JSOC era como tentar o acesso aos arquivos secretos do Vaticano. Porém, mais do que qualquer outro comandante antes ou depois dele, McChrystal era o Papa para a comunidade do JSOC. Embora achasse que a Guerra do Iraque era uma espécie de tiro no pé, McChrystal a via também como uma oportunidade de revolucionar o JSOC e elevá-lo a uma posição mais poderosa do que nunca. “Stan era o epítome do guerreiro.38 Um homem que quando recebe uma instrução do comandante em chefe, sai na hora e cumpre a ordem”, disse um ex-integrante da equipe de McChrystal. “O que Stan conseguiu entender é que, com o apoio adequado da Casa Branca, ele e sua força conseguiriam fazer coisas que nunca tinham sido feitas.” “McChrystal é teimoso”,39 observou Fury, que foi oficial do Estado-Maior sob o comando dele,
e ninguém poderá dizer que ele não é um homem de notável vigor, intelecto privilegiado e uma dedicação intransigente a seus soldados, ao povo americano e ao nosso estilo de vida. Pessoalmente, não conheço ninguém com mais vigor e apetite pela luta do que […] McChrystal. Ele imprime um ritmo incrível, espera excelência e exige resultados, mas o mais importante é que ouve os homens que estão em campo.
Ao assumir o JSOC, as origens de Ranger de McChrystal serviram-lhe de inspiração para
“rangerizar” o comando. Quando comandava o 75o Regimento de Rangers, “termos como ‘kit’, usado com frequência pelos quadros operacionais da Delta e da Equipe 6 dos SEALs para designar utensílios, armas e equipamento carregados por um integrante de um grupo de assalto, foram banidos do léxico dos Rangers”, disse Fury.
O termo “invasor”, ou “quadro operacional”, também foi proibido no Regimento. Os homens que usavam o cadarço vermelho, preto e branco eram Rangers, e não invasores ou quadros operacionais. E não levavam nenhum kit, levavam equipamento militar padrão.
Quando assumiu o comando do JSOC, McChrystal acreditava que as diversas entidades de que se compunha o comando deviam operar como uma equipe fluente, com um “plano de fertilização cruzada de grupos de técnicas e de formação de equipes” em vez de servir de reserva para as operações mais precisas praticadas pela Delta ou pela Equipe 6, as Unidades de Missões Especiais. “Desde o início” de seu período como comandante do JSOC,
McChrystal tentou abolir-lhe a condição de celeiro do Nível I. Ele agora tinha quadros de ataque e atiradores do Exército e da Marinha, e embora apoiasse totalmente a inovação arriscada e o pensamento fora dos padrões, apressou-se a encaixar suas ações num código de cores de fácil utilização. No entanto, isso nem sempre funcionava como ele queria.
McChrystal acreditava que os rapazes da Delta e da Equipe 6 deviam trabalhar em conjunto, mas, segundo Fury, logo entendeu que essa não seria a melhor abordagem. “Levou algum tempo, mas o general acabou reconhecendo que as duas unidades eram maçãs e laranjas, e enquadrá-las naquele código de cores resultaria numa salada de frutas de técnicas, procedimentos e até de mentalidade.” Essa capacidade de adaptação tornou-se parte da lenda de McChrystal nos tempos em que ele presidia as principais unidades de contraterrorismo dos Estados Unidos e a luta se globalizava cada vez mais. Entretanto, quase invisível para a incansável arenga da imprensa sobre a ascensão do líder guerreiro, existia outro McChrystal — um homem que na verdade tinha visto muito pouca ação desde que chegara ao posto de comandante do JSOC, depois da invasão do Iraque. Esse McChrystal era um arrivista que tinha caído nas graças dos políticos certos, fossem democratas ou republicanos, assim como de figuras essenciais dentro da burocracia militar. Essencialmente, ele era um dos poucos escolhidos. “Soldado de terceira geração,40 [McChrystal] perdeu o fim da Guerra do Vietnã enquanto frequentava West Point. Ao se formar, em 1976, entrou para um Exército esvaziado pelo impopular conflito do Sudeste Asiático”, afirmou Carl Prine, repórter militar veterano.
Com poucas guerras em que lutar durante cerca de duas décadas, ele progrediu num mundo pouco competitivo, com tudo ainda mais facilitado pelo fato de seu pai — o general da reserva Herbert McChrystal — ter sido diretor de Planejamento do Pentágono antes que o filho entrasse para o serviço ativo.
Segundo militares de carreira que conheceram McChrystal na época de West Point, durante anos ele tentou ascender na hierarquia militar. “Gosto muito de Stan como pessoa”,41 disse o coronel Macgregor, que foi companheiro de quarto de McChrystal em West Point. Mas Macgregor diz que depois do Onze de Setembro McChrystal insinuou-se para os neoconservadores, especialmente Rumsfeld e Cheney. “Ele construiu sua reputação no Pentágono com Rumsfeld. Era uma pessoa que via esse ‘Califado global’ como um terrível inimigo, e continuou batendo nessa tecla. Isso tornou-o apreciado por todas as pessoas essenciais.” As Forças Armadas, segundo Macgregor, funcionam com um
sistema que repousa, em última instância, sobre uma fundação que é o favoritismo. Em outras palavras, eles questionam: “Você é um de nós?”. Se acham que é culturalmente confiável, disciplinado, você passa a ser considerado uma pessoa que deve subir para níveis superiores. É uma espécie de fraternidade: “Esse homem vai continuar com a gente? Vai dizer o que mandarmos dizer e fazer o que mandarmos fazer?”.
McChrystal, ele me contou, entendeu bem cedo que “se queria progredir, tinha de estabelecer relações. Foi o que ele fez no Pentágono”. Apesar da preocupação declarada sobre o modo como a política militar americana estava afastando os muçulmanos, McChrystal partilhava a opinião política de que os Estados Unidos se achavam de fato numa guerra contra o Islã, segundo um oficial da reserva que o conhecia desde o começo de sua carreira militar e passou pelo treinamento dos Rangers com ele. “Boykin, Cambone e McChrystal eram companheiros de viagem na grande cruzada contra o Islã”,42 disse-me ele. “Eles executavam o que era, para todos os fins práticos, um programa de assassinato.” Macgregor disse que quando McChrystal foi designado como comandante do JSOC, “recebeu do sr. Cambone, diretor de Inteligência de Rumsfeld, e do general Boykin, braço direito de Cambone, a missão essencial de perseguir ‘terroristas’. E claro que sua definição de ‘terrorista’ era muito, muito ampla.” McChrystal, disse ele, “reinava sobre esse mundo obscuro em que todas as ações contra muçulmanos se justificavam porque você estava lutando contra o Califado”. Enquanto McChrystal reorganizava o JSOC, a Casa Branca e o Pentágono exigiam resultados no Iraque. No fim de 2003, a guerra que os Estados Unidos já tinham dado por ganha estava apenas no começo. A visão que os neoconservadores tinham do Iraque e as políticas mal
concebidas deles estavam alimentando uma insurreição que nascia tanto entre sunitas quanto entre xiitas. O terreno foi preparado no ano em que L. Paul Bremer governava o Iraque dentro da Autoridade Provisória da Coalizão.
Bremer era um conservador convertido ao catolicismo43 que começou sua carreira no governo trabalhando nos mandatos republicanos, e era respeitado tanto por neoconservadores quanto por direitistas evangélicos. Quarenta e oito horas depois do Onze de Setembro, Bremer escreveu no Wall Street Journal:
Nossa reação44 deve ir além dos ataques ineficazes da década passada, ações que pareciam planejadas para “avisar” os terroristas de nossa seriedade sem infligir dano real. Naturalmente, a debilidade dessas ações demonstrou o oposto. Dessa vez, os terroristas e aqueles que os apoiam devem ser esmagados. Isso significa guerra contra um ou mais países. E vai ser uma guerra longa, não dessas feitas para “mostrar na TV”. Devemos evitar uma busca insensata de “consenso” internacional para nossos atos. Hoje, muitas nações estão demonstrando apoio e compreensão por causa das feridas dos Estados Unidos. Amanhã saberemos quem são nossos verdadeiros amigos.
Em meados de abril de 2003, “Scooter” Libby e Paul Wolfowitz entraram em contato com Bremer para falar sobre “a tarefa de dirigir a ocupação do Iraque”.45 Em meados de maio Bremer estava em Bagdá, liderando a Autoridade Provisória da Coalizão. Durante o ano que passou no Iraque, Bremer foi um vice-rei agressivo que andava pelo país com um paletó da Brooks Brothers e com botas Timberland. Apresentava-se como “a única figura de autoridade suprema46 — além do ditador Saddam Hussein — que a maior parte dos iraquianos já conheceu”. Sua primeira iniciativa oficial, supostamente ideia47 de Rumsfeld e de seu adjunto neoconservador, Douglas Feith, foi dissolver as Forças Armadas iraquianas e dar início a um processo de “desbaathificação”, o que no Iraque representaria afastar da reconstrução e do processo político alguns dos cérebros mais privilegiados do país, já que a filiação ao partido tinha sido exigência para muitos empregos no Iraque de Saddam Hussein. A “Ordem 1”48 de Bremer teve como resultado a demissão de milhares de professores, médicos, enfermeiros e outros servidores públicos, o que alimentou um aumento do ódio e da decepção. Para os iraquianos, Bremer repetia o estilo de governo e a política de caça às bruxas de Saddam. Em termos práticos, as atitudes de Bremer levaram a muitos iraquianos uma mensagem de que eles teriam pouco a dizer quanto a seu futuro, um futuro que lhes parecia desolador e já conhecido. A “Ordem 2” de Bremer — a dissolução das Forças Armadas iraquianas — levou ao desemprego centenas de milhares de soldados iraquianos sem nenhum tipo de pensão. “Naquela
semana, fizemos 450 mil inimigos49 no palco do Iraque”, disse um oficial americano à New York Times Magazine. Um mês depois da chegada de Bremer, começou a se falar de um levante nacional. À medida que se generalizava o impacto sangrento da dissolução das Forças Armadas, Bremer reforçava sua retórica inflamada. “Vamos combatê-los50 e impor nossa vontade a eles, vamos capturá-los e se necessário matá-los até que tenhamos imposto a lei e a ordem neste país”, declarou ele. Em 1o de maio, o presidente Bush, usando uma jaqueta de aviador, discursou no porta-aviões USS Abraham Lincoln diante de uma grande faixa que dizia: “Missão cumprida”. “Meus companheiros americanos,51 as principais operações de combate do Iraque estão encerradas”, declarou. “Na batalha do Iraque, os Estados Unidos e nossos aliados dominaram.” Era uma história da carochinha. O regime de Saddam tinha sido deposto e os dias do ditador estavam contados (não muito depois do discurso de Bush, em 23 de julho de 2003, os filhos de Saddam, Uday e Qusay, foram mortos numa incursão do JSOC),52 mas a guerra de guerrilhas — uma das muitas forças em luta — estava apenas começando. Rumsfeld negou as afirmações de que os Estados Unidos estivessem enfrentando uma insurreição guerrilheira. “Suponho que o motivo pelo qual não uso a expressão ‘guerra de guerrilhas’”,53 ele gracejou, “é porque tal coisa não existe.” Mas o recém-indicado chefe do Centcom, que tecnicamente era o comandante da Guerra do Iraque na linha de frente, discordava. O general John Abizaid disse numa entrevista coletiva em julho de 2003 no Pentágono que os Estados Unidos estavam enfrentando uma “guerra de guerrilhas do tipo clássico”54 no Iraque. Abizaid sabia que outra frente de resistência estava se abrindo, e não era comandada pelos “capangas” de Saddam. Em meados de agosto de 2003, três meses depois da chegada de Bremer a Bagdá, os ataques da resistência contra forças americanas e seus “colaboradores” iraquianos eram um fenômeno diário. Novas milícias estavam se formando e grupos sunitas e xiitas atacavam soldados americanos. Rumsfeld e Bush minimizaram a importância dos levantamentos no país, dizendo que eram executados por “remanescentes” do regime deposto, “criminosos”, “saqueadores”, “terroristas”, “forças anti-Iraque” e “gente influenciada pelo Irã”. Mas havia um fato que eles não conseguiam negar: o número de americanos que voltava para casa em caixões de metal aumentava exponencialmente, à medida que se multiplicavam os ataques. “Acreditamos ter uma ameaça terrorista significativa55 no país, que é nova”, Bremer finalmente reconheceu em 12 de agosto. “Estamos tratando isso com muita seriedade.” Em 19 de agosto, uma carreta Kamaz se aproximou do Canal Hotel de Bagdá, sede das Nações Unidas,56 e estacionou bem debaixo da janela do representante especial das Nações Unidas no Iraque, Sérgio Vieira de Melo. No interior do edifício estava sendo realizada uma entrevista coletiva. Momentos depois, uma enorme explosão sacudiu o prédio. O caminhão tinha sido dirigido por um homem-bomba e estava carregado de explosivos, entre eles uma bomba de 220 quilos pertencente ao arsenal das antigas Forças Armadas iraquianas. Ao todo,
morreram 22 pessoas, inclusive Vieira de Melo. Mais de cem ficaram feridas. Os Estados Unidos e as Nações Unidas afirmaram57 que o homem-bomba tinha sido enviado por Abu Musab al Zarqawi, militante nascido na Jordânia que liderava o grupo Jama’at al Tawhid wa’al Jihad. Poucos dias depois da explosão, Rumsfeld discursou numa convenção de veteranos de guerras externas. “Ainda estamos enfrentando determinados adversários.58 Como vimos no Iraque e no Afeganistão, os remanescentes que vieram de regimes derrotados ainda estão entre nós e continuam lutando muito depois de ter sua causa perdida”, declarou.
Existem alguns, ainda hoje, que estão surpresos com a permanência desses bolsões de resistência no Iraque e sugerem que isso representa algum tipo de fracasso por parte da Coalizão. Mas não é esse o caso. Com efeito, suspeito que alguns dos que estão nesta sala, em especial os que serviram na Alemanha durante a Segunda Guerra Mundial ou no período imediatamente posterior à guerra, não se surpreendam com o fato de haver alguns baathistas lutando. Vocês se lembrarão dos remanescentes que ainda lutavam depois da derrota do regime nazista da Alemanha.
Rumsfeld tentava vender a ideia de que o principal da resistência no Iraque vinha dessa fonte, mas a verdade é que as forças mais letais que se erguiam no país eram uma reação à invasão e à ocupação. Enquanto os Estados Unidos combatiam numerosos grupos rebeldes sunitas, o líder xiita Moqtada al-Sadr preparava uma sublevação contra os Estados Unidos, junto com uma campanha de solidariedade para garantir serviços públicos básicos a comunidades de iraquianos. Como Sadr tinha intermediado uma frágil aliança com alguns grupos da resistência sunita, os Estados Unidos enfrentavam a possibilidade de uma rebelião popular nacionalista. Depois do ataque a bomba de agosto, as Nações Unidas retiraram do Iraque a maior parte de seu contingente internacional. Em setembro de 2003, o complexo das Nações Unidas foi atacado pela segunda vez, levando a organização a retirar do país todo o seu pessoal não iraquiano.59 Foi um poderoso exemplo de como a missão do Iraque estava longe de ser cumprida. Naquele mês, McChrystal tornou-se comandante do JSOC, encarregado de esmagar a insurreição que tinha sido incentivada pelas políticas de seus próprios chefes, sobre as quais ele tinha alimentado dúvidas. Depois de Saddam e seus capangas, o terrorista jordaniano Zarqawi, que tinha vindo ao Iraque lutar contra a ocupação americana, tornar-se-ia o alvo número um da Força-tarefa de McChrystal. Zarqawi tinha viajado ao Afeganistão60 para lutar junto aos mujahedin apoiados pelos Estados Unidos contra a ocupação soviética. No começo de 2000, foi julgado à revelia61 na Jordânia por planejar ataques a turistas americanos e israelenses. O governo Bush tinha tentado usar Zarqawi para provar o vínculo da Al-Qaeda com o Iraque, com base num tratamento médico62 que Zarqawi teria feito em Bagdá em 2002. Quando disse, em cadeia nacional de
televisão, em 7 de outubro de 2002, que o regime de Saddam representava uma “grave ameaça”, Bush citou “contatos de alto nível” entre o governo de Saddam e a Al-Qaeda, afirmando que
alguns dos líderes da Al-Qaeda63 que fugiram do Afeganistão foram para o Iraque. Isso inclui um dos mais destacados líderes da Al-Qaeda, que recebeu tratamento médico em Bagdá neste ano, e que tem sido associado ao planejamento de ataques químicos e biológicos.
Em seu discurso às Nações Unidas, Colin Powell chamou Zarqawi de líder da “rede terrorista mortífera”64 que recebeu abrigo seguro do governo de Saddam. Mas a suposição de que Zarqawi tenha estado em Bagdá com consentimento do governo iraquiano era duvidosa.65 O regime de Saddam e a Al-Qaeda eram rivais. Não obstante, depois da invasão, Zarqawi teve a cabeça posta a um prêmio de 25 milhões de dólares,66 e o JSOC pôs-se a caçá-lo no Iraque. Não há dúvida de que Zarqawi era um personagem nefasto, mas era também um vilão conveniente para os Estados Unidos. Washington enfrentava uma resistência crescente no Iraque, e inflar a importância de Zarqawi podia situar os combates no Iraque no contexto de uma guerra ampla contra o terror. Zarqawi desempenhou seu papel com perfeição. Um ano depois do atentado contra as Nações Unidas, ele e seu grupo juraram obediência67 a Osama bin Laden e fundaram a Al-Qaeda da Mesopotâmia, também conhecida como Al-Qaeda no Iraque (AQI). Apesar de sua declaração de lealdade, Zarqawi acabaria sendo um problema para a organização. Seus ataques implacáveis a muçulmanos — tanto no Iraque quanto na Jordânia — acabariam fazendo o jogo da ocupação americana e da propaganda de Washington contra a resistência iraquiana.
O Iraque serviria de laboratório para a criação de uma nova máquina de assassinato e captura, centrada no JSOC, comandada por McChrystal e subordinada apenas a um pequeno grupo dentro da Casa Branca e do Pentágono. Em poucos meses, o programa de assassinato dirigido e captura começaria a se parecer com Programa Fênix da CIA para a Guerra do Vietnã, durante a qual a Agência, apoiada por Forças de Operações Especiais americanas e milícias autóctones, pôs em marcha uma odiosa campanha de “neutralização” do Vietcongue e suas redes de apoio. Em termos claros, o Programa Fênix era na verdade um esquadrão da morte bem organizado. “Eles mataram um grande número de pessoas,68 milhares e milhares, supostamente pertencentes ao Vietcongue”, disse Gareth Porter, historiador independente que escreveu muito sobre o Programa Fênix no Vietnã e sobre a história do JSOC. “O Fênix foi na verdade o avô dessa abordagem [do JSOC] da guerra.” Lidar com a insurreição iraquiana se tornaria uma tarefa à qual se dedicaria a quase totalidade das forças americanas de elite, embora Rumsfeld e Cheney tivessem aspirações de
expandir globalmente a ação do JSOC. Em 16 de setembro de 2003 — no mesmo mês em que Holland se aposentou como comandante do Socom e o general Bryan “Doug” Brown assumiu o posto —, Rumsfeld assinou uma resolução que fazia do JSOC a principal força contraterrorista dos Estados Unidos. A resolução incluía listas pré-autorizadas de quinze países69 onde se poderia empreender a ação contraterrorismo (counterterrorism, CT) e especificava quais ações podiam ser praticadas. Brown, veterano das SOF e membro fundador do 160o Regimento de Operações Especiais da Aviação, disse no Senado que “o centro70 da guerra global ao terrorismo do DoD está no US-Socom”. O Socom, comando autônomo recém-fundado, seria “a principal autoridade de combate para planejar, sincronizar e, como se orientou, executar operações globais contra redes terroristas em coordenação com outras autoridades de combate”. Um mês depois, Rumsfeld exigia respostas de seus principais conselheiros. “Estamos nos mobilizando contra eles, capturando, matando ou detendo e dissuadindo71 mais terroristas todos os dias do que os madraçais e os clérigos radicais estão recrutando e treinando?”, escreveu Rumsfeld num memorando a Wolfowitz, Feith e Myers. Era uma pergunta interessante, debatida por muita gente na comunidade contraterrorista. Mas enquanto a liderança da Al-Qaeda fugia para países de todo o Chifre da África, para a Península Arábica e para o Paquistão, a principal força contraterrorista americana recebia ordens de se centrar totalmente num país onde não havia a presença da Al-Qaeda antes da entrada dos tanques americanos, um ano atrás. O Pentágono distribuiu baralhos a suas tropas no Iraque, atribuindo um valor a cada um dos vários líderes do antigo regime do Partido Baath. Saddam era o ás de espadas. A tradição remonta à Guerra Civil americana. Mas dessa vez, os baralhos não foram produzidos só para as Forças Armadas, mas como objetos de consumo vendidos ao público.72 O governo Bush parecia acreditar em sua própria publicidade sobre como seria fácil a vitória no Iraque, achando que ao destruir o Partido Baath e matando ou capturando seus líderes, a guerra seria ganha sem demora. Quando McChrystal chegou ao Iraque, em outubro de 2003, sua Força-tarefa 20, rebatizada Força-tarefa 121, comandaria a caçada. Entre seus membros havia pessoal do JSOC, comandos SAS britânicos e alguns grupos de iraquianos. Sua tarefa consistia em remover tudo em busca das cartas do baralho. “A missão da ação direta, força-tarefa de operações especiais, era realmente centrada na liderança do antigo regime”, lembrou Andrew Exum, que comandou um pelotão de Rangers como parte da Força-tarefa de McChrystal no Iraque. “As cartas do baralho — sabe como é, as pessoas mais procuradas. Acho que isso se baseava em grande parte na ideia de que a insurreição no Iraque, os combates, como que desapareceriam se uma porção daqueles caras desaparecesse.” Essa teoria se mostrou fatalmente equivocada. Fosse qual fosse o valor estratégico do esforço, ele teve algum sucesso quanto a seus objetivos imediatos — eliminar alvos individuais escolhidos. O braço direito de McChrystal como futuro comandante73 da Força-tarefa Alvos de Grande Valor do JSOC era William McRaven, um SEAL conhecido por suas ambições acadêmicas. Embora McChrystal recebesse grande parte dos
créditos pela competência do JSOC e pela supervisão de seus maiores golpes, a comunidade de Operações Especiais sabia que grande parte das conquistas da Força-tarefa Alvos de Grande Valor era obra de McRaven. Criado em San Antonio, Texas, McRaven cresceu com gosto pelas Forças Armadas — seu pai pilotara aviões de combate Spitfire na Segunda Guerra Mundial. O jovem Bill McRaven era fã ardoroso dos filmes de James Bond — e particularmente fascinado pelas explorações submarinas de Sean Connery em 007 contra a chantagem atômica, segundo sua irmã. “Era o filme predileto dele!”, disse Nan McRaven à revista Time. “Eu disse a ele: ‘Você pode ser um 007 quando crescer’.74 Acho que ele fez isso.” McRaven formou-se em jornalismo pela Universidade do Texas em 1977. Alistou-se no programa de carreira ROTC [Reserve Officers' Training Corps] da Marinha ainda na faculdade, e logo depois de formado, já como oficial, entrou para o treinamento dos SEALs. Terminado o treinamento, foi enviado às Filipinas. Quando Richard Marcinko criou o DEVGRU, a Equipe 6 dos SEALs, em 1982, pediu a McRaven que comandasse uma das equipes de SEALs.75 A liderança desregrada de Marcinko não demorou a criar desavenças com seu jovem tenente. Marcinko comprava carros de luxo para seus SEALs e financiava festas licenciosas76 com prostitutas nas dependências da Marinha. “Os SEALs estavam satisfeitos,77 eu estava satisfeito e ninguém tinha problema com isso, a não ser Bill McRaven”, contou Marcinko à revista Time, lembrando de McRaven como um desmancha-prazeres. “Era um rapaz brilhante, mas não gostava de meu estilo curto e grosso. Se eu era permissivo, ele era rígido demais. Ele eliminava o que havia de especial na guerra especial.” McRaven via as coisas de outro modo. “Eu não era um cavaleiro investindo com minha lança contra um moinho de vento”, conta McRaven. Marcinko “era o chefe, eu era um tenente muito jovem. Havia coisas que eu achava que não estavam muito certas […] e ele me liberava” de fazê-las. Segundo um antigo comandante das Forças Especiais, Marcinko pediu a McRaven que executasse “algumas atividades duvidosas”,78 que McRaven negou-se a fazer e “não voltou atrás”. Outros integrantes da Equipe 6 dos SEALs achavam a integridade de McRaven heroica, mas depois da encrenca com Marcinko “pensaram que era o fim da carreira dele”.79 Na verdade, era a carreira de Marcinko em operações clandestinas que estava chegando a um fim abrupto — enquanto a de McRaven apenas começava. Em março de 1990, Marcinko foi condenado a 21 meses de prisão80 por fraude contra o governo dos Estados Unidos numa venda de armas. McRaven em pouco tempo assumiu o comando de um pelotão da Equipe 4 dos SEALs, voltada para a América do Sul e a Central. Há poucos detalhes de conhecimento público sobre a história de combates de McRaven, embora tivesse sido líder de uma “unidade-tarefa”81 na Guerra do Golfo, segundo sua biografia oficial. Em 1991, ele entrou para a Escola Naval de PósGraduação e se formou em 1993. Contribuiu para a instituição do programa Operações Especiais/Conflito de Baixa Intensidade (Special Operations/ Low Intensity Conflict, SO/LIC) e foi o primeiro formado82 por esse programa. Recebeu uma graduação dupla em SO/LIC e em
questões de segurança nacional. Sua tese de graduação publicada em forma de livro, The Theory of Special Operations (A teoria das Operações Especiais), foi muito lida e usada como texto didático. O livro analisa diversas batalhas de Operações Especiais desde a Segunda Guerra Mundial até a Guerra do Vietnã, apresentando lições que poderiam ser aprendidas para futuros conflitos e guerras. É considerado um texto seminal no estudo da guerra de Operações Especiais. “Bill é tido como o mais inteligente dos SEALs de todos os tempos”,83 disse um ex-comandante em 2004. McRaven serviu como “comandante de unidade-tarefa” no Oriente Médio e comandou também a Equipe 3 dos SEALs, que opera no Sudeste Asiático. Em 2001 era comandante de navio, comodoro do Grupo 1 de Guerra Naval Especial dos SEALs. Pouco depois do Onze de Setembro, a equipe de SEALs de McRaven foi enviada ao Afeganistão, mas seu comandante não pôde acompanhá-la porque tinha fraturado a pélvis84 e parte da coluna num salto de paraquedas perto de sua base, no Colorado. Houve quem previsse que ele jamais lutaria novamente, e que talvez nem voltasse a andar. McRaven renunciou ao comando, mas sua carreira não estava terminada. De certa forma, o acidente de paraquedas foi positivo. Embora fora do campo de batalha nos primeiros tempos, ele se tornaria um ator85 importante na estratégia que daria forma às operações de contraterrorismo praticadas nos anos seguintes. Wayne Downing, que acabava de ser nomeado vice-conselheiro de Segurança Nacional para o combate ao terrorismo, pediu a McRaven que fizesse parte de sua equipe na Casa Branca. McRaven acabou trabalhando para Downing durante dois anos, enquanto se recuperava das lesões. Atribui-se a ele o papel principal na autoria da “Estratégia Nacional de Combate ao Terrorismo” de Bush. Não foi um trabalho confortável para um guerreiro marginalizado. O capitão McRaven se transformaria na principal figura do JSOC dentro do NSC e coordenaria o Gabinete de Combate ao Terrorismo. Entre suas atribuições estava a confecção e verificação86 das listas de Alvos de Grande Valor que seriam abatidos pelo JSOC. Ele foi um dos principais responsáveis pela militarização da política contraterrorista dos Estados Unidos e pela construção da infraestrutura para a criação de listas de morte. A passagem de McRaven pelo NSC abriu-lhe o caminho para se tornar um dos nomes mais poderosos da história militar dos Estados Unidos e uma figura transformadora na institucionalização do assassinato como componente central da política de segurança nacional americana. Logo depois do Onze de Setembro, não havia mais de duas dúzias de nomes na lista da morte dos Estados Unidos. Desde que McRaven assumiu o trabalho, a lista passou a crescer ano a ano. Depois de colaborar na preparação do JSOC para a caçada humana global, McRaven finalmente seria convocado para implementá-la. Existem “três pessoas que realmente aperfeiçoaram as Forças de Operações Especiais e podem reivindicar o crédito pela maneira como elas se desenvolveram a partir de 2001”, disse-me Exum. “Você tem Bill McRaven, Stan McChrystal e Mike Flynn”.
IO. “A intenção deles é a mesma que a nossa”
SOMÁLIA, 1993-2004 — No começo de janeiro de 2003, Mohamed Afrah Qanyare estava postado na pista do campo de pouso isolado1 que ele controlava, a pequena distância de Mogadíscio, ao norte. O minúsculo aeroporto era uma pequena fortaleza numa nação perigosa e sem lei. A segurança privada de Qanyare que vigiava o perímetro estava estrategicamente distribuída “no mato”, fazendo um ataque de surpresa — ou, se se quiser, uma visita informal — muito arriscada. Nos anos que se seguiram à queda do ditador Mohamed Siad Barre — que encabeçou o último governo estável da Somália —, Qanyare se firmou como um dos mais poderosos chefes de milícias2 que devastavam Mogadíscio e reclamavam sua própria fatia do território. A pista de pouso de Daynile era feudo de Qanyare. E dava dinheiro. Muito dinheiro. Ao longo de uma década, os lucros do aeroporto vieram basicamente do contrabando de mira,3 ou khat, a folha de propriedades estimulantes mascada por milhões de pessoas em todo o Chifre da África e na Península Arábica. Era a droga preferida dos milhares de milicianos que lutavam liderados por Qanyare e por outros chefes de milícias, além de fator importante na loucura que tomava conta da Somália havia muito tempo. Mas naquele dia em especial — 5 de janeiro de 2003 — a aeronave que Qanyare esperava na pista não era da Bluebird Aviation,4 com seu carregamento de folhas da desordem, mas um pequeno Gulfstream que trazia um outro tipo de carga volátil. Qanyare disse que não lembra para qual órgão de governo trabalhavam os brancos que desceram do aeroplano naquele dia, mas eram sem dúvida americanos. “Acho que eram da Inteligência militar especial e da CIA”, recordou Qanyare. “Mas na verdade não sei. É assunto deles. Eram da Inteligência, da Inteligência americana.”5 Poucas semanas antes, Qanyare tinha sido abordado por um amigo de toda confiança que lhe contou que a CIA queria encontrar-se com ele em Nairóbi, Quênia. No dia seguinte ao Natal, Qanyare reuniu-se num quarto de hotel com um grupo de brancos. “Eles pediam para trabalharmos juntos, e aceitei porque os Estados Unidos são uma potência mundial”, disse ele. “Discutimos assuntos de Inteligência.” Tratava-se da intenção de Washington de perseguir e eliminar um pequeno grupo de quadros operacionais da Al-Qaeda que estavam no radar da CIA e do JSOC. Entre eles, como disseram os americanos a Qanyare, havia homens perigosos que tinham planejado e executado os ataques a bomba contra as embaixadas dos Estados Unidos no
Quênia e na Tanzânia em 1998, matando mais de duzentas pessoas. Disseram também que Washington desconfiava que a Al-Qaeda estivesse planejando ampliar seus ataques na África Oriental. Com efeito, em 28 de novembro de 2002, um mês antes da reunião de Qanyare com os americanos em Nairóbi, terroristas executaram ataques simultâneos no Quênia.6 Um dos alvos foi um resort de férias em Kikambala, no litoral norte de Mombasa; o outro foi um jato israelense no Aeroporto Internacional Moi, na mesma cidade. No primeiro ataque, três homens entraram no Paradise Hotel num veículo carregado de explosivos, matando treze pessoas além de si mesmos e ferindo mais de oitenta. Depois de alguns minutos, dois homens dispararam mísseis terra-ar contra o avião da Arkia Airlines7 que faria o voo 582. Por pouco não atingiram o avião. Washington suspeitava que os homens responsáveis pelo planejamento desses ataques faziam parte da mesma célula que atacara suas embaixadas em 1998. Depois dos atentados no Quênia e na Tanzânia, muitos dos principais suspeitos foram parar na Somália — entre eles, Fazul Abdullah Mohammed, mais tarde indiciado8 nos Estados Unidos por suposta participação nas explosões. No fim de 2001, Fazul tinha começado a reunir uma equipe9 em Mogadíscio que acabaria perpetrando os ataques de 2002 no Quênia. Algumas das armas usadas em Mombasa foram rastreadas e sua origem atribuída ao próspero mercado negro de armas10 da Somália, inclusive os mísseis terra-ar Strela-2 usados contra o avião israelense. O financiamento da operação ficou a cargo de um sudanês, Tariq Abdullah,11 também conhecido como Abu Talha al-Sudani, que se deslocava entre a Somália e os Emirados Árabes Unidos (EAU). Um quadro operacional até então desconhecido, Saleh Ali Saleh Nabhan, chamou a atenção das autoridades americanas quando o rastreamento do carro que explodiu no Paradise Hotel levou até ele.12 Cidadão queniano de ascendência iemenita, Nabhan era acusado também de ter disparado um dos mísseis. Ele teria administrado uma célula terrorista em Mombasa durante anos, possivelmente servindo de intermediário principal13 entre a célula do Quênia e a liderança da Al-Qaeda no AfeganistãoPaquistão. Depois dos ataques de novembro de 2002, Nabhan, Fazul e seus cúmplices fugiram mais uma vez para a Somália14 de barco. Esses homens figuravam com destaque na lista de Alvos de Grande Valor que Washington pretendia pegar, mas havia outras preocupações maiores e mais sistemáticas, como uma Somália desgovernada servindo de território privilegiado para a Al-Qaeda lançar novas raízes, principalmente depois que a invasão americana do Afeganistão pôs em fuga as lideranças da organização que lá se encontravam.
Mohamed Qanyare tem uma presença marcante, física e intelectualmente. É alto e seus olhos, ladeados de rugas, têm uma intensidade surreal. Como ele mesmo diz, foi criado no “sertão” da Somália e educou-se com missionários menonitas15 que lhe ensinaram a profissão de
contador. Quando jovem, Qanyare aplicou seus estudos fazendo a contabilidade da polícia secreta da Somália, que impulsionou sua carreira nos recônditos obscuros da política bélica do país. Ele fala inglês fluente e ri a toda hora de suas própria piadas, muitas delas bastante engraçadas. Com frequência veste guayaberas muito bem passadas, embora a cabeleira revolta mostre seu lado mais rude. Durante os três anos que se seguiram à primeira visita de seus quadros operacionais ao aeroporto de Qanyare, os americanos pousariam ali uma ou duas vezes por semana.16 A equipe americana17 muitas vezes misturava quadros operacionais da CIA a “atiradores” do JSOC. No começo, era a CIA quem comandava a operação a partir da embaixada americana em Nairóbi. “O aeroporto está no interior,18 no meio do mato. Portanto, ele realmente é bastante secreto”, gabava-se Qanyare. “Foi projetado para não expor ou deixar ver quem está pousando. Os americanos gostam disso.” Numa das primeiras visitas, Qanyare levou-os a sua mansão. Durante o café, eles puseram diante do chefe militar somaliano uma série de fotografias. Ele se negou a revelar o que os americanos lhes disseram que pretendiam fazer com os homens das fotos. “Minha tarefa era eliminar os representantes da Al-Qaeda da Somália e de toda a África Oriental”, disse-me Qanyare.
Minha intenção era dar combate a essas pessoas com a ajuda, os conhecimentos e a anuência dos americanos. Essa era minha intenção. Posso dizer que a intenção deles é a mesma que a nossa, e que eles querem eliminar os representantes da Al-Qaeda do Chifre da África.
Embora o pessoal da CIA trabalhasse com Qanyare e outros chefes de milícias, membros da divisão de Inteligência do JSOC — a Atividade — às vezes agiam por conta própria. De forma independente, começaram a construir uma rede de vigilância e escuta19 em toda Mogadíscio. Estavam “preparando o campo de batalha”, não lutando nele. Em Washington, ainda não havia disposição para levar coturnos americanos ao solo da Somália. Mas com certeza havia apetite por uma força terceirizada ao velho estilo, que Qanyare satisfaria com prazer. Em média, contou Qanyare, os americanos lhe pagariam entre 100 mil e 150 mil dólares20 mensais por seus serviços e pelo uso de seu aeroporto. Telegramas diplomáticos confidenciais enviados da embaixada americana em Nairóbi detalhavam um plano que empregaria “parceiros com laços não tradicionais21 (leia-se chefes de milícias)” na Somália. Seu objetivo, de acordo com os telegramas, era “localizar e neutralizar Alvos de Grande Valor”. Assim nasceu uma coalizão de chefes de milícias financiada pelos Estados Unidos que atuariam como homens de Washington na Somália. O nome que ela acabaria por receber exalava o envolvimento da Agência: Aliança para a Restauração da Paz e do Contraterrorismo. Na comunidade americana de Inteligência, no entanto, ela ficou conhecida como “operação Black Hawk”,22 numa alusão ao desastre de 1993 que levou à retirada das forças americanas da Somália. O que começou como
uma silenciosa operação de coleta de informações contra um punhado de membros da Al-Qaeda em pouco se tornaria uma guerra suja a pleno vapor, reminiscência do apoio dos Estados Unidos aos contras da Nicarágua na década de 1980.
A Somália poderia ser um país muito diferente daquele que os Estados Unidos e seus chefes de milícias ajudaram a criar depois do Onze de Setembro. O islamismo radical23 era uma novidade no país e não se generalizou antes do lançamento da GWOT. Muitos analistas experientes em assuntos da Somália acreditavam que a meia dúzia de radicais que havia no país poderia ter sido contida e que o objetivo central da estabilização deveria ter sido desarmar os chefes de milícias e privá-los de poder. Em vez disso, Washington apoiou diretamente a expansão de sua força e, no processo, causou um retrocesso que abriu as portas para que a AlQaeda se instalasse no país. Enquanto a CIA cultivava seu relacionamento com Qanyare e outros chefes de milícias, o governo oficial da Somália observava dos bastidores. Constituído de tecnocratas formados no Ocidente, o “Governo Nacional de Transição” era pouco além de uma ideia que existiu em suítes de hotel e em cafés do Quênia e outros países vizinhos. E os órgãos de contraterrorismo de Washington tratavam-no como tal. Depois dos ataques do Onze de Setembro e da declaração de Bush: “Quem não está conosco está com os terroristas”,24 o ministro das Relações Exteriores da Somália, Ismail Mahmoud “Buubaa” Hurre, apressou-se a escrever uma carta ao secretário de Estado americano. “Estamos com vocês,25 e estamos tão preocupados quanto vocês com a possibilidade de a Al-Qaeda entrar [na Somália]”, recorda Buubaa. “Mas”, disse-me ele, enquanto tomava um café num luxuoso hotel de Nairóbi, “a resposta foi morna.” Em vez de estreitar laços com o governo da Somália, comentou, “eles começaram a cooperar com os chefes de milícias, achando que a melhor maneira de combater o terrorismo seria ajudando-os a ficarem mais fortes e expulsando os fundamentalistas da Somália. O tiro saiu pela culatra”. Em 23 de setembro de 2001, o presidente Bush assinou a Resolução 13224, definindo mais de 25 grupos e pessoas como terroristas que podiam ser visados pela GWOT. Mais tarde, a lista cresceria para mais de 180 nomes. Oficialmente, a resolução era um meio de “interromper a rede de apoio financeiro a terroristas e organizações terroristas”,26 mas também revelava grupos que poderiam ser atingidos militarmente. Entre os alvos originais havia um grupo somaliano, Al-Itihaad al-Islamiya (AIAI). Embora o grupo tenha sido desmantelado em grande parte27 antes do Onze de Setembro, era usado como nome genérico para designar militantes islâmicos na Somália. O AIAI tinha participado da insurreição28 contra a força de paz das Nações Unidas na Somália na década de 1990 e assumiu uma série de atentados terroristas e assassinatos na Etiópia.29 As acusações de uma ligação da Al-Qaeda com o incidente do Black Hawk Down foram em grande parte ligadas ao AIAI. Sua inclusão na Resolução 13224 foi uma indicação de que o governo Bush estava considerando a possibilidade de atacar dentro do território da Somália.
Os que planejavam a guerra nos Estados Unidos previam que quando as forças americanas invadissem o Afeganistão, os quadros operacionais da Al-Qaeda e outros jihadistas buscariam refúgio em outro lugar. O Iêmen e a Somália estavam entre os destinos previstos, e por isso Washington e seus aliados mobilizaram uma flotilha conhecida como Força-tarefa 150,30 encarregada de interceptar os jihadistas que se dirigissem para aqueles países. Falando da sede da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) em 18 de dezembro de 2001 — depois de um relatório apresentado por Rumsfeld aos ministros da Defesa das nações-membros — o ministro da Defesa da Alemanha, Rudolf Scharping, disse aos repórteres que a questão de uma incursão dos Estados Unidos na Somália “não era de ‘se’, mas de ‘como’e ‘quando’”.31 Rumsfeld não perdeu tempo negando o que chamou de “uma história engraçada32 sobre um alemão que fala qualquer coisa”, e disse aos repórteres presentes a um briefing à imprensa do DoD que “o alemão estava errado”. “Ele não quis dizer aquilo e provavelmente lamenta tê-lo dito”, continuou Rumsfeld. “E estava redondamente enganado.” Embora as forças americanas não tivessem entrado imediatamente na Somália — tendo o Afeganistão e o Paquistão como prioridades —, a base expandida de Camp Lemonnier no Djibuti ia se transformando a passos largos num centro de irradiação das atividades do JSOC e da CIA no Chifre da África. A base foi incumbida de manter a Somália sob vigilância, assim como o Iêmen, seu vizinho, dela separado apenas por uma estreita faixa d’água. Scharping poderia ter se enganado no curto prazo, mas se comprovaria depois que “redondamente enganado” havia sido um exagero. Poucos dias depois que Rumsfeld desmentiu os planos dos Estados Unidos para entrar na Somália, o secretário de Estado Colin Powell disse que a instabilidade do país tornavao “maduro para ser manipulado33 por aqueles que fomentam o caos”, e acrescentou: “É por isso que estamos mesmo de olho na Somália — não para persegui-la como nação ou como governo, mas por perceber o fato delicado de que o país pode ser um lugar onde as pessoas de repente encontram abrigo”. Funcionários do governo americano na África Oriental preocupavam-se também com a possibilidade de que o Quênia pudesse se transformar numa espécie de Paquistão, oferecendo esconderijo para uma rede da Al-Qaeda que supostamente estaria “reconstruindo sua infraestrutura no Quênia”.34 Algumas vozes começaram a se erguer dentro das Forças Armadas americanas em favor de uma presença robusta e plena dos Estados Unidos no Chifre da África, e os noticiários abundavam em especulações a respeito dos propósitos de Washington quanto à Somália. “A possibilidade de haver células do terror no país é real”,35 declarou Walter Kansteiner, que liderava a divisão África do Departamento de Estado na época. “Identificando a Somália como base terrorista36 para a Al-Qaeda de Bin Laden e outras organizações extremistas, consta que aviões de reconhecimento dos Estados Unidos […] tenham começado a vigiar alvos a partir do céu, enquanto as Forças Armadas e os agentes da CIA contatavam possíveis aliados na Somália e na vizinha Etiópia”, segundo o jornal San Francisco Chronicle. O vice-secretário de Defesa Paul Wolfowitz disse que, avaliando as ameaças terroristas no Chifre da África, “as
pessoas mencionam a Somália por razões óbvias.37 É um país praticamente sem governo, um país em que a Al-Qaeda já tem certa presença”. Da mesma forma que o governo de Ali Abdullah Saleh no Iêmen, as elites governantes do Quênia e da Etiópia viram oportunidades na ameaça terrorista depois do Onze de Setembro. Os dois governos receberam bem o reforço da assistência contraterrorista americana, o treinamento de suas forças e o apoio financeiro em troca de permitir o acesso territorial a forças dos Estados Unidos. A Etiópia, durante longo tempo o arqui-inimigo da Somália, via os islamistas locais como uma ameaça e forçava a barra para mostrar a Al-Qaeda como um perigo assustador para seu vizinho do leste. Enquanto os interessados regionais invocavam uma ameaça terrorista iminente e se espalhavam boatos de uma possível operação americana na Somália, destacados especialistas em assuntos somalianos se referiam ao perigo da Al-Qaeda como “uma ninharia”.38 “Não há necessidade39 de entrar às pressas na Somália”, disse o exembaixador americano na Etiópia, David Shinn. “Se o que se quer são alvos militares, duvido que existam.” O professor Ken Menkhaus, da Universidade Davidson, um intelectual somaliano que escreveu diversos ensaios sobre a tradição política islâmica da Somália antes do Onze de Setembro, calculava que o número de somalianos com “laços significativos” com a Al-Qaeda estaria entre dez e doze.40 Uns poucos combatentes estrangeiros também poderiam estar escondidos lá, mas com a carência de Inteligência — à qual Shinn se referia como “abissal”41 —, táticas do tipo “pegue e agarre” poderiam não ser aconselháveis, recomendou. Embora dentro das Forças Armadas, da CIA e do governo Bush houvesse quem quisesse entrar na Somália, esses planos teriam de esperar. A Força-tarefa Conjunta Combinada para o Chifre da África no Djibuti assumiu a posição de observar para ver o que acontecia, e muitos de seus comandos, incluindo os efetivos do JSOC e da CIA, originalmente destacados para Camp Lemonnier depois do Onze de Setembro, seriam reorientados para a iminente invasão e ocupação do Iraque. Como revelou um ex-membro do Comando de Operações Especiais da Força-tarefa para o Chifre da África, de início havia a determinação de
trazer todos os recursos42 das Forças Armadas dos Estados Unidos, especificamente o Comando de Operações Especiais. E iríamos garantir que [a Al-Qaeda] não fosse capaz de se recuperar ou de usar qualquer parte do Chifre da África como santuário para suas operações contra os Estados Unidos.
No entanto, ele explicou que
contra a nossa vontade, as coisas não aconteceram assim. A certa altura, os responsáveis superiores decidiram que a principal ameaça à segurança nacional dos Estados Unidos era o Iraque. E quando o foco foi desviado para lá, os recursos foram com ele. Isso levou a uma
ausência de foco, e mais flagrantemente, a uma falta de recursos para o Chifre da África e seu entorno.
O papel do JSOC na Somália durante os anos que se seguiram ao Onze de Setembro ficou reduzido a dar proteção local à CIA, à instalação de equipamentos de vigilância em campo e a uma equipe de prontidão43 no Djibuti, preparada para o assalto se alguma coisa desse errado com os pequenos grupos comandados pela CIA que lidavam com os chefes de milícias. À medida que os recursos do JSOC eram canalizados em massa para o Iraque, a ação dos Estados Unidos na Somália reduziu-se a uma guerra secreta terceirizada. E os Estados Unidos fizeram de Mohamed Qanyare seu homem em Mogadíscio. Segundo telegramas diplomáticos confidenciais enviados pela embaixada americana em Nairóbi, a Inteligência americana desautorizava furiosamente críticas internas à aliança com chefes de milícias para executar as operações de assassinato dirigido e captura. “As afirmações de diplomatas e colegas de organizações não governamentais (ONGs) de que uma abordagem mais sutil […] ajudaria a orientar nossas ações contraterroristas não levam em conta o imediatismo da ameaça”, dizia um desses telegramas. Certas pessoas, afirmava claramente a mensagem, “devem ser afastadas da equação somaliana”.44 Foi o começo de uma relação de muitos anos entre a CIA e uma rede de chefes de milícias criminosa que conduziria a Somália por um caminho ainda mais direto para o caos e o banho de sangue. Teria como resultado também o ressurgimento das próprias forças islâmicas que os Estados Unidos queriam esmagar, mais poderosas do que nunca.
Para muitos americanos, a palavra Somália traz à lembrança uma de duas imagens: uma criança desnutrida ou soldados americanos arrastados pelas ruas de Mogadíscio depois do infausto incidente da derrubada dos helicópteros Black Hawk em 1993. A suposta participação da Al-Qaeda na batalha de Mogadíscio foi incluída em 1998 num indiciamento45 de Bin Laden nos Estados Unidos, no qual a organização era acusada de ter treinado clãs somalianos para combater a missão americana, o que culminou com dezoito soldados americanos mortos e 73 feridos. Bin Laden certamente ajudou a dar força a essa versão. Naquele ano, numa declaração, ele chamara os Estados Unidos de “cobra” e exortava seus seguidores a “cortarem-lhe a cabeça e detê-la”.46 Numa entrevista posterior, Bin Laden se gabaria de que os militantes que derrubaram os Black Hawks estavam entre os 250 jihadistas47 mandados por ele à Somália. Segundo suas declarações,
os jovens ficaram surpresos48 com o baixo moral dos soldados americanos e compreenderam melhor do que nunca que o soldado americano é um tigre de papel e com uns poucos golpes
se deixa derrotar […] arrastando seus corpos e sua vergonhosa derrota.
Não obstante, muitos especialistas duvidam que a Al-Qaeda tenha desempenhado um papel central nesses acontecimentos. Somalianos entrevistados pela imprensa disseram que “nunca tinham ouvido falar de Bin Laden49 antes que ele começasse a se vangloriar de sua ação na Somália”. Sem dúvida, durante esse período, Bin Laden estava procurando deixar sua marca, mas as milícias somalianas em nada precisavam de sua ajuda para implantar a destruição. O país já tinha caído num estado permanente de guerra civil, com vários chefes de milícias comandando homens que aterrorizavam e desestabilizavam o país, disputando o controle sobre cada metro de terreno. Depois da retirada da força das Nações Unidas, em 1994, a Somália mergulhou ainda mais fundo no caos. A “Batalha de Mogadíscio” foi o final sangrento de uma missão cujo codinome era operação Serpente Bárbara.50 Liderada pelo general de divisão William Garrison, na época comandante do JSOC, ela se tornou um dos grandes desastres da comunidade de Operações Especiais dos Estados Unidos desde a fracassada missão de resgate dos reféns americanos em Teerã em 1980. No entanto, muita gente dentro da comunidade do JSOC não via as coisas dessa forma. O tenente-general Boykin, um dos membros originais da Força Delta, serviu ao lado de Garrison na missão da Somália como comandante do contigente da Delta. “Esse lugar miserável51 mastigou e cuspiu combatentes de elite do mais poderoso exército da história do mundo”, pensou Boykin ainda em Mogasdíscio depois da batalha. Ele culpou a Casa Branca de Clinton de ter abandonado a Somália. Depois do desastre, Boykin e Garrison pressionaram pelo envio de mais soldados e defenderam um aprofundamento da ofensiva,52 mas seus pedidos foram rejeitados. O general Garrison passou para a reserva53 em 3 de agosto de 1996, exatamente dois dias depois da morte de Mohamed Farrah Aidid,54 que fora ferido em combate semanas antes na Somália. Embora o país tenha sido deixado de lado pelos Estados Unidos nos anos seguintes, ele nunca saiu da cabeça dos quadros operacionais do JSOC. Só em 1996, depois que Bin Laden foi expulso do Sudão, a Al-Qaeda passou a fazer sentir sua presença na África Oriental. No verão de 1998, agentes americanos na Albânia negociaram a transferência clandestina de cinco membros55 da jihad islâmica, a organização de Ayman alZawahiri. Os homens foram transferidos para o Egito, onde teriam sido torturados inclusive com choques elétricos56 na genitália. Em 5 de agosto, Zawahiri publicou uma carta num jornal britânico em que jurava vingança contra os Estados Unidos “numa língua que eles vão entender”.57 Dois dias depois, em 7 de agosto de 1998, células da Al-Qaeda organizadas nas cercanias de Nairóbi lançaram caminhões-bomba contra as embaixadas americanas no Quênia e na Tanzânia, matando 224 pessoas, entre elas doze americanos, e ferindo mais 5 mil. Foi a primeira vez que grande parte do mundo ouviu falar de Osama bin Laden e que o FBI inscreveuo na sua lista dos dez mais procurados.58 O líder da Al-Qaeda, ao assumir a responsabilidade pelos ataques às embaixadas, disse inicialmente que aquele era o troco59 dado aos Estados
Unidos pela “invasão” americana da Somália, mas a data escolhida para os ataques coincidiu também com o oitavo aniversário60 da mobilização de tropas americanas para a Arábia Saudita. “Usaremos todos os meios ao nosso alcance61 para levar os responsáveis à justiça, não importa o quanto custe e quanto tempo leve”, declarou o presidente Clinton no Rose Garden depois dos ataques. Clinton assinou um documento secreto que autorizava o uso dissimulado de força letal na caça aos responsáveis; a Casa Branca determinou que uma missão para matar Bin Laden “não seria incoerente com a proibição dos assassinatos”. Embora Clinton tenha autorizado a CIA a usar força letal contra Bin Laden, instruções posteriores dadas a chefes de postos da CIA no mundo destacavam que seria preferível capturá-lo.62 A opção de usar Forças de Operações Especiais americanas estava sobre a mesa, mas o governo concluiu que “seria muito mais fácil63 e menos arriscado disparar mísseis de cruzeiro”, segundo o relatório do Pentágono encomendado por Rumsfeld para revisar a política contraterrorista da era Clinton. O general Downing, ex-comandante do JSOC e do Socom, disse que a posição que ele encontrou entre funcionários do governo Clinton era: “Não deixem esses caras das SOF64 passarem pela porta porque são perigosos […]. Eles vão fazer alguma coisa constrangedora” para o país. Embora algumas informações em poder dos americanos indicassem que as missões exploratórias65 que culminaram nos atentados contra embaixadas tivessem sido coordenadas na Somália, a Casa Branca de Clinton não permitiria nenhuma incursão naquele país. Em vez disso, preferiu atingir lugares suspeitos da Al-Qaeda no Afeganistão e no Sudão com mísseis de cruzeiro de longo alcance numa missão denominada operação Alcance Infinito.66 O alvo do bombardeio no Sudão, a fábrica Al-Shifa, acabou sendo um laboratório farmacêutico legítimo, que produzia a metade dos medicamentos consumidos no país67 e não, como alegaram os Estados Unidos, uma instalação para a fabricação de gás paralisante. Não obstante, a África Oriental já tinha sido escancarada como uma nova frente nas operações que vinham se tornando uma guerra secreta dos Estados Unidos contra a Al-Qaeda. “Estamos envolvidos num conflito de longo prazo”,68 disse a secretária de Estado Madeleine Albright. “Infelizmente, esta é a guerra do futuro.” Quando Bush assumiu o governo, o secretário de Defesa, Donald Rumsfeld, concordou com a avaliação de Albright, mas via a posição do governo Clinton em relação à “guerra do futuro” com absoluto desprezo. Assumiu o cargo decidido a situar as forças mais obscuras do aparelho militar dos Estados Unidos à frente e no centro da máquina de guerra, e o Onze de Setembro acelerou seus planos. Mas nos primeiros anos depois do Onze de Setembro a Somália foi, no melhor dos casos, uma preocupação de terceiro nível para o governo Bush — atrás da guerra do Afeganistão e, finalmente, do Iraque.
Nos anos que se seguiram à retirada dos Estados Unidos e das Nações Unidas de Mogadíscio, a Somália foi ainda mais destruída. A bela arquitetura da capital, com seus magníficos edifícios
de influência italiana, ficou reduzida a uma série de esqueletos esburacados por projéteis. Jovens desempregados — muitos deles viciados em khat — uniram-se às milícias formadas a partir de clãs e dedicaram a vida à causa dos chefes dessas milícias. “Todos pensavam em termos de tomar para si uma fatia de Mogadíscio”,69 lembrou Buubaa, o ex-ministro das Relações Exteriores.“Era como se o Estado somaliano tivesse acabado e cada um quisesse demarcar sua pequena gleba para ganhar dinheiro e poder para fins pessoais que nada tinham a ver com os interesses nacionais.” Essa foi a Somália a que chegaram os americanos em 2003, quando se aproximaram de Qanyare, uma das pessoas que tinha contribuído para a destruição do país. O general Downing afirmou que uma “atitude discreta e quase invisível”70 seria crucial para a estratégia americana na Somália, acrescentando que os Estados Unidos deveriam ter cuidado para não “inflar o atrativo da retórica [da Al-Qaeda] ou a repercussão de sua ideologia extremista”. O governo Bush pode ter tentado seguir a parte do conselho de Downing referente à atitude discreta, mas, pelo fato de se aproximar dos chefes de milícias, necessariamente desatendeu à segunda parte. Acreditando ter o aval de Washington, Qanyare e sua aliança apoiada pela CIA em pouco tempo se transformaram: de capangas em luta pelo controle do território passaram a ser milícias paramilitares que usavam o disfarce da guerra contra o terrorismo para justificar suas atividades. Funcionários da CIA e o pessoal de Operações Especiais viajavam entre Nairóbi e Mogadíscio71 transportando dinheiro e listas de suspeitos que Washington queria eliminar. De início, o foco estava na captura de quadros operacionais estrangeiros. A CIA não queria que os chefes de milícias perseguissem somalianos por medo de dar combustível à guerra civil. Segundo o jornalista Sean Naylor, especializado em assuntos militares, o líder do programa conjunto da CIA com os chefes de milícias era John Bennett, na época chefe da estação da CIA em Nairóbi. Internamente, Bennett expôs as regras práticas de seu programa: “Vamos trabalhar com os chefes de milícias. Não enganamos nossos escolhidos. Eles não nos enganam. Não perseguiremos somalianos, apenas [estrangeiros da] Al-Qaeda”. Os milicianos, no entanto, tinham seus próprios planos. Qanyare me contou que seus treinadores d a CIA relutavam em apertar o gatilho72 em operações de assassinato, temendo que um americano pudesse ser morto ou capturado. Assim, eles deixavam o serviço sujo para Qanyare e os demais chefes. Depois do acordo com a CIA, Qanyare e seus seguidores se lançaram numa campanha total de assassinato dirigido e captura contra qualquer pessoa — somaliano ou estrangeiro — suspeita de apoiar algum movimento islâmico. Em alguns casos, os milicianos capturavam pessoas que os Estados Unidos consideravam alvos de grande valor, como Suleiman Ahmed Hemed Salim, suspeito de pertencer aos quadros operacionais da Al-Qaeda, preso na primavera de 2003.73 Mohamed Dheere,74 um dos chefes de milícias e companheiro de Qanyare, sequestrou Salim e entregou-o aos americanos. Soube-se depois que Salim foi mantido em duas prisões secretas75 no Afeganistão. Em 2004, contrariando frontalmente as regras que Bennett supunha observadas pelos chefes de milícias, os homens de Qanyare fizeram uma incursão na casa de um militante
somaliano,76 Aden Hashi Farah Ayro. Na tentativa declarada de capturar Abu Talha al-Sudani, que os Estados Unidos estavam caçando na suposição de que estivesse ligado aos ataques às embaixadas na África, eles sequestraram por engano o cunhado de Ayro, Mohamed Ali Isse, procurado por sua ligação com uma onda de assassinatos ocorridos na Somalilândia em 2003-4. Isse contou77 que foi posto num helicóptero americano e transportado para um navio da Marinha dos Estados Unidos. O jornalista Paul Salopek, do Chicago Tribune, descobriu o paradeiro de Isse numa prisão de Berbera, Somalilândia, anos depois. Isse lhe contou que, uma vez a bordo do navio americano, foi tratado de um ferimento causado por bala e logo interrogado por agentes americanos à paisana durante cerca de um mês. Depois foi levado a Lemonnier, a caminho de uma prisão clandestina na Etiópia, onde afirmou ter sido torturado com choques elétricos por agentes da Inteligência etíope treinados por americanos. Foi devolvido então ao campo de trabalhos forçados na Somalilândia, onde permaneceria. Dezenas de outros suspeitos foram sequestrados pelos milicianos apoiados pela CIA e entregues a agentes americanos. “O empenho78 dos líderes da facção Mogadíscio em agarrar figuras da Al-Qaeda para os americanos e receber recompensa em dinheiro gerou uma pequena indústria de sequestros. Como especuladores no mercado de ações, líderes de facções dedicaram-se a prender estrangeiros — principalmente árabes, mas não exclusivamente — na esperança de que estivessem numa lista de procurados”, segundo um relatório de 2005 do Grupo Crise Internacional.
Segundo um líder de milícia que colaborou estreitamente com os americanos em operações de contraterrorismo, nada menos de dezessete suspeitos foram apreendidos somente em Mogadíscio a partir de 2003 — todos eles, exceto três, aparentemente inocentes.
Em muitos casos, os Estados Unidos decidiam que os prisioneiros não tinham interesse para a Inteligência e mandava-os de volta para a Somália. Às vezes, segundo um antigo alto funcionário do governo somaliano e oficiais militares, os milicianos executavam essas pessoas para evitar que falassem.79 “Esses homens já eram chefes de milícias odiosos,80 detestados por muita gente em Mogadíscio. Foi então que começaram a assassinar imãs e líderes de oração locais”, disse Abdirahman “Aynte” Ali, analista somaliano que escreveu longamente sobre a história da AlQaeda e sobre a política dos chefes de milícias na Somália. “Eram capturados e levados para o Djibuti, onde há uma grande base americana. Em muitos casos, tinham a cabeça decepada e levada aos americanos, a quem os algozes diziam: ‘Matamos este cara’.” E acrescentou: “A grande maioria das pessoas que eles mataram nada tinha a ver com a GWOT”. Num telegrama diplomático enviado da embaixada em Nairóbi para o Departamento de Estado, funcionários americanos reconhecem que o uso de milicianos na caçada a supostos
terroristas “pode parecer uma escolha indigesta,81 sobretudo à luz das baixas entre civis em recentes episódios de combate em Mogadíscio”. Mas, explicam: “Esses parceiros são o único recurso de que dispomos para expulsar” os terroristas “de suas posições na capital do país”. Quando conheci Qanyare, ele negou que suas forças estivessem cometendo execuções extrajudiciais ou sequestrando e torturando prisioneiros, mas depois de pressionado a respeito de suas operações admitiu que capturava e interrogava pessoas. E então respondeu: “Quando você está combatendo um inimigo, qualquer opção é válida. Se você quer combater a Al-Qaeda, precisa combatê-los sem piedade, porque eles são impiedosos”. Fez uma pausa antes de fechar com chave de ouro sua afirmação. “Sem misericórdia.”82
O “governo americano não estava ajudando83 o governo [somaliano], mas ajudava os chefes de milícias que lutavam contra o governo”, queixou-se Buubaa, o ex-ministro das Relações Exteriores. Washington “achava que os milicianos eram fortes o bastante para caçar os islâmicos ou livrarem-se deles. Mas aconteceu tudo ao contrário. Tudo ao contrário. Foi uma loucura, uma ideia louca”. À medida que a CIA estreitava seu envolvimento com os chefes de milícias somalianos, a maior parte dos efetivos do JSOC e das Forças Armadas americanas no Chifre da África era redirecionada para a guerra que Cheney e Rumsfeld estavam mortos de vontade de fazer desde que chegaram ao poder: no Iraque. Esse não seria um conflito comandado pela CIA, como ocorreu nas primeiras etapas da Guerra do Afeganistão. O JSOC regeria o espetáculo. E teria um novo líder, uma “estrela em ascensão” e um dos “cavaleiros de Jedi84 que estão lutando no que Cheney chama de ‘sombras’”.
II. “Um inimigo derrotado não é um inimigo destruído”
IÊMEN, 2003-6 — Pouco depois das onze da noite1 de 12 de maio de 2003, numerosos grupos de militantes da Al-Qaeda executaram um ataque muito bem coordenado em Riade, Arábia Saudita. Usando uma combinação de carros-bomba e comandos fortemente armados, as células da Al-Qaeda atingiram três edifícios que abrigavam um grande número de americanos e outros ocidentais. Entre esses alvos estavam as instalações de uma empresa prestadora de serviços de defesa para os Estados Unidos, a Vinnell Corporation,2 que dava treinamento para Guarda Nacional Saudita, e outro prédio pertencente a um bilionário saudita simpatizante dos Estados Unidos. Morreram 35 pessoas e mais de 160 ficaram feridas. Meses depois, em novembro de 2003, outro ataque a bomba contra o condomínio residencial Al Mohaya,3 no vale do Laban, matou dezessete pessoas e feriu mais de 120. Os dois ataques inflamaram uma campanha contra as redes da Al-Qaeda4 em todo o reino — foram presas mais de seiscentas pessoas e algumas, acusadas de cumplicidade, foram capturadas e mortas. Embora a Al-Qaeda tenha considerado os ataques um grande sucesso, a repressão que eles desencadearam obrigou a organização a procurar uma base segura fora da Arábia Saudita. Muitos de seus membros fugiram para o Iêmen. Durante esse período, a rede da Al-Qaeda no Iêmen virou uma confusão. Um ano depois do ataque do drone em novembro de 2002, o sucessor de Harithi, Muhammad Hamdi al-Ahdal,5 foi preso com dezenas de outros militantes suspeitos. Sob pressão dos Estados Unidos, Saleh deteve e mandou para a cadeia mais de cem pessoas,6 declaradamente por suspeita de envolvimento com o ataque ao USS Cole. O período seguinte, de 2003 a 2006, só mereceu destaque na medida em que o governo Bush parecia ter se desinteressado completamente pelo Iêmen e por possíveis ameaças da Al-Qaeda provenientes do país. “Houve um interlúdio7 de pouco mais de dois anos em que parecia que a Al-Qaeda havia sido derrotada no Iêmen”, lembrou Gregory Johnsen, professor da Universidade Princeton, tido como um dos maiores especialistas americanos em Iêmen, num depoimento prestado ante a Comissão de Relações Exteriores do Senado.
Entretanto, em vez de garantir a vitória, tanto o governo dos Estados Unidos quanto o do Iêmen trataram-na como absoluta, sem compreender que um inimigo derrotado não é um
inimigo destruído. Com efeito, a Al-Qaeda foi retirada da lista de prioridades dos dois governos e substituída por preocupações aparentemente mais urgentes. Embora a ameaça representada por ela não tenha necessariamente ficado esquecida entre 2004 e 2005, foi em grande parte ignorada.
Johnsen acreditava que esse “lapso de vigilância” foi “em boa medida responsável pela relativa facilidade” com que a Al-Qaeda reconstruiu sua infraestrutura no Iêmen. Outro fator que agiu em favor da organização foi a prisão de centenas de pessoas por simples suspeita de filiação a ela — em alguns casos, com poucos ou nenhum indício —, o que transformou as cadeias em fábricas de radicalismo. “Esses homens foram jogados em prisões de segurança máxima com combatentes experientes que fizeram de tudo para radicalizar seus companheiros de cela, jovens e sugestionáveis”, declarou Johnsen ao Senado. “Esse problema foi bastante negligenciado na época” e “voltaria a assombrar tanto o Iêmen quanto os Estados Unidos ao longo de muitas etapas da guerra contra a Al-Qaeda”. Em Washington, as autoridades pareciam ter perdido o interesse pelo Iêmen, mas o mesmo decerto não acontecia com as Forças Armadas americanas, sobretudo a comunidade de Operações Especiais. Embora Rumsfeld tenha designado a maior parte das forças de captura e assassinato do JSOC para a campanha de Alvos de Grande Valor no Iraque, o Iêmen permaneceu no radar dessas forças, cuja missão expressa era a execução de operações contraterroristas. Diversos veteranos de Operações Especiais desse período disseram-me que estavam decepcionados8 pelo que consideravam o desvio para o Iraque de sua capacidade operacional, que poderia ser usada para confrontar a ameaça mais séria representada pela Al-Qaeda em outros lugares. Em meados de 2003, o terreno no Iêmen estava sendo preparado para o ressurgimento da Al-Qaeda, enquanto o presidente Saleh lutava para acabar com uma insurreição interna. Em 2004, a minoria houthi9 protagonizou uma sublevação armada no norte, desencadeando uma contraofensiva por parte de Saleh que resultou na morte de centenas de pessoas, entre elas Hussein Badreddin al-Houthi, líder da rebelião. Seu irmão, Abdul-Malik alHouthi, sucedeu-lhe e continuou a lutar contra Saleh. Para combater os houthis durante o período que se tornou conhecido como o “das seis guerras” e durou de 2004 a 2010, Saleh usou forças tanto da Al-Qaeda quanto sauditas, além de suas próprias Forças de Operações Especiais,10 treinadas e equipadas pelos americanos. Ahmad Mansur, porta-voz da Al-Qaeda, afirmou que o governo iemenita pediu apoio da Al-Qaeda para combater os houthis em troca de “relaxar a perseguição11 a nossos membros”. Essa versão foi confirmada12 por diversas exautoridades de destaque da Inteligência e das Forças Armadas dos Estados Unidos. Saleh recebeu também um forte apoio dos sauditas nesse esforço. Consta que a certa altura eles davam ao Iêmen 10 milhões de dólares, por mês,13 para que o país combatesse os houthis. Para os sauditas, a situação do país apresentava um conjunto de problemas que ia além da
rebelião dos houthis. De modo geral, o reino saudita era o principal financiador do Iêmen, fornecendo ao governo de Saleh uma quantia estimada em 2 bilhões de dólares anuais14 em ajuda. Para justificar suas guerras contra os houthis perante os Estados Unidos, Saleh e os sauditas afirmaram com insistência a existência de apoio iraniano aos houthis e deliberadamente identificavam os rebeldes com a Al-Qaeda. Enquanto o presidente Saleh lançava mão de vários argumentos na tentativa de sustentar seus próprios objetivos políticos e militares, e a CIA e o JSOC se entrincheiravam cada vez mais no Iêmen a partir de sua base no Djibuti, Saleh se valia do desejo americano de ter sob custódia os suspeitos da explosão do Cole para obter mais apoio material. Apesar dos insistentes pedidos do FBI e de outras agências e funcionários americanos, o presidente se recusava a entregar os principais suspeitos da explosão, entre eles Jamal al-Badawi, cuja extradição tinha sido pedida abertamente pelos Estados Unidos depois que ele foi indiciado num tribunal federal americano em 2003.15 “A Constituição do Iêmen16 proíbe a extradição de iemenitas”, disse Saleh ao New York Times. Saleh intermediou um esquema pelo qual a maior parte dos suspeitos seria processada e condenada no Iêmen. Em 2002, pressionado por Washington a tomar alguma atitude, ele criou o que chamou de “conselho de diálogo”17 para “enfrentar” os jihadistas em solo iemenita por meio da reabilitação e da reconciliação. “O Estado iemenita sentiu uma necessidade urgente18 de agir contra o islamismo radical”, observou a pesquisadora Ane Skov Birk, especializada em terrorismo. “Essa necessidade nasceu da percepção do perigo que ameaçava o país, representado em parte pelos próprios militantes e em parte pela possibilidade de que os Estados Unidos declarassem guerra ao Iêmen se o Estado deixasse de agir contra aqueles militantes.” Como parte do programa, centenas de iemenitas foram postos sob custódia, com relatos de tortura e tratamento desumano que representaram “graves violações19 dos direitos dos presos”. Entre 2002 e 2005, mais de trezentos iemenitas foram soltos. Diversos dos “reabilitados” pelo programa voltariam à luta,20 combatendo no Iraque ou unindo-se à Al-Qaeda ou a outros grupos militantes no Iêmen, e o programa acabou sendo suspenso em 2005. Para experientes observadores do Iêmen, o jogo de Saleh com os suspeitos do Cole lembrava um esquema de captura de reféns com o objetivo de arrancar mais dinheiro, mais treinamento e mais equipamento militar dos Estados Unidos. Entregá-los aos americanos seria um desastre político para Saleh e acabaria com seu poder de negociação em relação a Washington. “Depois do Cole,21 Saleh entendeu que a Al-Qaeda não merecia confiança, mas não ia abrir o jogo”, disse um ex-funcionário do contraterrorismo americano que trabalhou longamente no Iêmen durante esse período. Ele me disse que os suspeitos da Al-Qaeda que iam parar na cadeia acabavam sendo soltos após cumprir um “programa fictício de ‘reabilitação’ em que juravam sobre o Alcorão que renunciariam ao terrorismo, eram indultados ou o governo simplesmente deixava que fugissem”. Em 2003, dez dos principais suspeitos da explosão do Cole fugiram da cadeia,22 dando início a um ciclo que durou anos de prisões, indiciamentos, fugas e novas
prisões. “A Al-Qaeda pretende23 causar apenas o dano necessário para convencer o regime [de Saleh] de que é melhor reduzir o esforço de destruir a Al-Qaeda e permitir que o grupo atue em relativa liberdade no Iêmen e a partir dele, desde que não realize ataques importantes dentro do país”, observou o ex-funcionário da CIA, Michael Scheuer. A atitude de Saleh em relação a supostos quadros operacionais da Al-Qaeda, segundo Scheuer, “quase com certeza equivale a uma licença para que os militantes façam o que quiserem, onde quiserem, desde que não seja no Iêmen”. De 2003 a 2006, enquanto o governo de Saleh permaneceu de fora do radar do governo Bush, houve reuniões ocasionais para exigir ação contra os suspeitos do Cole. Em 2004, James Pavitt, vice-diretor de operações da CIA, declarou à Comissão do Onze de Setembro: “Nossas operações,24 em conjunto com nossos parceiros, estão ganhando terreno contra o núcleo da AlQaeda”, e acrescentou: “Há dois anos e meio, teríamos posto na seguinte ordem nossas principais preocupações: Iêmen, Arábia Saudita, Sudeste Asiático”, mas hoje “quase todos os alvos principais desapareceram do Iêmen, mortos ou capturados”. Na verdade, o gigante adormecido estava apenas acordando.
12. “Nunca confie num infiel”
REINO UNIDO, 2003 — Na época em que a invasão do Iraque se transformava rapidamente numa ocupação, Anwar Awlaki voltou ao Iêmen, mas lá seu pai convenceu-o a fazer uma nova tentativa na Grã-Bretanha.1 Anwar deixou a família a cuidado dos pais e voltou ao Reino Unido, onde ficaria durante quase dois anos, pregando muitas vezes em mesquitas bem conhecidas. Entre os patrocinadores de Awlaki2 estavam a Associação Muçulmana da Grã-Bretanha e a Federação das Sociedades de Estudantes Islâmicos, ambas com fortes laços com a Irmandade Muçulmana, uma organização mundial. Sua parceria com essas organizações foi provavelmente de conveniência, observou o pesquisador Alexander Meleagrou-Hitchens, que fez um alentado estudo histórico sobre a vida de Awlaki.
Por meio da parceria, as organizações procuraram cooptar3 um pregador jovem e carismático que as ajudasse a ganhar prestígio entre os muçulmanos ocidentais. Em troca, abririam para ele as facilidades de sua considerável capacidade organizacional, oferecendo a Awlaki uma tribuna e grandes plateias já formadas.
Em 2003, Awlaki realizou uma turnê de palestras na Grã-Bretanha, durante a qual falou em proeminentes universidades, faculdades e organizações comunitárias sobre a “guerra contra o Islã” e o papel dos muçulmanos no mundo ocidental. “Sua popularidade no Ocidente estava no auge, e ele atraía multidões”, segundo Meleagrou-Hitchens. O dr. Usama Hasan, que tinha sido imã da mesquita Tawhid em Leyton, no norte de Londres, disse que Awlaki tinha se tornado “um dos ícones do salafismo ocidental4 e lotava qualquer ambiente em que falasse. As pessoas ansiavam por vê-lo”. Awlaki continuou levando sua mensagem e, embora muitas de suas prédicas se concentrassem em ensinamentos religiosos ou em fazer analogias modernas a Maomé e outros profetas, sua política se tornava claramente mais militante. Seus sermões encontravam eco entre os jovens que amadureciam numa época em que percebiam que sua religião estava sendo demonizada. “Há uma cultura global sendo empurrada pela goela5 de todos os que estão na face da Terra. Essa cultura global é protegida e promovida. Thomas Friedman, um escritor famoso nos Estados Unidos e que escreve para o New York Times, diz que a mão oculta do mercado não
sobrevive sem seu punho oculto. A rede McDonald’s nunca teria florescido sem a McDonnell Douglas — que projetou os F-15s”, disse Awlaki num sermão.
Em outras palavras, não estamos na verdade tratando com uma cultura benevolente e compassiva. É uma cultura que não deixa escolha. Ou você aceita o McDonald’s, ou McDonnell Douglas manda seus F-15s em cima de sua cabeça. É uma cultura muito intolerante que não pode coexistir com nada mais. Ela extirpa qualquer outra cultura da face da Terra. Simplesmente corta-lhe as raízes. E aqui temos uma citação do [historiador russo e dissidente soviético] Alexander Soljenítsin […]. “Para destruir um povo, você deve cortar suas raízes.” E a única ideologia que está fazendo frente a essa cultura global é o Islã.
Awlaki deplorava a realidade que percebia entre os jovens muçulmanos ocidentais, o fato de que eles
conhecessem melhor astros do rock ou jogadores de futebol que os companheiros de Rasul Allah [o profeta Maomé]. Vocês podem ver que nossa juventude sabe mais sobre pop stars do que sobre os Sahaba [companheiros] de Rasul. Na verdade, às vezes até mais do que sobre os Anbiya [Profetas]. Quantos de nossos jovens sabem o nome de todos os Anbiya de Alá? Quantos dos nossos jovens sabem o nome dos Sahaba? Mas pergunte a essas mesmas pessoas o nome dos jogadores de futebol de seu time, ou dos melhores jogadores de basquete, e eles vão saber a lista toda. Portanto, está havendo uma grave crise de identidade entre os muçulmanos.
Awlaki entrelaçava referências da cultura pop com histórias do Alcorão. Criticava a imprensa corporativa e as organizações internacionais de direitos humanos, que ele denunciava como propagandistas daqueles que “planejavam matar” o Islã. Em Londres, fez um discurso em que prevenia jovens muçulmanos a não se enganarem com a aparente bondade de seus vizinhos ou amigos não muçulmanos.
A lição importante que se deve aprender é nunca, jamais confiar num kuffar (infiel).6 Não confie nele. Ora, talvez você diga: “Mas meu vizinho é uma pessoa tão legal, meus colegas de classe são tão legais. Meus colegas de trabalho são pessoas fabulosas, tão decentes e honestos. E sabe como é, o único problema é que nós muçulmanos estamos criando má fama para o Islã. Seria bom que esses terroristas parassem de fazer o que estão fazendo” […]. Eu não vou discutir se seu vizinho é uma pessoa legal. Ou o seu colega de classe. Eles devem mesmo ser
pessoas decentes e legais. Mas, irmãos, essa pessoa que você conhece não é a que manda. E quando o Alcorão fala sobre os infiéis, está falando dos líderes, daqueles que manipulam os cordões. Não faça um juízo [com base em] Fulana de Tal e Fulano de Tal. Nem baseado no americano médio.
Os infiéis, disse ele, estavam decididos a destruir o Islã. “Precisamos ficar espertos e não nos deixar enganar”, declarou ele à plateia enlevada. “Malcolm X sempre dizia: ‘Temos sido feitos de bobos’.” Awlaki falava muito na perseguição e detenção de muçulmanos pelo mundo, de Guantánamo a Londres, Virgínia e outros lugares. Pedia a seus seguidores que vissem a luta deles no Ocidente como a mesma que se dava em países muçulmanos. “Estamos vendo7 cair uma nação muçulmana atrás da outra, e ficamos olhando, sentados, sem fazer nada. Quando tomaram a Palestina, não fizemos nada”, vociferou num sermão em Londres durante um evento chamado “Basta de Terror Policial”. “A Ummah [comunidade muçulmana global] fica olhando enquanto o Iraque está sendo consumido. E não vai parar por aí, porque a coisa vai se espalhar a outros países, como a Síria, e só Alá sabe qual será o próximo.” E acrescentou: “Quando permitimos que uma nação muçulmana caia, estamos permitindo que aconteça a mesma coisa a todos e a cada um de nós”. A palestra de dezembro de 2003 foi organizada como parte de uma série de eventos realizada na Grã-Bretanha contra o que a comunidade muçulmana via como repressão racista. Usando leis antiterror semelhantes à Lei Patriot dos Estados Unidos, as forças de segurança britânicas deram início a uma campanha de prisões em massa de muçulmanos — muitos deles estudantes — por suspeita de envolvimento em complôs terroristas. “Estamos prendendo8 gente sem parar”, disse a mais alta autoridade da polícia britânica, John Stevens. “Isso faz parte desse grande esforço que estamos fazendo desde o Onze de Setembro. E vai continuar.” Foi contra esse pano de fundo que Awlaki disse a seus ouvintes que
muitos muçulmanos vêm sendo presos. Sabe quando se fala em Guantánamo e essas coisas todas? Existe uma Guantánamo9 neste país. Houve 524 muçulmanos presos dentro das novas leis, e só dois foram acusados. Temos mais de 520 muçulmanos trancados na cadeia, deixados a apodrecer, sem que exista crime nenhum — eles não fizeram nada e não há acusações contra eles. São deixados lá durante meses a fio, só para apodrecer nas celas daquelas prisões. O que vocês fizeram por eles?
Ele convocou seus seguidores a agir.
Ficamos aqui sentados olhando sem fazer nada. Achando que, tapando os olhos e ficando
quietos, vamos estar em segurança. Se você não der um basta a isso agora, vai acontecer com você, pode acontecer com sua mulher, com sua filha. É preciso pôr limites antes que isso cresça… Então você precisa fazer qualquer coisa de que for capaz. É uma responsabilidade — está pendurada em seu pescoço. É uma coisa que você deve a seus irmãos muçulmanos, à Ummah e a Alá.
Em Londres, os sermões de Awlaki se tornaram mais políticos, condenando as guerras em países muçulmanos e a detenção de muçulmanos no Ocidente. Guantánamo e o programa americano de tortura tiveram um impacto forte e claro sobre ele. “Ele se tornou uma figura pública,10 como você vê”, lembrou seu pai. Embora muitos de seus primeiros sermões fossem apolíticos e versassem sobre a vida dos profetas e a interpretação do Alcorão, ele se tornara um ativista político. “Anwar, em todas as suas palestras, tentava ligar o que dizia a coisas que estavam acontecendo”, disse Nasser. Em seus sermões, entrelaçava suas teorias sobre a guerra dos Estados Unidos contra o Islã à condenação da tortura, levando às vezes suas convicções ao terreno da teoria conspiratória, principalmente ao denunciar as organizações de defesa dos direitos humanos. “Os judeus e os cristãos11 não ficarão contentes enquanto você não for como eles. Como podemos confiar nos líderes do kufr (descrentes) quando hoje, hoje mesmo, agora, neste instante, há irmãos muçulmanos na cadeia?”, disse Awlaki numa palestra na Grã-Bretanha, com a voz trêmula de emoção.
Usam todos os métodos sinistros de interrogatório contra eles. Usaram homossexuais para estuprá-los. Trouxeram mães, irmãs e esposas que foram estupradas diante desses irmãos. Sim, é verdade que isso não está acontecendo no Ocidente, mas o Ocidente sabe disso. As Nações Unidas sabem disso. A Anistia Internacional sabe disso, e eles não fazem nada. Na verdade, às vezes até incentivam.
Meleagrou-Hitchens destacou que durante todo o tempo que passou na Grã-Bretanha, Awlaki não “fez declarações públicas claras de apoio à jihad violenta no contexto ocidental contemporâneo”, observando que “embora procurasse incutir um despertar político islâmico em seu público, não recomendava abertamente uma jihad violenta em países do Ocidente”. Ainda que falasse sobre a jihad e usasse textos históricos árabes, como o Livro da Jihad, de Ibn Nuhaas, intelectual do século XIV que morreu lutando contra os mongóis e os cruzados, tinha cuidado ao expor seus argumentos. “Quero dizer logo12 de início e deixar muito claro que nosso estudo deste livro não é uma exortação ou um convite à violência, ou uma promoção da violência contra uma pessoa, uma sociedade ou um Estado”, disse Awlaki numa palestra sobre o livro. “Estamos estudando um livro de seiscentos anos… É isso que estamos fazendo. Trata-se de um estudo meramente acadêmico de um livro velho e tradicional.” Ficava claro que Awlaki
estava pensando em sua próxima jogada, e Meleagrou-Hitchens acredita que sua “renúncia” a convocar à violência “tinha provavelmente a intenção de evitar a atenção das autoridades britânicas de segurança”. O prestígio de Awlaki entre os jovens muçulmanos anglófonos nas ruas estava em alta, mas sua vida solitária na Grã-Bretanha, longe da mulher e dos filhos, não era sustentável. Então, Awlaki decidiu voltar para Sana’a. Nasser Awlaki disse que era porque Anwar não tinha conseguido se manter no Ocidente13 e queria procurar oportunidades de trabalho e estudo no Iêmen. Mas pessoas ligadas a Anwar no Reino Unido tinham outra opinião. Usama Hasan, que lutara contra os soviéticos no Afeganistão, insinuou que Awlaki queria levar à prática aquilo que dizia. “Sempre tive a impressão14 de que ele ansiava por isso [fazer a jihad], e nosso anseio foi de certa forma saciado, mas ele nunca teve essa oportunidade”, disse. “Juntem-se a isso os fortes vínculos que ele tinha com o Iêmen, muito ligado à Al-Qaeda, e o apelo da jihad era então muito forte.”
13. “Você não precisa provar para ninguém que agiu certo”
IRAQUE, 2003-5 — Com a Guerra do Iraque já a pleno vapor, Rumsfeld instruiu o general John Abizaid, comandante do Centcom, a extinguir as Forças-tarefas de Grande Valor que o JSOC dirigia no Afeganistão e no Iraque, a TF-5 e a TF -20. No lugar delas, o JSOC dirigiria uma Forçatarefa unificada, a TF-121, com jurisdição operacional sobre os dois países. Por trás disso estava a ideia de que “localizar e depois capturar1 ou matar líders da Al-Qaeda e do Talibã ou membros fugitivos do antigo governo do Iraque exigia planejamento e missões que não fossem limitadas pelo traçado do mapa numa região de fronteiras porosas”. Foi mais um passo no sentido de eliminar a distinção entre missões “secretas” e missões “clandestinas”, mas Rumsfeld determinara que o JSOC fosse em frente. Em consonância com a determinação de Rumsfeld de fazer das Forças de Operações Especiais o principal instrumento na “caçada humana global”, a Força-tarefa seria comandada2 por McRaven e supervisionada por McChrystal, que teriam à sua disposição todos os recursos de Inteligência dos Estados Unidos, inclusive o que precisassem da CIA. Além dos SEALs de McRaven, dos Rangers de McChrystal e de membros da Força Delta, a equipe teria comando sobre paramilitares da Divisão de Atividades Especiais3 da CIA e apoio da Atividade, o braço de Inteligência do JSOC dedicado à interceptação. Os dias em que quadros operacionais do JSOC eram cedidos rotineiramente à CIA tinham terminado. O Braço de Apoio Estratégico, de Cambone, e a Atividade estavam coordenando o fornecimento dos dados de todas as fontes da Inteligência à Força-tarefa. “Isso equivale a reduzir a distância entre o sensor e o atirador,4 disse ao Washington Times um alto funcionário da Defesa. “Você passa todas as suas próprias informações aos caras que atiram e prendem. Todas as informações sob um mesmo teto.” Embora a TF-121 tivesse recebido a missão5 de matar ou capturar Osama bin Laden e Saddam Hussein na primavera de 2004, o interesse de Washington estava cada vez mais no Iraque. Funcionários veteranos da Inteligência identificaram esse período como um divisor de águas na caça a Bin Laden. Numa época em que o JSOC pedia mais recursos e autorizações para perseguir alvos no Paquistão e em outros países, houve um desvio radical que fez do Iraque a prioridade número um. O alto preço da reorientação para uma missão contraterrorista mais abrangente foi uma grave preocupação para o tenente-coronel Anthony Shaffer, oficial da Inteligência militar,
treinado pela CIA e com passagens pela DIA e pelo JSOC. Shaffer comandava uma força-tarefa, a Stratus Ivy, que fazia parte do programa iniciado no fim da década de 1990 conhecido pelo codinome Able Danger.6 Utilizando o que era então a última palavra na tecnologia de “escavação de dados”, o programa era tocado pela Inteligência militar e pelo Comando de Operações Especiais e tinha como objetivo identificar células da Al-Qaeda em todo o globo. Shaffer e alguns de seus colegas7 do Able Danger alegaram que tinham descoberto vários sequestradores do Onze de Setembro um ano antes dos ataques, mas nenhuma providência tinha sido tomada a respeito deles. Disse à Comissão do Onze de Setembro8 que se sentira frustrado quando o programa foi encerrado, pois acreditava que era uma das poucas ferramentas eficazes que os Estados Unidos tinham na luta contra a Al-Qaeda antes do Onze de Setembro. Depois dos ataques, Shaffer voltou à ativa como voluntário e tornou-se comandante da Base Operacional Alfa, da DIA, que segundo ele “executava operações antiterroristas clandestinas” na África. Shaffer comandava o programa secreto, visando membros da Al-Qaeda que pudessem fugir do Afeganistão para buscar abrigo na Somália, na Libéria e em outras nações africanas. “Foi a primeira ação secreta da DIA9 na era pós-Guerra Fria, na qual meus oficiais usaram as Forças Armadas africanas para caçar e matar terroristas da Al-Qaeda em seu lugar”, lembrou Shaffer. Como muitos outros funcionários experientes que perseguiam a Al-Qaeda antes do Onze de Setembro, Shaffer acreditava que finalmente o foco estava na direção certa ao destruir a rede do terror, matando ou capturando seus líderes. Mas aí todos os recursos foram redirecionados para a invasão do Iraque. “Eu vi a insensatez10 do governo Bush de perto e em pessoa”, disse Shaffer. Depois de um ano e meio comandando as operações africanas, “fui obrigado a fechar a Base Operacional Alfa para que seus recursos fossem usados na invasão do Iraque”. Shaffer foi readmitido como planejador de Inteligência da equipe da DIA que ajudava a passar informações sobre possíveis localizações de WMDs às equipes avançadas do JSOC que entraram no Iraque em segredo antes da invasão. “Não deu em nada”,11afirmou. “Como sabemos agora, nenhuma WMD foi encontrada.” Ele acreditava que o desvio do foco e dos recursos para o Iraque foi um erro grave que permitiu a Bin Laden continuar em ação por praticamente mais uma década. Shaffer por fim foi enviado para o Afeganistão, onde se desentendeu com outros líderes militares dos Estados Unidos sobre suas intenções de comandar operações dentro do Paquistão para chegar aos líderes da Al-Qaeda que estavam escondidos no país. A partir de 2002 e durante 2003, unidades de Operações Especiais e da CIA no Afeganistão começaram a desviar seus recursos para o Iraque. Ao ser desativada, em 2003, a TF-5 do Afeganistão já tinha perdido “mais de dois terços12 de sua força de combate”: passou de 150 comandos para apenas trinta. No inverno de 2003, “quase metade13 dos agentes da Inteligência e comandos americanos que tinham estado no Afeganistão e no vizinho Paquistão já tinham sido enviados para o Iraque”. O codinome de Saddam era “Número Um da Lista Negra”, e a força de McRaven intensificou a caçada, vasculhando todo o país atrás dele. Tiraram de suas casas ou
esconderijos membros da família, antigos guarda-costas e assessores de Saddam e pressionaram essas pessoas para que dessem informações sobre o paradeiro dele. No fim de 2003, os comandantes das Forças Armadas convencionais dos Estados Unidos estavam ficando cada vez mais preocupados com o que ouviam sobre as técnicas usadas pela TF-121 para interrogar prisioneiros. Era muito parecido com os rumores que tinham ouvido sobre o que a CIA estava fazendo em suas prisões clandestinas. “Os presos capturados pela TF-12114 tinham ferimentos que levaram os médicos a observar que ‘eles mostram sinais de terem sido surrados’”, segundo um relatório militar secreto preparado para destacados generais americanos que estavam no Iraque na época. O relatório cita um oficial que teria dito: “Todo mundo sabe disso”.15 O documento alegava que parte do tratamento dispensado aos detidos pela TF-121 poderia ser “tecnicamente” ilegal e advertia seriamente sobre a possibilidade de que a prisão em massa de iraquianos lançasse lenha na fogueira de uma insurreição latente, acrescentando que os iraquianos poderiam passar a ver os Estados Unidos e seus aliados como “inimigos gratuitos”.16 Contudo, no momento mesmo em que os militares descobriam o programa de detenções potencialmente ilegal e contraproducente que estava sendo posto em prática pela TF-121, a Força-tarefa conquistou uma importante vitória que chegaria às manchetes internacionais e ganharia muitos elogios no Pentágono. Um ex-guarda-costas17 capturado e interrogado por ela tinha informado a localização de uma fazenda na periferia de Tikrit, a cidade natal de Saddam, que o líder iraquiano usava como esconderijo. Os homens de McRaven, apoiados por dezenas de soldados da 4a Divisão de Infantaria e milicianos locais, pousaram na fazenda depois de cortar o fornecimento de energia e deixá-la totalmente às escuras. Após revistarem as construções da propriedade, estavam a ponto de desistir quando um soldado notou uma fenda no assoalho, parcialmente encoberta por um tapete. Debaixo dela acharam uma placa de isopor disfarçando um buraco.
Em 14 de dezembro de 2003, o governo Bush julgou que o fim da Guerra do Iraque — e a vitória — estavam à vista. Naquela manhã, Paul Bremer, tendo ao lado o general Ricardo Sánchez, subiu ao pódio para uma estrevista coletiva em Bagdá. “Senhoras e senhores, nós o pegamos”,18 disse Bremer, mal disfarçando um sorriso. Ele se referia a ninguém menos que Saddam Hussein. O líder iraquiano deposto tinha sido encontrado escondido numa trincheira escavada no interior de uma cabana de tijolos numa fazenda em Adwar, perto de Tikrit, com uma pistola. Os soldados apreenderam ainda alguns fuzis AK e 750 mil dólares 19 em cédulas de cem. Quando um membro da Força Delta enxergou Saddam escondido no buraco, o líder iraquiano disse: “Sou Saddam Hussein.20 Sou o presidente do Iraque. Quero negociar”. O soldado teria respondido: “O presidente Bush manda lembranças”. Momentos depois, os homens de McRaven levaram-no a um local de triagem do JSOC, uma instalação temporária, perto do aeroporto de Bagdá. Era chamado Camp Nama. Ironicamente, o lugar que se tornaria
o abrigo temporário21 de Saddam tinha sido anteriormente uma de suas câmaras de tortura. A imprensa mostrou imagens dele fazendo um exame médico, mas o JSOC já vinha utilizando o local para atividades bem mais escusas, que nunca seriam mostradas na TV. “Este é o momento de olhar para o futuro,22 para seu futuro de esperança, para um futuro de reconciliação. O futuro do Iraque, o futuro de vocês, nunca foi tão esperançoso. O tirano está preso”, declarou Bremer com firmeza. “A economia está avançando. Vocês têm diante de si a perspectiva de um governo soberano em poucos meses.” O general Sánchez disse que a operação tinha sido um esforço conjunto, envolvendo “uma coalizão de forças de Operações Especiais”,23 mas o JSOC e seus comandantes não receberam nenhum crédito direto. Nem McChrystal nem McRaven estiveram no pódio naquele dia, porém as pessoas da comunidade de Operações Especiais dizem que foi McRaven quem coordenou a operação Aurora Vermelha. McRaven e o secretário assistente de Defesa, Thomas O’Connell, veterano da Atividade, fumaram juntos um mesmo charuto24 diante da cela de Saddam logo depois da captura do líder iraquiano. Rumsfeld anunciou acreditar que “a insurreição de oito meses de duração poderia começar a perder o gás”.25 Na verdade, a guerra estava apenas começando, principalmente para McChrystal e McRaven. E a CIA sabia disso. “Estamos vendo o surgimento de uma insurreição no Iraque”,26 dissera Robert Richer, chefe da Divisão da CIA para o Oriente Próximo, a Bush durante um briefing da Inteligência no fim de 2003. “É uma palavra forte”, interpôs Rumsfeld. “O que você quer dizer com isso? Como você define insurreição?” Quando Richer explicou o que queria dizer, Rumsfeld satirizou: “Devo discordar de você”. Finalmente, Bush interveio. “Eu não quero ler no New York Times que estamos enfrentando uma insurreição”, declarou. “Não quero ninguém no gabinete dizendo que existe uma insurreição. Acho que ainda não chegamos lá.” Apesar da recusa de Rumsfeld a aceitar o fato, Richer estava certo. O Iraque, que não tinha ligação com a Al-Qaeda ou com o Onze de Setembro, estava se tornando um ímã para grupos de jihadistas dispostos a combater e matar americanos. Embora tenha se falado muito na presença da Al-Qaeda no Iraque no período seguinte, poucas vezes se disse que os combatentes estrangeiros estavam chegando por causa da invasão americana. Se não por outro motivo, porque o regime de Saddam e a Al-Qaeda eram inimigos. E embora a presença da organização fosse indubitável depois da invasão de março de 2003, Zarqawi e a AQI representavam uma proporção mínima dos que atacavam as forças americanas de ocupação. Diferentes milícias, unidades do Exército iraquiano dissolvidas, guerrilheiros xiitas e várias facções políticas competiam pelo poder local, todas elas voltadas contra os Estados Unidos. Ataques americanos, como o cerco de Fallujah em abril de 2004 e um tiroteio na cidade sagrada xiita de Najaf, combinados com a guerra mais ampla contra o popular clérigo Moqtada al-Sadr, estavam engrossando as fileiras da insurreição. Apesar de tudo o que se falava sobre as profundas divergências sectárias no Iraque, a ocupação americana estava, na verdade, unindo os iraquianos, tanto os xiitas quanto os sunitas, na causa comum27 de combate aos ocupantes. Os
Estados Unidos deveriam ter entendido desde cedo que sua política desastrosa estava levando o Iraque ao caos. Mas os planejadores americanos da guerra estavam decididos a fincar a bandeira da vitória no país pela força, o que significava que a insurreição devia ser esmagada e seus líderes, mortos ou capturados. “Partíamos do pressuposto de que havia determinado grupo de resistentes, por assim dizer, e que se capturássemos Saddam Hussein, se fôssemos capazes de capturar ou matar os filhos deles, então poderíamos mais ou menos debelar a insurreição”, lembrou Andrew Exum, o Ranger do Exército.
Estávamos obcecados pela ideia de pegar esses Alvos de Grande Valor, independentemente de qualquer estratégia maior ou mais abrangente para obter a pacificação do Iraque. Acho que acabamos por exacerbar uma porção dos motivos que levaram ao conflito e por agravar a insurreição.28
Havia duas guerras no Iraque. Uma delas, travada pelo exército convencional, era em grande parte uma ocupação; a outra era uma guerra de desgaste levada a cabo pelo JSOC. Os homens de McChrystal não se dispunham a acatar ordens vindas de comandantes das forças convencionais. O general Sánchez, que de 2003 a 2004 foi o comandante supremo das forças americanas no Iraque, contou-me que o pessoal do JSOC dificilmente fazia a gentileza29 de informá-lo sobre as operações que estavam planejando, mesmo em áreas controladas pelas forças americanas convencionais. Quando o faziam, era apenas para alertar as forças convencionais de que seus homens deviam guardar distância. Exum lembrou a relação do JSOC com os militares convencionais: “Deus sabe que dependíamos daqueles caras para evacuação de feridos e para a Força de Reação Rápida, no caso de as coisas darem errado, mas na verdade não falávamos com eles no nível de comando”. As operações da Força-tarefa, disse Exum, eram “muito compartimentalizadas, muito estanques”. O JSOC estava criando um sistema em que suas operações de Inteligência alimentavam sua ação, e com frequência aquela Inteligência não era checada por ninguém de fora da estrutura do JSOC. A prioridade era ter sempre alvos para atacar. “O mais grave30 é o abuso de poder que isso possibilita”, disse Wilkerson, o ex-chefe de gabinete de Powell. E continuou:
Você vai e consegue algumas informações, e normalmente suas informações chegam por meio desse mesmo aparato, então você diz: “Oh, isto sim é que é informação aproveitável. Esta é a operação Trovão Azul. Vão lá e façam”. E eles iam, e matavam 27, trinta, quarenta pessoas, ou quantas fossem, e capturavam sete ou oito. Aí você descobria que as informações eram ruins e que tinha matado uma porção de inocentes e que estava com um punhado deles nas mãos, então mandava esses caras para Guantánamo. Nunca ninguém ficava sabendo de nada. Você não precisa provar para ninguém que agiu certo. Você fazia tudo em segredo e
simplesmente partia para a próxima operação. Você diz: “Põe na conta da experiência”, e passa para a próxima operação. E pode acreditar, isso acontecia.
Exum lembrou de ter caçado Izzat Ibrahim al-Douri, um dos principais comandantes militares de Saddam, que tinha recebido a designação de Rei de Paus no baralho dos Alvos de Grande Valor. Alguém lhes deu a dica de que Douri estava em certa casa, e eles fizeram uma incursão noturna. Assim que começou a incursão, a equipe de Rangers de Exum foi alvejada por dois homens. Retribuíram o fogo e abateram os dois. “Soubemos mais tarde que nossas informações eram de duas semanas antes”, lembrou. “Matamos os caras e mais tarde ficamos sabendo que eles estavam vigiando o gerador do bairro.” Na opinião de Exum, os homens provavelmente pensaram que os Rangers eram ladrões. “Agora, eu não perco o sono por causa disso, porque os caras estavam atirando em mim, mas mesmo assim, se você começa a pensar no caso de uma perspectiva estratégica, é um desperdício.” As forças de McChrystal entenderam rapidamente que a resistência iraquiana estava crescendo, e não diminuindo, mesmo depois que vários dos principais membros do regime do partido Baath foram mortos. McChrystal e seu vice, Mike Flynn, começaram a avaliar as condições da insurreição. O JSOC tinha sido “reduzido a uma dimensão menor31 nos meses que se seguiram à invasão inicial”, lembrou McChrystal. “Encontramos uma ameaça crescente vinda de numerosas fontes — mas principalmente da Al-Qaeda no Iraque. Começamos a fazer uma análise do inimigo e de nós mesmos. Não era fácil entender nem eles nem nós.” Na pequena base do JSOC, na periferia de Bagdá, McChrystal e sua equipe começaram a mapear as informações que tinham sobre a AQI, usando um quadro branco. “Como todas as demais forças militares da história, de início víamos o inimigo como víamos a nós mesmos”, escreveu McChrystal mais tarde num artigo para a revista Foreign Policy:
Composta principalmente de mujahedin estrangeiros, leais sobretudo a Osama bin Laden, mas controlados, no Iraque, pelo jordaniano Abu Musab al-Zarqawi, a AQI foi responsável por uma campanha de extrema violência contra as forças de coalizão, o governo iraquiano e xiitas iraquianos. Seu objetivo declarado era esfacelar o Iraque e finalmente estabelecer ali um califado islâmico. Como de costume, começamos a mapear a organização como se ela obedecesse à estrutura militar tradicional, com hierarquia e fileiras. Acima de todos estava Zarqawi, abaixo dele uma cascata de oficiais e soldados rasos. Mas quanto mais olhávamos, mais o modelo parecia não servir. Os oficiais da Al-Qaeda no Iraque não esperam memorandos de seus superiores, muito menos ordens de Bin Laden. As decisões não eram centralizadas, mas executadas com rapidez e comunicadas lateralmente a toda a organização. Os combatentes de Zarqawi estavam adaptados a suas áreas de atuação, como Fallujah e
Qaim na província de Anbar, no leste do Iraque, e por meio da tecnologia moderna se mantinham estreitamente ligados ao resto da província e do país. Dinheiro, propaganda e informações fluíam em proporções alarmantes graças a uma coordenação poderosa e ágil. Assistimos a suas mudanças de táticas (de ataques com foguetes para homens-bomba, por exemplo) quase simultâneas em diversas cidades. Era uma coreografia mortal conquistada com uma estrutura em mudança contínua, muitas vezes irreconhecível.
A insurreição era bem mais complexa do que os que estavam em Washington ou no Pentágono deixavam transparecer. Mas a decisão de seguir em frente, tendo como alvo todo e qualquer insurgente, não se alterou. Em vez de recuar, eles dobraram a aposta. Exum disse:
Se você vê um princípio de insurreição que começa a surgir, não precisa ser um gênio para entender que arrastar pessoas para fora de suas casas no meio da noite, e fazer isso de uma maneira que não inclui comunicação com os vizinhos… explicar por que essa pesssoa está sendo arrastada para fora de casa no meio da noite, não é difícil ver que isso pode inflamar tensões, que pode na verdade exacerbar os motivos que levaram ao conflito. Acho que provavelmente foi isso o que aconteceu em 2003.
Mas não era assim que Rumsfeld via as coisas. Ele queria acabar com a insurreição e decapitar seus líderes. McChrystal foi incumbido de criar um sistema para atingir esses objetivos. Ele começou a erguer uma estrutura capaz de obter e partilhar informações que pudessem ser usadas para facilitar uma grande expansão das incursões em domicílios e operações de assassinato dirigido. McChrystal lembrou:
Cada vez ficava mais claro — muitas vezes por meio de interceptação de comunicações ou relatos de insurgentes que tínhamos capturado — que nosso inimigo consistia numa constelação de combatentes organizados não numa hierarquia, mas com base em relações e conhecimentos, reputação e fama. Entendemos que tínhamos de ter agilidade para detectar pequenas mudanças, fosse o surgimento de novas personalidades e alianças ou repentinas mudanças de tática.
O JSOC “tinha de processar as novas informações em tempo real para que pudéssemos agir em relação a elas”, afirmou ele. “Uma chuva de brasas estava caindo por toda parte à nossa volta, e tínhamos de vê-las, pegar as que conseguíssemos e reagir instantaneamente àquelas que nos escapavam e começavam a incendiar o terreno.” A Força-tarefa High Value Target [Alvo de Grande Valor], chamada de HVT, foi
desmembrada em quatro subunidades:32 a Força-tarefa Oeste, cuja principal unidade era um esquadrão da Equipe 6 dos SEALs, com apoio dos Rangers; a Força-tarefa Central, integrada por um esquadrão da Força Delta com apoio dos Rangers; a Força-tarefa Norte, formada de um batalhão dos Rangers e um grupo da Delta; e a Força-tarefa Negra, um esquadrão do Serviço Aéreo Especial do Reino Unido, com paraquedistas britânicos. Cada uma dessas subunidades podia ser complementada por uma companhia de Forças Especiais especializada em missões de “ação direta”. O ritmo das investidas se acelerou graças a informações obtidas numa incursão que levavam a outras duas ou três. “O general McChrystal e Mike Flynn, seu vice para Inteligência, deram novo vigor àquela Força-tarefa e fizeram algumas coisas inovadoras”, lembrou Exum.
No passado, em boa parte por causa da experiência de Mogadíscio em 1993, a regra era não ir a parte alguma sem ter uma companhia dos Rangers do Exército de reserva. Bem, com McChrystal, ninguém ficava de reserva. Isto é, eles atingiam alvos todas as noites de modo muito disperso. Você tinha pelotões de Rangers [executando operações] que anteriormente só as unidades de Missões Especiais de Nível executariam.
O método de fusão usado por McChrystal e Flynn para reunir informação se apoiava numa infraestrutura de ataque conhecida pelo acrônimo A3EA:33 Achar, Atacar, Acabar, Explorar e Analisar. McChrystal escreveu:
A ideia era combinar analistas que encontravam o inimigo (por meio da Inteligência, vigilância e reconhecimento); operadores de drones que situavam com precisão o alvo; equipes de combate que acabavam com ele, capturando-o ou matando-o; especialistas que exploravam os elementos de Inteligência que a incursão proporcionava, tais como celulares, mapas e presos; e analistas de Inteligência que transformavam a informação bruta em dados utilizáveis. Procedendo dessa forma, acelerávamos o ciclo da operação de contraterrorismo, colhendo informações valiosas em horas, não em dias.
Parte da estratégia contrainsurrecional de McChrystal e Flynn girava em torno da tecnologia, enquanto a outra dependia de fazer prisioneiros e deles extrair informações o mais rápido possível. Estrategicamente, Flynn e McChrystal eram festejados como gênios. Mas o conjunto do sistema, em última instância, se baseava em inteligência humana, não em tecnologia. E com um espectro incrivelmente diversificado de insurgentes atacando as forças de ocupação, o que dificultava em muito as coisas. Foi essa necessidade urgente de Humint e a pressão da Casa
Branca e do Pentágono por resultados que esmagassem a insurreição (que eles declaravam que não existia) que levaram ao regime brutal de abuso e tortura de prisioneiros praticado pelo JSOC. Insatisfeitos com o ritmo dos interrogatórios realizados pela CIA e por outros órgãos americanos nas primeiras etapas da GWOT, Rumsfeld e Cambone criaram um programa de transferências internacionais de presos e detenção paralelo ao usado nas prisões clandestinas da CIA no programa GST. O novo Programa de Acesso Especial (Special Access Program, SAP) ficou conhecido por diversos codinomes, como Cobre Verde, Caixa de Fósforos34 e Pegada.35 Altamente confidencial e contando com apenas umas duas centenas de pessoas nele iniciadas, o programa alavancou a atividade privada de Inteligência de Cambone, no Pentágono. “Eles não estavam conseguindo nenhuma informação substancial36 dos prisioneiros no Iraque” no começo da invasão, disse um antigo alto funcionário da Inteligência a Seymour Hersh.
Nenhum nome. Nada em que eles pudessem confiar. Cambone diz: “Preciso resolver esse troço e estou cansado de trabalhar dentro da cadeia normal de comando. Montei esse aparelho todo — o programa clandestino de acesso especial — e vou com tudo”. Então ele aperta o botão e a eletricidade começa a circular.
Embora o programa Cobre Verde tenha ganhado impulso no Iraque, ele foi criado antes da invasão de 2003, e a ideia era torná-lo global. Foi “a resposta de Rumsfeld37 aos esquadrões da morte da CIA idealizados por Cofer Black”, disse a jornalista investigativa Jane Mayer. “Membros dos esquadrões recebiam pseudônimos, usavam caixas de correio reservadas e andavam à paisana. Trabalhavam numa estrutura elástica fora da cadeia de comando normalmente rígida do Pentágono.” Hersh, que foi o primeiro a denunciar a existência do Cobre Verde na New Yorker, entrevistou diversos ex-funcionários de alto nível e oficiais militares sobre o programa. “Não vamos iniciar mais pessoas do que o necessário em nosso coração das trevas”, disse a Hersh um ex-funcionário de alto nível da Inteligência. “A regra é ‘agarre quem deve agarrar.38 Faça o que quiser’.” Quando o tenente-coronel Shaffer esteve no Afeganistão, viu as primeiras fases do Cobre Verde. Eu estava “autorizado”, disse, “mas muitos de nós achávamos que aquilo não era adequado e simplesmente não estava certo”.39 Quando visitou as instalações da Força-tarefa no Afeganistão, Shaffer disse que ficou “impressionado — e não no bom sentido — com o que eu tinha visto”. Disse que o interior do edifício estava “completamente destruído. As salas tinham sido transformadas em celas ou em áreas abertas, emolduradas com madeira e aço”. Não tinha “nada parecido com as áreas de interrogatório que eu conhecia.” As salas de interrogatório da Força-tarefa Cobre Verde no Afeganistão, disse ele, “tinham dispositivos para prender os braços e as pernas dos prisioneiros. Foram planejadas para que eles ficassem agrilhoados e mantidos em posições incômodas para maximizar o desconforto e a dor”.
Fui apresentado a um “sistema” de interrogatório ultrassecreto autorizado por meu chefe da época, o secretário de Defesa Donald Rumsfeld, assim como por Stephen Cambone, subsecretário de Defesa para a Inteligência, o que permitia o uso de técnicas de interrogatório altamente coercitivas nas pessoas detidas no Afeganistão.
Enquanto esteve nas “gigantescas dependências”, lembrou Shaffer, “pude perceber uma sensação de tensão no ar — palpável e crua —, como caminhar na praia antes que se desencadeie um furação”. O mundo sabia sobre Guantánamo e em breve saberia sobre Abu Ghraib. Fotos chocantes vazariam para a imprensa, mostrando cachorros latindo, ameaçadores, para presos encolhidos, pirâmides de presos nus diante de guardas sorridentes, a assustadora imagem de um homem encapuzado com os braços abertos como que crucificado sobre uma caixa. Disseram-lhe que se perdesse o equilíbrio e caísse, seria eletrocutado pelos fios que trazia amarrados nos dedos. A prisão de Abu Ghraib ficaria mal-afamada no mundo todo, mas quase ninguém falava de Camp Nama.
14. “Sem sangue, sem sujeira”
IRAQUE, 2003-4 — No primeiro ano da Guerra do Iraque, uma porção de atividades sujas do JSOC tiveram lugar num pequeno conjunto de edifícios aninhados numa base militar da época de Saddam perto do Aeroporto Internacional de Bagdá. As Forças de Operações Especiais dos Estados Unidos tinham assumido o controle da base logo depois da invasão de março de 2003 e ergueram uma cerca em volta do conjunto que constituía o Camp Nama. No centro do conjunto ficava a Central de Interrogatório de Campo de Batalha (Battlefield Interrogation Facility, BIF). Membros da Força-tarefa do JSOC moravam em Nama, mas este não era apenas um dormitório. A Força-tarefa usava diversos codinomes, que eram mudados com frequência por segurança operacional e para dificultar investigações. Em momentos distintos, ela foi chamada de TF-20, TF-121, TF-6-26, TF-714 e TF-145. Suspeitos de rebeldia arrancados de casa em incursões ou presos nas ruas das cidades iraquianas eram levados para Nama e instalados em uma de duas estruturas:1 o “Motel 6”, uma tenda de compensado, ou o “Hotel Califórnia”, uma construção permanente que meses antes era usada como prisão pelo regime de Saddam. O acrônimo Nama significava “Nasty-Ass Military Area”.2 Seu lema, como era anunciado em cartazes distribuídos por todo o acampamento, era “sem sangue, sem sujeira”. Segundo uma autoridade do DoD, isso se baseava num ditado da Força-tarefa: “Se você não tirar sangue deles,3 não poderá ser acusado”. Para instituir os métodos de interrogatório dos prisioneiros que seriam feitos no Iraque, as Unidades de Missões Especiais que integravam a Força-tarefa HVT usaram uma cópia dos procedimentos operacionais padrão (Standard Operating Procedure, SOP) criados no tempo em que McChrystal dirigia as operações de detenção e interrogatório no Afeganistão, como parte da CJTF 180. Segundo uma investigação feita anos depois pela Comissão de Serviços Armados do Senado, a Força-tarefa do Iraque simplesmente “mudou o cabeçalho e adotou o SOP literalmente”.4 O SOP “incluía posições desconfortáveis,5 privação de sono e uso de cachorros”. O regime de técnicas de tortura, estabelecido por exigência de melhores resultados nos interrogatórios por parte de Rumsfeld, Cheney e seus grupos, estava se disseminando. As pessoas levadas ao Nama não tinham os mesmos direitos dos prisioneiros de guerra (Prisioners of War, POWs). Eram tidas como combatentes ilegais.6 Não tinham advogado,7 não eram assistidas pela Cruz Vermelha nem acusadas de crimes. Rumsfeld estabelecera as
diretrizes para o programa de presos “clandestinos” aplicado pelo JSOC, fora da alçada das Forças Armadas convencionais. A Força-tarefa podia ficar com o preso durante noventa dias8 sem que ele tivesse acesso a nada que se assemelhasse a direitos e sem transferi-lo para prisões militares regulares. De fato, isso significava que a Força-tarefa tinha poderes absolutos sobre os prisioneiros durante três meses para extrair deles qualquer informação que pudessem dar. Os prisioneiros eram submetidos9 a “espancamentos, a frio extremo, ameaças de morte, humilhações e diversas formas de abuso ou tortura psicológica”, segundo a organização Human Rights Watch. A Cruz Vermelha, advogados ou parentes dos presos tinham acesso proibido ao Nama. Segundo um ex-interrogador do Nama, um coronel lhe disse que “tinha recebido ordens diretas do general McChrystal10 e do Pentágono para que a Cruz Vermelha não entrasse ali de jeito nenhum”. Da mesma forma, investigadores do Exército não eram autorizados a pôr os pés no Camp Nama.11 Os membros da Força-tarefa eram informados de que essas medidas eram “muito necessárias12 para a eficácia da operação, e não queremos que se saiba nem mesmo o nosso nome, o da nossa unidade”. Em dezembro de 2003, a general de divisão Barbara Fast enviou o coronel Stuart Herrington ao Iraque para investigar as condições das prisões e das operações de Inteligência, mas ele foi barrado13 pela Força-tarefa no Nama. A base era tão secreta que quando o general Geoffrey Miller, ex-comandante da prisão da baía de Guantánamo, tentou visitá-la, não lhe permitiram entrar até que ele levou sua solicitação ao topo da cadeia de comando.14 Era preciso uma identificação especial15 para entrar em Camp Nama, e as únicas pessoas que entravam sem ela eram prisioneiros, algemados e encapuzados. Ironicamente, mesmo não tendo permitido a entrada de Miller no campo, o pessoal do Nama conseguiu que o general ficasse do lado deles. Durante aquela viagem ao Iraque, visitando outros campos de detenção incluindo o de Abu Ghraib, Miller teria criticado duramente os administradores das prisões militares americanas por “dirigirem um clube de campo”,16 acusando-os de leniência para com os presos. Miller sugeriu uma “GTMOização”17 das prisões e, segundo oficiais que se reuniram com a “equipe GTMO”, eles comentavam a eficácia do uso de cachorros “no interrogatório de árabes”, que “tinham medo de cachorro”.18 A Força-tarefa do Nama era dirigida pelo JSOC, mas tinha sido montada com funcionários de diversas agências e unidades. Havia interrogadores da CIA e da DIA, assim como da Força Aérea, e grande variedade de analistas e guardas. Um interrogador que trabalhou em Camp Nama em 2003-4 lembrou:
Eles nos disseram que não podíamos falar à nossa cadeia de comando19 sobre quem trabalha aqui ou o que [a Força-tarefa] faz. Seus integrantes são completamente silenciados. Só podem falar no assunto entre si. Era isso que nos diziam desde o primeiro dia. A cadeia de comando era a mais frouxa possível. Não havia hierarquia na Força-tarefa. Chamávamos o coronel pelo
primeiro nome, como também o subtenente […]. Nem que eu quisesse, saberia dizer qual era o sobrenome do subtenente ou o do coronel. Quando você perguntava o nome de alguém, não te diziam o sobrenome […]. Seja como for, acreditava-se que, no mais das vezes, o nome informado não era o verdadeiro.
Muitos membros da Força-tarefa deixavam crescer a barba e ansiavam por parecer o mais assustadores e intimidadores possível. “Este é o lado negro das forças.20 É o espaço em que você tem essencialmente quadros que desfrutam de alto grau de liberdade. Os que chegam a esse nível são tratados com certa deferência”, disse-me o tenente-coronel Anthony Shaffer. “Há uma cultura de que todos devem ser tratados pelo nome, não importa a hierarquia, e a conclusão básica é de que, quando você chega a esse nível, você sabe o que deve fazer e não há outra possibilidade, não há margem para paparicos.” De volta ao Departamento de Estado, Wilkerson pôde constatar que esse sistema de prisões paralelas estava sendo urdido por Rumsfeld e Cheney, e achou que eles estavam usando a Forçatarefa justamente para evitar que fossem controlados. “Não havia nenhuma fiscalização,21 e quando não há fiscalização você se torna todo-poderoso. E quando você tem certeza de que não há fiscalização, sabe que pode fazer o que bem entender”, disse ele.
Nós nos esquecemos de que quando criamos essas unidades de operações especiais, criamos dentro delas pelo menos uma percentagem — e essa percentagem aumenta inacreditavelmente nas Forças de Operações Especiais — de verdadeiras máquinas de matar. É isso o que eles são. É para isso que são treinados e aperfeiçoados, para ser instrumentos de matar. Quando se permite que não haja fiscalização sobre eles e se permite que eles repitam as operações vezes sem conta, sem fiscalização, então se estará permitindo que eles espontaneamente se convençam de que podem tudo. Assim, quase tudo vai acontecer.
Ao investigar o programa americano de tortura e o papel do JSOC nele, Scott Horton, advogado de direitos humanos e então presidente da Comissão Internacional de Direitos Humanos da Associação de Advogados da Cidade de Nova York, denunciou:
Em vez de eles se reportarem ao comando local, o comando de Bagdá, subindo para o Centcom e depois voltando para o Pentágono, parecia haver uma espécie de elevador expresso que ia direto das operações de campo do JSOC para o subsecretário de Defesa para a Inteligência [Cambone] e dele para o secretário de Defesa. Assim eles se reportavam diretamente a Washington — a níveis muito, muito altos.22 Sabemos que o JSOC não observava certas regras que em geral eram aplicadas, referentes ao modo como se
realizavam as operações de captura e de interrogatório. Eles tinham suas próprias regras. Assim, havia Programas de Acesso Especial, e sabemos que essas operações estavam associadas a muita brutalidade, as pessoas eram espancadas e submetidas a maus-tratos graves. Na maioria das ocasiões, os casos de tortura e de sérios abusos estavam mais ligados a operações do JSOC do que qualquer outra coisa.
Logo que o JSOC foi enviado ao Iraque para liderar a caça de WMDs e dos principais nomes do governo Saddam, os primeiros prisioneiros que fez eram categorizados em termos da informação que pudessem dar que rendesse resultados no apoio àquelas missões. Os métodos brutais de interrogatório que estavam sendo aperfeiçoados em prisões clandestinas e no Afeganistão passaram a ser usados sem restrições no Iraque. “Havia duas razões23 pelas quais esses interrogatórios eram tão persistentes e por que se usavam métodos extremos”, disse um antigo funcionário da Inteligência.
A principal delas era a preocupação com alguma espécie de novo ataque [depois do Onze de Setembro]. Mas durante a maior parte de 2002 e ainda em 2003, Cheney e Rumsfeld, principalmente, ficaram exigindo provas da ligação entre a Al-Qaeda e o Iraque que [o exlíder iraquiano exilado Ahmed] Chalabi e outros tinham afirmado que havia.
O governo Bush queria também encontrar armas de destruição em massa e demonstrar, em retrospecto, que suas afirmações a esse respeito eram verdadeiras. Rowan Scarborough, jornalista conservador, especializado em assuntos militares e autor de dois livros que lhe proporcionaram amplo acesso a Rumsfeld e sua equipe, lembra a fúria de Rumsfeld nos briefings diários sobre a inexistência de WMDs no Iraque. Segundo Scarborough:
A cada manhã, a equipe de emergência tinha de informar que outro lugar tinha sido uma decepção. Rumsfeld ficava cada vez mais furioso. Um oficial conta que ele dizia: “Elas têm de estar lá!”. Numa dessas exposições, ele pegou os slides e atirou-os em cima dos expositores.24
Horton acrescentou:
Desde o início, grande parte dessa operação de coleta de dados […] era acionada pela necessidade de produzir informação que justificasse [a guerra]. E acho que o emprego da tortura foi autorizado em larga medida na esperança de que fosse dar resultados. Não acredito que algum dia tenha havido a expectativa de que ela fosse revelar a verdade, mas faria com que as pessoas dissessem o que eles queriam ouvir e de alguma forma dessem
respaldo ao que acontecia.
Mas à medida que se passavam os meses e se esboroavam as suposições sobre a ligação entre o Iraque, as WMDs e a Al-Qaeda, o foco dos interrogatórios começou a se orientar no sentido de esmagar a insurreição. A lista de alvos e suspeitos aumentou consideravelmente, transformando o baralho que representava os homens de Saddam num catálogo potencialmente infinito. “Vimos os franceses25 fazerem isso na Argélia e os americanos fazerem o mesmo no Iraque em 2003”, lembrou Exum, que na época foi enviado ao Iraque. “Tudo começa com uma lista de alvos, talvez uns cinquenta caras, talvez duzentos, mas o trabalho vai avançando e no fim você está com uma nova lista de alvos com 3 mil nomes.” McChrystal ampliou o papel do JSOC nas operações de captura, mas Camp Nama já havia sido criado e estava em funcionamento antes que os homens do JSOC pisassem no Iraque. A CIA, que já tinha infligido aos prisioneiros mais do que sua cota de maus-tratos, ficou tão chocada com a tortura no Nama que tirou seus interrogadores26 da base em agosto de 2003, embora continuasse passando informações para a Força-tarefa. Na verdade, um mês antes que McChrystal assumisse o comando do JSOC, um investigador do Exército, além de funcionários da Inteligência e agentes da lei, já tinham manifestado suas preocupações27 com o abuso contra presos, insinuando que o JSOC estava empregando técnicas brutais. Em setembro de 2003, depois de uma solicitação do “comandante da Unidade de Missões Especiais da Força-tarefa”, instrutores do Sere, cuja missão oficial era preparar soldados americanos para resistir à tortura e ao cativeiro, chegaram a Camp Nama.28 A Força-tarefa do JSOC não reconhecia o Camp Nama como prisão, e sim como “local de triagem”29 no qual se obtinham informações. Isso dava cobertura para toda a atividade suja e o sigilo que envolviam o lugar. Para Horton, o advogado de direitos humanos:
O Programa de Acesso Especial, dentro do qual operava a Força-tarefa, recebeu uma missão e devia ser autorizado a usar todo tipo de procedimentos especiais que não só se afastavam dos procedimentos militares normais como violavam a lei e a política militares, e isso se fazia por meio do Programa de Acesso Especial, que normalmente vinha do subsecretário de Defesa para a Inteligência [Stephen Cambone]. Aquilo era claramente um comportamento criminoso. No entanto, no regime especial do JSOC, estava sendo autorizado — e incitado — pelos oficiais que comandavam o acampamento, que supostamente deviam proibir esse tipo de conduta.
A Central de Interrogatório de Campo de Batalha em Camp Nama tinha quatro salas de interrogatório30 e uma para triagem médica, onde Saddam foi examinado logo após sua captura. Mobiliada com tapetes comuns e de oração, sofás, mesas e cadeiras, era na “Sala Suave” que os
prisioneiros que cooperavam e os hierarquicamente superiores eram levados para interrogatório — e para tomar chá. As salas Azul e Vermelha (ou Madeira) eram maiores (cerca de três metros por dois), retangulares e nuas; a primeira tinha uma demão de tinta azul sobre as paredes de compensado. Esses recintos eram usados para interrogatórios de média intensidade, ao que consta com o emprego de técnicas aprovadas pelo Manual de Campo do Exército americano. A Sala Preta foi mantida como estava desde seus tempos de câmara de tortura de Saddam e, por via das dúvidas, a Força-tarefa manteve no lugar os ganchos de açougue que pendiam do teto da época do reinado de terror do ditador iraquiano. A Sala Preta era a maior, quadrada, com cerca de 3,5 metros de lado. Era nela que o JSOC fazia os interrogatórios mais violentos. Os presos eram levados de um recinto para outro, dependendo do grau de cooperação. “Fazíamos isso para mostrar ao preso que se ele dissesse o que queríamos ouvir, este seria o tratamento que receberia”,31 disse Jeff Perry, pseudônimo de um interrogador de Camp Nama que relatou à organização Human Rights Watch suas experiências como testemunha ocular do que acontecia ali. “Se não, o tratamento será aquele. Havia sempre muitos presos, indo de cá para lá entre as salas.” Quando se supunha que um preso tinha informação sobre Zarqawi, era mandado diretamente para a Sala Preta. Ela era usada também quando “o interrogador acha que o preso está mentindo, ou que não se vai chegar a parte alguma só com conversa”, lembrou Perry. “Íamos com ele para a Sala Preta.” Ela era usada também quando os interrogadores ficavam “bravos com [um preso] e queria[m] castigá-lo por algum motivo”. Na Sala Preta, todo o espectro das táticas do Sere era aplicado aos prisioneiros, juntamente com uma enormidade de práticas medievais de todo tipo. “O lugar era todo pintado de preto, do piso ao teto. A porta era preta, tudo era preto”, lembrou Perry. “Tinha alto-falantes nos quatro cantos, até o teto. Num dos ângulos havia uma mesinha e talvez algumas cadeiras. Mas normalmente na Sala Preta ninguém ficava sentado. Ficavam de pé, em posições incômodas.” Os interrogatórios32 incluíam música altíssima, luzes estroboscópicas, espancamentos, manipulação do ambiente e da temperatura, privação de sono, sessões de interrogatório de 24 horas, imersão na água, posições incômodas e humilhação pessoal, frequentemente de cunho sexual. A nudez forçada não era rara. Praticamente todo ato contra os prisioneiros estava permitido, desde que cumprisse a regra: “Sem sangue, sem sujeira”. Mas, no fim das contas, até o sangue era permitido. Um ex-prisioneiro33 — filho de um dos guarda-costas de Saddam — disse que foi despido, socado na coluna até desmaiar, mergulhado em água fria e obrigado a ficar na frente do arcondicionado, sendo esmurrado no estômago até vomitar. Prisioneiros de outras dependências também descreveram os atos hediondos34 cometidos contra eles por interrogadores e guardas, que chegavam a sodomizar detentos com objetos, esmurrá-los, aplicar-lhes enemas e usar manipulação alimentar — nada além de pão e água, durante mais de duas semanas, num dos casos.
Membros da Força-tarefa batiam nos presos com a coronha do fuzil e cuspiam na cara deles.35 Um dos membros disse que tinha ouvido interrogadores “espancando o preso quase até a morte”.36 Segundo um ex-interrogador, um de seus colegas foi “admoestado e transferido para o serviço administrativo porque urinou numa garrafa e deu-a a um preso para beber”.37 Membros da Força-tarefa interrompiam interrogatórios não brutais38 e começavam a dar tapas ou pancadas nos presos. Em pelo menos uma ocasião, eles sequestraram a mulher de um suspeito procurado “para alavancar39 a rendição do alvo primário”. A mulher, de 28 anos, tinha três filhos e ainda amamentava o menor, de seis meses. Depois de entrevistar numerosos membros da Força-tarefa do Nama, a Human Rights Watch concluiu que “ao que parece, os abusos faziam parte de um processo regular — ‘procedimentos operacionais padronizados’”. Steven Kleinman, na época tenente-coronel da Força Aérea, chegou a Camp Nama40 no começo de setembro de 2003, bem quando McChrystal estava assumindo o comando do JSOC. Kleinman era um interrogador experiente e instrutor de Sere da Força Aérea. Quando foi enviado ao Iraque, supunha que seu trabalho consistiria em observar os interrogatórios no acampamento e estudar como poderiam ser feitos com maior eficiência. Um ano antes, ele tinha investigado o programa de Guantánamo e encontrara “problemas sistêmicos fundamentais”41 que, em sua opinião, tinham sabotado os objetivos dos interrogatórios. Mas a Força-tarefa de Camp Nama tinha outros planos. Eles disseram a Kleinman42 que estavam com problemas para conseguir informação confiável e acionável dos presos, e queriam que ele e seus colegas ajudassem a aplicar as táticas de Sere aos interrogatórios. Em essência, queriam que eles aplicassem a seus prisioneiros as mesmas táticas de tortura que haviam ensinado militares americanos a resistir. Kleinman reconheceu que o Serviço de Inteligência estava uma bagunça, mas não acreditava que isso ocorresse porque os interrogatórios não fossem brutais o bastante. Descreveu uma situação caótica43 que prescindia totalmente de qualquer triagem de presos mais eficaz, sendo que alguns deles não tinha nenhum valor para a Inteligência. Mas a Força-tarefa queria que Kleinman e seus colegas participassem dos interrogatórios, e eles acabaram recebendo ordens para fazê-lo.44 Kleinman logo se viu na Sala Preta do Nama. “Entrei na sala de interrogatório,45 toda pintada de preto com [um] foco de luz no prisioneiro. Atrás dele havia um soldado […] com uma barra de ferro […] batendo na mão dele”, lembrou.
O interrogador estava sentado numa cadeira. O intérprete à sua esquerda e o preso ajoelhado […]. O interrogador fez uma pergunta, que foi traduzida, o preso respondeu e, depois da tradução, foi golpeado no rosto […]. Foi assim com cada pergunta e cada resposta. Perguntei a meus colegas quanto tempo vinha durando aquilo, especificamente as pancadas, e disseram que mais ou menos meia hora.
Kleinman disse que considerava as táticas empregadas contra o prisioneiro “violações diretas das Convenções de Genebra e [ações que] podiam configurar crime de guerra”. Ele disse que relatou ao comandante da Unidade de Missão Especial do Nama que seu pessoal vinha adotando condutas “ilegais” e violando sistematicamente as Convenções de Genebra. Não teve efeito algum sobre o comandante ou sobre outros colegas de Kleinman do JPRA/Sere. Segundo ele, seu superior lhe disse que eles tinham sido “instruídos com entusiasmo a usar os métodos Sere”46 nos interrogatórios. Kleinman disse então que acreditava que essa havia sido “uma ordem ilegal”47 e acrescentou que “não ia ter nenhum envolvimento com aquilo, e achava que eles também não deveriam ter”. Disseram-lhe que os prisioneiros não estavam protegidos pelas Convenções de Genebra porque eram “combatentes ilegais”. A tortura continuou. Kleinman lembrou também o caso de um preso que a Força-tarefa estava tentando dobrar.48 Seus colegas resolveram fazer o homem acreditar que estava sendo solto e levaram-no a um ponto de ônibus. Instantes depois, ele foi agarrado de novo e levado de volta a Nama. O homem “foi literalmente carregado por dois guardas para dentro do bunker, lutando contra eles. Lá, foi derrubado”, disse Kleinman. Seus dois colegas de Sere
assumiram a iniciativa naquele ponto […]. Arrancaram as roupas dele, rasgando-as — não cortaram, fizeram a roupa em tiras […] arrancaram sua cueca, tiraram-lhe os sapatos, ele já estava encapuzado — aí teve as mãos e os pés algemados — o tempo todo gritavam em seu ouvido em inglês que ele era […] uma porcaria de ser humano […]. Depois alguém ordenou que ele fosse mantido de pé naquela posição durante doze horas, por mais que pedisse socorro, por mais que implorasse e, a menos que ele desmaiasse, os guardas não deviam atender a nenhum pedido de socorro.
Apesar das objeções de Kleinman à ampliação das táticas Sere no Nama, a Força-tarefa e os chefes de Kleinman seguiram em frente. Em setembro de 2003, começaram a desenvolver um “Conceito de Operações”, ou Conop (Concept of Operations),49 para que a base “explorasse” Alvos de Grande Valor. Análogo ao “Plano Preliminar de Exploração”, criado um ano antes pelo dr. Bruce Jessen, psicólogo-chefe de Sere, para uso no Afeganistão, o Conop recomendava o uso de táticas de tortura do inimigo para treinar soldados americanos e aplicar-lhes engenharia reversa. Ele recomendava “ajustar as consequências do castigo ao detento de modo a maximizar a diferença cultural”. Menos de um mês após sua chegada, Kleinman foi afastado do Nama porque, nas palavras do inspetor-geral do Pentágono, “tornou-se claro que havia um atrito nascente”50 entre a Força-tarefa e ele. Mais tarde, Kleinman diria ao Senado americano que “atrito” era um eufemismo e que ele acreditava que sua vida vinha sendo ameaçada por membros da Força-tarefa em retaliação a suas divergências. Um de seus membros, disse ele, pôs-se a afiar uma faca enquanto recomendava a Kleinman que “dormisse com um olho
aberto”51 porque a Força-tarefa não “afaga terroristas”. Outra fonte da tortura do Nama era o fato de os membros da Força-tarefa HVT responsáveis por caçar pessoas continuarem tendo acesso aos prisioneiros que sequestravam. Segundo o general Miller, às vezes a Força-tarefa do Nama usava operadores especiais como interrogadores.52 Isso criava situações em que o ódio do campo de batalha se derramava sobre os interrogatórios, mesmo depois que o preso estava desarmado e vigiado. Malcolm Nance, exinstrutor de Sere, disse-me: “A primeira coisa que os capturados em campo de batalha descobrem é que o cara que o capturou vai ficar muito zangado por ele ter matado alguns camaradas dele, então ele já sabe que vai levar porrada. Simples assim”.53 A situação ficava ainda pior quando os soldados que haviam feito o ataque tinham acesso a seus prisioneiros durante muitos dias. “Está na doutrina do Exército que quando você realiza uma captura, uma das coisas que faz é proteger o prisioneiro e depois você o manda depressa para a retaguarda. Você o tira das mãos da unidade que o capturou”,54 lembrou um oficial do Exército sobre sua experiência num outro lugar de triagem. “Bem, nós não fazíamos isso. Eles eram mantidos em nossa unidade de detenção por um período, acho eu, superior a 72 horas. Então ele era posto sob a guarda dos soldados que havia pouco ele tentara matar.” O oficial contou um incidente em que um preso suspeito de ter matado um soldado americano teve a perna quebrada pelos companheiros do soldado com um bastão de beisebol. Perry lembrou de um incidente logo depois que ele chegou a Nama envolvendo um suposto financiador de Zarqawi levado ao acampamento. O homem estaria recusando-se a dar qualquer informação aos interrogadores: “Não tomei parte nesse interrogatório, estava apenas observando […]. Havia uma área parecida com um jardim com sujeira e lama e uma mangueira de água fria”, lembrou Perry, acrescentando:
Ele foi despido, jogado na lama e molhado com a água gelada da mangueira, em pleno fevereiro. À noite fazia muito frio. Eles abriram o jato da mangueira, e ele ficou completamente nu na lama. [Então] ele foi tirado de lá e posto perto de um aparelho de arcondicionado. Fazia um frio extremo, estava congelando, e ele foi devolvido à lama e molhado de novo. Foi assim a noite inteira. Todo mundo sabia disso. As pessoas entravam, o subtenente e assim por diante, todo mundo sabia o que estava acontecendo, e eu estava entre eles, como que andando para a frente e para trás vendo [que] é assim que eles fazem as coisas.
Perry se lembrou também de ter visto um oficial da SAS britânica — não autorizado a executar nenhum tipo de interrogatório — bater sem piedade num preso até que ele e outro soldado intervieram. Já no verão de 2003, o posto Bagdá da CIA reclamava com Langley55 que os soldados de Operações Especiais eram agressivos demais com os presos. Scott Muller, consultor jurídico da CIA, disse que as técnicas usadas em Nama eram “mais agressivas”56 do que as usadas
pela CIA. A Força-tarefa levava novos detentos para Camp Nama em helicópteros sem identificação.57 Os prisioneiros eram vestidos com macacões azuis e durante o transporte iam de olhos vendados. Os interrogadores em Nama preenchiam um “formulário de autorização” no computador em que marcavam as técnicas de interrogatório pesado que pretendiam usar nos detentos. Em teoria, o pedido para usar essas técnicas precisava da aprovação de superiores. “Nunca vi um papel daqueles que não estivesse assinado. Devia ser assinado pelo comandante, fosse ele quem fosse”, lembrou Perry. “Ele devia assinar a cada vez que se fazia aquilo”. Outro interrogador acrescentou que “todo interrogatório pesado58 [era] aprovado pelo J2 [o chefe de Inteligência da unidade] da Força-tarefa e pelo departamento médico antes de sua execução”. Perry prosseguiu:
Alguns interrogadores usavam essas técnicas sem preencher coisa nenhuma, fosse porque era uma chateação, fosse porque não queriam fazê-lo e sabiam que seriam aprovados de qualquer forma, e que não ia ter muito problema se fossem apanhados fazendo aquelas coisas sem uma assinatura.
Quando Perry e um grupo de colegas começaram a manifestar a seus comandantes o desconforto que sentiam com o que estava acontecendo em Camp Nama, os comandantes convocaram advogados do Corpo Jurídico das Forças Armadas (Judge Advocate General’s Corps, JAG), que deram uma palestra aos descontentes sobre a distinção entre inimigos ilegais e prisioneiros de guerra e sobre as brechas legais que isso abria. Perry lembrou:
Em pouco tempo, chegaram dois oficiais do JAG, advogados, e exibiram para nós uma sequência de slides de duas horas de duração sobre a necessidade daquilo, por que razão não era ilegal, eles são combatentes inimigos e não prisioneiros de guerra, e portanto podíamos fazer aquilo tudo com eles e assim por diante. Acho que já tinham aquela apresentação de PowerPoint preparada, então vinham e nos mostravam aquilo e assim acabavam com as dúvidas a respeito.
Os advogados, afirmou Perry, disseram que “não tínhamos de nos ater às Convenções de Genebra porque aqueles homens não eram prisioneiros de guerra”. Perry disse que achava que os advogados “vinham e diziam o que quer que tivessem de dizer para remendar a situação e dar continuidade à guerra”. Todo o pessoal da Força-tarefa tinha de assinar um compromisso de sigilo.59 Os interrogadores eram informados com frequência de que a Casa Branca e Rumsfeld estavam observando de perto suas operações. Perry declarou ter visto McChrystal em Camp Nama em
mais de uma ocasião. O pessoal do Nama, disse ele, era levado a crer que as técnicas tinham sido aprovadas por aqueles acima deles, que “estavam a poucos degraus de distância do Pentágono na cadeia de comando”. Os comandantes da Força-tarefa, disse ele, afirmavam aos interrogadores que a Casa Branca ou o Pentágono eram diretamente informados de seus progressos, em especial no que se referia a Zarqawi. Os comandantes diziam: “Rumsfeld foi informado, tal e tal relatório está na mesa de Rumsfeld esta manhã, lido pelo secretário de Defesa”. E acrescentou: “É um grande incentivo para gente que trabalha catorze horas por dia. Ei, nós estamos na Casa Branca!”. Malcolm Nance disse-me:
Quando você tem o presidente dos Estados Unidos dando o exemplo, você aceita Abu Ghraib, aceita o abuso. Você vê a IC distorcendo as coisas a tal ponto que, no mundo deles, nunca ninguém foi vítima de “abuso” por parte das Forças Armadas americanas.
O general de divisão Keith Dayton, comandante do Grupo de Inspeção do Iraque, fundado em junho de 2003 para coordenar a caçada às WMDs, descreveu a situação em Nama como “um desastre prestes a acontecer”,60 prevenindo o inspetor-geral do Pentágono de que ele precisava “impor algumas regras nesse lugar agora mesmo para nos proteger de ter problemas e ter ceteza de que essa gente é tratada de maneira adequada”. Dayton cita casos de prisioneiros transferidos da Força-tarefa para unidades militares convencionais com sinais de “queimaduras graves”, os olhos roxos, a “coluna quase quebrada”, “inúmeras contusões no rosto”. Soldados e funcionários de Camp Cropper (perto de Camp Nama) declararam sob juramento que tinham recebido pessoas detidas e interrogadas pela Força-tarefa e pela Equipe 5 dos SEALs que apresentavam sinais óbvios de violência. Há pelo menos dois casos de iraquianos que morreram imediatamente após terem sido transferidos de dependências onde estavam sob custódia de comandos dos SEALs. Depois de algo que uma equipe dos SEALs chamou de “confronto”, em 5 de abril de 2004, o prisioneiro Fashad Mohammad61 foi entregue a uma base convencional, onde foi interrogado e autorizado a dormir, e foi então que ele ficou inerte e depois morreu. O laudo do legista, divulgado sob proteção da Lei de Liberdade de Informação, disse que Mohammad “morreu sob custódia dos Estados Unidos cerca de 72 horas após ter sido preso. Segundo o relatório, foi preciso usar força física para sua apreensão durate uma incursão. Enquanto esteve preso, ele foi encapuzado, privado de sono e submetido a condições ambientais de calor e frio, sofrendo inclusive o uso de água gelada em seu corpo e no capuz”. Embora o relatório mencione “numerosos ferimentos, abrasões e contusões” e um “trauma causado pelo emprego de força bruta e asfixia posicional”, concluiu que a causa da morte era “indeterminada”. Em 4 de novembro de 2003, Manadel alJamadi62 morreu na prisão de Abu Ghraib, em meio a afirmações de que teria sido espancado até a morte por membros da Equipe 7 dos SEALs. Um dos membros dessa equipe foi submetido a
corte marcial, mas acabou sendo absolvido — e ninguém foi acusado de homicídio. Em dezembro de 2003, um memorando confidencial do Pentágono advertia: “Parece claro que” a Força-tarefa “precisa ser controlada63 a respeito do tratamento que dispensa aos presos”. Mas a tortura e a violência em Camp Nama continuaram, principalmente em casos em que se supunha que o preso tivesse alguma informação sobre Zarqawi ou sua rede. Todos os interrogatórios tinham como objetivo extrair informações que levassem a uma próxima incursão, a um próximo ataque, a uma próxima captura ou assassinato. Num “centro de operações” perto de Nama, “analistas da Força-tarefa examinavam informações64 obtidas de espiões, de presos e do avião de vigilância Predator de controle remoto para unir as pontas e ajudar os soldados em suas incursões”, noticiou o New York Times. “Duas vezes ao dia, ao meiodia e à meia-noite, interrogadores militares e seus supervisores se reuniam com funcionários da CIA, do FBI e de unidades militares aliadas para estudar as operações e as novas informações.” No começo de 2004, o Comitê Internacional da Cruz Vermelha publicou um relatório bombástico sobre as prisões em massa de iraquianos. Afirma-se que “mais de cem ‘presos de grande valor’65 eram mantidos durante quase 23 horas por dia em estrito confinamento solitário, em diminutas celas de concreto privadas da luz solar”, numa seção de “Presos de Grande Valor” no aeroporto de Bagdá. Sem mencionar especificamente qual a Força-tarefa, o relatório descreve as incursões que levaram à prisão de dezenas de iraquianos. Os soldados irrompiam nas casas
normalmente depois do anoitecer, derrubando portas, acordando brutalmente os moradores, gritando ordens, prendendo membros da família num cômodo vigiado enquanto davam busca no resto da casa, quebrando mais portas, armários e outros bens. Prendiam os suspeitos imobilizando-lhes as mãos às costas com algemas descartáveis, punham-lhes capuzes e levavam-nos embora. Algumas vezes prendiam todos os homens adultos da casa, inclusive velhos, deficientes e doentes. O tratamento dispensado a eles consistia em ameaçá-los, insultá-los, apontar-lhes fuzis, dar-lhes socos, pontapés e coronhadas. Quase sempre as pessoas eram levadas com a roupa que usavam no momento da prisão — às vezes de pijama, ou só com a roupa de baixo — e não tinham licença de levar pertences essenciais, como roupas, artigos de higiene pessoal, remédios ou óculos.
O relatório citava “funcionários dos serviços de Inteligência das Forças Armadas” que disseram à Cruz Vermelha “que segundo seus cálculos entre 70% e 90% das pessoas privadas de liberdade no Iraque tinham sido presas por engano”. Os documentos da Cruz Vermelha faziam eco ao relatório militar confidencial do fim de 2003, segundo o qual a violência contra presos e as prisões em massa de iraquianos dariam a impressão de que os Estados Unidos e seus aliados estavam agindo como “inimigos gratuitos” do povo iraquiano.
Quando finalmente as Forças Armadas tiveram autorização para investigar Camp Nama, seus agentes foram ameaçados por funcionários do acampamento, enquanto interrogadores da DIA tiveram as chaves de seus carros confiscadas e receberam “ordens”de não discutir com ninguém o que tinham visto. Em 25 de junho de 2004, o vice-almirante Lowell Jacoby, na época diretor da DIA, mandou um memorando de duas páginas a Stephen Cambone com uma lista de queixas66 do pessoal da DIA em Camp Nama. Um dos interrogadores teve suas fotos confiscadas depois de retratar presos machucados, e outros se queixaram de que comandos da Força-tarefa tinham proibido que eles saíssem do acampamento sem licença, mesmo que fosse para ir ao barbeiro, e de levar para lá qualquer pessoa de fora; além disso, tinham recebido ameaças e seus e-mails haviam sido censurados. Apesar de todas essas tentativas de ocultação, as notícias sobre violência contra presos em Nama chegaram aos superiores e finalmente aos legisladores. Em 2004, sob pressão de um punhado deles, Stephen Cambone, cujo SSB estava realmente possibilitando as operações de interrogatório brutal em Camp Nama, rabiscou um bilhete a seu vice,67 o tenente-general Boykin. Datado de 26 de junho, ele dizia: “Descubra imediatamente o que está acontecendo. Isso é inaceitável. Em especial, quero saber se isso faz parte de um padrão de comportamento da Força-tarefa 6-26”. Um assessor de Boykin declarou que “na época, [Boykin] disse ao sr. Cambone que não tinha encontrado nenhum desvio de conduta68 habitual na Força-tarefa”. Apesar de todos os alertas, um relatório oficial das Forças Armadas americanas sobre as acusações de abuso em Nama e outras dependências concluiu que os relatos de torturas de prisioneiros não eram verdadeiros. As acusações de malfeitos e má conduta por membros da Força-tarefa foram tratadas internamente em vez de obedecerem aos procedimentos disciplinares tradicionais das Forças Armadas. Num caso em especial, quando um agente da Divisão de Investigações Criminais do Exército (Army Criminal Investigations Division, CID) tentou investigar um membro da Força-tarefa por abuso contra um preso, a investigação foi abortada porque, no dizer da CID, “o objeto de investigação69 é membro da Força-tarefa 6-26” e o oficial de segurança da própria Força-tarefa “era quem tinha reconhecida jurisdição sobre essa matéria”. Ao todo, 34 membros70 da Força-Tarefa foram “punidos” por desvio de conduta e pelo menos onze membros foram transferidos. Em 2006, a organização Human Rights Watch revelou que “um pequeno número de membros da Força-tarefa recebeu punições administrativas, mas eles não foram levados à corte marcial. Cinco Rangers ligados à Força-tarefa foram levados à corte marcial por abusos praticados contra presos”, mas “as sentenças foram todas de seis meses ou menos. Não há indício de que oficiais superiores [tenham sido] responsabilizados, apesar das sérias dúvidas sobre sua culpa criminal”. Um interrogador da Força Aérea que trabalhou com a Força-tarefa do JSOC na caça a Zarqawi contou-me que ele “não viu nenhuma forma de fiscalização71 sobre a campanha de assassinato ou captura”. Disse ter testemunhado e interrompido diversos casos de abuso, que relatou à
cadeia de comando. “Em relação aos casos que comuniquei, não houve responsabilização. Num deles, o interrogador simplesmente foi trazido de volta de uma localidade longínqua e reintegrado ao trabalho na prisão principal. O clima reinante era tal que o sigilo era a prioridade.” E acrescentou: “Minha impressão geral era de que violações ocasionais da lei seriam toleradas desde que nunca chegassem à imprensa”. Os maus-tratos e a tortura em Camp Nama não eram exceção, e sim regra. Quando o governo americano começou a pesquisar como tinham começado os horrores praticados contra presos em Abu Ghraib, a investigação revelou que os dirigentes da prisão tinham se mirado no exemplo dado por Camp Nama, Guantánamo e Bagram, no Afeganistão. Quando Abu Ghraib passou a ser controlada pelas forças americanas e transformada, de prisão e câmara de tortura da era Saddam, num gulag dos Estados Unidos, os americanos encarregados de sua instalação simplesmente adotaram os procedimentos operacionais padronizados da Força-tarefa e, mais uma vez, mudaram o cabeçalho72 e seguiram em frente. O escândalo da tortura em Abu Ghraib foi escancarado em abril de 2004, quando importantes agências de notícias publicaram fotos que mostravam abusos sistemáticos, humilhação e tortura de prisioneiros praticados por militares americanos. À medida que novas fotos se tornavam públicas, viam-se prisioneiros nus amontoados em pirâmides, cães furiosos rosnando para presos trêmulos, execuções simuladas. Quando o general de divisão Antonio Taguba finalmente investigou,73 encontrou evidências documentais de atos ainda piores que os mostrados pelas fotos, mas a Casa Branca atribuiu a tortura e os maus-tratos a umas poucas “maçãs podres”, e o público nunca teria acesso ao verdadeiro alcance das atrocidades cometidas em Abu Ghraib. Os horrores das prisões americanas no Iraque podem nunca vir à luz plenamente, mas uma coisa está totalmente clara: táticas que logo depois do Onze de Setembro tinham sido consideradas de domínio exclusivo do mais intragável “lado negro” das forças americanas e exigiam a aprovação dos mais altos níveis do poder dos Estados Unidos para cada aplicação tinham se tornado procedimentos habituais e amplamente aceitos para o tratamento de presos num imenso campo de batalha com grande número de prisioneiros sob custódia das Forças Armadas americanas.
O capitão Ian Fishback, formado por West Point em 2001, foi enviado ao Afeganistão com o 82o Aerotransportado para combates travados entre agosto de 2002 e fevereiro de 2003. No fim de 2003, ele foi mandado para a base Mercury, no Iraque. Tanto no Afeganistão quanto no Iraque, Fishback testemunhou a migração das táticas das prisões clandestinas para as prisões militares e locais de triagem. Em 7 de maio de 2004, Fishback assistiu ao depoimento de Rumsfeld no Congresso.74 O secretário de Defesa disse que os Estados Unidos estavam seguindo as Convenções de Genebra no Iraque e o “espírito” dessas convenções no Afeganistão. A declaração de Rumsfeld não coadunava com o que Fishback tinha visto, e por isso ele começou a
procurar respostas ao longo de sua cadeia de comando.
Durante dezessete meses75 tentei, por meio de minha cadeia de comando, determinar quais eram os padrões que regulavam o tratamento de presos. Consultei o comandante do batalhão, muitos advogados da JAG, muitos parlamentares democratas e republicanos e seus assessores, o gabinete do inspetor-geral de Fort Bragg, inúmeros relatórios de governo, o secretário do Exército e muitos generais, um interrogador profissional de Guantánamo, o vice-diretor do departamento de West Point responsável pelo ensino de teoria da guerra justa e leis da guerra terrestre e numerosos parceiros que vejo como homens honrados e inteligentes. Fui incapaz de obter respostas claras e coerentes da liderança a respeito do que constitui tratamento legal e humano de presos. Tenho certeza de que essa confusão contribui para um amplo leque de abusos, inclusive ameaças de morte, espancamento, fratura de ossos, assassinato, exposição a intempéries, esforço físico extenuante, tomada de reféns, desnudamento, privação de sono e outros tratamentos degradantes. Eu e os soldados que estavam sob meu comando presenciamos alguns desses abusos, tanto no Afeganistão quanto no Iraque.
Quando Fishback começou a investigar a tortura e os abusos que tinha presenciado, foi “posto no gelo” pelas Forças Armadas. Ficou confinado a Fort Bragg e impedido de deixar a base76 para comparecer a uma reunião já programada no Capitólio. Numa carta aos senadores republicanos Lindsey Graham e John McCain, Fishback escreveu:
Alguns não veem necessidade de [investigação]. Dizem que desde que nossos atos não sejam tão horríveis quanto os da Al-Qaeda, não devemos nos preocupar. Quando foi que a AlQaeda tornou-se o padrão pelo qual se mede a moralidade dos Estados Unidos?
O protesto de Fishback mal mereceu uma piscada do radar. No verão de 2004, McChrystal deslocou oficialmente a Força-tarefa para a base aérea Balad, a sessenta quilômetros ao norte de Bagdá, e levou consigo o local de interrogatório e “triagem” de HVTs. Mas uma mudança de cena não poria fim aos abusos. McChrystal negava categoricamente que em Camp Nama os comandantes “ordenassem maus-tratos aos prisioneiros”, afirmando que qualquer abuso era resultado de “lapsos de disciplina”77 individuais entre os membros da Força-tarefa. As acusações de tortura sistemática praticada em Nama, disse ele, eram falsas. “Não era esse o caso antes que eu assumisse o comando nem no comando de meus sucessores”, escreveu McChrystal em suas memórias.
15. A estrela da morte
IRAQUE, 2004 — A enorme base aérea de Balad tinha sido construída por Saddam com infraestrutura e instalações modernas. O centro de captura/morte do JSOC que ali se estabelecera era um microcosmo do modo como Rumsfeld e Cheney queriam que o aparelho de segurança nacional dos Estados Unidos funcionasse: todas as agências e todos os recursos de Inteligência dos Estados Unidos estariam subordinados às equipes de morte integradas pela classe dos guerreiros de Operações Especiais, dirigidos pela Casa Branca e pelo secretário de Defesa. Mais tarde, aquilo seria louvado por McChrystal e outros como uma operação conjunta sem precedentes, mas na verdade era um espetáculo comandado pelo JSOC em que todos os demais desempenhavam papéis secundários. O jornalista Mark Urban, correspondente de guerra credenciado junto aos comandos britânicos que trabalhavam com a Força-tarefa de McChrystal, disse que alguns quadros operacionais do JSOC se referiam ao Centro de Operações Conjuntas de Balad como
a estrela da morte,1 porque tinham a sensação de que “bastava apontar um dedo, por assim dizer, para eliminar alguém”. Outros que presenciaram ao vivo a explosão de bombas de duzentos quilos através de câmeras com intensificador de imagem referiam-se às telas que viam como a “TV da morte”.
O centro de comando do JSOC era conhecido como “a fábrica”, ou “o chão de fábrica”. McChrystal gostava de chamar o aparelho de morte/captura de “a máquina”. Em meados de 2004, o ritmo das operações do JSOC tinha se acelerado vertiginosamente. A CIA tinha contatos no centro de informações conjuntas, ao lado de técnicos em satélites da Agência Nacional de Inteligência Geoespacial, especialistas em vigilância da NSA e, por via das dúvidas, “especialistas” em Iraque do Departamento de Estado. Spencer Ackerman, da revista Wired, relatou que:
Um ponto de junção criado pela NSA, chamado Portal Regional em Tempo Real, permitia que quadros operacionais que tinham obtido fragmentos de informação em suas incursões —
contatos telefônicos de uma célula terrorista, recibos de compra de ingredientes para bombas, ou mesmo localização geográfica de celulares de terroristas — enviassem seus dados a diferentes pontos da rede. Um analista podia não dar o devido valor a uma informação. Mas assim que o JSOC tornou-se de fato uma experiência de terceirização em massa da Inteligência,2 em pouco tempo obteve um panorama maior e mais profundo do inimigo que estava combatendo — e essencialmente emulando.
Com efeito, o JSOC estava fazendo uma guerra secreta sepultada no interior de uma guerra maior e controlando a Inteligência. Em abril de 2004, Rumsfeld continuava martelando a história de que a insurreição iraquiana era conduzida por remanescentes do regime deposto. Depois que quatro seguranças particulares terceirizados que trabalhavam para a empresa mercenária Blackwater foram mortos numa emboscada3 em Fallujah em 31 de março de 2004, Bush ordenou um ataque revanchista em massa contra a cidade, e com esse fim deu aos comandantes americanos a ordem: “Chutem o balde!”, “Matem!”.4 Aparentemente sem entender que o levante de Fallujah tinha sido inflamado pelo cerco americano à cidade e pelo número desproporcional de mortes de civis, Rumsfeld trovejou: “Bandidos, assassinos5 e antigos capangas de Saddam não serão autorizados […] a se opor à paz e à liberdade”. A ocupação americana estava criando uma situação em que novas células militantes pipocavam a cada semana, e a Força-tarefa tinha muita dificuldade para identificá-las, para não falar de rastreá-las. A estratégia americana que estava se impondo consistia em flexibilizar a definição de insurgente e se empenhar numa guerra total contra qualquer pessoa suspeita de ser “militante”. “Os americanos negavam totalmente o estado de insurreição”, disse um oficial da Inteligência britânica. “A arrogância e a empáfia6 […] eram de tirar o fôlego.” No começo de abril de 2004, um jovem empresário americano chamado Nicholas Berg desapareceu em Bagdá. Como dezenas de milhares de americanos, Berg fora ao Iraque para aproveitar a explosão de negócios que estava ocorrendo depois da invasão. Durante o governo de Saddam, o Iraque praticamente não tinha telefonia móvel, e Berg via cifrões na perspectiva de erguer torres para celulares. No entanto, nunca realizaria seu sonho. Em 8 de maio, uma patrulha militar americana encontrou seu corpo,7 sem cabeça, numa ponte de Bagdá. Três dias depois, apareceu na internet um vídeo intitulado:8 “Abu Musab al-Zarqawi abate um americano”. No vídeo, Berg aparece vestido com um macacão laranja parecido com os que eram usados pelos presos em Guantánamo. O jovem judeu americano fez uma breve declaração identificando-se antes de ser agarrado por homens mascarados que empunhavam armas. Dois deles imobilizaram o empresário enquanto um terceiro decepava-lhe a cabeça com uma faca. Um deles gritou “Allah u Akbar” [Deus é grande], enquanto outro segurava a cabeça diante da câmera. O narrador do vídeo disse: “Nós avisamos que a dignidade de homens e mulheres
muçulmanos em Abu Ghraib e outros lugares não será resgatada senão com sangue e almas. Vocês não receberão de nós nada além de caixões e mais caixões”, avisando que outros americanos seriam
abatidos da mesma maneira. Como pode um muçulmano livre dormir em paz vendo o Islã massacrado e sua dignidade sangrando, e as imagens da vergonha e as notícias do escárnio demoníaco do povo do Islã — homens e mulheres — na prisão de Abu Ghraib?
A voz do narrador foi identificada pela Inteligência americana como sendo de Zarqawi. Embora a referência de Zarqawi à tortura em Abu Ghrahib fosse oportunista, calou fundo nos iraquianos que sobreviveram para contar a história de suas tribulações naquela prisão, em outras como ela e nos “locais de triagem”. Não havia dúvida de que tais atos alimentavam a insurreição. Na verdade, Malcolm Nance, o ex-instrutor de Sere que trabalhou no Iraque naquele período, disse-me que viu indícios diretos de que o modo como os Estados Unidos mantinham e tratavam os presos ajudou os grupos extremistas a recrutar novos quadros. As prisões, disse ele, tornaram-se “a Universidade Jihadista de Estudos sobre Homens-Bomba”,9 explicando que “os piores dos piores são postos junto com caras que nunca tinham pensado em se tornar jihadistas, e de repente esses caras são soltos e viram carne de canhão para atentados suicidas”. O assassinato de Berg, cometido por Zarqawi, deu ao governo Bush uma boa oportunidade de abandonar a afirmativa de que a violência no Iraque era comandada por “resistentes do regime” e transferir a ênfase para os terroristas da Al-Qaeda. Por sua vez, o foco dos Estados Unidos em Zarqawi lhe valeu notoriedade e fama, e ele começou a arrecadar mais financiamento para sua rede, até então obscura. Grande parte do dinheiro10 vinha de sauditas, sírios e jordanianos abastados. Embora o terrorista jordaniano já estivesse havia algum tempo na mira do JSOC, ele se tornou uma mina de ouro para a propaganda do governo Bush, que agora podia afirmar que a resistência no Iraque era comandada pela Al-Qaeda. “A execução de Nicholas Berg catapultou Zarqawi, instantaneamente, para a atenção da imprensa”,11 lembrou Richard Rowley, jornalista independente que passou um longo período no Iraque naquela época, inclusive em redutos de Zarqawi. Disse ele:
Os Estados Unidos estavam ansiosos por caracterizar publicamente a insurreição como um movimento liderado por extremistas estrangeiros e fizeram de Zarqawi o rebelde mais procurado do Iraque. Ofereceram uma recompensa de 20 milhões de dólares por sua cabeça e identificaram-no retroativamente como o cérebro de praticamente todos os principais ataques terroristas no país. A caça de Zarqawi substituiu a de Saddam Hussein como o objetivo público número um da campanha americana. A atenção dos americanos foi útil para
Zarqawi, que rapidamente ganhou renome entre os insurgentes, e seu renome foi útil para os americanos, que assim justificaram a mais sangrenta de suas operações na guerra.
Essa operação ocorreu em novembro de 2004, com o segundo cerco de Fallujah, que se tornou um poderoso símbolo da resistência à ocupação americana. Depois dele, uma sangrenta guerra civil eclodiria no Iraque. Zarqawi anunciou uma guerra contra os xiitas, enquanto os Estados Unidos formavam seus próprios esquadrões da morte xiitas. No centro da contribuição dos Estados Unidos para a guerra civil iraquiana estavam dois americanos. Um deles era o general David Petraeus, que tinha íntima ligação com a Casa Branca, em especial com Dick Cheney, e fora indicado por Rumsfeld em junho de 2004 para liderar o Comando Multinacional de Transição em Segurança-Iraque. O outro era o coronel da reserva James Steele, ex-executivo da Enron12 escolhido por Wolfowitz para desempenhar uma função importante13 no Iraque. Embora a Enron tivesse sido uma importante financiadora da campanha de Bush, Steele não foi parar no Iraque devido a seu passado na empresa. Ele tinha uma ligação profunda com as guerras sujas dos Estados Unidos na América Central. Em meados da década de 1980, como coronel da Marinha, foi um dos principais oficiais em atividade na “contrainsurreição”14 durante a sangrenta guerra fomentada pelos Estados Unidos em El Salvador, onde ele coordenou o Grupo Consultivo Militar dos Estados Unidos, supervisionou a assistência militar de Washington e o treinamento do Exército salvadorenho para combater a guerrilha de esquerda da Frente de Libertação Nacional Farabundo Martí. No fim da década, Steele foi chamado a depor15 durante a investigação do escândalo Irã-contras sobre seu papel no fornecimento clandestino de armas aos esquadrões da morte nicaraguenses através da base aérea de Ilopango em El Salvador. Steele e Petraeus foram peças fundamentais de um programa conhecido como “salvadorização do Iraque” ou simplesmente Opção Salvador.16 Os dois homens montaram unidades iraquianas de Operações Especiais que seriam usadas na campanha contrainsurrecional, mas que prontamente se transformaram em esquadrões da morte incontroláveis. “Vamos pegar essa gente e dar-lhe uma lição de que não vão se esquecer”, disse o ministro de Defesa do Iraque, Hazim Shaalan, no dia em que o primeiro batalhão de seiscentos homens das Operações Especiais entrou em ação, em junho de 2004. “Americanos e forças aliadas têm restrições que nós não temos. É nosso país, nossa cultura, e temos leis diferentes das de vocês.” Enraivecido por causa de outro atentado suicida dias depois, Hazim declarou: “Vamos cortar-lhes as mãos e decapitá-los”.17 Steele, por sua vez, ajudou a engendrar uma Unidade Especial de Comandos de Polícia18 (também chamada Brigada Lobo), integrada por membros da antiga Guarda Republicana e das SOF da era Saddam recrutados pelo Ministério do Interior. Segundo uma matéria de Peter Maass publicada pela New York Times Magazine em 2005, de início Petraeus nada sabia sobre essa
unidade; quando ficou sabendo, visitou sua base na Zona Verde, lançou aos comandos um de seus conhecidos desafios e ficou nisso. “Ele não estava apenas apoiando uma nova formação militar; estava apoiando uma nova estratégia”,19 disse Maass. “Os durões do passado ajudariam a moldar o futuro do país. Petraeus decidiu que os comandos receberiam todo tipo de armamento, munição e suprimentos de que necessitassem”, e deu pleno apoio a Steele. Depois que o primeiro-ministro interino Ayad Allawi perdeu a eleição de janeiro de 2005, a Brigada Lobo foi dominada por membros da milícia xiita, que se tornaram então os beneficiários do apoio de Petraeus. Foi quando o Iraque mergulhou numa violência indescritível.
O Centro de Comando de McChrystal em Balad estava agora caminhando numa velocidade decente. “Meses vitais20 tinham sido perdidos enquanto a liderança do Pentágono negava a insurreição. No começo de 2004, ela estava mudando, e McChrystal era um dos poucos que entendiam a situação e a necessidade de lidar com ela”, relatou o correspondente Mark Urban.
Foram estabelecidas equipes de cada uma das agências de Inteligência em Balad. Quando começou a extrair suas informações, McChrystal pôs todas elas numa intranet semelhante a que ele tinha criado no Afeganistão. Com isso, permitiu que os que estavam na linha de frente do trabalho contraterrorista dos Estados Unidos partilhassem suas informações com todos [...]. A Roma contraterrorista de McChrystal não podia ser feita em um dia. Levou grande parte do ano de 2004 para tomar forma.
Com Saddam Hussein na cadeia e a Força-tarefa de Grande Valor abrindo caminho a bala no Iraque, McChrystal e McRaven começaram a se concentrar de novo nos HVTs no Afeganistão e na caça de Osama bin Laden. “Se existe alguém bastante inteligente e astuto21 para pegá-lo [Bin Laden], McRaven, junto com a Delta e a Equipe 6 dos SEALs que ele comanda, vai conseguir”, disse o general Downing em 2004. A observação de Downing sobre McRaven e a Equipe 6 foi profética, mas ele não viveria para vê-la realizada, pois morreu em 2007. O Iraque estava se afundando nas chamas de insurreições diversas, em grande parte alimentadas pela invasão e pela ocupação do país pelos Estados Unidos, pelos maus-tratos e torturas impostos a prisioneiros e pela percepção generalizada, por parte da população iraquiana, de que os Estados Unidos eram um “inimigo gratuito”. Zarqawi e sua rede se fortaleceram e transformaram em sangrenta realidade aquilo que no começo era mentira: a presença da Al-Qaeda no Iraque. McChrystal empregaria grande parte de seu tempo tentando achar, atacar e, finalmente, eliminar Zarqawi. Mas o Afeganistão e o Paquistão também batiam à porta.
16. “A melhor tecnologia, as melhores armas, o melhor material humano — e um monte de dinheiro para torrar”
AFEGANISTÃO, IRAQUE E PAQUISTÃO, 2003-6 — No Afeganistão, da mesma forma que no Iraque, o JSOC comandava suas próprias operações de detenção e tinha sua lista de pessoas que pretendia matar ou capturar. Conhecida como Lista Conjunta de Alvos Prioritários (Joint Prioritized Effects List, JPEL),1 ela começou com os líderes do Talibã e da Al-Qaeda, mas nos anos seguintes, à medida que se ampliava a insurreição afegã, chegou a mais de 2 mil nomes. Assim como no Iraque, onde se viu obrigado a abrir caminho a bala através de uma lista de “rebeldes” permanentemente revigorada e aumentada, o JSOC acabou se defrontando com uma guerra de guerrilhas em que os mais poderosos combatentes dos Estados Unidos lutavam contra afegãos que não tinham nenhuma ligação anterior séria com a Al-Qaeda ou com o Talibã. Anthony Shaffer, quadro operacional de carreira da DIA, chegou ao Afeganistão em julho de 2003 para trabalhar com o grupo2 encarregado de caçar líderes da Al-Qaeda, do Talibã e do Hezb-e-Islami Gulbuddin (HIG), movimento militante ligado à Al-Qaeda. Shaffer recebeu um pseudônimo e documentos falsos — número de inscrição na Previdência, carteira de habilitação, cartões de crédito e passaporte. Seu nome de guerra era Chris Stryker,3 inspirado no personagem de John Wayne no filme O portal da glória, de 1949. Shaffer encontrou firmes aliados nos ninjas do JSOC que voltavam ao Afeganistão para reativar a caça a Bin Laden, ao mulá Mohammed Omar e a outros líderes da Al-Qaeda e do Talibã, numa operação coordenada pela Base Aérea de Bagram. À medida que os membros da Força-tarefa “iam chegando a Bagram,4 a própria estrutura da base mudou. Veio com eles uma energia quase surreal”, lembrou Shaffer.
Num dado momento, aviões de transporte C-17 lotados pousavam em Bagram a cada trinta ou quarenta minutos, levavam cerca de uma hora para descarregar e decolavam novamente. Pude ver paletes e mais paletes de material saindo dos C-17s, alinhados e cheios de equipamentos de alta tecnologia suficientes para fazer funcionar um país.
Shaffer disse que o número de comandos e pessoal de apoio para a missão Alvo de Grande Valor
“inchou”, e acrescentou que enquanto a força-tarefa original “tinha sido uma unidade compacta de uns duzentos homens”, esta agora “teria mais de 2 mil”. Como lembra Shaffer, as forças do JSOC tinham “a melhor tecnologia, as melhores armas, o melhor material humano — e um monte de dinheiro para torrar”. Pouco depois que o JSOC começou a trabalhar, a Força-tarefa montou um grande centro de operações,5 erguendo uma série de estruturas de compensado e barracas que serviam para tudo, desde alojamentos a centros de Inteligência. O cerne da base era o Centro de Operações Táticas, instalado numa imensa barraca. Da mesma forma que o Centro de Operações Conjuntas no Iraque, era chamado de Estrela da Morte. A partir dessa base, o JSOC tentaria matar ou capturar os homens mais procurados do Afeganistão. SEALs barbados passeavam pela base à paisana, e quase ninguém usava tarjas de identificação que pudessem revelar a pessoas de fora quem eles eram. A presença do JSOC não agradou6 os boinas-verdes e outros membros de Operações Especiais “brancas”, que tinham se esforçado durante anos para criar conexões no país, dedicando para isso muito tempo em viagens pelas áreas mais inóspitas do Afeganistão. Ao contrário dos boinas-verdes, o JSOC não estava no país para conquistar corações e mentes. Depois de sua chegada, a missão já não parecia antropológica. Seria uma caçada humana e às vezes uma máquina de matar. No começo do mandato de McChrystal à frente do JSOC, Shaffer fez-lhe várias exposições no Afeganistão. Shaffer vinha pressionando para obter permissão para atuar no interior do Paquistão e insistiu com seu supervisor para que ele autorizasse operações além das fronteiras do país e contra refúgios da Al-Qaeda, dizendo que “as informações indicam7 que a maior parte de seus líderes se acha agora no Paquistão”. O superior de Shaffer disse-lhe que “por enquanto isso não é uma opção. Para falar com franqueza, e que isto fique entre nós, McChrystal está tentando conseguir essa permissão” mas “o Centcom e o Pentágono disseram que temos de ficar deste lado”. McChrystal estava resolvido a mudar essa situação.
O Paquistão e a CIA tinham uma velha e complicada história, mas, sobretudo nos anos que se seguiram ao Onze de Setembro, a Inteligência Interserviços (Inter-Services Intelligence, ISI) chegou a aceitar que teria de conviver com os quadros operacionais da Agência circulando em seu território. Em algumas ocasiões, as duas entidades chegaram a colaborar, mas era mais frequente ver a CIA lutando para impedir as tentativas da ISI de frustrar suas operações, enquanto a ISI tentava rastrear todos os quadros operacionais dos Estados Unidos que trabalhavam no Paquistão. Era uma relação mútua baseada em desconfiança, desonestidade, calúnia e, no final, na necessidade. Quando os Estados Unidos invadiram o Afeganistão, em outubro de 2001, forçando os líderes da Al-Qaeda e do Talibã a fugir, as áreas tribais do Paquistão tornaram-se o epicentro das operações contraterroristas de Washington. Para algumas missões, como a captura de pessoas suspeitas de vinculação com os atentados do Onze de Setembro, o Paquistão
e a CIA levaram à prática operações conjuntas. Entretanto, o JSOC acreditava que a CIA estava sendo manipulada e que os Estados Unidos teriam de atuar unilateralmente no interior do Paquistão se quisessem acabar com os refúgios da Al-Qaeda. Para consternação da ISI, em 2002 o presidente Pervez Musharraf celebrou um acordo secreto8 com o JSOC que permitiu às forças dos Estados Unidos acompanharem forças paquistanesas em incursões contra células supostamente da Al-Qaeda nas regiões tribais do país. Shaffer exultou. Disse-me: “A questão tinha se tornado: em que profundidade, com que gravidade, violaríamos a soberania do Paquistão”.9 As normas para a atuação10 de Rangers do Exército americano e outras “unidades de caça a terroristas” ao longo da fronteira entre o Afeganistão e o Paquistão determinavam que “as entradas no PAK [estavam] autorizadas” nos seguintes casos: perseguição transfronteiras, tropas em contato com o inimigo, resgate de pessoal e ações contra “os três grandes”: Bin Laden, Zawahiri e o mulá Mohammed Omar, líder talibã, desde que aprovadas pelo comandante do Centcom ou pelo secretário de Defesa. Como “regra geral”, essas forças de caça a terroristas não podiam penetrar mais de dez quilômetros além da fronteira. Teoricamente, as autoridades americanas e paquistanesas deviam ser notificadas logo depois de cada uma das ações. Mas a realidade era outra: era de importância capital a possibilidade do Paquistão de negar ter conhecimento prévio e denunciar violações da soberania após o fato. Os Estados Unidos atacariam e Musharraf tacharia as incursões americanas de “invasão”. No entanto, bem quando a campanha do JSOC no Paquistão começava a decolar, ela sofreu um enfraquecimento devido ao desvio, uma vez mais, de muitos recursos para o Iraque, a fim de fazer frente à insurreição que se agravava. Como resultado, em 2003-4, o Paquistão permaneceu em boa medida como uma operação controlada pela CIA.
Em 2004, as autoridades da Casa Branca e do Pentágono encarregadas da caçada humana global deram uma série de ordens confidenciais que em conjunto configuraram um programa continuado de assassinatos e desrespeito pela soberania das nações. Os desentendimentos entre a CIA e Rumsfeld sobre qual seria a entidade responsável pela condução da caçada humana e das guerras globais, iniciadas logo após o Onze de Setembro, chegaram a um ponto decisivo. Para financiar as operações do JSOC, cada vez mais abrangentes, Rumsfeld pediu um aumento de 34% no orçamento11 de Operações Especiais, que passou de 5 bilhões de dólares para 6,7 bilhões. Foi em 2004 que o JSOC garantiu sua posição na cabeceira da mesa do contraterrorismo, posição que seria mantida durante governos republicanos e democratas. Procurando dar liberdade às forças de Operações Especiais, o presidente Bush fez uma declaração que ele e seu sucessor, Barack Obama, repetiriam palavra por palavra ao Congresso, todos os anos, para justificar a estratégia de guerra sem fronteiras que transformou o mundo num campo de batalha. “Tomarei as medidas adicionais que forem necessárias para o exercício do direito dos Estados Unidos à autodefesa e à proteção dos cidadãos e dos interesses americanos”,12 afirmou Bush.
Essas medidas podem incluir a realização de mobilizações imprevistas de operações especiais e outras forças para operações delicadas em vários pontos do mundo. Não é possível saber agora qual a amplitude exata ou a duração da utilização das Forças Armadas dos Estados Unidos necessárias para combater a ameaça ao país.
No começo de 2004, Rumsfeld assinou uma resolução secreta que racionalizava a capacidade operacional do JSOC e sua possibilidade de atingir alvos fora dos campos de batalha declarados no Iraque e no Afeganistão. Conhecida como Ordem de Execução da Rede Al-Qaeda ou AQNExOrd, ela autorizava operações do JSOC “em qualquer parte do mundo” onde se soubesse, ou suspeitasse, que quadros operacionais da Al-Qaeda atuassem ou se refugiassem. A resolução, que permanece confidencial apesar das tentativas feitas por jornalistas de obtê-la, relacionava pelo nome quinze ou vinte países,13 entre eles Paquistão, Síria, Somália, Iêmen e Arábia Saudita, assim como diversas outras nações do Golfo. A AQN-ExOrd foi redigida em 2003,14 principalmente pelo Comando de Operações Especiais e pelo Gabinete do Secretário Assistente de Defesa para Operações Especiais/Conflito de Baixa Intensidade e promovida por Wolfowitz e Cambone como justificativa para as operações secretas — e letais — das Forças Especiais no mundo todo. Uma parte da resolução prevê aquilo que uma fonte de Operações Especiais chamou de “perseguição transfronteiras”, que se parece com o que ocorre quando uma polícia estadual americana tem licença para cruzar a divisa e entrar em outro Estado para perseguir um suspeito. “É essencialmente o que eles fazem quando perseguem alguém na Somália e essa pessoa escapa para a Etiópia ou para a Eritreia”,15 revelou essa fonte. A resolução foi assinada na primavera de 2004, mas Rumsfeld levou quinze meses para conseguir a “aprovação presidencial” da Casa Branca. A demora se deu em parte por causa de “entraves burocráticos”,16 mas a CIA também opôs resistência, vendo-a como outra usurpação de sua autoridade como principal órgão de perseguição à Al-Qaeda depois do Onze de Setembro. O envio de pessoal de Operações Especiais a embaixadas americanas sob o disfarce de adidos militares (Military Liaison Elements, MLE)17 levantou uma polêmica séria na CIA e no Departamento de Estado. Mas o pessoal do JSOC não se limitava a pessoas que trabalhavam com cobertura oficial. Tinha também quadros operacionais em vários países com “cobertura não oficial”, usando às vezes identidades falsas respaldadas por passaportes falsificados, às vezes de outros países. Seu trabalho consistia em ajudar o preparo do campo de batalha para operações do JSOC, e com frequência não era coordenado com o trabalho da CIA ou dos embaixadores. “Se a presença [do Socom] em embaixadas americanas no estrangeiro é uma tentativa de abrir caminho para operações militares unilaterais dos Estados Unidos, ou para capacitar elementos de defesa na prática de ações secretas separadas da CIA, os problemas americanos no exterior com certeza aumentarão significativamente”,18 disse John Brennan, oficial da CIA que passou 25
anos na Agência e na época comandava o Centro Nacional de Contraterrorismo. O uso do cargo de adido militar como disfarce para membros do JSOC, assim como a operação de Inteligência de Cambone, era visto por alguns civis que participavam do esforço de guerra como um precedente perigoso. Todavia, o general Boykin, subsecretário de Defesa para Inteligência, investiu contra os críticos do programa bombardeando o que chamou de “uma suposição de que o secretário está querendo dizer: ‘Tire a CIA desta história que nós vamos assumir’. Eu não vejo dessa forma, em absoluto”.19 Em vez disso, Boykin afirmou: “Na verdade, o secretário tem mais responsabilidade na coleta de informações para o programa nacional de Inteligência estrangeira” do que “o diretor da CIA”. Foi nesse período que Rumsfeld, Cambone e o JSOC passaram por cima da distinção entre “secreto” e “clandestino”, com apoio da Casa Branca. O Pentágono começou a chamar de “coordenação” com a CIA o fato de avisar a Agência, com 72 horas de antecedência, que o JSOC ia fazer uma operação, e Cambone mudou a definição de “ordem de mobilização” das Forças Armadas, que precisavam de autorização do Congresso. Cambone instituiu novas diretrizes20 que garantiram o direito de Forças de Operações Especiais “executar operações clandestinas de Humint” antes de avisar o Congresso. Não só a CIA estava sendo alijada de operações sobre as quais tinha soberania histórica, como o emprego do JSOC na execução de operações de Inteligência manteve o Congresso ainda mais ao largo. Juntamente com o programa Cobre Verde, isso na prática significou que o JSOC estava livre para atuar ao mesmo tempo como agência de espionagem e força de morte/captura. Até mesmo alguns influentes aliados republicanos da Casa Branca ficaram perturbados com o que estavam vendo. “As operações controladas pela CIA tinham uma série de restrições e fiscalização, e as Forças Armadas têm outras”, disse um parlamentar republicano “que desempenha importante papel fiscalizador em segurança nacional”, segundo o Washington Post.
É como se aqui houvesse uma intenção do tipo: “Vamos evitar toda e qualquer fiscalização transferindo para as Forças Armadas tarefas normalmente desempenhadas pela [CIA] sem contar para ninguém”. Para mim, isso imediatamente acendeu uma luz vermelha. Por que eles não querem nos contar?21
Rumsfeld e seus assessores sabiam que o braço paramilitar da CIA era pequeno demais para levar a cabo uma guerra global, e como Bush tinha boas razões para que o Comando de Operações Especiais atuasse globalmente sob seu próprio comando, aquilo eram favas contadas. Além da AQN-ExOrd, ele convenceu o presidente Bush a inserir na NSPD-38 uma terminologia22 que codificava o papel global do Socom como sendo achar e atacar suspeitos de terrorismo, acabando com eles. A referência não confidencial à NSPD-38 diz que se trata de uma “Estratégia Nacional de Segurança para Proteger o Ciberespaço”. Assim, a resolução, que permanece
confidencial, deu ao JSOC uma liberdade sem precedentes para atacar no mundo inteiro, dando autorização prévia, na prática, para operações letais fora de qualquer campo de batalha declarado. “Há uma porção de coisas na NSPD-3823 que nada têm a ver com o ciberespaço”, revelou uma fonte de Operações Especiais, acrescentando que a autorização para atividades de Operações Especiais “era posta em prática antes de ser assinada”. Entre elas estava “uma ampla autorização para a prática de operações do tipo Achar, Atacar e Acabar, tendo o Socom na cabeça”. Acrescentou que a resolução confidencial era um “segredo absoluto” e calculava “que talvez haja cinco cópias, [mantidas] todas no espaço físico do gabinete do NSC. Todos fazem piada sobre o cofre do tamanho de um homem”. A caçada humana global que o JSOC estava agora plenamente autorizado a pôr em prática tinha muitas trilhas. O JSOC produziu listas de alvos com várias figuras da Al-Qaeda que eles tinham permissão para perseguir globalmente, listas de “irrecuperáveis” que podiam ser mortos, outros que eles podiam deixar que se deslocassem livremente na tentativa de reunir informações sobre seus contatos ou sobre suas células. Embora alguns possam ter considerado escandaloso o que estava acontecendo com a Força-tarefa 121 no Iraque e no Afeganistão, aquilo foi, de muitas maneiras, a visão definitiva do tipo de guerra que Rumsfeld e Cheney queriam: nada de prestação de contas, máximo sigilo e total flexibilidade. Scott Horton, advogado de direitos humanos, disse que o programa
é comparável ao que o Gabinete de Serviços Estratégicos (Office of Strategic Services, OSS) fez durante a Segunda Guerra Mundial e ao que a CIA fez posteriormente. Assim, em certa medida, essa função não é rara. Não é raro que as Forças Armadas tenham comandos que, num palco de guerra, procurem comandos e controles inimigos com o objetivo de identificálos e matá-los. E sim, era possível entrar num café e atirar em alguém. E isso seria um ato de guerra tradicional e autorizado. O que é diferente neste caso é que de repente o palco de guerra tomou o mundo todo — ele está em toda parte. E eles consideram a possibilidade de assassinar pessoas em Hamburgo, na Alemanha, na Noruega e na Itália, assim como em Marrocos, Jordânia, Senegal, Turquia, Iêmen, Filipinas e em pontos do Chifre da África. E eu diria que, em termos legais, isso é absolutamente ilegítimo,24 já que ocorre fora do palco de guerra normal.
No fim de 2004, Rumsfeld enviou um memorando a seus principais conselheiros, entre eles Cambone e Douglas Feith. Era confidencial, com a tarja FOUO (For Official Use Only, Para Uso Oficial Exclusivo) e tinha como tema “Preparação do espaço de batalha”.25 Nele, Rumsfeld dizia que estava preocupado com “a velha frase ‘preparação do espaço de batalha’ já não ser a terminologia adequada”. Hoje em dia, declarou, “o mundo inteiro é o ‘espaço de batalha’”.
O uso de drones armados ainda dava seus primeiros passos26 nas guerras globais dos Estados Unidos, mas os drones de vigilância já estavam em operação havia anos. A Força-tarefa do JSOC começou a usar um sistema que Mike Flynn, o vice de Inteligência de McChrystal, chamava de “Olho que Não Pisca”,27 no qual drones e outras aeronaves realizariam uma “vigilância aerotransportada permanente” para “aplicar observação com multissensores 24 horas por dia para chegar a um conhecimento maior sobre o funcionamento das redes inimigas, mediante a construção de um modelo de análise” que pudesse ser usado para orientar incursões. Usando aquilo que Flynn chamou de “análise nodal”, eram construídos modelos de movimentos que rastreavam pessoas suspeitas de ligação com um grupo rebelde ou uma célula. A análise nodal, acreditava Flynn, teria
o efeito de tomar um inimigo obscuro e revelar sua infraestrutura física para finanças, reuniões, quartéis-generais, contatos com a imprensa e fornecimento de armas. Em consequência disso, a rede se tornaria mais visível e vulnerável, neutralizando assim a vantagem desigual do inimigo de proteger um alvo. A recompensa dessa análise é significativa, mas é preciso paciência para deixar que o quadro da rede vá se desenhando durante um longo período e aceitar o risco de perder a presa.
Finalmente, a Força-tarefa faria “seguimento de veículos”, com que monitoraria os movimentos de veículos supostamente usados pelos insurgentes. Em algumas ocasiões, a Força-tarefa usaria três patrulhas de combate aéreo para vigiar um alvo ou um grupo de pessoas. “Não basta ter uma porção de olhos postos num alvo — é preciso ter os olhos postos no alvo durante longo tempo”, afirmou Flynn. Com essa abordagem, seria obtida
vigilância contínua de um alvo enquanto ao mesmo tempo se constrói o modelo de vida através da análise nodal e do seguimento de veículos. Ela proporciona ao comandante da força militar outras opções além de matar ou deixar ir embora um inimigo sob observação; com Inteligência, Vigilância, Reconhecimento (Intelligence, Surveillance, Reconnaissance, ISR) suficiente, o comando de uma força pode demonstrar uma paciência operacional muito maior, permitindo que se revele uma rede de insurgentes muito maior.
O que distingue as forças do JSOC das tropas convencionais, disse Flynn, é que no grande exército “as forças são mais propensas a cobrir alvos diferentes durante períodos mais curtos do que a SOF, que tende a focar a busca num número menor de alvos por muito mais tempo”. O JSOC precisava entender “os modos de vida de uma rede inimiga”.
O Comando de Operações Especiais começou a trabalhar também num programa de monitoramento de insurgentes, tanto os já conhecidos quanto os suspeitos, que parecia ter saído de um filme de ficção científica. Conhecido pelo nome de Identificação, Rastreio e Localização Clandestinos e Contínuos28 (Continuous Clandestine Tagging Tracking and Locating, CTTL), consistia no uso de biometria e química de ponta para produzir um programa de reconhecimento facial e também uma “impressão digital térmica humana” para cada pessoa. Usavam também um “traçador químico biorreativo”29 com o qual marcavam pessoas raspando discretamente uma parte de seu corpo. O traçador emitia um sinal que o JSOC podia monitorar de longe, o que lhe permitia rastrear pessoas 24 horas por dia, 365 dias por ano. Era como uma versão moderna dos antigos dispositivos caça-fantasmas do cinema, que os espiões costuravam nas roupas do inimigo ou instalavam no piso de seu veículo. O traçador permitia que o JSOC marcasse prisioneiros, soltando-os depois para investigar se eles conduziriam a Força-tarefa a uma possível célula terrorista ou rebelde. Marcar pessoas que não estivessem presas apresentava mais dificuldade, mas mesmo assim era possível. O uso dessa tecnologia, junto com o ritmo acelerado de assassinatos e capturas, inspiraria o presidente Bush a dizer que o “JSOC é assustador”.30 Embora o Iraque consumisse a maior parte dos recursos de contraterrorismo dos Estados Unidos, a Casa Branca e o Pentágono davam continuidade a suas guerras crepusculares em outras partes do mundo, e a guerra do Afeganistão se deteriorava, praticamente esquecida. Bin Laden ainda estava à solta, como muitos de seus principais seguidores, e o pronunciamento de Bush sobre o “procura-se vivo ou morto” tinha sido relegado a motivo de chacota e símbolo de uma guerra fracassada, ainda que em expansão. O mulá Omar estava foragido, a situação no Paquistão se complicava, e a Somália e o Iêmen eram cada vez mais vistos no radar do contraterrorismo. À medida que aumentavam as baixas americanas no Iraque, em decorrência do agravamento da insurreição, o presidente Bush pressionava os comandantes31 sobre quantas pessoas tinham matado a cada dia. Os generais das forças convencionais muitas vezes hesitavam diante da pergunta, mas a resposta do JSOC era inequívoca. Quando lhe perguntavam quantos iraquianos a Força-tarefa matara no Iraque, o chefe da Inteligência de McChrystal, Mike Flynn, respondia: “Milhares, nem sei quantos foram”.32 No Iraque, a Força-tarefa tinha começado a tornar realidade os mais caros sonhos de Rumsfeld e Cheney, mostrando de que uma força secreta compacta e com recursos era capaz — conseguindo ainda manter-se longe dos olhares curiosos do Congresso, da imprensa e até mesmo da CIA. Embora Rumsfeld e Cheney já estivessem passando por cima da cadeia de comando militar convencional e tratando diretamente com o JSOC, eles agora tinham todas as peças do quebracabeça encaixadas. A Força-tarefa que fora montada e aperfeiçoada no Afeganistão e no Iraque estava a ponto de globalizar suas ações e ir além dos campos de batalha declarados. McChrystal começou a estabelecer uma rede de gabinetes de ligação do JSOC33 em diversos países do Oriente
Médio e em outras regiões para evitar depender de embaixadas americanas e chefes de postos da CIA ou trabalhar com eles. “O DoD está ansioso34 para alavancar seu envolvimento em atividades contraterroristas e de olho em responsabilidades e atribuições operacionais tradicionalmente confiadas à CIA”, afirmou Brennan, que na época chefiava o Centro Nacional de Contraterrorismo.
Infelizmente, o importante papel de liderança da CIA em muitas dessas áreas vem sendo firmemente erodido, e a atual militarização de muitas funções e responsabilidades da Inteligência do país será vista como um grande erro num futuro muito próximo.
Na esteira do escândalo das WMDs, nos primórdios da Guerra do Iraque, profissionais veteranos da Inteligência já se preocupavam com uma possível perda da isenção nas análises feitas pela CIA em benefício de programas políticos. Com o JSOC sendo usado como uma operação de Inteligência paralela à da CIA — e com forças para atuar sem uma fiscalização independente —, eram grandes as possibilidades de abuso do poder militar substancial e sigiloso. O coronel Patrick Lang, que já comandara as operações globais de Inteligência humana da DIA, concordava com Brennan a respeito dos riscos das inovações implantadas por Rumsfeld e Cheney na estrutura de comando. “Quando se fez do Socom um comando apoiado em lugar de um comando de apoio, liberou-se [o JSOC] para fazer qualquer tipo de coisa”, disse ele.
Fazer coisas como essas sem coordenação com o embaixador dos Estados Unidos naquele país nem com o governo do país em questão não passa de uma espécie de banditismo. Quero dizer que com isso estaremos pedindo algum tipo de retribuição, por alguém em nosso próprio quintal, contra nosso próprio povo. Não é uma boa ideia, em absoluto.35
Que se danassem os críticos, o modelo do JSOC no Iraque estava a ponto de sair em turnê. “Com as nossas Forças de Operações Especiais, temos capacidade de travar a guerra de forma muito discreta, e de um jeito que não vai exigir muita fiscalização por parte do Congresso”, disse Exum. A ideia, disse ele, era a seguinte: “Você tem um braço executivo forte que tem uma espécie de licença para fazer guerra onde for necessário, onde ele resolver que é necessário, no mundo inteiro. Se você dispõe desse ótimo martelo, por que não iria pregar uns pregos?”.36
No começo de 2005, eclodiu uma disputa por debaixo dos panos37 entre a CIA, o Centcom e o Pentágono sobre quem teria o papel principal no combate à Al-Qaeda no Paquistão depois que alguns relatórios da Inteligência americana fizeram crer que o segundo homem da Al-Qaeda, Ayman al-Zawahiri, participaria de uma reunião a realizar-se na área tribal de Bajaur, no
Waziristão. O general McChrystal insistiu muito numa incursão para capturar Zawahiri, e alguns altos funcionários da CIA queriam que ele fizesse isso sem informar o embaixador americano em Islamabad, Ryan Crocker. Anthony Shaffer disse que ele e os planejadores das Operações Especiais americanas teriam preferido realizar essa missão sem informar a CIA também. “Achamos que havia uma probabilidade de que em algum momento a CIA — sem querer ou intencionalmente — daria à ISI informações sobre o que estávamos fazendo”, ele me disse. “Em resumo, a ideia era que tocássemos a coisa sozinhos. Achávamos que não se podia confiar muito na CIA nem nos paquistaneses.” E acrescentou: “Existem alguns alvos que os paquistaneses jamais nos ajudariam a pegar”.38 A CIA, no entanto, estava bem consciente dessa operação. Equipes dos SEALs da Marinha e dos Rangers do Exército que estavam no Afeganistão se preparavam para subir a bordo de um avião e dar início à operação — integrada por não menos de cem comandos — quando a briga entre a CIA, o Centcom e o Pentágono tornou-se tão séria que a operação foi abortada. Um ex-dirigente da CIA declarou ao New York Times que a incursão era controversa e que ele “dissera aos caras das Forças Armadas que aquilo seria a maior besteira39 desde a baía dos Porcos”. Shaffer disse que as regras para atacar dentro do Paquistão tinham “mudado radicalmente” e “se tornaram restritivas a um ponto que eu não imaginava possível”, e acrescentou: “O formato da guerra mudava sob nossos pés”. Segundo Shaffer, o general McChrystal continuou pressionando para obter permissão para agir no Paquistão”, e acrescentou:
Tenho certeza de que havia uma decisão política tomada em algum nível que restringia nossa possibilidade de executar operações transfronteiras e assim tratar das coisas que todos, de nosso ponto de vista, acreditávamos que eram o verdadeiro problema. O problema verdadeiro era o Paquistão, não o Afeganistão.
Foi então que, em outubro de 2005, o Paquistão foi atingido por um terremoto de magnitude 7,6. Morreram cerca de 75 mil paquistaneses. Milhões ficaram desalojados. O JSOC e a CIA aproveitaram a confusão40 para encher o país de quadros operacionais, prestadores de serviços e comandos, sem a verificação de antecedentes normalmente exigida pela ISI. Segundo os jornalistas Marc Ambinder e D. B. Grady, as equipes de Inteligência do JSOC que entraram no Paquistão com a CIA tinham diversos objetivos, entre eles cultivar círculos de informantes que buscassem informações sobre a Al-Qaeda e a respeito de como o Paquistão transportava suas armas nucleares. A força de elite americana queria também infiltrar-se na ISI. “Como parte de um programa secreto cujo codinome era CAPTURA DE TELA,41 o JSOC, juntamente com pessoal da DIA e prestadores de serviços, foi autorizado a seguir e identificar membros da ISI suspeitos de simpatizar com a Al-Qaeda”, disseram Ambinder e Grady. “Não se sabe se as unidades do JSOC usaram de força letal contra esses funcionários da ISI: um de seus
homens disse que o objetivo do programa era rastrear terroristas através da ISI usando contrainformação e guerra psicológica.” Apesar dessa incrível oportunidade, nem o Afeganistão nem o Paquistão receberam muita atenção no plano de guerra do governo Bush. Pelo contrário, os principais quadros operacionais do JSOC e da CIA foram mais uma vez redirecionados para o Iraque, a fim de enfrentar a insurreição que se disseminava rapidamente, o que transformava em farsa as afirmações do governo de que as forças americanas seriam recebidas como libertadoras. A unidade da CIA encarregada de caçar Bin Laden, o posto Alec, foi desativada. “Isso claramente prejudicaria nossas operações contra a Al-Qaeda”, disse um alto ex-dirigente da CIA, Michael Scheuer, o primeiro diretor da unidade. “Atualmente, na agência, Bin Laden e a Al-Qaeda parecem ser tratados apenas como os primeiros entre iguais.”42 O chefe do braço de operações clandestinas da CIA, Jose Rodríguez, reorganizou a guerra secreta americana no Paquistão sob o codinome operação Bala de Canhão. Em tese, seria uma tentativa de reforçar a perseguição à Al-Qaeda. Mas com a maior parte dos efetivos veteranos da CIA e de Operações Especiais atolados no Iraque, a operação foi executada por pessoal sem experiência. “Temos um número bem limitado de agentes com experiência operacional no mundo islâmico”, disse ao New York Times um antigo funcionário da Inteligência. “Todos estão no Iraque. Estávamos todos prejudicados pelo Iraque.”43 A guerra secreta no Paquistão tornouse em grande medida uma campanha de bombardeio com drones, o que o pessoal da CIA na embaixada americana em Islamabad chamava de “meninos com seus brinquedos”.44 A campanha dos drones eliminou diversos suspeitos da Al-Qaeda e supostamente perdeu Zawahiri por pouco, mas também resultou em dezenas de civis mortos, protestos e indignação entre os paquistaneses. Embora os ataques com drones da CIA tenham se tornado a principal arma dos Estados Unidos no Paquistão naquele período, as forças do JSOC conseguiam, às vezes, executar operações de guerra esporádicas, ainda que “com muito protesto dos paquistaneses”, segundo Shaffer. Numa incursão de 2006 em Damadola, Bajaur, os SEALs do DEVGRU atacaram uma casa suspeita e prenderam várias pessoas. “Chegaram de helicóptero,45 desceram por cordas e entraram no edifício”, relatou ao Los Angeles Times um ex-funcionário americano que conhecia a operação. “Do ponto de vista tático, foi uma operação bem executada.” Mas fontes da imprensa paquistanesa viram-na de outro modo. “Soldados americanos violaram o espaço aéreo paquistanês,46 chegaram à cidade em helicópteros, mataram oito pessoas na casa do clérigo Maulana Noor Mohammad e levaram mais cinco para o Afeganistão”, relatou o jornalista Rahimullah Yusufzai. Com recursos minguados em virtude da intensificação da insurreição no Iraque, o governo Bush começou a terceirizar sua guerra no Paquistão. Entrou em cena a Blackwater, empresa mercenária secreta de Erik Prince já conhecida por seu infame trabalho no Iraque. Como a CIA, a Blackwater tinha seu próprio disfarce: segurança diplomática. Desde os primeiros momentos da
GWOT, seus quadros operacionais eram capazes de acudir em grande número a zonas de guerra como se fossem guarda-costas de autoridades americanas. A Blackwater era a guarda pretoriana de elite dos altos funcionários dos Estados Unidos que dirigiam a ocupação do Iraque e ao mesmo tempo trabalhavam para o Departamento de Estado, o Pentágono e a CIA, proporcionando segurança a suas operações em zonas de conflito no mundo todo. Além disso, a empresa conseguiu contratos de treinamento de forças militares estrangeiras, inclusive o Corpo de Fronteira do Paquistão,47 a força federal paramilitar oficialmente responsável pela repressão a terroristas ou militantes nas áreas tribais Enquanto isso, do lado afegão da fronteira, a Blackwater controlava quatro Bases Operacionais Avançadas,48 inclusive a americana mais próxima da fronteira com o Paquistão. Tudo isso era muito atraente tanto para o JSOC quanto para a CIA. Segundo Shaffer, entre as funções que a Blackwater desempenhava para a CIA estava o treinamento de milícias afegãs para incursões no Paquistão, o que permitia aos Estados Unidos negar que realizassem tais incursões.
Cuidei de dois KIAs [mortos em ação] da CIA/Blackwater, atingidos quando desempenhavam uma missão […] essencialmente exercendo a função de Operações Especiais, treinando milicianos afegãos para fazer coisas além da fronteira. Essa é uma coisa que eles faziam e da qual com certeza não gostariam de falar.
Uma das razões para contratar a Blackwater, acrescentou Shaffer, “era a evitar fiscalização”. Muitos dos quadros operacionais de elite da empresa, principalmente os que trabalhavam em sua divisão mais melindrosa, a Blackwater Select,49 eram veteranos das Operações Especiais. Não era difícil para eles, portanto, servir a dois senhores: a CIA e o JSOC. Enquanto aquela tinha como função ocupar-se de várias tarefas ligadas à Inteligência, este tinha uma ocupação central no mundo todo: a morte e captura de Alvos de Grande Valor. Em 2006, doze “operadores de ação tática” da Blackwater foram recrutados para uma incursão secreta do JSOC no Paquistão contra instalações da Al-Qaeda. O codinome da operação era Fúria Vibrante.50 O envolvimento da Blackwater demonstrou o quanto a empresa tinha se tornado importante para as ações secretas dos Estados Unidos.
Em 2005, Abu Musab al-Zarqawi intensificou sua campanha sem trégua contra xiitas iraquianos e muçulmanos sunitas que ele julgava fracos ou inoperantes. Achando que o assassinato de muçulmanos por Zarqawi seria um tiro que sairia pela culatra, a liderança central da Al-Qaeda procurou o militante jordaniano. Numa carta a Zarqawi, em julho de 2005, o braço direito de Bin Laden, Ayman al-Zawahiri o cobriu de elogios por seu papel na jihad, enfatizando
que o primeiro objetivo no Iraque seria expulsar os invasores americanos. A guerra sectária contra os xiitas, declarou Zawahiri, era “de menor importância ante a agressão externa”,51 e a Al-Qaeda no Iraque devia privilegiar o apoio a uma revolta popular contra os americanos. Zawahiri advertiu Zarqawi:
Na ausência desse apoio popular, o movimento islâmico mujahed seria esmagado nas sombras, longe das massas, intimidadas ou com sua atenção desviada, e a luta entre a elite jihadista e as autoridades arrogantes ficaria confinada a masmorras longe do povo e da luz do dia. É exatamente por isso que lutam as forças seculares apóstatas que controlam nossos países. Essas forças não pretendem exterminar o movimento islâmico mujahed; o que elas querem é isolá-lo das massas muçulmanas desorientadas ou atemorizadas. Portanto, nosso plano deve considerar o envolvimento das massas muçulmanas na batalha e levar o movimento mujahed até elas.
Zarqawi, no entanto, parece não ter dado a menor atenção a Zawahiri. No começo de 2006, seu grupo formou o Alto Conselho dos Mujahedin, que imediatamente ameaçou líderes sunitas na província de Anbar — que estava na linha de frente de combate aos Estados Unidos — de “fazer de vocês um exemplo52 para todos e para cada um” se não se unissem à Al-Qaeda. Em fevereiro de 2006, o grupo de Zarqawi praticou um atentado a bomba num dos lugares mais sagrados dos xiitas, a mesquita de Askariya em Samarra, destruindo sua famosa cúpula dourada. O breve período de levante nacional unificado contra os americanos no Iraque chegara ao fim. Zarqawi cometeu um terrível erro tático ao atacar as tribos sunitas de Anbar. Isso empurrou tribos antes antiamericanas para uma aliança com os ocupantes.53 Os Estados Unidos lhes deram armas, dinheiro e apoio em troca de combate ao grupo de Zarqawi. Com isso e com o apoio aos esquadrões da morte xiitas, os Estados Unidos tiveram sucesso na tentativa de iraquizar sua guerra contra o terrorismo. Embora anos depois o general Petraeus tenha ficado com o crédito de “vencedor” da Guerra do Iraque, por meio de uma escalada das tropas, ele também ajudou, juntamente com Zarqawi, a destruir o Iraque e a criar um banho de sangue sectário que continuaria bem depois da ocupação americana. Petraeus seguiria em sua carreira ascendente rumo à proeminência e ao poder dentro do aparelho de segurança nacional dos Estados Unidos, mas os dias de Zarqawi estavam contados. Em junho de 2006, o JSOC achou e atacou o terrorista jordaniano, acabando54 com ele. Em 7 de junho, membros da Força-tarefa foram enviados de helicópteros a um palmeiral em Hibhib, onde Zarqawi fora localizado pela Inteligência americana e jordaniana. Alguns comandos desceram sobre a aldeia por meio de cordas. Em instantes, a Força-tarefa cercou a aldeia. Segundo testemunhas iraquianas, os americanos foram recebidos a tiros, disparados de uma casa, seguindo-se um breve tiroteio. A força americana decidiu não correr
riscos e chamou um F-16, que lançou sobre a casa uma bomba de duzentos quilos, guiada a laser. Pouco depois, outra bomba igual atingiu a casa. Zarqawi estava morto.
17. “Grande parte daquilo era de legalidade duvidosa”
FONTE: “CAÇADOR” — Embora eu tenha começado a cobrir as guerras americanas na década de 1990, passando muito tempo na Iugoslávia, no Iraque e em outras partes do Oriente Médio, o JSOC só entrou em meu radar quando já ia bem avançada a ocupação americana do Iraque. Eu não tinha noção da abrangência das operações do JSOC nem de como elas se relacionavam (ou não se relacionavam) com as unidades militares convencionais e com a CIA. Meu passaporte pessoal para o JSOC foram fontes que cultivei quando trabalhava em minha investigação sobre a prestadora de serviços militares privada Blackwater, que empregava grande quantidade de exintegrantes das Operações Especiais, muitos dos quais tinham trabalhado com o JSOC e com a CIA. Em diversos casos da Blackwater que eu estava pesquisando, a sigla JSOC aparecia com regularidade. Quando comecei a investigar aquilo que cada vez mais se tornava uma guerra secreta global, recebi um comunicado eletrônico de um homem capaz de ajudar a dar sentido a esse mundo ultrassecreto. Quando começamos a nos comunicar, fiquei um tanto paranoico a respeito dele. Meu computador acabava de ser invadido e eu recebera uma série de telefonemas e e-mails ameaçadores em relação a meu trabalho sobre a Blackwater e o JSOC. Assim, quando ele entrou em contato comigo, a ocasião me pareceu suspeita. Ele se apresentou como um americano patriota que acreditava na GWOT, mas se disse profundamente preocupado com o papel que a Blackwater estava desempenhando nessa guerra. Tinha lido meu livro sobre a empresa, me viu na TV e decidiu entrar em contato. De início, eu não lhe disse nada sobre o JSOC. Falamos apenas da Blackwater. Quando eu o pressionava para que falasse de seu papel nas diversas guerras americanas, ele mudava de assunto ou dizia coisas tão vagas que praticamente poderia ter sido um integrante de qualquer unidade. Por fim, após nos comunicarmos durante alguns meses por meio de mensagens eletrônicas criptografadas, passei a acreditar que ele estava autenticamente interessado em me ajudar a entender o que era o mundo do JSOC. Depois que ganhamos confiança mútua, ele disse que queria falar comigo sobre o que fazia, com uma condição: que nos víssemos pessoalmente. Decidi chamá-lo de “Caçador” porque quando finalmente nos encontramos, foi num motel de quinta a um passo de Fort Belvoir, na Virgínia, sede da ala de Inteligência do JSOC.1 O motel chamava-se The Hunter (O Caçador). Acabou sendo o cenário adequado para o primeiro de muitos encontros ao longo de anos. O Caçador servira sob as ordens do general McChrystal, do
almirante McRaven e de diversos comandantes de forças-tarefas de Operações Especiais, e participara das operações dessa organização tão cercada de sigilo, no momento mais transformador de sua história. Não há muita coisa que eu possa dizer publicamente a respeito do que o Caçador fazia ou ainda faz por causa da natureza coesa da comunidade de Operações Especiais e porque lhe dei minha palavra de que nunca daria pistas de sua identidade. Os membros dessa comunidade quase nunca falam com repórteres e com certeza não falam sobre algumas das operações mais delicadas que executaram. O que posso dizer é que depois que passei a me encontrar com o Caçador, pressionei-o a me dar provas de que ele era quem dizia ser e de que fora testemunha ou participante dos acontecimentos sobre os quais estava informando. Ao longo dos anos, ele me mostrou suas várias insígnias do DoD e deu provas de suas atividades, assim como fotos dele em vários países. Verifiquei seus documentos com fontes competentes, embora escondendo sua identidade, e constatei que era tudo verdade. Há pouco que eu possa dizer de boa-fé sobre ele, além do fato de que trabalhara com o JSOC e diversas outras forças-tarefas confidenciais, em operações executadas em campos de batalha reconhecidos ou não. Ao longo de vários anos e dezenas de encontros e conversas, o Caçador dividiu comigo sua análise sobre a ascensão do JSOC. Deixou claro que não me passaria informações confidenciais e que não poria em risco a integridade de nenhuma operação. Disse-me que tinha grande admiração pelo general McChrystal e pelo almirante McRaven, e que os integrantes do JSOC, chamados por ele de “gente que tem uma crença verdadeira na nação e em nossos ideais”, eram os melhores guerreiros à disposição dos Estados Unidos. Qualificou o treinamento exigido para a formação de SEALs, de membros da Força Delta e de outros quadros operacionais como o mais rigoroso do planeta. Essas Unidades de Missões Especiais “recebem um alto grau de autonomia para a ação direta, para missões contraterroristas especiais de reconhecimento em nome dos Estados Unidos, quase exclusivamente em sigilo”. Pela natureza de seu trabalho e pelo sigilo que o cerca, “existe ali potencial para abuso”. O Caçador atribuiu a ascensão do JSOC à condição de principal força antiterrorista depois do Onze de Setembro à opinião generalizada, no governo Bush e na comunidade de Operações Especiais, de que a CIA não estava à altura da tarefa de travar uma guerra global. Em um dos nossos primeiros encontros, afirmou:
Havia uma profunda insatisfação com o nível da Inteligência humana e com as operações paramilitares que estavam sendo executadas em nome da Agência, e com o tempo o Comando Conjunto de Operações Especiais tornou-se, com efeito, o braço militar do governo, no sentido de que se encarregaria de realizar os desejos das autoridades máximas em relação ao cumprimento de metas políticas. Depois do Onze de Setembro, a função do JSOC ampliou-se significativamente, e o funil, por assim dizer, foi ativado. Bilhões e bilhões de
dólares eram canalizados para o Comando de Operações Especiais e, por sua vez, encaminhados ao JSOC. E isso coincidiu com uma latitude e uma liberdade de movimentos muito maiores — a autonomia.
O Caçador indica Cheney, em particular, como o personagem do governo mais obcecado pela transformação do JSOC. “Eu tinha sempre a impressão de que [Cheney] compreendia os meandros do DoD e de todos os seus componentes e agências”, lembrou Hunter.
Cheney entendia que para remodelar radicalmente as Forças Armadas americanas e situá-las numa nova base para uma “Guerra contra o Terror” ou para uma “Guerra Prolongada” — o que agora é chamado de “neutralizar o extremismo” — ele teria de atribuir cada vez mais autoridade e responsabilidade aos elementos mais obscuros das Forças Armadas, o que acabaria resultando no fato de o Comando de Operações Especiais ter o papel principal no tocante à execução de operações de contraterrorismo no mundo todo.
O governo Bush, disse o Caçador, mudou o propósito das autorizações para “Preparação Operacional do Espaço de Batalha”, que, como ele diz, permite que as Forças Armadas americanas “lancem as bases de qualquer operação militar possível ou futura, enviando coletores de informações, ou linguistas, a um teatro, a um lugar onde não exista necessariamente uma guerra declarada, para ‘preparar o campo de batalha’”. Durante o governo Bush, diz ele, “isso de alguma forma foi desvirtuado para operações paramilitares, normalmente secretas, sem sombra de prestação de contas. Eles diziam uma coisa ao Congresso, mas faziam outra”. Ele falou do programa paralelo do JSOC de transferências de pessoas de um país para outro, usado para prender e interrogar pessoas. Entre elas havia algumas que o governo “tinha previsto não entregar ao Departamento de Justiça, nem permitir que o Departamento de Estado, ou o embaixador extraordinário para Crimes de Guerra e a Agência Central de Inteligência se envolvessem nos casos. Eles executavam suas próprias operações de detenção”. O Caçador me contou que alguns de seus colegas começaram a questionar a forma como estavam sendo usados. “Havia bastante inquietação por parte das pessoas da comunidade a respeito daquilo que nos mandavam fazer, onde e com que objetivo. Muito daquilo era de legalidade discutível, e a maior parte se dava fora de qualquer campo de batalha estabelecido”, lembrou. Ele esclareceu também que uma considerável parcela da comunidade de quadros operacionais e funcionários do JSOC que “acreditava sinceramente” nas ideias de Rumsfeld e Cheney “e estava plenamente consciente da natureza extralegal das operações em si, era conivente com elas e acreditava que elas contavam com a anuência superior do secretário de Defesa e, em última instância, da Casa Branca”. Os caras do JSOC “são como um bando de lobos
que serve como ponta de lança, fazendo coisas que uns acham que cabem a Deus, outros que cabem aos Estados Unidos”, disse ele. Rumsfeld e Cheney “alijaram intencionalmente a Agência e foram ao JSOC com parâmetros, objetivos e metas políticas que queriam alcançar para seus próprios propósitos políticos”. Quando lhe perguntei quais eram as operações que ele achava mais discutíveis, o Caçador respondeu prontamente: “Usar as Forças de Operações Especiais para espionar sem conhecimento do Departamento de Estado e da Agência Central de Inteligência, usar as Forças de Operações Especiais para capturar ou matar gente supostamente ligada a organizações extremistas pelo mundo afora, em alguns casos em países aliados”. Ele relacionou operações executadas pelo JSOC em dezenas de países, além do Iraque e do Afeganistão, entre os quais Somália, Argélia, Filipinas, Indonésia, Paquistão, Tailândia, Mali, Iêmen, Colômbia, Peru e diversos países da Europa e da Ásia Central. No mundo inteiro, o JSOC estava sendo usado para executar “operações fulminantes — fossem de captura ou de morte, em alguns casos de prender pessoas”. “Quem eram as pessoas marcadas para morrer?”, perguntei. “Gente ligada a alguma organização extremista, ou suspeita de vínculo com alguma organização extremista. Ou pessoas que davam refúgio ou dinheiro”, disse-me ele. “Que tipo de informação era necessário para se afirmar: ‘Temos luz verde’ para executar uma operação de assassinato dirigido fora de um campo de batalha?” “A maior parte delas era puramente circunstancial”, ele respondeu. “A maioria das operações se baseava em Inteligência acessível, mas não necessariamente em informações comprovadas. Acho que esse é o aspecto mais preocupante das operações que vazaram.” A ideia era, afirmou, “o mundo é um campo de batalha e estamos em guerra. Portanto, os militares podem ir aonde quiserem, fazer o que quiserem e assim cumprir os objetivos de segurança nacional, qualquer que seja o governo que esteja no poder”.
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